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Bernie Krause A grande orquestra da natureza Descobrindo as origens da música no mundo selvagem Tradução: Ivan Weisz Kuck

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Bernie Krause

A grande orquestra da naturezaDescobrindo as origens da música no mundo selvagem

Tradução:Ivan Weisz Kuck

Nota: Palavras destacadas em negrito indicam áudio disponível para audi-ção no endereço bit.ly/orquestranatureza

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. O som é meu mestre

Certa noite, minha colega Ruth Happel e eu estávamos embrenhados na selva amazônica gravando até tarde, sozinhos e a vários quilômetros do acampamento, sem nenhuma luz senão a de nossas lanternas. Com a in-tenção de registrar a ambiência noturna em diversos pontos, percorríamos a trilha atentos à tapeçaria sonora à nossa volta. No caminho, percebemos também o inconfundível cheiro com que uma onça próxima marcava o território. Nunca chegamos a ver ou ouvir o animal, mas sabíamos que estava perto, talvez a poucos metros, sempre parando para deixar suas marcas olfativas.

O odor almiscarado do felino era uma presença constante. Nossos sentidos estavam aguçados, mas nenhum de nós se sentia assustado ou percebia qualquer perigo imediato. Sentados em silêncio, a mais ou menos cinquenta metros um do outro, gravamos a textura acústica noturna da floresta tropical – a delicada combinação de gotas de chuva caindo sobre as folhas e o som de insetos, aves, anuros e mamíferos que se apresenta-vam num coro unificado, tal como fazem a cada dia e a cada noite desde o princípio.

Passada uma hora, guardamos nossos equipamentos e penetramos ainda mais na floresta, à procura de pontos de gravação com combinações mais variadas. Então, por volta da meia-noite, decidimos nos separar a fim de captar uma variedade ainda maior de sons noturnos que esperávamos encontrar naquele ambiente tão rico. Ruth seguiu em uma direção e eu em outra.

Após caminhar cerca de quinze minutos, sentei-me à margem da tri-lha e comecei a gravar os vigorosos corais tropicais de anuros, insetos e

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répteis. Só então escutei o rosnado grave do felino nos fones de ouvido. Eu havia deixado o volume bem alto, tentando captar os detalhes da frágil composição acústica da selva, e não estava em sintonia com meu inespe-rado visitante – nem havia me dado conta de que ele havia chegado tão perto. O registro repentino dos rosnados em meus ouvidos indicava que o animal estava a não mais do que um braço de distância dos microfones que eu havia instalado a uns dez metros na trilha.

No mesmo instante, fiquei plenamente alerta. Uma descarga de adre-nalina me deixou sem ação e senti o peito disparar. Tentando pensar numa escapatória – não havia nenhuma –, procurei me acalmar. Naquele mo-mento, tive a impressão de que as batidas do meu coração eram tão au-díveis que deixariam a fera sobressaltada. Mas permaneci absolutamente imóvel, prendendo a respiração no escuro.

O incidente não durou mais do que um minuto, mas tive a impressão de passar horas ali hipnotizado pela voz poderosa daquele animal, por sua respiração e pelos roncos de seu estômago. Até que, tão de repente quanto aparecera, a onça se afastou em silêncio para dentro da floresta, deixando para trás as ondas rítmicas das rãs, do coral de zumbidos dos insetos e do que restou de meu coração disparado.

Foi por um feliz acaso que me vi envolvido com os sons naturais. Co-mecei minha carreira musical como guitarrista de estúdio, gravando de tudo um pouco em Boston e Nova York. Até que, em meados dos anos 960, quando os músicos começavam a descobrir os sintetizadores, mudei- me para a Califórnia para assistir a aulas de música eletrônica no Mills College, onde conheci Paul Beaver, músico de estúdio de Los Angeles e organista de concerto que fizera carreira criando efeitos sonoros estranhos para longas-metragens como O monstro da lagoa negra e A guerra dos mundos.

Em seu ofício, Paul tirava sons assombrosos de suas ferramentas, sin-tetizadores rudimentares como o Ondes Martenot e o Hammond No-vachord, além do teremim, que emitia uma voz de soprano lúgubre e oscilante. Usava também invenções próprias, entre as quais um teclado sintetizador arquetípico de duas oitavas, que gerava efeitos agudos de fic-

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ção científica, ao qual deu o nome de “Canary”. Logo descobrimos nossa afinidade criativa, formamos a dupla Beaver & Krause e, juntos, introdu-zimos o sintetizador na música pop e nos cinemas californiano e britânico. Produzimos cinco álbuns e executamos a música e os efeitos de muitos filmes – incluindo O bebê de Rosemary, Apocalypse Now, Invasores de corpos e Performance – e de programas de televisão como Missão impossível, Além da imaginação e A feiticeira. Estávamos tão ocupados gravando uma sessão atrás da outra – chegávamos, às vezes, a oitenta horas por semana – que a única gravação de que me lembro com clareza foi uma com The Doors em Strange Days. No início da sessão, a música estava bem amarrada e vigorosa. À medida que o tempo passava, no decorrer de uma longa noite, as faixas iam ficando mais fragmentadas e pareciam se desfazer. Quando finalmente me dei conta de que a deterioração não era provocada pelo cansaço, jurei nunca mais chegar perto de droga nenhuma. O ano: 967.

Em 968, Paul e eu fomos contratados pela Warner Brothers para gra-var uma série de álbuns. O primeiro, intitulado In a Wild Sanctuary, seria a primeira peça musical a usar segmentos longos de sons selvagens como com-ponentes da orquestração e também a primeira a ter a ecologia como tema. Mas sermos os primeiros significava que nós mesmos tínhamos de registrar os sons. Com receio de estragar o terno transpassado de sarja azul e os sa-patos oxford – seu traje diário mesmo no clima sufocante de Los Angeles –, Paul se recusou a ir a campo, deixando a tarefa para mim.

Thomas Hardy fala de encontros fortuitos que mudam o rumo de nossa vida. Topar casualmente com outra pessoa. Uma carta perdida ou não lida. Um pôr do sol de cores vívidas. Uma performance musical. Em uma empreitada inédita, que tinha tudo para ser um desses encontros mencionados pelo escritor, saí com um gravador portátil compacto e um par de microfones para gravar nos arredores de São Francisco, onde mo-rava na época.

Era outubro, e não se ouviam muitos pássaros cantando na área – a maioria havia deixado o ninho, migrado ou estava em silêncio. Contudo, no instante em que liguei meu gravador no magnífico bosque de Muir Woods em um agradável dia de outono, em 968, minha sensibilidade

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acústica foi transformada pelo ambiente que me envolvia. A névoa de verão havia por fim se dissipado, e a copa das velhas sequoias filtrava os raios do sol outonal. A não ser por uns poucos aviões pequenos e um ou outro automóvel passando ao longe, o ambiente era dominado por um único som – um sussurro constante e tranquilizador – produzido por uma brisa suave que soprava nos galhos mais altos do bosque. Ainda que, de início, eu estivesse com bastante medo de ficar lá sozinho – mesmo em uma floresta administrada como Muir Woods –, a quietude acabou prevalecendo e me acalmando.

Como um binóculo, os microfones e os fones de ouvido traziam o som para um âmbito próximo e íntimo, revelando uma gama de detalhes nítidos que me eram inteiramente desconhecidos. Alguns pássaros cru-zaram o espaço estereofônico sobre mim – da direita para a esquerda –, e a ondulação das asas produzia uma cadência lenta, uma mistura diáfana de silvos e silêncios. Com minha aparelhagem portátil de gravação, não sentia que estava escutando como um observador distante; pelo contrá-rio, eu havia sido lançado a um espaço novo e me transformara em parte integrante da própria experiência. Era um daqueles momentos em que nos jogamos e que abraçamos de espírito aberto, temendo não durar e sabendo que experimentamos algo pelo qual sempre havíamos ansiado.

Sentado no chão sozinho com meu gravador, tentando me manter discreto e despercebido, me surpreendia com cada novo som. Muitas das texturas acústicas sutis se agigantavam através dos fones estéreo, cujo con-trole de volume eu pusera no máximo para não perder nenhum detalhe. O impacto foi imediato e poderoso. A impressão de leveza e amplidão era esplêndida e sedutora. O ambiente se transformou, revelando sutilezas mínimas que eu jamais perceberia de ouvidos desarmados – o som de mi-nha respiração; o ligeiro movimento de um pé que procura uma posição mais confortável; uma fungada; um pássaro pousando nas proximidades, levantando as folhas do chão ao alçar voo assustado, empurrando o ar ao bater as asas em movimentos curtos e rápidos.

Naquele momento, me dei conta de que os sons selvagens encerra-vam grande quantidade de informações valiosas à espera de decifração.

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Porém, eu ainda não tinha noção de até que ponto o mundo natural era preenchido por uma espantosa tagarelice. Como alguém poderia saber? Muitos de nós não conhecem a diferença entre a mera audição e a escuta. Ouvir passivamente é uma coisa, ser capaz de escutar ativamente, com plenitude e envolvimento, é outra.

Meus ouvidos ouviam os sons com indiferença, mas não eram treina-dos para distinguir as diversas nuances dos ambientes naturais intocados. Eu sempre usara meus ouvidos como filtros – para eliminar os ruídos – e não como portais para a entrada de um grande volume de informações. Um bom sistema de microfones me permite diferenciar entre o que escutar e no que reparar. Pelos fones, percebo os elementos da tessitura sonora com tal clareza de detalhes que ainda me surpreendo com quanto eu estava per-dendo. Um par de microfones estereofônicos transforma o espaço acústico. Quando aumento o volume um pouco acima do que sou capaz de ouvir sem o auxílio de algum aparelho, tenho a impressão de estar em “outro mundo”, algo que deve ser parecido com o que os astrônomos sentem diante de imagens da explosão de supernovas nos confins do Universo captadas pelo telescópio Hubble.

Dorothea Lange, a repórter fotográfica da era da Grande Depressão, dizia que a câmera é uma ferramenta que ensina a enxergar sem câmera. Bem, o gravador é uma ferramenta que ensina a escutar sem gravador. No instante em que ouvi pela primeira vez o coral de um alvorecer de prima-vera, finalmente dotando o cenário visual de uma trilha sonora adequada e amplificada pelos fones, percebi que, com a audição desfocada, minha experiência do mundo real perdia um de seus aspectos mais admiráveis. O som amplificado me dotou de um meio para decifrar a linguagem da natureza de uma maneira da qual meus ouvidos “aculturados” pela prática musical não seriam capazes sozinhos. Quando estava lá sentado gravando, eu muitas vezes sentia uma ânsia súbita de me juntar à performance. E naquele dia, ao deixar a floresta, fui tomado por um sentimento de incom-pletude. Era uma combinação de segredos importantes que permanecem não ditos ou não ouvidos e uma sensação de haver encontrado um cami-nho de descobertas que se aproximava muito de uma revelação divina.

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Em janeiro de 975, quando trabalhávamos em nosso quinto álbum, uma versão atualizada de um antigo sucesso pela Nonesuch Records, Paul des-maiou no palco durante um concerto em Los Angeles. Ele morreu no dia seguinte, de aneurisma cerebral. Arrasado pela perda de meu grande amigo e parceiro musical, completei o álbum (Citadels of Mystery) com um grupo de músicos que incluía Andy Narell e outros companheiros de estúdio. Foi então que comecei a repensar minhas escolhas profissionais. A meu ver, o último período verdadeiramente produtivo da indústria fo-nográfica havia passado. Cada vez mais cansado dos caprichos e dos egos hollywoodianos – apenas durante a produção de Apocalypse Now eu fora demitido e recontratado mais de meia dúzia de vezes –, decidi dar uma guinada. Aos quarenta anos, deixei o mundo musical que conhecia desde sempre e me matriculei num programa de pós-graduação, do qual saí doutor em artes criativas e especialista em bioacústica marinha.

Você pode estar pensando que deixei para trás o mundo da música, trocando-o pelos sons naturais. Na verdade, foi aí que o encontrei de fato.

Sem a água, a vida como a conhecemos não existiria. Não é nada fácil captar e reproduzir a sonoridade desse líquido, origem dos sons mais an-tigos. Seu borbulhar, murmurejar, marulhar, rugir e bater periódicos e multirrítmicos servem de pano de fundo para os temas musicais humanos desde que as primeiras músicas foram cantadas e as primeiras palavras pronunciadas.

Foi preciso percorrer todo o curso da história da música até que um compositor produzisse uma composição orquestral capaz de dar uma ideia do que é o mar – Debussy chegou perto com La mer, executada pela primeira vez em 905. Sua obra, porém, ainda dependia de evocações vi-suais e associações verbais para funcionar minimamente. Eis um exercício interessante: toque trechos da peça para alguém que nunca a tenha ou-vido e não conheça seu título. Pergunte o que ele acha que o compositor pretendeu transmitir. Quando fiz essa experiência, no final dos anos 990

– tocando os seis minutos do segundo movimento (“Jeux de vagues”) para uma turma de sétima série –, as respostas variaram de “viagem espacial”,

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“música para um filme sobre o campo”, “uma cena sobre uma família ou dinossauros” e “filme de faroeste” a “uma chatice”. Nenhum dos estudan-tes acertou que a música representava uma impressão do mar, nem mesmo que tinha a ver com água.

À primeira vista, a gravação dos sons aquáticos parece simples: instale um microfone à beira do oceano e aperte o botão de “gravar”. Contudo, por mais que tentasse, minhas primeiras tentativas pareciam não dar muito certo. Somos tão visuais que a maioria de nós, quando não enxer - ga muito mal, tende a escutar aquilo para que está olhando. Quando vol-tamos o olhar para os vagalhões que rebentam longe da costa, nossos ou-vidos e cérebro costumam filtrar tudo o que não é o ribombar longínquo, que transmite a impressão de distância e de uma incrível força. Quando contemplamos as ondas mais próximas, que quebram na beira da praia, ouvimos o estalo das pequenas bolhas rebentando na areia aos nossos pés, enquanto o rumor das vagas distantes desaparece ao longe.

Os microfones, porém, não têm olhos nem cérebro. Eles captam tudo o que está dentro do alcance para o qual foram projetados, sem nenhum filtro. Assim, acabei descobrindo que, para representar o som do litoral, era preciso gravar diversas amostras de diferentes distâncias: a algumas centenas de metros das margens, a meio caminho entre as dunas cober-tas de grama e a água, e bem na beira do mar. Depois, volto para casa e uso um programa de edição sonora para combinar todas as amostras em volumes variados, de modo que meu áudio reproduza melhor a mágica das ondas. Mas, em sua forma mais elementar, o que é exatamente isso que estou gravando? O que é o som?

É difícil dar uma descrição desse fenômeno que vá além de suas pro-priedades físicas – frequência, amplitude, timbre e duração. Apesar disso, o som desempenha um papel fundamental na maneira como as sociedades se expressam e é o fundamento da voz coletiva do mundo natural, da música e de todo tipo de ruído acústico.

Seus elementos básicos não podem ser abarcados por nossa linguagem, e para a maioria de nós o som sempre foi um enigma. Quando lhe pediram que o descrevesse, o compositor, naturalista e filósofo R. Murray Schafer

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respondeu: “Como eu poderia fazer isso? Nunca vi um som.” Schafer acer-tou em cheio: quantas vezes ouvimos a expressão “vejo o que você quer dizer”? Nossa linguagem é tão centrada na visão que, quando Paul e eu éramos convidados para compor a trilha sonora de um filme, os diretores muitas vezes descreviam a música que queriam em termos visuais: som-bria, clara, luminosa, turva e pardacenta.

Embora o som nos chegue por meios físicos, o reconhecimento de que ele não pode ser visto, tocado ou cheirado levou o sonoplasta Walter Murch, ganhador de um Oscar, a falar em um “sentido-fantasma”, que habita sozinho um reino etéreo e sem forma. Em seu ofício de engenharia de som, Murch e seus colegas fazem uma ponte entre essa dimensão fan-tasmagórica – manifesta sob a forma de diálogos, efeitos ou música – e a realidade visual bem mais concreta das imagens, acrescentando contexto e, assim, transformando ambos os elementos.

São muito recentes as tentativas de desconstruir os mistérios sonoros. Sendo o som algo difícil de conceituar, as descobertas são bastante lentas. Pitágoras, por volta de 500 a.C., foi o primeiro a descrever a estrutura harmônica de uma corda vibrante, lançando, assim, as bases para o es-tabelecimento dos princípios da acústica. Séculos mais tarde, Aristóteles provou que o ar era indispensável para a condução sonora. Ao longo dos últimos dois milênios, cientistas como Galileu, Newton e os construtores de anfiteatros gregos e romanos descobriram diversos aspectos do som. Mas foi somente em meados do século XIX, com a publicação do livro Doutrina das sensações sonoras, de Hermann Helmholtz, que o tema ganhou um tratamento completo e abrangente. O autor dissecou cada aspecto conhecido do tema – da música à física – e compilou sua história em um volume único. Nascido na década de 820, Helmholtz foi uma criança de saúde frágil, filho de família modesta que não podia bancar os altos custos de uma educação científica e matemática. Os pais o incentivaram a estudar medicina, pois assim teria acesso às instituições que lhe proporcionariam a educação desejada. Após formar-se médico, trabalhou por um breve período como cirurgião do exército prussiano. Sua carreira foi marcada por textos e descobertas importantes em uma ampla gama de áreas além

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da acústica, incluindo a física, a química, a óptica, a eletricidade, a meteo-rologia e a mecânica teórica. Uma de suas descobertas mais importantes se deu no campo da fisiologia, onde, por meio da estimulação elétrica de pernas de rãs, mediu com precisão os impulsos nervosos. Embora sepa-rados do corpo, os membros se moviam quando uma pequena corrente era aplicada. Helmholtz conseguiu computar o tempo exato que decorria entre o estímulo e o movimento, calculando assim a velocidade precisa das reações nervosas. Mas ele foi também um professor influente – um de seus discípulos foi Heinrich Hertz, cujo nome foi dado à unidade de frequência sonora – e passou boa parte de sua vida acadêmica fora da medicina, investigando os mistérios da música.

O que mais me impressiona são seus escritos sobre acústica – em espe-cial, sua descrição do famoso “ressonador de Helmholtz”, que, como um prisma que divide o espectro luminoso, separaria e identificaria cada uma das frequências sonoras de uma estrutura acústica complexa. Também im-pressionante – embora acabe sendo algo secundário diante da importância do ressonador – é o apêndice que trazia os padrões de afinação adotados em várias cidades e vilas europeias à época da publicação do livro. Mesmo com o uso generalizado do diapasão – instrumento de metal bifurcado do início do século XVIII que, quando percutido, produz um tom puro e constante –, Helmholtz descobriu que o lá médio, ou “de concerto”, variava de 373, hertz (Hz) em Paris a mais de 505Hz na Saxônia. Imagine um soprano tentando alcançar o mi bemol extremo que alcançou na noite anterior, mas num concerto afinado com referência em um lá de 500Hz

– quase o equivalente a um fá sustenido na afinação atual. Praticamente impossível. Hoje, muitas orquestras tomam a frequência de 440Hz como referência, mas, quando cheguei a Hollywood, em meados dos anos 960, a Filarmônica de Los Angeles era conhecida por seu lá de 442Hz, enquanto algumas orquestras europeias ainda adotavam um padrão mais sombrio de 438Hz.

Uma explicação possível para a curiosa anomalia musical na afinação do lá de concerto está na dureza variável das madeiras europeias usadas na época na caixa de ressonância dos instrumentos de corda, incluindo as

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harpas. Madeiras mais duras e densas permitiam que as cordas suportas-sem maior tensão, favorecendo uma afinação mais aguda e de sonoridade mais “luminosa”.

O tempo que eu passava em contato com a natureza era cada vez maior, e os escritos de Helmholtz me davam muito o que pensar. Os instrumentos foram feitos pelo homem para que uns complementassem os outros e, a partir do trabalho com os sons animais, comecei a me per-guntar sobre os motivos que levaram cada espécie a se estabelecer numa faixa específica – mais aguda ou mais grave do que as demais. Será que os animais, como participantes do coral complexo de um hábitat hostil, usam os sons de determinada frequência como uma referência rudimen-tar? Como e por que desenvolvem suas faixas específicas de vocalização? Qual seria o papel da fisiologia e do ambiente nesse desenvolvimento?

Graças, em parte, ao estudo histórico de Helmholtz, bem como a suas contribuições à ciência acústica, sabemos que o som se transmite sob a forma de ondas de pressão que percorrem o ar, os sólidos e os líquidos, e também que muitos sons têm atributos como frequência (também cha-mada de altura, termo que tende a ser mais relativo), timbre, amplitude e envelope acústico. Porém, mesmo havendo passado dois terços da vida tocando e compondo música, só comecei a entender seus componentes e a forma como eles interagem depois de iniciar meu trabalho com sintetiza-dores. Para gerar sons que se encaixassem numa composição, eu precisava saber exatamente como as quatro características se relacionam umas com as outras. O conceito de som é, por si mesmo, bastante abstrato e talvez só possa ser bem compreendido quando o controle sobre esses quatro parâmetros e a apresentação dos resultados num contexto reconhecível lhe confiram uma forma.

Seres humanos de audição perfeita são capazes de ouvir frequências compreendidas entre os extremos de 20 ciclos por segundo, ou 20Hz, e de 20.000Hz. Em um piano comum, a nota mais baixa é 27,5Hz e a mais alta, cerca de 4.86Hz. Os animais não humanos desenvolveram faixas diferentes de audição, sendo a mais ampla encontrada entre os cetáceos. Acredita-se

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que produzam e detectem vocalizações de menos de 0Hz (baleia-azul) e de até 200kHz (conforme relatos sobre o golfinho-do-ganges) – quase qua-tro oitavas acima do som mais agudo que podemos ouvir. Outros animais costumam ficar em algum ponto entre esses extremos – boa parte deles situando-se dentro da faixa de audição humana.

A altura está intimamente relacionada com a frequência, mas elas não se confundem. O termo altura é usado principalmente no quadro compara-tivo dos sons ou tons que constituem uma escala musical. Assim, enquanto a frequência é uma propriedade física do som – trata-se da medida do nú-mero de ciclos por segundo de uma onda sonora –, a altura diz respeito ao que nós escutamos. A escala cromática, por exemplo, é composta por doze tons separados por intervalos idênticos. Ao avançar na escala, percebemos que o aumento de altura de uma nota para outra é sempre o mesmo – um semitom, ou meio tom. Contudo, a mudança de frequência de uma nota para outra não é sempre igual – cada acréscimo sucessivo de um semitom requer um salto de frequência maior do que o anterior. Por exemplo, a passagem de dó a dó sustenido no piano (de 26,626Hz para 277,83Hz – uma diferença de aproximadamente 5,56 ciclos) requer um aumento de frequência menor do que a passagem do mesmo dó sustenido para um ré (277,83Hz para 293,665Hz – uma diferença em torno de 6,48Hz). A necessidade de uma variação maior entre o dó sustenido e o ré se deve à maneira pela qual os sons que chegam a nossos ouvidos são processados pelo córtex auditivo. O cérebro nos prega uma peça, nos fazendo ouvir o mesmo intervalo de um semitom entre as notas embora a diferença real em unidades de frequência aumente conforme ascendemos na escala.

O timbre é o som ou a voz característica produzido por cada tipo de instrumento ou por cada fonte sonora biológica. Não são apenas os instrumentos que têm características sonoras singulares, mas também todos os organismos vivos e a maioria das máquinas criadas pelo ho-mem. A diferença entre o som de um violino e o de um trompete é tão clara quanto a que existe entre os cantos de uma cigarra e de um tordo- americano, ou entre um cão e um gato – ou entre um Rolls-Royce e um carro de Fórmula .

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Quando começamos a reproduzir sons num sintetizador analógico, Paul Beaver e eu precisávamos entender como era produzida cada voz instrumental. No início, não fazíamos ideia de como isso seria compli-cado. Parte do problema está em tentar definir o som, ou timbre, de cada instrumento. No mundo não eletrônico e puramente físico, os instru-mentos são feitos de metal, de madeira ou de uma combinação de ambos. Alguns envolvem cordas e/ou membranas e muitos são tocados soprando, gol peando, dedilhando ou friccionando. Os diferentes instrumentos têm formas diferentes e cada um deles ressoa – ou soa – diferente.

A sonoridade da maioria dos instrumentos é bastante complexa. Cada um produz uma série de sobretons que contribuem para a percepção de seu timbre e que estão presentes em todas as notas tocadas, definindo seu som peculiar e inesquecível. Um clarinete, por exemplo, produz uma série de sobretons na qual alguns dos harmônicos – os sobretons que são múltiplos inteiros da nota tocada no instrumento – caem. Um violino produz uma sé-rie inteiramente diferente de sobretons. Quando o arco untado de breu passa sobre uma corda de cima para baixo – Giù arco, na linguagem musical –, pondo-a em movimento, produz-se uma série de sobretons na qual cada harmônico soa em um volume menor do que o anterior, o que resulta no colorido tonal característico do instrumento. Devido a uma combinação de sua estrutura física única e das técnicas necessárias à geração dos sons, cada entidade produtora de sons – seja animal ou constituída por componentes materiais inanimados – possui uma ressonância característica.

A intensidade, ou amplitude, é medida em decibéis. Um decibel, ou dB, é a menor unidade discernível pelo ouvido humano. É a menor diferença de amplitude que somos capazes de perceber. Se você consegue ouvir o zumbido de um mosquito voando a três metros de distância, então você tem um bom par de ouvidos, pois esse é o som mais baixo que um homem consegue detectar, ficando em torno de 5dBA (o acréscimo da letra A ao símbolo dB significa que a medição é calibrada de acordo com a maneira como a audição humana “normal” processa os sinais acústicos ao longo de toda a faixa de frequências). Normalmente, um ruído de 5dBA – essa é a intensidade do barulho de uma furadeira – é suficiente para provocar

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danos auditivos. A exposição contínua a esse som causa a falha das células ciliadas da cóclea, o que pode provocar surdez. Para alguns de nós, porém, níveis bem mais baixos são suficientes para provocar dor e danos. No meu caso, por exemplo, sons que ultrapassem os 90dBA já começam a causar desconforto, ou mesmo dor. Acontece que sou extremamente sensível aos sons, em especial aos mais altos.

Alguns animais, como os golfinhos, são capazes de emitir sons tão intensos que, se fossem produzidos no ar, equivaleriam ao disparo de uma arma de grosso calibre a poucos centímetros de nossa cabeça. Mas, guardadas as devidas proporções, um dos organismos mais barulhentos do reino animal é, por mais estranho que possa parecer, o camarão-pistola, que não chega a quatro centímetros. Muitos mergulhadores já ouviram esse som, pois o crustáceo é encontrado na maior parte das costas oceâ-nicas, em recifes e estuários. É um barulho parecido com os estalos de um rádio malsintonizado e permeia todo o espaço submarino, um sinal produzido pelas longas pinças do animal. Debaixo d’água, pode exceder os 200dB – um nível de pressão sonora equivalente a cerca de 65dB no ar. Considerando que uma variação de 6dB corresponde a uma multiplicação ou divisão por dois da intensidade de um som, podemos comparar o cama-rão-pistola a uma orquestra sinfônica, que pode chegar a picos de mais ou menos 0dBA. Na verdade, esse bichinho tão humilde e sem sofisticação não é superado nem mesmo pelo Grateful Dead, grupo de rock em cujos shows já foram registradas intensidades superiores a 30dB. Engulam essa, roqueiros: o camarãozinho é quase cinco vezes mais barulhento – e isso sem nenhuma aparelhagem sonora!

O som humano mais alto que já medi foi um grito de mulher. A voz dela chegava a 7dBA quando medida a uma distância de três metros – vo-lume um pouco maior do que a média dos shows de rock mais barulhentos. Mas, com a exceção de uma erupção vulcânica como a de Cracatoa, ou de um trovão dos mais fortes, não há muitos outros sons naturais gerados no ar que sejam capazes de causar dano auditivo.

A quarta das principais características do som, o envelope acústico, determina sua forma e textura ao longo do tempo, do momento em que

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começa a ser ouvido ao instante em que desaparece. Não importa onde vivemos e o que ouvimos – seja o som de todo um hábitat selvagem, como uma floresta tropical, ou um único pássaro; seja uma nota tocada em um piano ou um violão, seja um acorde tocado por uma orquestra inteira –, qualquer som ou sequência de sons tem um começo e um fim, e entre esses dois pontos pode ficar mais ou menos intenso. O período sonoro em sua totalidade, incluindo a transformação completa das características do som, é o que chamamos de envelope acústico.

Sons de impacto, como os de um tiro ou do golpe de uma baqueta na caixa de uma bateria, se elevam num tempo muito curto – vão do silêncio a uma grande intensidade em microssegundos – e também desaparecem muito rápido, dependendo de terem sido gerados num ambiente rever-berante ou não. Outros sons, como um crescendo tocado em um violino ou articulado por cigarras em uma floresta tropical, caracterizam-se por começar muito suaves, elevando-se lentamente até o ponto mais intenso. Sons desse tipo podem persistir por algum tempo e depois ir diminuindo aos poucos, até não serem mais ouvidos. Ao mesmo tempo, o envelope pode definir as feições da coloração tonal de um som instrumental. É o que acontece em um violão de cordas de aço, cuja sonoridade vai do suave e delicado ao rústico e distorcido, ou em um trompete, que, numa mesma frase articulada, pode soar explosivo, murmurante ou abafado.

Embora presentes em todo e qualquer sinal acústico – seja ele gerado por animais, homens, instrumentos musicais ou máquinas –, os elementos do som constituem apenas uma parte do que constitui a sonoridade coletiva de determinada localidade. A palavra soundscape [paisagem sonora] apa-receu na língua inglesa em fins do século XX e se refere à totalidade dos sons que chegam a nossos ouvidos em determinado momento. A criação do termo é atribuída a R. Murray Schafer, entusiasta e estudioso da so-noridade de diversos hábitats. Schafer buscava maneiras de enquadrar a experiência auditiva em novos contextos não visuais. Ao mesmo tempo, sua meta era nos incentivar a prestar mais atenção na tessitura sonora dos ambientes, onde quer que vivêssemos.