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1 A GRATUIDADE DO ENSINO SUPERIOR NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS E A TUTELA DO DIREITO AO ACESSO À EDUCAÇÃO SUPERIOR Luciana Lopes Canavez 1 . Paulo Henrique Miotto Donadeli 2 . RESUMO: O artigo objetiva analisar a gratuidade do ensino superior público como fundamento para a tutela do direito ao acesso à educação superior. O cerne da discussão é a insuficiência de recursos por parte do Estado, seja em razão do crescimento da demanda ou da necessidade de universalização do acesso, dentre outros. No entanto, este fato não pode justificar e fundamentar o discurso neoliberal da privatização das IES públicas. A proposta de alteração constitucional no sentido de instituir a cobrança de mensalidades de alunos mais abastados financeiramente ou de criar contribuições sociais a serem pagas pelos egressos dessas universidades é solução polêmica e encontra forte resistência na sociedade. Por meio dos métodos dialético e dogmático jurídico, o artigo visa analisar o debate jurídico e social do tema, para compreender sua dimensão e as contradições do ensino superior público no país, buscando alternativas para a preservação da universidade pública. Palavras-chave: Ensino Superior; Gratuidade Financiamento; Contribuição Social. THE GRATUITOUSNESS OF THE BRAZILIAN HIGHER EDUCATION IN PUBLIC UNIVERSITIES AND THE PROTECTION OF THE RIGHT TO ACCESS COLLEGE EDUCATION ABSTRACT This article intends to analyse the gratuitousness of the Brazilian public university as a fundament for the protection of the right to higher education. The discussion focuses on the State’s lack of resources caused by the increasing demand and the need for universal access, among other reasons. However, even as a given fact, the lack of resources itself cannot simply justify nor provide enough reasonable basis for the neoliberal speech that seeks turning public universities private. The constitucional ammendment proposition that intends to instate tuition to be charged from wealthier students and create social contributions to be paid by college graduates is a highly controversial solution that faces strong resistance from society. Through dialectic and legal dogmatic methods, this present article means to analyse the legal and social debates around the referred subject in order to comprehend its dimension and the contradictions surrounding public higher education in Brazil while searching for alternatives to preserve free public university in the country. Keywords: higher education. gratuitousness. student loan. social contribution. 1 Doutora em Direito. Docente nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da UNESP Franca. 2 Advogado e Doutor em História pela UNESP Franca e Docente do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio UNISEB de Ribeirão Preto.

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A GRATUIDADE DO ENSINO SUPERIOR NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS E A TUTELA DO DIREITO AO ACESSO À EDUCAÇÃO

SUPERIOR

Luciana Lopes Canavez1.

Paulo Henrique Miotto Donadeli2. RESUMO: O artigo objetiva analisar a gratuidade do ensino superior público como fundamento para a tutela do direito ao acesso à educação superior. O cerne da discussão é a insuficiência de recursos por parte do Estado, seja em razão do crescimento da demanda ou da necessidade de universalização do acesso, dentre outros. No entanto, este fato não pode justificar e fundamentar o discurso neoliberal da privatização das IES públicas. A proposta de alteração constitucional no sentido de instituir a cobrança de mensalidades de alunos mais abastados financeiramente ou de criar contribuições sociais a serem pagas pelos egressos dessas universidades é solução polêmica e encontra forte resistência na sociedade. Por meio dos métodos dialético e dogmático jurídico, o artigo visa analisar o debate jurídico e social do tema, para compreender sua dimensão e as contradições do ensino superior público no país, buscando alternativas para a preservação da universidade pública. Palavras-chave: Ensino Superior; Gratuidade Financiamento; Contribuição Social.

THE GRATUITOUSNESS OF THE BRAZILIAN HIGHER EDUCATION IN PUBLIC UNIVERSITIES AND THE PROTECTION OF THE RIGHT

TO ACCESS COLLEGE EDUCATION ABSTRACT

This article intends to analyse the gratuitousness of the Brazilian public university as a fundament for the protection of the right to higher education. The discussion focuses on the State’s lack of resources caused by the increasing demand and the need for universal access, among other reasons. However, even as a given fact, the lack of resources itself cannot simply justify nor provide enough reasonable basis for the neoliberal speech that seeks turning public universities private. The constitucional ammendment proposition that intends to instate tuition to be charged from wealthier students and create social contributions to be paid by college graduates is a highly controversial solution that faces strong resistance from society. Through dialectic and legal dogmatic methods, this present article means to analyse the legal and social debates around the referred subject in order to comprehend its dimension and the contradictions surrounding public higher education in Brazil while searching for alternatives to preserve free public university in the country.

Keywords: higher education. gratuitousness. student loan. social contribution. 1 Doutora em Direito. Docente nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da UNESP Franca. 2 Advogado e Doutor em História pela UNESP Franca e Docente do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio UNISEB de Ribeirão Preto.

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INTRODUÇÃO

Foi apresentado no Congresso Nacional o Projeto de Emenda a Constituição Federal,

PEC 217/2003, que tinha por objetivo alterar o artigo 212 da Constituição Federal para

ampliar as fontes de financiamento da educação superior por meio do Fundo Nacional de

Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Superior (Fundes), prevendo a contribuição social

para a educação superior (CES), a ser recolhida na forma da lei, por todos os detentores de

diplomas de graduação e pós-graduação obtidos em instituições públicas, para a ampliação de

suas vagas e valorização salarial de seus profissionais. A medida é polêmica e encontrou

resistências entre os parlamentares e, principalmente, na sociedade e entre os acadêmicos,

sendo arquivada em 2007.

O presente artigo tem como objetivo enfrentar e discutir o tema, valorizando a

necessidade da manutenção da gratuidade do ensino superior em estabelecimentos oficiais

públicos, posicionando-se contrariamente ao projeto de cobrança de mensalidades dos alunos,

combatendo as ideias de privatização do ensino superior público no Brasil. A cobrança de

mensalidades nas instituições públicas não colabora com a política de acesso ao ensino

superior e é uma forma disfarçada de privatização neoliberal, que resultará em um retrocesso

nas políticas públicas sociais de universalização da educação e de qualidade do ensino

superior no Brasil. Queremos que o universo acadêmico olhe para o problema da gratuidade

no ensino superior e discuta a questão de forma transparente e sem qualquer ideologização.

Ao mesmo tempo buscamos que o Estado, por meio de políticas públicas sérias e

consistentes, faça a correção dos erros e injustiças históricas da educação superior no Brasil,

discutindo a grave distorção existente na sociedade em relação ao ensino superior público,

que exclui grande parcela da população e ao mesmo tempo privilegia aqueles que tiveram

acesso ao ensino básico de qualidade na rede privada. Por meio da pesquisa bibliográfica,

utilizando o método dogmático jurídico e da dialética, o trabalho busca contrapor as posições

favoráveis e contrárias à essas alterações constitucionais.

A GRATUIDADE DO ENSINO SUPERIOR

A Constituição Federal de 1988 em relação à educação superior apenas previu como

dever do Estado, no art. 208, V, a necessidade de permitir o ingresso das pessoas aos níveis

mais elevados de ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.

Da interpretação do preceito, resta evidenciado que o Estado não se comprometeu em oferecer

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o ensino superior a todos, o que é corroborado pelo fato de que, não houve previsão de

universalização progressiva do ensino superior, como se fez com o ensino médio, o que é

lamentável, pois mostra a falta de interesse e perspectiva do Estado de tornar o ensino

superior uma realidade no país.

A maior parte das instituições públicas de ensino superior pertencem à União.

Conforme dispõe o § 3° do art. 211 da Constituição Federal, os Estados e o Distrito Federal

atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. Os Municípios, conforme prescreve

o art. 211, § 2°, têm que dispensar atenção especial ao ensino fundamental e à educação

infantil, não podendo oferecer outra etapa de ensino antes de cumprir suas obrigações

constitucionais.

A educação superior, mais do que preparar o indivíduo para o exercício de uma

profissão, estimula o pensamento reflexivo, valoriza a responsabilidade social e incentiva a

criação do conhecimento e a promoção da cultura e os valores humanos. Além disso, a

sociedade moderna reclama, cada vez mais, um maior nível de instrução das pessoas, para

competirem no acirrado mercado de trabalho. Quando isto não ocorre o país fica entregue ao

subdesenvolvimento. Em razão de tudo isto, é fundamental que o Estado garanta às pessoas as

condições de ingressarem no ensino superior.

A Constituição Federal, no artigo 206, IV estabeleceu a gratuidade do ensino público

em estabelecimentos oficiais financiados com recursos públicos, qualquer que seja o nível

escolar, inclusive o ensino superior, não podendo as instituições públicas cobrar qualquer

pagamento dos alunos pelo estudo oferecido.

O artigo 242 da Constituição Federal traz uma exceção a este dispositivo: “O princípio

do art. 206, IV, não se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei estadual ou

municipal e existentes na data da promulgação desta Constituição, que não sejam total ou

preponderantemente mantidas com recursos públicos”. Nesse caso, as autarquias e fundações

de ensino superior instituídas por municípios antes de 1988 podem continuar legalmente a

cobrar mensalidades, pois muitos municípios não teriam condições financeiras de mantê-las

com recursos de seus orçamentos. A garantia da gratuidade do ensino público em todos os níveis em estabelecimentos oficiais é de extrema importância nos dias de hoje. Com o advento da globalização, e o conseqüente aumento da competitividade no mercado de trabalho, a escolaridade deixou de ser um atributo essencial dos cargos mais elevados, fazendo-se necessária quase que na totalidade dos cargos. Quanto maior for o nível de escolaridade do indivíduo, maior será a sua qualificação e maiores serão as chances de enfrentar o mercado de trabalho com êxito (BASTOS; MARTINS, 1998, p. 446).

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O artigo 206, IV, da Constituição Federal visou garantir o ingresso no ensino superior

dos estudantes de classes sociais menos favorecidas, dando a eles o direito de continuar seus

estudos, atingindo os níveis mais elevados do ensino. Mas na realidade muitos alunos que

fizeram ensino básico na rede pública não conseguem entrar na universidade pública, porque

não tiveram a preparação adequada para concorrer nos vestibulares dessas universidades,

ficando sem acesso ao ensino superior em razão de não conseguirem arcar com o pagamento

de mensalidades em instituições privadas. Os candidatos advindos da escola pública, muitas

vezes, não têm condições de competir em nível de igualdade com os candidatos bem

preparados pelas escolas particulares, o que alimenta uma situação desigual e injusta. Nesse

sentido tem-se o comentário: a realidade brasileira mostra que a gratuidade do ensino superior beneficia especialmente os filhos das classes mais abastadas, raramente os verdadeiramente pobres. Sim, porque nos estabelecimentos públicos e gratuitos, em regra geral os de melhor nível de ensino, somente entram os bem preparados – os quais triunfam no exame vestibular. Ora, estes são o mais das vezes formados em caras escolas particulares de primeiro e segundo grau, quando não têm, ainda a complementação de um “cursinho” preparatório para o vestibular. Os mais pobres, mal preparados nas deficientes escolas públicas de primeiro e segundo grau, se quiserem fazer curso superior, tem de entrar nas escolas do sistema privado (FERREIRA FILHO, 1995, p. 70).

Em outra perspectiva, é interessante observar que,

o fato de a educação superior pública no Brasil ser gratuita gera um diferencial de preço elevado entre IESpr e IESpu que cria dois tipos de perda social: i) a sociedade subsidia um estudante que teria condições financeiras de frequentar uma instituição privada; e ii) aqueles jovens de alta renda que frequentam IESpu exercem externalidade negativa sobre aqueles jovens que não entraram nas IESpu e não têm recursos suficientes para estudar em uma IESpr. Estes jovens ficam sem formação superior (DUENHAS, 2015)

O sistema público de ensino superior vive uma grande contradição, ao mesmo tempo

em que oferece poucas vagas, tem um elevado custo de manutenção por aluno, muito acima

do verificado nas instituições privadas. O contribuinte brasileiro tem uma carga tributária

muito alta, e nem todos tem a garantia do acesso às vagas de forma igualitária. As distorções

relativas ao acesso, vem sendo flexibilizadas através de políticas como as que instituíram um

sistema de cotas para negros, pardos e concluintes do ensino médio pelo sistema público, mas

estão longe de resolver o problema.

O ENSINO SUPERIOR PÚBLICO E AS AMEAÇAS NEOLIBERAIS

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Ao combater a bandeira neoliberal da privatização do ensino superior público,

queremos que o Estado se transforme cada vez mais em um agente difusor do ensino superior

para que o direito à educação superior se efetive e seja realidade para um número cada vez

maior de brasileiros. No entanto, é de conhecimento que os recursos financeiros do Estado,

em razão do crescimento de novas demandas, não são suficientes para ofertar o ensino

superior gratuito para todos. Por isso, tem-se que discutir o problema para viabilizar caminhos

que promovam a universalização da educação superior.

O neoliberalismo se posiciona contrário ao Estado intervencionista ou da proteção

social e tem como ideal: a tutela dos interesses do mercado, a remercantilização dos bens

sociais; a inovação das formas de apropriação do capital, do consumismo e da liberdade

contratual.

As idéias neoliberais exercidas pela influência do Fundo Monetário Internacional

(FMI) e de outros organismos internacionais, fizeram com que vários países, entre eles o

Brasil, passassem a empreender reformas para adequar o Estado à nova ordem mundial, de

modo que o Estado tivesse condições de arcar com o pagamento de suas dívidas, como

requisito básico ao acesso a novas fontes de recursos internacionais para o custeio de suas

atividades. Estas ideias buscam a implantação de uma política fiscal rígida, mediante a

racionalização e maior eficácia do controle dos gastos públicos dos países devedores.

(DOURADO; CATANI, 2003, p. 101)

Esses organismos internacionais impõem ideologias aos países que recebem seus

empréstimos e exigem o cumprimento de certas medidas, como a reforma do ensino superior,

nos seguintes moldes: a) diversificação institucional, visando atender as exigências do

mercado; b) competitividade, instrumentada pela avaliação, que se realiza principalmente

como controle de rendimentos e resultados; c) desoneração de Estado, ou seja, exige certo

afastamento deste em relação as suas obrigações de financiamento da educação pública

superior; d) diversificação dos meios de controle, passando o Estado a agir como fiscalizador

e órgão legiferante; e) aumento da eficácia administrativa; f) fortalecimento do quase mercado

educacional, por meio da paulatina privatização do setor de educação superior. (DOURADO;

CATANI, 2003, p. 106)

Por ser o ensino superior um investimento de alto custo, os neoliberais passaram a

pregar a privatização do setor. O neoliberalismo defende o afastamento do setor público em

relação as suas obrigações de financiamento do ensino superior, passando o Estado a agir

apenas como órgão legislador e fiscalizador da atuação privada.

A reforma do ensino superior na década de 1990 no Brasil foi orientada pela busca da

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diversificação institucional, baseada na livre competitividade e instrumentalizada pela

avaliação, pelo controle dos resultados e rendimentos, pela eficiência administrativa e pelo

fortalecimento do mercado com regras claras para os investimentos privados. Como resultado

da implantação dessa política no ensino superior no Brasil os investimentos nas universidades

públicas foram reduzidos, e houve uma nítida tendência em incentivar o ensino superior

privado. O neoliberalismo vê, portanto, a educação como um produto a ser oferecido no

mercado, colocando os alunos como potenciais consumidores e transformando o ensino numa

atividade econômica rentável, realizada para a obtenção de lucros por meio da venda do

conhecimento.

Mas, é importante mostrar que expansão do ensino superior privado colaborou para o

aumento ao acesso de milhares de estudantes a educação superior. No Brasil, assim como em outros países em desenvolvimento, houve expressivo crescimento no número de matrículas no ensino superior desde os anos 1990. Em 1962 existiam 107.509 alunos matriculados em IES. Em 1998 já havia 2.125.958. No ano de 2008 eram 5.080.056, dos quais 74,92% estavam matriculados em instituições privadas. Observa-se uma evolução de 269% em 2008 em relação ao ano de 1980. Apesar desse crescimento nos últimos anos no número de matrículas no ensino terciário, considera-se que a quantidade de estudantes nesse nível de ensino ainda é pequena. A taxa bruta23 de matrícula no ensino superior no Brasil ainda é considerada baixa se comparada com outros países. (DUENHAS, 2015)

No Brasil, não ocorreu a venda ou concessão das universidades públicas, mas ocorreu

um fenômeno muito parecido, onde a idéia central é: não se vende, mas também não se

investe. Em decorrência dessa política neoliberal está ocorrendo um fenômeno de privatização

branda, branca, por dentro, pseudo privatização. Nesse sentido tem-se a seguinte explicação:

De um modo, esta expressão refere-se à perda do sentido social e público que em distintos graus muitas instituições universitárias mantidas pelos erários vêm experimentando. Isso não se limita a questão da gratuidade. Mesmo que a matrícula continue gratuita no sistema público, as instituições vêm sofrendo uma pressão para que se privatizem ideologicamente e adotem procedimentos mercadológicos. Em troca de pagamentos, os professores vedem serviços, confeccionam produtos e promovem cursos e pesquisas que beneficiam setores do mercado, de modo especial as empresas industriais. A concepção de formação e as prioridades de pesquisas que passam a ser ditadas pelos setores mais fortes da economia, nem sempre coincidindo com os valores e necessidades da sociedade mais ampla. (DOURADO; CATANI, 2003, p. 107)

A privatização não é a melhor opção, pois a universidade pública ainda é um centro de

excelência da pesquisa e da produção do conhecimento, base do crescimento tecnológico do

país. Por isso, a privatização poderia comprometer o crescimento tecnológico e científico,

acarretando prejuízos maiores ao desenvolvimento econômico e social do país. Mas, a

cobrança de mensalidades de alunos com condições financeiras para auxiliar o custeio das

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instituições públicas de ensino superior é defendida por estudiosos e setores da sociedade

como uma boa ideia, desde que bem disciplinada e bem executada, representando um

compartilhamento de receitas para custeio das despesas do ensino superior, de forma a suprir

a falta de recursos financeiros dos orçamentos da educação superior.

O REGIME DE CONTRIBUIÇÕES FINANCEIRAS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO

Os que defendem a instituição da cobrança de mensalidades nas universidades

públicas alegam que em vários países o ensino superior é pago, além do que, “como a maioria

dos estudantes de nível superior está hoje no ensino particular e paga por seus estudos, a

manutenção da gratuidade para a minoria que está nos estabelecimentos públicos, que não são

nem os mais pobres e nem os mais necessitados, aparece como um privilégio difícil de

justificar. Beneficiando a poucos, não parece justo que seja financiado por todos.

(GOLDEMBERG; DURHAM, 1993, p.169-171).

O projeto de Emenda Constitucional (PEC 217/2003) apresentado no Congresso

Nacional buscou alterar o artigo 212 da Constituição Federal, para ampliar as fontes de

financiamento da educação superior por meio do Fundo Nacional de Manutenção e

Desenvolvimento do Ensino Superior (Fundes), prevendo a contribuição social para a

educação superior (CES), a ser recolhida na forma da lei, por todos os detentores de diplomas

de graduação e pós-graduação obtidos em instituições públicas, para a ampliação de suas

vagas e valorização salarial de seus profissionais. O art. 212 da Constituição Federal passaria

a ter a seguinte redação : Art. 212 A União, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, vinte e cinco por cento, e os Estados, trinta por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. § 6º. Pelo menos setenta e cinco por cento dos recursos da União a que se refere o caput constituirão o Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Superior, a ser distribuído entre as instituições federais de ensino, na forma da lei.. § 7º. Uma sexta parte, no mínimo, dos recursos dos Estados a que se refere o caput será obrigatoriamente gasta com a manutenção e desenvolvimento do ensino superior público em seu território. § 8º. A educação superior terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social, recolhida na forma da lei, por todos os detentores de diplomas de graduação e pós-graduação obtidos em instituições federais, estaduais e municipais, para a ampliação de suas vagas e valorização salarial de seus profissionais.

De acordo com a justificativa do projeto, o número de estudantes que concluem o

ensino médio e tentam ingressar no ensino superior é cada vez maior, o que justifica a

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necessidade de instituição de políticas para o aumento do número de vagas nas instituições

públicas, requerendo um constante aumento dos investimentos públicos nas universidades

federais e estaduais. Acrescenta, ainda, a justificativa que a criação de novas fontes de

financiamento permitiria o aumento de empregos para docentes e técnicos administrativos e a

oferta de maior número de vagas à sociedade. Essa contribuição social, ... conjugava dois princípios: o de progressividade no pagamento dos tributos e o da retribuição, ou seja, de uma equidade temporal que iria diminuir as desigualdades sociais no país. Oportunamente ela atenuaria uma injustiça que se acumulou historicamente: a de que poucos se beneficiaram mais dos impostos pagos por todos. (DUENHAS, 2015)

A Emenda foi apresentada em 11 de dezembro de 2003 na Câmara Federal e

encaminhada em 24 de dezembro do mesmo ano para a Comissão de Justiça e Redação. Em

12 de janeiro de 2004 foi encaminhada para a Comissão de Constituição e Justiça e de

Cidadania, tendo designado relator para a análise em 28 de abril de 2005, dando parecer pela

admissibilidade do projeto, em 28 de junho de 2015. Em 31 de julho de 2007 o projeto foi

arquivado. Houve posteriormente um pedido de desarquivamento e o mesmo foi improvido.

Na visão de Rogério Allon Duenhas (2015) “a recomendação da Ciência Econômica

para o financiamento do ensino superior público é de que este deve contar com fontes

diversificadas, notadamente a participação de alunos”. Para o autor, o Brasil está na

contramão mundial, porque hoje “o cofinanciamento do ensino público está se tornando uma

tendência mundial.” Muitos paises adotam o Empréstimo Condicionado à Renda Futura para o

financiamento do ensino superior, atingindo resultados positivos. Esse modelo condiciona o

pagamento da contribuição do ex aluno à renda futura, quando este ingressa no mercado de trabalho. E

acrescenta, A adoção dessa política – ou mesmo o início do debate acerca do financiamento do ensino público superior compartilhado – pode sinalizar que o ensino superior público totalmente gratuito não deve permanecer por muito tempo no Brasil e que a sociedade, por sua vez, deve começar a discutir e a entender que as instituições de ensino superior públicas devem passar por reformas a fim de diminuir as iniquidades a elas associadas; expandir o número de vagas para contribuir no cumprimento das metas da educação superior; reduzir a dependência financeira que essas instituições têm com os governos estaduais e federal, deixando-os com mais recursos para serem destinados a outros investimentos públicos de caráter mais premente para a população brasileira. (DUENHAS, 2015)

Também há quem defenda a instituição de cobrança de mensalidades dos alunos que

advenham de famílias com comprovada capacidade financeira e que cursaram o ensino

fundamental e médio em escolas particulares. Os recursos advindos das contribuições

poderiam ser revertidos na abertura de novas vagas em universidades públicas ou no

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financiamento de bolsas de alunos carentes em Instituições Privadas. Para tanto, é preciso

fazer uma alteração constitucional no artigo 206, IV, da Constituição Federal. Essa alteração

precisa ser realizada com cautela e critério claros e justos, baseados em dados capazes de

representar a real renda per capita do aluno. As mensalidades cobradas devem representar um

valor de mercado e a lei deve implantar regras rígidas para a aplicação dos recursos pagos

pelos alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão proposta na presente análise é controversa e divide opiniões nas mais

variadas esferas da sociedade, uma vez que pode acarretar uma série de consequências graves

no que diz respeito ao ensino superior público e gratuito no Brasil.

Afirmar, conforme alguns estudiosos, que o país no que tange ao tema está na

“contramão em relação a outros países”, nos parece uma afirmação simplista e extremamente

perigosa, uma vez que o sistema de ensino público brasileiro, nas fases do ensino fundamental

e médio, tem uma realidade completamente dissociada de outros países, pois o sistema está

sucateado, com uma desvalorização profissional que faz com que os professores e alunos da

rede pública vivam efetivamente uma situação agonizante.

O sistema de progressão continuada, que em outras experiências se mostrou eficiente,

não foi condizente com a nossa estrutura educacional, o que resultou em uma educação básica

sem padrão de qualidade, e que gera uma série de deficiências no aprendizado do aluno, que

chega ao ensino superior, muitas vezes, sem a preparação necessária, comprometendo seu

pleno desenvolvimento neste nível de formação. Os egressos da rede pública de ensino, em

sua maioria, ficam privados do acesso ao ensino superior público de qualidade, que tem suas

vagas preenchidas por alunos que tiveram a oportunidade de cursar a rede particular de ensino

e tem melhores condições de competir no concorrido sistema de ingresso, através do exame

vestibular, dentre outros.

Ocorre que, conforme discutido, os alunos que conseguem ingressar na IES pública,

em sua maioria, tem melhores condições financeiras, mas não são só estes, pois existem uma

série de egressos que são filhos de trabalhadores que se sacrificaram a vida toda para

proporcionar um ensino particular de qualidade, nos níveis fundamental e médio, e que se

onerados com a cobrança de uma possível mensalidade, estariam mais uma vez sendo

responsabilizados pelo imperfeito sistema educacional brasileiro. Seria justo com a chamada

“classe média”, mais uma vez, pagar o preço dessa conta? Sem mencionarmos os bolsistas

que cursaram as instituições particulares. Se hipoteticamente, fosse instituída a cobrança,

quais seriam os critérios para aferir a real condição financeira do aluno?

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Além do mais, a experiência comprova que há uma diferença substancial de qualidade

entre as IES públicas e privadas, pois as primeiras tem uma estrutura que proporciona uma

formação diferenciada, com professores em regimes de trabalho diferenciados, programas de

fomento à pesquisa, desenvolvimento de extensão universitária, intercâmbio, dentre outros, o

que não acontece nas IES particulares, onde os docentes se veem obrigados a ministrar aulas,

orientar pesquisas, dentre outras atividades, sem receber nenhum pagamento extra por essas

atividades, o que gera a perda de qualidade ou não realização das mesmas.

Portanto, talvez o ideal fosse iniciar a reforma educacional pelos sistemas básicos da

educação nacional, com a retomada da qualidade do ensino, com a valorização profissional, o

que demandaria grandes investimentos e principalmente vontade política por parte do Estado.

Nesse sentido, fortalecendo o sistema de ensino de base, seria possível, a nosso ver,

discutir com maior segurança a possibilidade de cobrança de mensalidades ou outros tipos de

contribuições nas IES públicas, uma vez que todos teriam as mesmas condições de concorrer

a uma vaga nessas instituições.

Ainda deve-se considerar que a proposta de cobrança de mensalidades ou

contribuições seria difícil de ser aprovada, principalmente por motivos de ordem política, pois

haveria muitas manifestações contrárias ao fim da gratuidade integral das instituições

públicas, que é uma tradição no direito brasileiro. Mesmo com tantos argumentos favoráveis

e acreditando que se faz necessária uma discussão séria em torno da questão, é preciso

ponderar também sobre o que isso pode acarretar para a sociedade brasileira, e se realmente

os efeitos vão ser positivos, ou se apenas vão contribuir para que num futuro o Estado acabe

abrindo mão desta importante missão, e isso se torne a porta aberta da privatização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DOURADO, Luiz; CATANI, Afrânio; OLIVEIRA, João. Políticas e gestão da educação superior. São Paulo: Xamã, 2003. DUENHAS, Rogério Allon. O compartilhamento do financiamento das instituições públicas de ensino superior: análise empírica utilizando os microdados do Inep. In: Aperfeiçoamento do Orçamento Público. Disponível em: <www.esaf.fazenda.gov.br> Acesso em: 03 out. 2015. GOLDEMBERG, José; DURHAM, Eunice. A educação na reforma constitucional. In: Luís Felipe D’Ávilla (org.). As constituições brasileiras: análise e proposta de mudança. São Paulo: Brasiliense, 1993. FERREIRA FILHO, Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1995. BRASIL. PEC 217/2003. Disponível em: <http://www.camara.gov.br> Acesso em 9/08/2015.