A Guerra de Maquiavel

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INTRODUÇÃO

Diz-se que não escolhemos tão livremente nossos temas, mas que antes são eles

que nos escolhem. A escolha de um tema parece de antemão provocada ou conduzida pelo

próprio tema. No caso de Maquiavel, isto é confirmado rapidamente se considerarmos sua

vasta bibliografia e uma fama que poucos filósofos ou escritores conseguem igualar;

acrescidos ainda pelas peculiaridades de nossa época tão rica em perplexidades e desenganos.

A crise de nosso tempo nos leva ao encontro desse que, a primeira vista, a teria inaugurado

apontando a transmutação dos valores e dos procedimentos da modernidade. Nosso objetivo é

mostrar como Maquiavel contribuiu - ao contrário dessa opinião - para ampliar o horizonte do

pensamento político.

Trataremos no primeiro capítulo das vicissitudes da fama de Maquiavel, seu

sentido variável e contraditório ao longo do tempo, detendo-nos especialmente na origem da

malignidade do maquiavelismo, isto é, a posição que vê nele a fonte ou expressão de todo o

mal que atinge as relações humanas. O maquiavelismo, entendido como mal radical, tornou-se

lugar-comum, de modo que é sempre difícil tematizar os escritos de Maquiavel sem que

permanentemente nos defrontemos com esta fama de maligno que surge imediata e

espontaneamente à simples pronúncia de seu nome. Se a afirmação de André Gide estiver

correta, de que a fama é uma soma de mal-entendidos a respeito do autor e sua obra, nada

parece mais procedente se considerarmos o caso de Maquiavel, pois sua fama encobriu e

distorceu o sentido da obra. O paradoxo é que esta má-fama nos conduz até ele e abre acesso a

seu dizer. Desembaraçarmo-nos da fama significaria também abandonar os múltiplos sentidos

que seu pensamento provocou desde sua origem, suas inflexões e bruscas reviravoltas a partir

de distintas posições que continuam cruzando-se e entrechocando-se num interminável

exercício hermenêutico.

Consideramos também pertinente tratar da vida de Maquiavel entremeada com a

história de Florença, pois não foi por acaso que ele se tornou o primeiro grande teórico

político da época moderna. Nasceu, cresceu e morreu numa cidade, num país e num momento

sem precedente que se lhe compare na história. As profundas alterações econômico-sociais, o

surgimento dos Estados nacionais, acrescidos pelo complexo tabuleiro político-militar italiano

e florentino, definiram parte considerável de sua formação.

Em “Conhecimento e Política” trataremos mais especificamente dos grandes

temas do pensamento de Maquiavel. A luta permanente dos homens contra a Fortuna, isto é, o

acaso, o inesperado e a indeterminação do mundo é que os leva, na figura do príncipe, ao mais

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arrojado e importante empreendimento: a fundação do Estado. Ainda veremos que as

reflexões maquiavelianas não se esgotam nesse tema, mas que ele também se preocupa com a

melhor forma de governo configurada na república, onde o povo detém uma importância

capital. Ao tratar do príncipe, Maquiavel atribui-lhe não só características de um verdadeiro

sujeito político, mas de ser, simultaneamente, também sujeito do conhecimento, o que lhe

garante a direção da sociedade. O exercício do poder, caracterizado por uma instabilidade

básica, leva o príncipe a buscar constantemente novas formas de legitimidade. Afastando-se

de Platão, cujo paradigma fundava-se em idéias puras e incorruptíveis, trata-se agora de um

jogo que envolve o ser e o parecer. A veritá effetualle não pode desprezar as aparências, pois

o Príncipe não poderá exercer com eficácia sua função sem representar um papel como se

estivesse num teatro. Veremos como Maquiavel cria uma teoria do parecer com o

reconhecimento de que os homens adoram as imagens tanto ou mais que as próprias coisas.

Em “A Guerra de Maquiavel”, por fim, trataremos da quebra com a Grande

Tradição do pensamento clássico. Nosso intento será efetuado tematizando a posição de Leo

Strauss. Ele afirma que Maquiavel, ao afastar-se deliberadamente da ética e da religião que o

precederam, inaugura a modernidade. Ao romper com o direito natural clássico e, portanto,

restringir a filosofia ao plano da propaganda ou da ideologia, ele teria mudado totalmente seu

estatuto abrindo caminho às duas vertentes que obscureceram a verdadeira reflexão filosófica:

o positivismo e o historicismo. A teoria política depois de Maquiavel ou se ajoelhou diante

dos fatos ou se deixou levar pela concepção de que a verdade é produto da história, que se

altera conforme os tempos. O resultado disso é o niilismo que tomou conta da modernidade.

Concordamos com Strauss quanto aos sintomas dessa crise, mas mostraremos que tal crise

não pode ser atribuída a Maquiavel que, ao fazer guerra aos antigos, a teria iniciado.

Afirmamos que Maquiavel, ao desfechar um golpe na concepção cosmoteológica, que

fundamenta a Grande Tradição até ele, abriu novas possibilidades para se reestudar esta

mesma tradição e, com maior autonomia, tematizar distintamente o político. Veremos ainda

como a guerra de Maquiavel não se dirige apenas contra as linhas gerais da tradição clássica.

Ao afastar a idéia de uma sociedade totalmente isenta do mal e, portanto, sem conflitos, ele

rejeita a noção de utopia, tornando possível a crítica das posições que, ao abandonarem a

reflexão política, tornaram-se incapazes de pensar o fenômeno do totalitarismo.

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AS VICISSITUDES DA FAMA

“Aprendemos a ler uma obra nas pegadas das outras”1

Oportunista, carreirista, bajulador, plagiador dos autores clássicos, funcionário

mesquinho e interesseiro que, para conquistar as benesses dos senhores, redige uma obra

cheia de imprecisões, gafes, aforismos e imitações grosseiras adaptadas apressadamente às

circunstâncias2; mas também brilhante escritor renascentista, divino patriota e fundador da

ciência política moderna. Poucos autores despertaram tantas objeções e elogios. Sua obra se

confundiu com sua vida e sua fama ampliou-se de modo sempre crescente e a tal ponto que

seu nome tornou-se comum no dicionário de muitas línguas como signo do mal e da

perversidade. Maquiavélico, maquiavelista, maquiavelismo são invariavelmente sinônimos de

má-fé, sacanagem, mentira, perfídia, astúcia ignominiosa. Seu livro mais conhecido foi

considerado como fonte de consulta indispensável a ditadores e tiranos e, mesmo, manual

para gângsteres. Mas o maquiavelismo, que lição portará? Por que as obras de Maquiavel

provocaram tão acirrados ataques e tanto escândalo? Será ainda possível separar a obra dos

múltiplos sentidos da fama cuja presença é tão marcante que, mesmo antes de termos aberto

um só de seus livros, já estamos contaminados pela estigma de seu nome? A fama de

Maquiavel, entretanto, indica um caminho e instaura o primeiro obstáculo. Veremos alguns

dos momentos em que ela sofre inflexões que foram incorporadas à sua vasta e quase

inumerável variação de sentido, ou como afirma E. Cassirer, comentando O Príncipe: “Foi

usado como arma poderosa nas grandes lutas políticas do nosso mundo moderno. Os seus

efeitos foram claros e inequívocos. Contudo, o seu significado permaneceu, em certo sentido,

em segredo. Mesmo agora, depois de ter sido discutido por filósofos, historiadores, políticos e

sociólogos, este segredo não foi ainda completamente desvendado. De século para século,

quase de geração para geração, descobre-se não uma alteração, mas uma completa inversão

nos julgamentos que lhe são feitos. O mesmo se diga para o autor do livro. O retrato de

Maquiavel na história, confundido pelos que o admiram e pelos que o detestam, apresenta

muitas variantes; e é muito difícil reconhecer atrás de todas essas variantes a verdadeira face

1 LEFORT, C. Le Travail de L‟Ouevre. Paris, Galimard, 1972, p. 24.

2 A última manifestação desse tipo foi criada em torno do livro de J. Heers sobre Maquiavel, Editora Fajard,

Paris, 1985, que comentaristas apressados e ansiosos em divulgar e promover o livro talvez não o tenham lido

até o fim. A revista Veja, Editora Abril, 18/09/85, nº 889, no seu comentário, reduz Maquiavel apenas ao

bajulador fracassado, ao funcionário desleal e ambicioso. Ora, esse tipo de funcionário existe em todos os

serviços públicos e em outras atividades sociais. Jornalistas ou professores, militares ou magistrados, poucos

escapam do carreirismo e do oportunismo. Nesse aspecto os serviços públicos de hoje não diferem em nada dos

da época de Maquiavel. E se ele foi tudo isso de que lhe acusam não foi qualquer um que escreveu O Príncipe e

Os Discursos. De qualquer modo, esse exemplo mostra um instantâneo recente da fama do autor.

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do homem e o tema do seu livro”.3 Como se vê,ias vicissitudes da fama escondem um segredo

ou um enigma que paira sobre o fundo e que, ao fim e ao cabo, é expressão da obra, assim

como os nomes marxista, marxiano ou marxólogo, por exemplo, mantêm um conjunto de

significados na esteira dos escritos de Marx. Eles abriram novos horizontes para o pensar e

sua presença é tão marcante que o rumo do pensamento é determinado pelos caminhos por

eles definidos ou inaugurados. Por isso que a leitura do florentino requer perspectivas situadas

em vários níveis e as dificuldades de enfrentar a multiplicidade das interpretações onde o

primeiro obstáculo é seu próprio mito expresso pelo maquiavelismo. As tentativas de provar

que Maquiavel não era maquiavélico, de que tudo se deve a um mal entendido, de que uma

coisa é a obra e outra o autor, resultam em esforços inócuos, pois o uso do nome de

Maquiavel e do maquiavelismo inevitavelmente remetem um ao outro. Essas tentativas são,

portanto, “perda de tempo, pois não conseguem evitar de usá-lo e tanto é verdade que seu

emprego é universalmente consagrado que nenhum outro se presta à mesma função”.4

O homem maquiavélico aparece como se os outros fossem simples objetos de

manobra ou manipulação. É frio e desapaixonado. Diante dele os outros são como ovelhas

perto dos lobos, galinhas sob o jugo da raposa. O maquiavélico é sujeito pleno de astúcia e de

crueldade; ele não respeita moral, costumes, regras ou leis e pode mudá-las quando achar

oportuno a seus objetivos e intenções escusas. Perto dele nada está seguro. Para o

maquiavélico, o que vale é a afirmação do velho Karamazov: “se Deus não existe, tudo é

permitido”. O maquiavelismo é o anti-humanismo radical. É a fissura pela qual o mal invade

o mundo e se instala na totalidade da vida humana. Ele expressa a traição e a infidelidade.

Está presente nas artimanhas do jogo e da conquista amorosa. Madame Bovary é

maquiavélica na ânsia de realizar seus devaneios românticos e, para isso, engana Charles

como a um pobre coitado. Capitu usa brilhantemente o maquiavelismo para enganar Dom

Casmurro que vive atormentado por remorsos e incertezas. Maquiavélico é no filme de

Eisenstein, o close do olhar de Ivã, o Terrível, a sombra de seu cavanhaque pontiagudo e seu

enorme nariz aquilino projetados na parede do palácio; também, no quadro de Hans Holbein,

os olhinhos vivazes desconfiados e cheios de malevolência de Henrique VIII. A irrupção do

maquiavelismo significa que o mundo está contaminado pela violência e pela má-fé. O fato de

os homens terem-se em inferno uns para os outros é-nos ilustrado por Balzac na análise que

faz da sociedade burguesa quando, no fim de As Ilusões Perdidas, o jovem Luciano de

Rubempré, derrotado na alta sociedade retoma envergonhado para casa e sai a andar pela

3 CASSIRER, E. O Mito do Estado. Lisboa, Publicações Euro-América Ltda., 1961. p. 152.

4 Cf. LEFORT, op. cit., p. 74.

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estrada decidido a suicidar-se e encontra-se com Vautrin, antigo prisioneiro e foragido das

galés que, agora disfarçado no padre Carlos Herrera, pratica toda sorte de golpes e

picaretagens. Ele acaba dissuadindo Luciano de sua intenção nefasta e lhe alguns conselhos

de como vencer e brilhar na sociedade. O título do capítulo é significativo: Curso de História

para uso dos Ambiciosos por um Discípulo de Maquiavel, onde Balzac descreve um

comportamento que, para quem deseja vencer, jamais pode ser esquecido: “Não veja nos

homens, e principalmente nas mulheres, senão instrumentos; mas não deixe que eles o

percebam. Adore como ao próprio Deus aquele que, colocado acima do senhor, lhe possa ser

útil, e não o abandone até que lhe tenha pago bem caro sua servidão. No comércio do mundo,

seja, em suma, duro como o judeu e vil como ele; faça pelo poder o que ele faz pelo dinheiro.

Mas também preocupe-se tanto como o homem que caiu como se ele jamais tivesse existido.

Sabe por que deve proceder assim?... O senhor quer dominar o mundo, não é? Pois é preciso

por começar a aceitá-lo como é e a estudá-lo bem”5.

Entretanto, os exemplos mais decisivos do maquiavelismo ou do homem

maquiavélico saem da história ou da política. Hitler, Napoleão, Getúlio Vargas, Bismarck, Stalin,

Cromwell ou Pinochet, entre muitos, fazem parte da constelação dos maquiavélicos. Assim como

o sadismo remete à sexualidade, o agostianismo à religiosidade subjetiva, o platonismo ao modelo

do pensamento racional e o marxismo à história e à economia, o maquiavelismo, por sua vez,

lança suas raízes na política. Como encarnação da imoralidade, ele sofre, através da política, uma

mudança de sentido e ganha uma dimensão metafísica. É como se a perversidade que ocorre na

política subsumisse todas as outras maldades e aberrações e como ação que provoca alterações

nos comportamentos e nas mentes em circunstâncias particulares e definidas, num passe de

mágica, afasta-se delas “para se inscrever no ser dos homens... e acaba por sugerir a identificação

da imoralidade com a política”6. Mas as vicissitudes da fama mostram que ao longo do tempo que

se seguiu a Maquiavel a equação imoralidade-política-maquiavelismo nem sempre foi aceita e

que despertou acirradas animosidades segundo as mudanças na história e na cultura e que também

muitas dessas distintas posições devem-se ao estilo de um autor que dissimula suas intenções e

cuja obra que parece simples e objetiva em suas partes, ao relacionar-se num todo, torna-se

confusa e ambígua.7

Foi em 1531, quatro anos após a morte de Maquiavel, que o Príncipe e os

Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio foram simultaneamente publicados em

5 BALZAC, H. As Iusões Perdidas. São Paulo, Abril Cultural S/A, 1978, p. 342 e ss.

6 Cf. CLAUDE LEFORT, op. cit., p. 74.

7 ARON, R. Maquiavel e Marx. In: Sobre Maquiavel; vários. Brasília, UnB, 1978. p.73.

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Roma e em Florença; no ano seguinte foi a vez das Histórias Florentinas, todos com o aval

das autoridades civis e do Papa Clemente VII. Essas obras ficariam ainda numa longa

quarentena, até por volta de 1547, quando se inaugurou o Concílio de Trento e, nesta mesma

época,a Europa mergulhava numa de suas épocas mais conturbadas e marcada por violentas

lutas religiosas que levaram a Igreja a fechar-se no obscurantismo da Contra-Reforma, o

eclipse definitivo do Renascimento e Humanismo italianos. Desde 1530, com a extinção da

república florentina, acompanhada de sua decadência econômica e política, sua hegemonia

cultural entrara igualmente em acelerado refluxo. Uma distância enorme separa a Florença de

Leornardo da Vinci da de Galileu Galilei. A censura tornara-se crescente e passara-se a viver

num clima de medo e insegurança que se prolongará para além da época de Descartes. O

Index tornou-se uma violenta arma ideológica e física; calou a voz dos vivos e retirou de

circulação o que de mais expressivo fora produzido pela cultura humanista. Com Boccacio e

Erasmo, o nome de Maquiavel consta na primeira lista de proibições (1559). A partir de

então, o que não foi eliminado foi mutilado e adulterado.8 A consideração de Giordarno

Bruno, as vacilações de Copérnico e o processo de Galileu dão-nos uma idéia do clima

inquisitorial que se formou. O Gargântua e o Pantagruel, que foram editados entre 1532 e

1535, enfrentaram igualmente a ação crescente da censura e é possível que Rabelais não tenha

sofrido as maiores agruras da perseguição por causa do ilustre círculo de amigos que possuía

junto às cortes e à Igreja. Nessa atmosfera de intolerância, a passagem da proibição ao ataque

aberto foi imediata. Maquiavel logo tornou-se ateu, reformista, satânico. As acusações, aliás,

partiam dos dois flancos. No norte, os protestantes não exitaram em condená-lo como símbolo

do mal, uma vez que Maquiavel não criticou apenas a ineficácia e o engodo da Igreja Romana

e do papado, mas atingiu o próprio cerne do cristianismo ao tratá-lo como religião mesquinha

e inepta para a vida por sustentar um ideal de contemplação e expectativas futuras e elogiando

a humildade e o desprezo pelas coisas deste mundo. Tais objeções são como lenha seca

jogada na fogueira, num momento em que, até mesmo, um intelectual da estatura de Jean

Bodin, em seu livro A Demonologia dos Bruxos (1580), considerava o martírio pelo fogo um

castigo que “é muito pouco comparado com o que as bruxas deverão sofrer no inferno”9. A

imprensa - esse símbolo do progresso civilizatório - disseminara rapidamente as concepções

8 Cf. GARIN. Ciência e Vida Civil en El Renascimiento Italiano. Madrid, Taurus Ediciones S/A, 1982. p. 71 e ss.

9 Cf. LUCIA TOSI. Caça às Bruxas, o Saber das Mulheres como Obra do Diabo. In: Ciência Hoje. 4v, nº 20,

set./out. de 1985, Rio de Janeiro, p. 35. Uma das obras que mostra o clima pesado dessa época e seus efeitos na vida

intelectual e artística é A Obra em Negro, de Marguerite Yourcenar, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1983. O

personagem central Zenon, baseado em Leonardo e G. Bruno, é o tipico filósofo renascentista animado pela

curiosidade e uma avidez inesgotável pelo conhecimento. É, ao fim, processado e condenado por suas especulações

e experiências. O romance nos devolve, no imaginário, o medo que se filtrava nos homens e nas instituições. Nada

está seguro e a qualquer momento pode acontecer o pior, por uma delação ou uma simples suspeita.

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do imaginário medieval onde a circulação dessas fantasias ocupava um lugar considerável na

vida cotidiana. Multiplicavam-se as delações, as torturas e os processos onde o acusado não

tinha direito à defesa. Os inquisidores encontraram um terreno fértil para bodes expiatórios.

É em meio a esse terrorismo cultural que Innocente Gentillet publica seu livro

Contra-Maquiavel (1576) que teria uma eficácia expressiva na significação do maquiavelismo

como manifestação do ardil e da maldade. A popularidade desse livro talvez possa ser medida

pela rapidez como foi absorvido pelos autores ingleses do século XVI e XVII. A Inglaterra

ainda sofria as seqüelas das violentas disputas que a agitavam desde a Guerra das Duas Rosas

e vivia sob ameaça permanente de revoltas políticas acrescidas dos dilemas da dinastia Tudor,

nas tentativas de consolidar um reino unificado e forte marcado por contendas com a Igreja

que, nessa época, chegaram ao máximo. Esses dilemas desembocam, mais tarde, na

Revolução Puritana. Uma geração de dramaturgos formou-se pondo em iminência o risco de

que essas forças sociais represadas irrompessem a qualquer momento. Essas circunstâncias

certamente contribuíram para aguçar-lhes ainda mais a sensibilidade política. A primeira

referência explícita a Maquiavel, no teatro elisabetano, deve-se a Cristopher Marlowe, em sua

peça O Judeu de Malta; a partir daí seria citado ou referido centenas de vezes, na grande

maioria delas segundo a imagem legada pelo livro de Gentillet. Na obra de Shakespeare, cujas

preocupações políticas e históricas têm um papel relevante, Maquiavel é considerado como o

nome que identifica a política com a astúcia, como se vê nas palavras do estalajadeiro em As

Alegres Comadres de Windsor: “Sou político? Sou sutil? Sou um Maquiavel?” (III, 1).

Igualmente na tragédia Henrique IV onde, com a intervenção de Glaucester,

Shakespeare nos dá uma brilhante imagem do maquiavelismo:

Ora, eu posso sorrir e assassinar enquanto sorrio

E gritar contente aquilo que aflige meu coração

E molhar minhas faces com lágrimas artificiais

E adaptar meu rosto a todas as ocasiões

Afogarei mais marinheiros do que a sereia,

Matarei mais admiradores do que o basilismo,

Farei o orador tão bem quanto Nestor,

Enganarei mais ardilosamente do que podia Ulisses

E, como um Sinon, tomarei uma outra Tróia.

Posso acrescentar cores ao camaleão,

Trocar de forma como Proteus para vantagem dele

A fazer o assassino Maquiavel ir à escola,

Com tal superioridade não poderia conquistar uma coroa?

Ora, ainda que estivesse mais alta eu a agarraria.10

10

Cf. In: Heliodora. A Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare, Rio de Janeiro, Editora Paz e

Terra S/A, 1978, onde a autora procura situar as influências históricas e culturais na formação da consciência

política de Shakespeare, é-nos mostrada a função das homilias lidas nas igrejas da Inglaterra e o livro de

Gentillet, considerado como um deformador das obras de Maquiavel, com quem o dramaturgo de Stradford-on-

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Mas os efeitos da Contra-Reforma e seu obscurantismo que se espalhou pela Europa

e a América não conseguiram eliminar totalmente o ímpeto das mudanças que se manifestaram,

desde o século XV, na ciência, na técnica, na arte e na economia. Apesar da repressão e das

perseguições, e ainda que de modo ocasional e esporádico, houve leituras distintas da obra de

Maquiavel. Nenhuma opressão é completa. Nos Países-Baixos, Gaspar Schop entende que

Maquiavel mostrou que não se pode confundir religião e política; Herman Conring, por sua vez,

trata-o como um genuíno herdeiro da política clássica; François Tostard considera-o um autor

fundamentalmente preocupado em “combater a corrupção de seu tempo”11

. Francis Bacon, na

vertente dos franciscanos de Oxford, elogia o florentino por ser um dos primeiros intelectuais a se

desprender definitivamente da visão escolástica e introduzir na sociedade o método experimental

independente de princípios transcendentes ou de uma ordem metafisicamente estabelecida. Esta

observação será reafirmada por muitos intérpretes que encontram na obra de Maquiavel, sobre a

política, o uso do mesmo método das ciências naturais e a separação, portanto, entre fatos e

valores, onde o observador deve permanecer neutro diante dos fenômenos12

. Uma outra leitura

que teria posteriormente grande repercussão foi a de Baruch Spinoza quando constatou que a

verdadeira intenção de Maquiavel foi alertar o povo sobre o poder de que o príncipe pode dispor

contra ele, “talvez Maquiavel tenha querido, também, mostrar o quanto a população se deve

defender de entregar o seu bem-estar a um único homem que, se não é fútil, ao ponto de se julgar

capaz de agradar a todos, deverá constantemente recear qualquer conspiração e, por isso, vê-se

obrigado a preocupar-se, sobretudo, consigo próprio e, assim, enganar a população em vez de

salvaguardá-la. E estou mais disposto a julgar assim acerca desse habilíssimo autor, quanto mais

se concorda em considerá-lo um partidário constante da liberdade e quanto sobre a maneira

necessária de a conservar, ele deu opiniões muito salutares”.13

Durante o Iluminismo a polêmica torna-se mais nítida. Frederico II escreve o

Anti-Maquiavel, seguindo os conselhos de Voltaire, para quem o florentino é um autor

venenoso ou um monstro - opinião compartilhada por d‟Alembert e Holbach. Mas este ponto

Avon travaria um contato mais intimo na idade madura;”... é preciso que fique bem claro que quando usamos o

nome de Gentillet, estamos nos referindo, na realidade, a um tipo de deformação das idéias de Maquiavel que ele

sintetizou com particular felicidade ou infelicidade, mas que havia encontrado eco com maior facilidade, na

Inglaterra, sem dúvida por influência dos meios de divulgação da ortodoxia Tudor, a quem interessava essa

retratação diabólica, condenável, de qualquer pessoa que aspirasse a qualquer parcela do poder. Se Shakespeare

já havia penetrado o segredo das homilias, começa-se a entrever o processo político; só mais adiante é que se

completaria a evolução de seu pensamento, que levaria a uma reavaliação radical da ação politica como tal” (p.

241-42). B. Heliodora supõe que apenas na velhice ele teria feito uma leitura direta da obra maquiaveliana. As

citações de Shakespeare foram retiradas de Teatro Completo, Buenos Aires, Librería El Ateneo, 1953, II tomos. 11

Citado por LEFORT, op. cit., p. 98-100. 12

CASSIRER, op. cit., p. 155. 13

SPINOZA, B. Tratado Político. In: Os Pensadores. São Paulo, Editora Abril S/A, 1973, p. 329.

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de vista não é geral. No século da publicidade onde, na França, o saber rapidamente se

seculariza e onde a Igreja e a religião se encontram agora na defensiva frente aos ataques

contundentes das ciências e da filosofia e das redefinições da geografia política. Neste

contexto ocorre a intervenção de J. J. Rousseau que, como Spinoza, considera Maquiavel um

homem honesto e um cidadão respeitável que se viu, pelas circunstâncias de sua pátria,

forçado a esconder suas intenções secretas de liberdade. Lamenta que tenha tido apenas

“leitores superficiais e corrompidos, pois fingiram dar lições aos reis, deu-as aos povos. O

Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos”.14

Foi na Alemanha, no limiar do século XIX, que Maquiavel ocupou uma posição

destacada pela semelhança que esta nação mantinha com a Itália. Quando, em 1802, Hegel

redigiu A Constituição da Alemanha, o país encontrava-se dividido aproximadamente em mil

e oitocentas províncias (principados, condados, bispados, arcebispados, etc.). Essa situação

levou os intelectuais alemães a ocuparem-se desse grave problema, uma vez que sua

irresolução mantinha a Alemanha em descompasso com relação a outros países europeus. Ao

entrar em contato com a obra de Maquiavel, Hegel considera que os problemas italianos

tratados por este “gênio político dotado de nobre espírito” são os mesmos com que ele se

deparava no momento em seu país: as divisões, a lutas internas, as invasões dos exércitos

napoleônicos, resultantes da falta de um Estado centralizado capaz de impor e decidir os

rumos da nação15

. A contribuição do pensamento de Maquiavel na formação do sistema

hegeliano é considerável. Na Filosofia do Direito (1821) vê-se a figura do Estado como o

momento máximo do Espírito Objetivo, a figura onde se realizam e se completam a razão e a

liberdade. É no Estado, por seu caráter harmonizador e racional, que se efetiva a sociedade

civil burguesa. Sem a presença do Estado toda liberdade é formal e abstrata16

. Ora, foi

Maquiavel o primeiro pensador moderno a mostrar que sem a fundação e a manutenção do

Estado (principado ou república) é impossível a vida civilizada. Esses mesmos problemas

também levaram Fichte a considerar atentamente as obras do florentino. Quando a ameaça da

ocupação de Berlim tornou-se iminente, Fichte partiu para Königsberg onde prosseguiu sua

carreira de professor. Foi lá que iniciou as leituras de O Príncipe e dos Discursos sobre a

Primeira Década de Tito Lívio. Suas anotações e mesmo algumas de suas traduções estão

fortemente marcadas pela filosofia da ação e o clamor das batalhas que o levaram a interpretar

14

ROUSSEAU, J. J. O Contrato Social. In: Os Pensadores. 2 ed., São Paulo, Editora Abril S/A, 1978. 15

HEGEL, G.W.F. La Constituition de L‟Alemagne. In: Écrits Politiques. Paris, Editions Champ Libre, 1977, p.

112-21. 16

Idem. Princípios de la Filosofia del Derecho. Buenos Aires, Editorial Sudamericana. Cf. também DENIS

ROSENFIELD, Política e Liberdade em Hegel. São Paulo, Brasiliense, 1983.

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a obra maquiaveliana, tão impregnada de temas militares, com o espírito bélico do seu tempo.

Para Fichte, o principal problema alemão são as rivalidades entre os pequenos Estados que

levaram o conjunto ao enfraquecimento e à inoperância. Também, para ele, a consolidação do

Estado unificado constituía-se o núcleo de suas preocupações. Sem um Estado poderoso não é

possível a paz externa. Para conquistá-la o estadista pode romper com todas as prescrições da

moral. É a razão de Estado que deve comandar a atividade política. Fichte, entretanto, entende

que, em sua época, ao contrário da de Maquiavel, o problema das relações entre o príncipe e o

povo já está resolvido. O que, todavia, carece de solução é a guerra entre Estados e Nações. O

realismo político é o único modo de tratar com segurança as relações entre os países.

Maquiavel, neste aspecto, continua atual e suas posições são retomadas à luz das palavras de

Fichte: “O Príncipe, na relação com seu povo pacífico, está vinculado à lei e ao direito, e não

pode tratar ninguém senão segundo a lei vigente, embora conserve o direito de legislação, isto

é, do aperfeiçoamento continuado do estado de legalidade; mas em sua relação com os outros

Estados não há lei nem direito, exceto o direito do mais forte, e essa relação, o divino direito

da majestade do destino e da Providência, a depõe, sob a responsabilidade do príncipe, em

suas mãos, e o eleva acima dos mandamentos da moral individual para uma ordem ética

superior, cujo conteúdo material está contido nas palavras: que o bem estar e a dignidade do

povo sejam a lei suprema”.17

Assim Fichte considera que o príncipe deva agir em relação aos

Estados vizinhos, vendo em cada um deles uma ameaça e perigo constantes e deva agredi-los

e conquistá-los quando a situação for propícia, mas deve, no interior de seu Estado, zelar pela

justiça e buscar constantemente o desenvolvimento da legislação como se a política fosse o

elo entre o Estado presente e o dever-ser do Estado da razão. Maquiavel foi um interlocutor

precioso à filosofia alemã no esforço de romper com a tradição subjetivista da moral pela

recuperação e incorporação do pensamento político.

Ao longo do século XIX a quantidade de teses, dissertações, ensaios, artigos e

resenhas sobre Maquiavel tornou-se imensa e praticamente impossível de ser determinada

com precisão. P. Villari publicou em 1887 seu monumental Maquiavel e seu tempo, uma obra

que parecia definitiva. No século XX, entretanto, a provocação da obra maquiaveliana

continua abrindo espaços para múltiplas abordagens, algumas delas inovadoras e originais e

de leitura praticamente obrigatória, o que mostra como o florentino permanece uma fonte

inesgotável de sentido, como se os temas que suscitou ainda estivessem distantes de encontrar

uma solução definitiva. As interpretações se multiplicam e enriquecem constantemente o

17

FICHTE, J.G. Maquiavel como Escritor. In: Revista Almanaque. Cadernos de literatura e Ensaio nº 9. São

Paulo, Brasiliense, 1978, p. 17.

Page 12: A Guerra de Maquiavel

debate. Para Ernest Cassirer, na trajetória de Bacon, Maquiavel inicia a ciência política

abandonando totalmente a tradição religiosa desde que seu objetivo detém-se apenas na

análise dos fatos. Tão profundo parece o corte que ele não só se afasta da civilização

medieval, mas trata-a como se nunca tivesse existido. Maquiavel teria sido para a política o

que Galileu foi para a física. Esta é uma posição também defendida por Alexandre Koiré que

vê, a partir de Maquiavel, o início de um mundo radicalmente novo; sua obra mais importante

é um belo tratado de lógica de onde foi expulso todo e qualquer moralismo.18

Mas Benedeto

Croce, por sua vez, rejeitando esta visão do cientificismo anti-historicista, considera-o como

símbolo da política pura, embora a autonomia da política não signifique que ela possa ser

tratada independentemente da moral, mesmo que, às vezes, não haja como não sujar as mãos

em meio a gente suja: trata-se igualmente da arte de manter e afiançar essa formidável e

imprescindível instituição: o Estado.19

Max Horkheimer, seguindo a concepção do materialismo histórico, entende

Maquiavel como um intelectual que revela em seus escritos o momento da consolidação do

capitalismo e, neste sentido, ele expressa as idéias da nova classe dirigente cujos interesses ele

defende melhor do que a maioria dos vultos do seu tempo. Seu desejo de unificar a Itália

demonstra o que a burguesia considerava indispensável para consolidar seu poder

competitivo. “O maquiavelismo é típico de todo país cuja sociedade precise de um governo

centralizado para eliminar as limitações da estreita economia feudal e, com elas, os resíduos

do feudalismo.20

Michael Lowy trata O Príncipe de Maquiavel como a projeção burguesa do

salvador supremo e considera que o marxismo, como teoria da auto-emancipação do

proletariado (e da humanidade) é, antes de tudo, uma crítica radical à idéia de que qualquer

indivíduo seja capaz e auto-suficiente para resolver a diversidade de interesses de grupos e

classes.21

Para Antônio Gramsci, O Príncipe. ao contrário dos tratados sistemáticos medievais,

é um “livro vivo onde a ideologia, a política e a ciência fundem-se na forma dramática do

mito” e que expressa não a idéia isolada de um autor, mas uma vontade coletiva determinada

pela história, pelas relações econômicas e sociais e pelos interesses políticos. O livro é como

um manifesto que aponta a consolidação da burguesia, o recuo da Igreja, a língua nacional

18

KOIRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro, Editora Forense-Universitária,

1982. p. 20. 19

CROCE, B. Ética y Política. Buenos Aires, Ediciones Imán, 1952. p. 218-19. 20

HORKHEIMER, M. História, Metafísica, Ecepticismo-Comienzos de la Filosofia Burguesa de La História.

Madrid, Aliança Editorial S/A, 1982, p.46. 21

Para Lowy, o marxismo afasta-se das concepções burguesas do semideus da política que teria a capacidade de

resolver o complicado jogo de forças históricas “o herói de Carlyle ou Hegel, o déspota esclarecido de Voltaire,

o legislador de Rosseau, o soberano absoluto de Hobbes e o príncipe de Maquiavel.” Cf. in: LOWY, M. La

Teoria de la Revolucion en el Joven Marx. 5 ed., México, siglo Veintiuno Editores, 1978. p. 23.

Page 13: A Guerra de Maquiavel

popular e a unificação italiana que eram do interesse de todo o povo. Gramsci alerta que,

como nenhum príncipe preencheu as características desejadas por Maquiavel, “o seu caráter

utópico consiste em que o príncipe não existia na realidade histórica, não se apresentava ao

povo italiano com características de imediatismo objetivo, mas era uma pura abstração

doutrinária, símbolo do chefe, do dirigente ideal... Maquiavel mostra como deve ser o

príncipe para levar um povo à fundação de um novo Estado e o desenvolvimento é conduzido

com rigor „lógico‟, com relevo científico... parece que todo trabalho „lógico‟ não passa de

uma reflexão do povo, um raciocínio interior que se manifesta na consciência popular e acaba

num grito apaixonado e imediato”.22

Nos dias de hoje, afirma Gramsci, o partido comunista é

o moderno príncipe capaz de mediar os fins da vontade coletiva das massas na conquista do

poder e da hegemonia cultural e política sobre o conjunto da sociedade civil.

Também Habermas encontra em Maquiavel a origem do Estado moderno com a

ruptura do nexo clássico entre ética e política. Para manter o segredo e garantir a soberania do

príncipe perderam-se as antigas noções de prudência e virtude, substituídas agora por um

jargão técnico e científico. No momento em que os homens não mais se perguntam pelas

condições morais da vida boa e excelente, o Estado torna-se o guardião absoluto das técnicas

de dominação sobre o povo. É o momento em que a política começa a condicionar-se ao

modelo da ciência experimental. Habermas localiza em Maquiavel e Thomas Morus os

primeiros expoentes dessa aproximação. Na Utopia tem-se a solução para a miséria e o

sofrimento como tarefa de uma nova ordem econômico-administrativa, enquanto que “sobre

uma base social estreita de um Estado urbano, Maquiavel podia prescindir, todavia, da

organização da sociedade dedicando sua atenção exclusivamente à técnica da conservação do

poder”.23

Assim a obra maquiaveliana é a primeira manifestação da tecnocracia política. Nas

relações de poder, agora aparece um terceiro elemento que se caracteriza por reter o

monopólio do conhecimento político sobre os conhecimentos desiguais e hierarquizados,

como os religiosos, morais, filosóficos e outros, e os utiliza para manter a sociedade dividida.

Gerard Namer encontra aqui a origem da Sociologia do Conhecimento. A arte da

dissimulação do chefe, o maquiavelismo, pressupõe um conhecimento mais amplo das

relações humanas para poder regulá-las em meio aos entrechoques dos conflitos sociais. É o

domínio, por parte do Estado (príncipe), da “ciência da crueldade”.24

22

GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira S/A, 1976, p. 4. 23

HABERMAS, J. Teoria y Praxis. Buenos Aires, Editorial Sur S/A, 1966, p. 17. 24

NAMER, G. As Origens da Sociologia do Conhecimento. São Paulo, Editora Cultrix, 1982, p. 50.

Page 14: A Guerra de Maquiavel

A dicotomia entre política e ética, instaurada por Maquiavel, é, no entender de

Leo Strauss, a origem dos desastres da civilização da modernidade. Coincide com o momento

em que a filosofia política entra em eclipse e, hoje, chega a um “estágio de decadência, e,

talvez de putrefação, se é que não desapareceu completamente”25

. Ao modo de Colombo,

Maquiavel teria descoberto um novo continente da moral na medida em que se desligou das

soluções clássicas; agora o homem parece infinitamente moldável, maleável, adaptável às

relações das forças que perpassam o espaço social e onde já não se indaga pela formação

virtuosa (Phronesis) do homem político, ao contrário, pois os homens são fundamentalmente

maus e é preciso compeli-los e forçá-los para o bem. De uma posição radicalmente oposta aos

que encontram em Maquiavel a chave da desgraça do homem, surge a intervenção de

Merleau-Ponty ao sustentar que o florentino foi o primeiro a formular a questão do

humanismo real por sua concepção do homem como ser prático, criativo e engenhoso e que

enfrenta permanentemente um mundo opaco e imprevisível, onde toda existência parece

fortuita. O homem de Maquiavel forja sua virtú na luta contra a adversidade. A sua realização

não se dá apenas no aperfeiçoamento de sua interioridade, mas na sua ação sobre um mundo

muitas vezes brutal e implacável. Para aqueles que tem em consideração o humanismo do

homem interior e que não atentam para o caráter resistente da atividade social e que escondem

as questões políticas sob o manto da exortação moral, Maquiavel, segundo Merleau-Ponty,

não seria um humanista, mas para aqueles que consideram como humanismo a questão das

relações humanas, então ele teria formulado os pressupostos de todo o humanismo sério. E é

neste sentido, portanto, que o nexo ético-político sofre um abalo, pois a maldade pode ser

benéfica e a bondade, por sua vez, pode converter-se em maldade. Dante Alighieri, um dos

luminares do humanismo católico, opta por César e o Império; Maquiavel opta por Brutus,

pois o assassinato do imperador é o caminho para restaurar a república livre. A bondade só é

possível à sombra do poder, pois pode-se imaginar um homem bom sem atentar que sua

preservação requer o funcionamento da polícia, do exército e dos hospícios? Ou ainda, como

indaga Merleau-Ponty, “O que é uma bondade que fosse incapaz de dureza? o que é uma

bondade que se pretende apenas bondade?”26

A última suma maquiaveliana é o longo ensaio Maquiavel: o Trabalho da Obra, de

Claude Lefort, para quem a obra de Maquiavel - como a de Platão, Aristóteles, Marx ou Freud

- é uma fonte inesgotável de provocação, uma obra de pensamento que, desde que foi

elaborada, efetua um “trabalho” que abre constantemente novas alternativas de interrogar o

25

STRAUSS, L. What is Political Philosophy? Glencoe, The Free Press, 1952, p. 17. 26

MERLEAU-PONTY, M. Nota sobre Maquiavel. In: Sinais. Lisboa, Editorial Minotauro, 1962, p. 331 e ss.

Page 15: A Guerra de Maquiavel

Ser. Mas como a obra é indomável, restaria a tarefa nunca acabada de interpretação que é feita

sobre um fundo onde a transparência nunca é total. A obra nos interpela já como antecipação

às nossas interrogações, como que abrindo alas ao surgimento da pergunta. Portanto, partimos

sempre de uma abertura efetuada pelo trabalho de sua presença inarredável, pois não podemos

cair na “ilusão de que podemos pensar o pensamento sem lhe ser em nada devedor do que ele

dá a pensar”27

. Em seu enorme esforço interpretativo Lefort busca recuperar as dimensões do

que a obra dá a pensar, para isto tem de desfazer-se do engano da objetividade da obra que

estaria pronta e acabada para ser lida e entendida, e o engano subjetivista que pretende

discernir o sentido único na pluralidade das leituras. A, obra é um enigma que, obviamente, só

se revela na leitura, mas uma leitura que é feita já nas suas pegadas. Decifrar a obra, eis o

objetivo da interpretação; só que na medida em que a fazemos abre-se-nos o enigma de nossa

própria identidade. A partir daqui Lefort faz a crítica ao realismo que tenta fundar-se sobre a

ilusão do milagre da boa leitura. A obra de Maquiavel, portanto, não porta uma mensagem

simples e acessível, uma vez que até mesmo o intérprete não tem como resolvido o problema

de sua identidade. As leituras simples pagam o preço do esvaziamento do sentido da obra.

Lefort afasta qualquer hipótese reducionista: “A ficção de um regime sem contradições

acompanha aquela de um pensamento sem contradições”28

. E foi Maquiavel um dos primeiros

escritores a driblar e estatuto realista. Ele leu os clássicos (Tito Lívio, Políbio, etc.) nas

atribulações de seu horizonte, assim como nós o lemos na atribulação do nosso, uma vez que

o que dá a pensar jamais está deslindado da vivência do presente29

. Assim, cada abordagem

porta uma verdade parcial; o enfrentamento com a obra, porém, torna-se possível em meio ao

conflito das interpretações. Sobre Maquiavel - como a respeito de qualquer grande pensador -

ninguém mais possui a última palavra. Resta, entretanto, como tarefa a ser sempre reencetada,

escavar sob os discursos que tornam o sentido do maquiavelismo como um véu que, ao fim e

ao cabo, oculta as verdadeiras questões que, presentes na obra de Maquiavel, lançam luzes

sobre o ser do político.

27

LEFORT, C. As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 156. 28

Idem. Maquiavel; Le Travail de L‟Ouvre. Paris, Galimard, 1972, p. 236. 29

LEFORT, C. Op. Cit., p. 58.

Page 16: A Guerra de Maquiavel

A CIDADE E O HOMEM

“Em Florença mal se pode viver sem se estar no poder”.1

O regime florentino tem seus contornos definidos em 1293, quando a cidade, em

processo de crescimento econômico e alteração de sua ordem social, define sua constituição

política com os Ordenamenti di Giustizia, os atos de justiça, que se prolongarão até os tempos

de Maquiavel. Através deles chega ao fim a fase crucial das lutas que sacudiram Florença nos

séculos XII e XIII. Na cidade tosca na nunca houve um triunfo definitivo dos partidários do

papa ou do imperador. Mas a disputa entre guelfos e gibelinos deixou de ser uma expressão de

poderes estrangeiros e adquiriu um caráter local. A luta, agora, era entre burgueses e senhores

feudais. A burguesia busca o apoio do partido guelfo para melhor combater seus inimigos. Os

nobres, por sua vez, para não perderem o controle total do poder, têm de mudar seu

comportamento, adequando-se a uma nova realidade que os levou a alterar seu papel político

para resguardar seus interesses ou manter-se na ordem tradicional e sucumbir. Os senhores

aceitam as novas regras, mas com o poder que, todavia, possuem, passam também a ditá-las.

A nobreza torna-se burguesa e a burguesia se enobrece, comprando títulos nobiliárquicos ou

através de casamentos de interesse. Forma-se uma aliança das elites contra o povo simples

que será a viga mestra da organização do poder na cidade, durante séculos, Esta é a forma

social e política de Florença, autônoma e livre, que, em princípio, não depende de papas,

príncipes ou imperadores. Uma república soberana dirigida por uma casta que, antes de tudo,

se ocupa em guarnecer seus privilégios, pois “desde as duas origens até o fim, a república de

Florença - como muitas outras comunas italianas - fundou-se sobre a exclusão de parte

importante de seus habitantes da participação ativa na vida política. Sua democracia não está

baseada na reivindicação de certos direitos fundamentais de todos os cidadãos, mas no

privilégio, de uma parte dentre eles, de exercer o poder”.2 Os Ordenamenti de Giustizia, a

constituição florentina, na prática, portanto, dividia a sociedade entre privilegiados e

excluídos do poder. Nas bases mantém-se o esquema comunal-feudal. Os homens organizam-

se em corporações ou guildas (arti) e essas associações são fonte de todos seus direitos, quem

não pertence a qualquer delas vale tanto quanto um cão vadio.3 Dentro dessas organizações

1 Cf. A TENENTI. Florença na época dos Médici. São Paulo, Editora Perspectiva S/A, 1973, p.122.

2 Idem, ibidem, p. 25.

3 “No tempo em que precede o desenvolvimento de Estados adaptados ao progresso do capitalismo industrial,

todos recebem as regras de sua atividade na corporação em que estão inscritos; a arte é o agrupamento

fundamental, de onde todos tiram ao mesmo tempo sua defesa individual e coletiva, assim como recebem as

Page 17: A Guerra de Maquiavel

existem hierarquias de ofícios que definem as posições segundo dois grupos bem distintos: as

Arti Maggiori e as Arti Minori. Os primeiros detêm as rédeas da cidade. A Senhoria reúne os

nove cidadãos dirigentes. Os outros têm um poder limitado mas que os distingue daqueles que

não têm poder algum e que constituem uma grande parcela da população expulsa do campo

pelas crises do feudalismo. As Arti Maggiori reúnem os banqueiros, os nobres que começam a

participar nos negócios, os mercadores ricos, os donos das indústrias de lã e da seda. Nas Arti

Minori encontram-se os médios e pequenos comerciantes e alguns produtores artesanais.

Nos anos que se seguiram, Florença sofreu, como a maioria das cidades européias,

uma onda de epidemias que junto às esporádicas crises econômicas dos séculos XIII e XI

ameaçaram terrivelmente sua população. A Peste Negra de 1348 dizimou uma boa parte de

seus habitantes e seu número que atingira os 100.000 caiu vertiginosamente para 50.000 em

menos de um século. Essa cifra era considerável para a época, se comparada com a de

Londres, por exemplo, cuja população andava por volta deste mesmo índice. Além disso, a

cidade, para preservar sua autonomia e o acúmulo crescente de riqueza, teve de viver em

constante conflito com outras cidades independentes que disputavam entre si o “espaço vital”

no interior do território Italiano. Florença, situada numa delicada posição estratégica, no

centro da península, em meio às rotas centrais de comunicação terrestre, estava cercada por

Bolonha, Luca, Pisa, Livorno, Sielia, Perugia e Urbino. No meio desse tabuleiro econômico-

político-militar, a cidade terá de efetuar um complicado jogo de alianças e conquistas a ponto

de, em 1450, atingir uma superfície de 15.000 Km² configurando-se, então, como um pequeno

Estado territorial num quadro geopolítico móvel e indefinido. Mas ela nunca ocupará

integralmente a Toscana, nem Siena ou Luca. Em 1361 seus domínios chegarão até a Pistóia e

às proximidades do Vale de Eisa. Em 1364 toma San Miniato e em 1384 adquire Arezzo; em

1406 conquista Pisa; em 1441, Cortona e em 1421 compra San Sepolcro e Livorno por

125.000 florins. A tomada de Pisa foi decisiva, pois com ela Florença obtém acesso ao mar.

Mas a Cidade do Urio também teve de defender-se. Em 1375, Gregório XI lança uma

interdição contra ela na tentativa de restabelecer a autoridade que o papado dizia possuir na

Toscana. Em 1385, diante da ameaça de João Galeazo Visconti, senhor de Milão, de

apoderar-se da região central da Itália, Florença se Ime a Pisa, Luca e Bolonha na tarefa de

conter as manobras do inimigo. Em 1387 Visconti, tentando isolar Florença, assalta Verona e

Vicenza e em 1400 o perigo cresce desmesuradamente com as derrotas de Perugia, Assis,

Siena e Pisa. Em 1402 as tropas de João Galeazo ocupam Bolonha e ameaçam fechar o cerco

normas de sua vida econômica”. Duvernoy, J. F. Para conhecer o pensamento de Maquiavel. Porto Alegre, L &

PM Editores, p. 28.

Page 18: A Guerra de Maquiavel

sobre Florença que, em setembro do mesmo ano, com grande a1ívio, recebe a notícia da

morte do agressor e da desagregação do seu exército. Algum tempo depois, os florentinos

encontrar-se-ão novamente às voltas com um outro Visconti, Duque de Milão, cujas tropas,

em 1424, derrotam os mercenários florentinos em Zagonara, mas, que, em meio ao acirrado

jogo de interesses da península, acabará morrendo sem a glória de ter entrado no Palazzo

Vechio.

Na política interna, com os mercadores detendo os setores de ponta da produção,

Florença é sacudida pela rivalidade entre as grandes famílias (Popolo Grasso) na disputa do

poder. Seu controle significa o domínio sobre os concorrentes mais ameaçadores. Para isso

alguns magnatas se aproximam da plebe (Popolo Minuto) tentando jogá-la contra os

adversários. Em julho de 1378, eclode uma revolta popular articulada por Salvestro Médici,

contra o partido guelfo. Nas condições em que se encontrava a cidade, estas atitudes eram

como acender um fósforo num paiol. A guerra dos Oito Santos, contra Gregório XI. custara

aos cofres citadinos cerca de dois milhões de florins. A contratação de mercenários

(condottieri) na luta contra João Galeazo resultou em despesas vultosas e Florença se viu às

voltas com a maior dívida pública de sua história. Os encargos desses empreendimentos eram

repassados, fundamentalmente, aos pequenos produtores e ao Popolo Minuto, atingidos por

um sistema fiscal cada vez mais aperfeiçoado pela criação do cadastro (catasto), de pesados

impostos diretos e de empréstimos que a Senhoria recolhia para devolver com juros muito

baixos. As tentativas de tapar o rombo abriram espaço para a agitação e insatisfação popular.

O povinho momentaneamente deixa de ser massa de manobra e, em 27 de agosto de 1378,

ocorre o tumulto dos Ciompi, primeira revolta operária marcante e que daria nova dimensão

política à sociedade comunal-burguesa. Os Ciompi eram os trabalhadores (cardadores de lã)

das indústrias têxteis, submetidos a um regime de trabalho brutal e agravado pela

impessoalidade característica da produção industrial em escala. Eles não têm quaisquer

direitos elementares; são proibidos de associarem-se em confrarias e até mesmo, durante os

funerais, são observados de perto por agentes e informantes. Sua vida é cuidadosamente

fiscalizada pelo Ufficiale Forestiere, chefe de polícia anti-operária, figura que desaparece na

fase mais aguda da rebelião, quando os Ciompi assumem o controle da cidade e se apoderam

da bandeira do gonfaloneiro, símbolo da autoridade maior. Exigem o reconhecimento de três

novas artes suplementares e uma participação mais efetiva na distribuição do poder. Dirigem-

se aos bairros de seus inimigos e ateiam fogo em suas casas. Em suas Histórias Florentinas,

Maquiavel, que conhecia muito bem as relações sociais e políticas da sua cidade, assim

reproduz o discurso de um desses rebeldes:

Page 19: A Guerra de Maquiavel

Em meu modo de ver marchamos para uma vitória certa, pois os que nos poderiam

opor resistência estão desunidos e são ricos. Sua desunião nos dará a vitória; suas

riquezas, quando passarem para nossas mãos, nos ajudarão a mantê-la. Não vos

deixeis impressionar pela antigüidade de sua estirpe, arma que esgrimirão contra

vós. Todos os homens, igualmente tendo a mesma origem, pertencem a uma estirpe

igualmente antiga e a natureza os criou a todos iguais. Desnudai-os e vereis como

são iguais a nós. Vistamo-nos com suas roupas e vistamo-los com as nossas e, sem

dúvida, pareceremos nós os nobres e eles o populacho. A única coisa que nos

diferencia é a riqueza. Dói-me saber que muitos de vós sentem remorsos pelo que

tem ocorrido e querem abster-se de levar a cabo novas ações. Se é isto que

verdadeiramente desejardes não sais os homens por quem os havia tomado. Não

deveis temer os remorsos e a infâmia, pois o vencedor nunca se envergonha de ter

vencido, seja qual for o meio que tenha utilizado. Tampouco devem levar em conta

as reprovações da consciência, pois aquele que, como nós, está ameaçado pela fome

e a prisão, não pode carregar consigo o temor do inferno. Se observais o modo de

proceder dos homens, vereis que todos os que alcançarem grandes riquezas ou

grande poder, não o conseguiram senão pela força e a mentira. A seguir, guardam o

que alcançaram com astúcia ou por meios violentos, adornando-o com falsos títulos

de conquista ou ganância, para assim ocultar a infâmia de sua origem. Aquele, que

por falta de prudência ou por ser demasiado imbecil não se atreva a usar estes meios,

afundar-se-á cada dia mais na servidão e na pobreza, pois os servos não saem nunca

de servos e a gente louvada nunca sai de pobre.4

Mas a união popular não resistiu por muito tempo. O Popolo Grasso (Povo

Gordo), que, a princípio, se interessava em usar a plebe, terminou por sentir o pavor de sua

ameaça contra seus privilégios. Começou, então, a reação em bloco das elites contra o excesso

de poder que o Popolo Minuto, em tão rápido tempo, julgara conquistar. O sufocamento da

revolta ocorreu com o retorno de Michele di Lando, o gonfaloneiro escolhido pelos

amotinados e que, pressionado pelos magnatas e por alguns setores populares que também se

sentiram ameaçados pelas artes novas, negou-se a cumprir suas exigências. Os Ciompi foram

expulsos para a periferia e sua revolta completamente esmagada. Florença não teve depois

nenhum movimento popular que se lhe comparasse. A classe dirigente tirara mais proveito

dessa lição e, de ora em diante, seu domínio consolidar-se-á de modo definitivos.5

Mas o Popolo Grasso viverá sob o temor constante de que acontecimentos desse

tipo voltem a se repetir. A demagogia dos cidadãos ilustres será punida agora com extremo

vigor. Famílias que usaram da plebe sofrem o exílio e a perda completa do patrimônio. Esta

decisão bloqueou por alguns tempos as iniciativas dos Médici e liquidou de vez com os

Alberti. Com o receio de que apenas um grupo reduzido se aposse do comando político, as

instituições florentinas passarão por grandes alterações e tornar-se-ão extremamente

4 Citado por Max Horkheimer. In: História, Metafísica, Escepticismo. Alianza Editorial S.A., 1982, p. 32-33.

5 “Apesar de muito numerosos, esses proletários estavam ainda socialmente isolados em uma cidade onde a

realidade artesanal era sempre muito viva e a organização pré-capitalista já afirmada. Portanto, eles só podiam

ser os protagonistas, muitas vezes, no inicio, involuntários e no fim as vitimas de um grande drama. Sua

destruição não era senão o começo de um longo período em que a burguesia ia reconhecer e repelir para uma

posição inteiramente marginal as classes inferiores da cidade”. TENENTI, op. cit., p. 34-55.

Page 20: A Guerra de Maquiavel

complexas. Ufficiale Forestiere, chefe da repressão, como indica o próprio nome, continuará

sendo escolhido entre os forasteiros das cidades próximas. Os homens que ocupam as chefias

no aparato militar também são assalariados recrutados alhures. A direção das tropas durante a

guerra é entregue ao Condottiere que é contratado segundo a natureza das operações e por

suas habilidades. Terminada a missão, é despedido. Este cargo é tão perigoso que ao

Condottiere é proibido entrar na cidade com seus soldados. O barguello, chefe supremo da

polícia, é recrutado em regiões distantes. Além disso, próprio da tradição republicana,

acentua-se a rotação nos cargos públicos. Os nove componentes da Senhoria têm mandatos de

apenas dois meses e não podem ser reeleitos antes de dois anos. Ainda para assegurar-se que a

união entre famílias controle estes postos, organiza-se uma combinação de eleição e sorteio. O

candidato à magistratura deve antes ser eleito e, então, seu nome é depositado numa urna na

companhia de outros onde se submeterá ao acaso. Cada arte, por sua vez, escolhia seu chefe, o

prior, e a direção dos priores entregue ao gonfaloneiro que tem a responsabilidade do

comando-em-chefe da força armada. O Podestá, encarregado da administração da justiça, é

igualmente trazido de fora. Ele habita o Pallazzo Vechio e lidera um corpo de 250 cidadãos.

Cria-se a figura do Capitão do Povo que comanda um grupo de 300, responsável em dirimir

os excessos da dite contra os pobres. Pelo que se vê sua função é simbólica. Nos momentos de

crise escolhe-se uma Balia, assembléia soberana eleita na praça pelo povo que funciona com

poderes ditatoriais.

Mas todos esses mecanismos não conseguirão conter a tendência para o

clientelismo e a demagogia das famílias ricas na busca do efetivo controle do poder. Entre os

Alberti, os Strozzi, os Pazzi, os Salviatti, os Ricardi, os Sasseti, os Pitti, os Tuornabuoni, os

Marteli, e outros, nenhum alcançou os Médici na habilidade com que defenderam seus

interesses e na capacidade de ampliá-los de modo crescente. Esta família se envolveria em

inúmeros litígios com seus adversários e sempre manteve seu prestígio com muita ostentação,

sangue e dinheiro. A Casa Médici se confunde com a história de Florença a tal ponto que

chegam a ser sinônimas. Após os acontecimentos de 1378, os Médici vivem apenas à sombra

do poder do partido guelfo, controlado pelos Albizzi e os Uzzano, representantes da

oligarquia conservadora que liquidara a insurreição dos Ciompi. Se não dominavam

politicamente, os Médici se consolidavam como empresários industriais, compravam vastas

áreas de terra da nobreza e difundiam sua rede de bancos pelo continente europeu. Com o

eclipse da Casa Albizzi, pela morte de seu patriarca Maso, (1417), os Médici começam a

participar mais efetivamente dos assuntos públicos. João Médici cria o maior banco do século

XV e é eleito prior e gonfaloneiro. Cosme o Velho, fora expulso em 1433 mas regressa um

Page 21: A Guerra de Maquiavel

ano depois para não mais sair da cidade. Com vultosos recursos financeiros e uma rede de

partidários e capangas, ele detém o controle das instituições. Em 1478, durante a missa de

Páscoa, os Pazzi invadem a catedral, determinados eliminar Lourenço e Juliano Médici; este

morre apunhalado, mas Lourenço consegue escapar ileso e parte de imediato para a vingança.

A multidão que apóia seu partido vasculha a cidade. Lacopo e Francesco Pazzi são linchados.

O arcebispo Salviatti, ligado aos conjurados, é enforcado e dependurado na torre do Palazzo

Vechio. Maquiavel, que nascera em 14 de maio de 1469, com toda certeza presenciou essa

relevante cena da vida civil de Florença.

Na época de Lourenço, o Magnífico, ocorre a expansão da cultura humanista e das

artes, esse movimento de renovação que iniciara com Dante, Petrarca e Boccaccio é retomado

por gerações de ilustrados homens públicos que investem contra a barbárie medieval e as

tiranias anti-republicanas; redescobrem Cícero, Virgílio, Tito Lívio, Sêneca e os clássicos

gregos. O humanismo teria surgido “no espaço da vida civil e só depois eclodiu nos outros

campos do saber permitindo sua recuperação e seu f1orescimento”6. Em Florença sucedem-se

chanceleres humanistas como Coluccio Salutati, tradutor de Aristóteles, Leonardo Bruni, D.

Acciaiouli, Bartolomeu Scala e que chega ao apogeu com um subsecretário que se tornaria

ainda mais famoso: Nicolau Maquiavel. O século XV viu florescer dentro dos muros da

cidade tosca na uma constelação de artistas incomparáveis: Brunelleschi, Donatello,

Masaccio, L.B. Alberti, Paolo Ucello, Fra Angélico, Ghiberti, Andrea da Castagno, Fillipo

Lipi, Piero de la Francesca, Benozzo Gozzoli, Verochio, e, um pouco depois, Leonardo da

Vinci, Rafael e Miguel Ângelo. Encontram-se em casa de Lourenço, Pico da la Mirandola,

Polizziano e Marcílio Ficino. A este Lourenço comprou uma bela casa de campo nos

arredores de Florença, a fim de que tivesse paz e tranqüilidade para traduzir as obras de

Platão. Sustentou-o financeiramente em seu projeto da Academia Platônica. No início de

século já Leonardo da Bruni havia feito um elogio que define a cidade e sua cultura:

“Florença reúne os homens de mente mais esclarecida, em tudo o que empreendem, com

facilidade superam os demais, tanto se dedicam às questões militares ou políticas, ao estudo

de filosofia ou ao comércio”.7

A Casa Médici, entretanto, vivia a fase final de seus melhores dias. Os tempos são

outros. Lourenço, através de alianças laços matrimoniais, busca ampliar as bases de

sustentação da família. Casa com Clarice Orsini, jovem da nobreza romana; torna seu filho

6 GARIN, E. Ciência e Vida Civil en el Renascimiento Italiano. Madrid, Taurus Ediciones S.A., 1982.

7 Citado por Rubstein, N. Los Comienzos del humanismo em Florencia. In: Época del Renasciemiento; vários.

2.ed., Barcelona, Ed. Labor, 1972, p.12.

Page 22: A Guerra de Maquiavel

João cardeal aos 17 anos na esperança de que chegasse ao papado (e de fato, tornar-se-á mais

tarde Leão X). Mas a formidável riqueza da Cidade do Lírio começa a refluir. A articulação

comunal-feudal, sobre a qual se erguera, torna-se agora um empecilho inamovível para seu

desenvolvimento8. Surgem os poderosos estados nacionais, França, Espanha, Portugal e

Inglaterra. Deslocam-se os centros comerciais. Criam-se bancos no norte (os Fuggers).Os

bancos florentinos no exterior começam a fechar suas portas. Com a morte de Lourenço, seu

filho Pedro, o Inábil, fica pouco tempo no poder; em 1494, quando da investida de Carlos

VIII sobre a Toscana, ele é banido pelos florentinos. Gerônimo Savonarola que iniciara pouco

antes suas prédicas nas igrejas e nas praças, agora irrompe como um ciclone. Vindo de Ferrara

e dono de uma oratória que só se encontrará novamente em Lutero, ele sacode a religiosidade

latente na vida cotidiana de Florença9. O frade prega contra a degeneração dos costumes, a

luxúria, a secularização das artes e principalmente ataca a corrupção e desmoralização da

Igreja na pessoa de Alexandre VI, Bórgia. Junto a essas denúncias veementes, ele realiza

presságios e vaticínios. Prevê a entrada de Carlos VIII na Itália e a expulsão dos Médici. O

povo passa a acreditar em suas visões e, em breve, ele será o grande líder salvacionista.

Florença passa a viver um clima de reforma. Savonarola assume o poder com mudanças

profundas nas instituições políticas. Tomou Veneza como modelo de governo e criou o

Grande Conselho composto de 3.000 membros encarregados de legislar e supervisionar as

eleições para os cargos públicos. Entretanto, como em Veneza, onde o poder acabava, ao fim

e ao cabo, centrando-se numa cúpula dirigida pelos Doges, o regime florentino se fechara e

tornara-se quase absoluto nas mãos de Savonarola. Além disso, a base de seu poder era o

povo e com seu apoio direto e constante tornou-se rapidamente um tirano imbuído do ideal de

salvação e da pacificação através da vida simples e devota.

8 Agnes Heller compara a decadência de Florença com a de Atenas, esta pela degeneração do modo de produção

que lhe servia de suporte, aquela por não poder acompanhar a consolidação de um modo de produção (MPC) que

ela mesma ajudava a construir. “A cidade-estado ateniense tinha esgotado as últimas possibilidades do seu próprio

modo de produção. Nela - remetendo para a análise de Marx - a comunidade urbana transforma-se num limite cuja

dissolução era sinônimo de dissolução do seu modo de produção. No caso de Florença, por outro lado, a situação

era radicalmente diferente. O modo de produção em que se fundamentava não desapareceu com a queda da cidade

renascentista, mas sim o contrário: a cidade caiu porque num novo modo de produção se mostrava incapaz de

superar o âmbito da cidade-estado e se mantinha nos seus limites, mesmo se pára a produção moderna, burguesa,

estes não constituíam simples fronteiras mas verdadeiros limites ou barreiras... ao contrário de Atenas - o modo de

produção em que a cidade-estado florentina assentava não desapareceu com Florença; continuou a desenvolver-se

naqueles países onde a monarquia absoluta ajudou a destruir as barreiras que se levantavam à produção burguesa.”

Cf. A. HELLER. a homem do Renascimento. Lisboa, Editorial Presença Ltda., p.46. Ver ainda PERRY

ANDERSON. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 143 e ss; H. H. HALE. A Europa

durante o Renascimento. Lisboa, Editorial Presença Ltda., 1983. Igualmente o livro de BERNARD GUINÉE, O

Ocidente nos séculos XIV e XV (Estados). São Paulo, Pioneira, 1981. 9 Cf. em JACOB BURKHARD T. La cultura del Renascimiento en Itália; de modo especial o capitulo A

Religião na Vida Cotidiana. Barcelona, Editora Ibéria, 1959, p. 349 e 55.

Page 23: A Guerra de Maquiavel

As mudanças deviam começar em Florença. Savonarola dirige cruzadas contra

obras que incitam os prazeres, destrói edifícios de arquitetura que considerava pagã; mete-se

na vida privada dos florentinos, visando a detectar suas vaidades e suas paixões mundanas,

para isto forma um contingente de jovens informantes e delatores10

. A oposição política das

elites tradicionais não cessa de se articular e crescer. Esperam a oportunidade para entrar em

ação. No carnaval de 1498 ele dirige uma vasta campanha de moral idade denunciando o

Vaticano como antro de escândalo, sodomias e desregramento. Mas quando Carlos VIII

resolve retirar momentaneamente suas tropas da península, o sonho teocrático de Savonarola

se dissolve. É excomungado por Alexandre VI. Logo é preso, condenado e queimado vivo.

Sua passagem meteórica marcou profundamente a vida da cidade e influiu na obra de

pensadores e artistas como Botticelli, Pico de la Mirandola e Miguel Ângelo que

possivelmente captou nas cenas do Juízo Final, no teto da capela Sistina, o espírito dos

sermões do frade. Seu ímpeto político e o ardor revolucionário, serão muitas vezes evocados

por Maquiavel que usará a lição de sua derrota para mostrar o triste fim dos profetas

desarmados.

É em meio às invasões estrangeiras, disputa entre partidos e facções e o final

trágico de Savonarola que Maquiavel surge na atividade pública. O cheiro do suplício do

frade ainda não se desvanecera na praça da Senhoria quando Maquiavel é designado para o

cargo de secretário da chancelaria. O emprego tornou-se possível pela limpeza geral nos

quadros de funcionários ligados ao regime anterior. Multiplicam-se eleições e sorteios e há

uma renovação nos grandes conselhos. Cria-se o Conselho dos Dez responsável pela direção

política da cidade; em janeiro de 1499, Maquiavel é nomeado para a direção da segunda

chancelaria. Não contava ainda 30 anos e sua escolha talvez se desse por sua formação

intelectual enriquecida pela leitura de autores clássicos.11

10

E. Garin vê Savonarola como um anacronismo em relação aos ideais humanistas dos intelectuais florentinos e

um distanciamento total das mudanças da Renascença. “A Florença de Savonarola, herdeira mística de

Jerusalém, nova cidade Santa, está muito longe da Florença de Leonardo Bruni. E ainda que Savonarola, na

prática política concreta, seguia crendo na perfeição das leis venezianas, também é certo que, para além do

tempo, via a ameaça da justiça divina, castigadora implacável do pecado. O triunfo da justiça na cidade não é só

obra de governantes sábios: depende do ritmo do pecado, da redenção e da intervenção divina. O advento da

cidade ideal está ligada à profecia do nosso século, da regeneração da humanidade, da paz universal, da

unificação da espécie humana sob a direção de um só pastor”. E. Garin, Ciência Y Civil en el Renascimiento

Italiano. Madrid, Taurus Ediciones S.A., 1982, p. 69. 11

Não se tem informações precisas sobre a formação intelectual de Maquiavel. Através de Jacques Heers, cuja obra

devemos muitas informações sobre a vida de Maquiavel. sabemos que o pai de nosso autor, Bernardo Maquiavel,

redigira uma espécie de diário publicado apenas em 1954 por Cesar Olscki com o titulo Libro di Ricordi, onde é

relatada a vida familiar e as relações com parentes e amigos em Florença no período que vai de 1474 a 1484.

Mesmo o Libro di Ricordi é escasso em referência aos estudos de Maquiavel. Por ele sabe-se que Maquiavel, aos

seis anos, estudou gramática latina com professor particular; continuou seus estudos mais tarde no convento de San

Benedetto, entremeando latim e cálculo, que se tornou indispensável na cidade comercial e bancária. Do período

Page 24: A Guerra de Maquiavel

A primeira missão importante de Maquiavel foi junto às tropas florentinas durante

o sítio de Pisa. Com a passagem de Carlos VIII, a cidade se rebelara e Florença perdera seu

principal acesso ao mar. Tentava reconquistá-lo e para tal contratara os serviços do

Condottieri Paolo Vitelli. Maquiavel supervisiona o andamento das operações militares e

incita Vitelli a continuar o assalto. Em março de 1499, é enviado a Piombino em busca de

apoio. Em julho, parte em missão pela Romanha e encontra-se com Catarina Sforza com o

objetivo de comprar munições e recrutar infantes. Catarina, que desconfia das intenções de

Florença, nega sua ajuda. Não há reforços. O cerco de Pisa passa por maus momentos. Paolo

Vitelli, que tinha quase eliminado a resistência dos Pisanos, titubeia,- mesmo com toda a

pressão da Senhoria, os ânimos arrefecem e os mercenários negam-se a continuar o combate.

Maquiavel é enviado às pressas. Lá escreve seu primeiro texto significativo, Discurso aos Dez

sobre a Situação de Pisa, onde relata os acontecimentos que levaram à derrota florentina. A

Senhoria suspeita de que Paolo Vitelli é o principal culpado; ele é sumariamente julgado e

decapitado (tornaram-no um bode expiatório para isentar a Senhoria perante o povo das

responsabilidades na condução de guerra?)12

. De qualquer modo os acontecimentos despertam

em Maquiavel a idéia de construir uma milícia permanente e a não confiar na fidelidade

instável dos mercenários.

A invasão de Carlos VIII complexificava ainda mais os conflitos na Itália que se

torna um teatro de operações para os grandes exércitos estrangeiros. Maximiliano I, todavia,

alimenta o sonho medieval de construir um império universal começando pelas províncias

italianas. As cidades e o papado digladiam-se entre si e recorrem a alianças com as monarquias

estabeleci das e emergentes. O papa aproxima-se da Espanha que, por sua vez, sente-se

ameaçada pela influência da França na península. O novo governo florentino, entretanto, deve

ao rei francês a expulsão dos Médici e a queda de Savonarola. Maquiavel, que se mostrava

incansável no desempenho de seu cargo buscando consolidar e encetar novas alianças com as

cidades vizinhas, é incumbido de uma legação junto ao novo monarca da França. Em julho de

que se estendeu da adolescência ao inicio de sua atividade na chancelaria não se sabe se andou por alguma

universidade, se freqüentou a Academia Platônica ou se sua formação foi a de um autodidata. De qualquer modo, a

Libro di Ricordi, ao revelar a sede humanista de conhecimento de Bernardo Maquiavel, nos dá uma idéia do clima

onde o filho foi educado. Vemos Bernardo, dono de pequenas propriedades rurais e uma casa em Florença,

preocupar-se com seus negócios comerciais, vendendo mel, vinho ou óleo no mercado público e comprando,

alugando, emprestando livros de autores que se tornavam moda e faziam furor nos meios cultos da cidade.

Negociou com os livreiros obras raras (a imprensa apenas começava) e os levou para Santo Andrea Percusina. Leu

Cícero, Boécio, Ptolomeu, A Ética de Aristóteles. O Código de Justiniano, um comentário sobre O Sonho de

Cipião, as Saturnais de Macróbio, os Comentários sobre a Ética Aristotélica de Donato Acciaioulli, As Três

Décadas de Tito Lívio entre muitas obras igualmente famosas. Por aí se tem uma idéia do que Nicolau Maquiavel

possivelmente lera nos anos de formação. Ct. J. HEERS, Maquiavel, Paris, Livraria FAYARD, 1985, p. 5 e 38. 12

HEERS, op. cit., p. 68.

Page 25: A Guerra de Maquiavel

1500 ele parte com a comitiva do embaixador Francesco della Casa. Devem convencer Luís XII

da justeza da guerra contra Pisa, oferecendo-lhe, reciprocamente, auxílio para a aventura

francesa na península. Durante meses ele acompanha o deslocamento da corte pelo reino, até ser

chamado pela chancelaria para novas missões junto às cidades vizinhas.

Maquiavel nunca passará de um modesto funcionário do segundo escalão. Viverá

a triste condição da gente subalterna. Em suas missões enfrentará toda sorte de necessidades.

Ao contrário do luxuoso e bem protegido séquito dos embaixadores, ele quase sempre viaja

sozinho por estradas infestadas de assaltantes, montanhas onde se refugiam bandidos ou

lugares onde se movimentam exércitos inimigos ou bandos de mercenários; enfrenta a chuva,

o lodo e o implacável frio invernal, muitas vezes sem dinheiro para pagar o estalajadeiro,

enviar correspondência ou trocar de montaria, vendo-se apenas com a alternativa de vender o

cavalo e completar a viagem no lombo de uma mula.13

Em 1501 casa-se com Marieta Corsini, possivelmente num arranjo entre famílias,

pois não lhe resta tempo para galanteios ou namoro acumulado pelas urgentes tarefas do

serviço diplomático. Com o revés em Pisa, as defecções e as disputas se acirram em Florença,

que se vê ainda ameaçada pela presença de Cesar Bórgia que se deslocava pela Lombardia e

agora adentrava seu exército na Toscana. A situação em Pistóia é mais delicada. Uma cidade

de importância estratégica, por controlar as rotas que se dirigem para o mar, agora dilacerada

por uma guerra entre partidos rivais. Durante o outono e parte do inverno Maquiavel

encontra-se em Pistóia na tentativa de pacificar a cidade, fundamental à segurança de

Florença. Ele vive de perto as negociações e as ameaças de intervenção direta. Em 17 de maio

de 1502 os florentinos desfecham ataque final e assumem o controle. Maquiavel redige o

Relatório sobre a empresa da República florentina para pacificar as facções em Pistóia.

Apenas encerrada a crise, ele parte com Francesco Soderini ao encontro das tropas de César

Bórgia. Encontram-se em Arezzo com Vitelozzo Vitelli, irmão de Paolo, recentemente

executado na praça da Senhoria. Vitelozzo era, até então, o condottieri de confiança de César

Bórgia que, com o apoio de seu pai, o Papa Alexandre VI, tenta organizar na Itália central um

grande principado. Por meio de acordos e pressões ele procura dominar a Romanha e, se

possível, Bolonha. Em setembro de 1501 já conquistara Piombino. Soderini e Maquiavel

acompanham o movimento das tropas pelo vale de Chiana. Recebem a notícia de que o duque

Valentino reunira o grosso de seus homens em Urbino e tomara a cidade de assalto.

Maquiavel escreve Do modo de tratar os povos rebelados do vale de Chiana.

13

Idem, ibidem. p. 117 e ss.

Page 26: A Guerra de Maquiavel

Pedro Soderini, que se tornara gonfaloneiro, envia-o novamente junto a Bórgia

para tentar dissuadi-lo de se aproximar de Florença. Finalmente Maquiavel encontra-se com

um dos homens que mais o marcará; aquele que virá a ser o paradigma do verdadeiro

príncipe. Um homem audacioso para quem não existem perigos e que não conhece a fadiga14

.

Acompanha-o até Imola e daí, durante semanas, segue seu deslocamento a Cesena, Pesaro e

Senigaglia, Sansoferrato e Gualdo quando, em 30 de dezembro de 1502, ele testemunha uma

manobra espetacular de César Bórgia. Desconfiando da sinceridade de seu condottieri e de

seus aliados, o duque, através de uma seqüência de lances bem calculados, prende todos os

adversários e os elimina de um único golpe. Maquiavel imortaliza esse acontecimento na

Descrição do modo de que serviu o Duque Valentino para matar Vitelozzo Vitelli, Oliverotto

da Fermo e o Duque de Gravina Orsini. Mas nem lodo o brilhantismo do duque Valentino

impediu o esmagamento de seus projetos com a morte de Alexandre VI. Sem a proteção do

pai ele não poderá impedir a rebelião das províncias e cidades que conquistara. Seu exército

desmantela-se e ele vê-se obrigado a fugir para a Espanha, onde terminará seus dias como um

condottieri fracassado. No azáfama da escolha do novo pontífice Maquiavel encontra-se em

Roma, sendo encarregado de representar a Senhoria e expressar seu interesse por um papa

capaz de impedir a expansão dos venezianos. Em 28 de julho de 1503, é eleito Júlio II dela

Rovere. No período que se segue, o autor de O Príncipe encontra-se às voltas com um sem

número de, missões e pequenos serviços. “Assim, em menos de dez anos, de 1502 a 1511,

efetua um número considerável de viagens através da Itália: a Roma e a Mônaco. Nicolau vai

quatro vezes à França e, por duas vezes, ele encontra-se com o Imperador ou seus emissários

nos Alpes trentinos ou na Lombardia. Não pôde conhecer Veneza, mas andou por todas as

rotas importantes da época, com exceção da Espanha. Ele teve oportunidade de aproximar-se

dos príncipes soberanos e um número incalculável de conselheiros, de legados, funcionários,

prelados e capitães. Uma experiência de admirável riqueza, um conhecimento de países e

homens ao qual poucas pessoas de seu tempo puderam aspirar”.15

Seu empreendimento mais importante como funcionário público iniciou por volta

de 1504. A campanha contra Pisa fracassara novamente. Os mercenários não cumprem os

acordos. Com apoio de Soderini e do Conselho dos Dez, Maquiavel elabora um plano para

organizar a milícia popular. Pretende alterar profundamente as táticas de combate e de

recrutamento. Parte das experiências que as comunas possuíam de fazer de cada camponês ou

citadino, um membro mobilizável durante a guerra. Essa tradição fora esquecida e cedera

14

Idem, ibidem, p. 106. 15

Idem, Ibidem. p. 111.

Page 27: A Guerra de Maquiavel

lugar à condotta e seu efeito foi um desastre para a defesa das cidades, pois deixava-as à

mercê de homens que lutavam por dinheiro, sem convicção nenhuma, e que podiam

facilmente ser subornados. É verdade que, durante dois ou três séculos, eles definiram um tipo

de civilização e que muitas cidades italianas tiveram-nos em alta consideração, elevando-os à

altura de heróis, esculpindo estátuas em sua homenagem; mas no tempo de Maquiavel, com a

mobilização de imensos exércitos nacionais, sua figura tornara-se anacrônica. As dificuldades

na conquista de Pisa fortaleceram as dúvidas sobre a utilidade destes mercenários viandantes

sem pátria e sem bandeiras. Na Arte da Guerra ele mostra os defeitos desse sistema militar:

“Quanto ao fato de que esta organização da milícia facilita a seu chefe usurpar o poder,

respondo que os cidadãos ou súditos, ao empunhar as armas por virtude das leis e da

constituição, jamais causam dano e sempre serão úteis, conservando-se os Estados maior

tempo com exércitos desse tipo que sem eles. Com seus cidadãos armados, viveu livre Roma

durante quatrocentos anos, e Esparta oitocentos. Muitos outros Estados, que os tinham sem

armas, duraram apenas quarenta anos. As fiações necessitam exércitos e, quando não os têm

próprios, alugam os estrangeiros, os quais, rapidamente, prejudicam o bem público por

corromperem-se mais facilmente, por estarem mais dispostos a apoiar a ambição de um

cidadão poderoso e por serem massa de manobra disponível quando se trata de oprimir

homens desarmados. Além disso, o perigo é maior em Estados com dois inimigos que com

um; e os que se valem de exércitos estrangeiros temem, por sua vez, os estrangeiros tomados

de aluguel e os cidadãos... enquanto os que têm exércitos próprios só temem os cidadãos.

Prescindindo de muitas outras razões, alegarei a de que todos os fundadores de repúblicas ou

reinos confiaram sempre sua defesa aos mesmos habitantes”.16

Entusiasmado com o apoio que

seu plano recebe do gonfaloneiro e dos membros da Senhoria, Maquiavel lança-se de corpo e

alma à tarefa de realizá-lo. Dessas primeiras tentativas resulta o Relatório sobre a Instituição

da Milícia (1505). Ele vasculha as províncias do interior à procura de componentes para o

exército. Reúne os camponeses em Prato, Pistóia, Volterra, Cortone e São Gimiano e expõe-

lhes suas idéias. Atravessa planícies e regiões montanhosas onde crê encontrar os homens

mais experimentados no ofício das armas. Mas as dificuldades são imensas. Os camponeses

mostram-se arredios. Como recrutar essa gente para o serviço militar sem antes dispor de

poder sobre eles? O salário não paga a pena dos sofrimentos e dos perigos e não há como

mostrar virtudes quando praticamente não se sabe por que se luta. Mas a vontade de

Maquiavel não esmorece. Após o árduo esforço aparecem os primeiros indícios de que sua

16

MAQUIAVEL. N. Arte de la Guerra. In: Obras Políticas. Buenos Aires, Editora El Ateneo. 1957. p. 566.

Page 28: A Guerra de Maquiavel

obsessão tornava-se real. Talvez a Roma dos antigos tempos não tivesse sumido em

definitivo. Reunira um contingente de quase dez mil soldados. Em 1507 redige um tratado de

caráter militar, Discurso sobre a organização da Milícia de Florença, ande mostra seu projeto

detalhadamente. Mais difícil, entretanto, do que recrutar camponeses foi vencer as resistências

das grandes famílias florentinas. Até então tratara-se de alugar as serviços de mercenários

com toda a sorte de prevenções e cuidados. Um exército controlado pela Senhoria era uma

idéia no mínimo temerosa. Da milícia à tirania restava apenas um passo. A consolidação da

milícia multiplicava o poder de Soderini e de seu governo permanentemente ameaçado pelo

partido dos Médici contra quem Maquiavel “construirá sua carreira abertamente ou de modo

mais sutil, e, apesar do rumo dos acontecimentos, continuará tomando partido contra eles.

Serão a origem de seus aborrecimentos e a principal razão de sua vida que, de repente,

fracassou”.17

O objetivo era fundamentalmente político. Armar artesãos e camponeses sob o

comando centralizado da Senhoria era fundar uma autoridade capaz de responder às rebeliões

e divisões no interior da cidade e nos distritos, e, ainda mais, eliminar os poderosos focos de

resistência a uma nova estrutura política baseada em relações distintas entre a cidade e o

campo. Antônio Gramsci, para quem as escritas militares do florentino são apenas o invólucro

de posições políticas, afirma que a verdadeira intenção de Maquiavel era de liquidar com os

laços feudais aglutinando as forças em torno da figura de um Príncipe capaz de realizar a

vontade coletiva da maioria.18

Se isso é verdade os fatos, entretanto, não corresponderam às

expectativas. Pedro Soderini é um César Bórgia às avessas; um modelo de mau governante. E

Maquiavel, mais tarde, o responsabilizará pessoalmente pelo fracasso da república.

As relações de força na península continuam em equilíbrio catastrófico. Em 1507,

Maquiavel parte em longa viagem pela Alemanha. Seu objetivo é demover o imperador

Maximiliano do pagamento que exige a Florença para não atacá-la. Escreve o Resumo das

Coisas da Alemanha. Dispender uma vultosa soma de recursos debilitaria Florença e colocaria

em risco sua incipiente milícia. Era necessário ganhar tempo. A campanha contra Pisa se

arrastava por dez anos. De volta, ele obtém dos Nove da Milícia o comando em chefe da tropa

e licença para dirigir pessoalmente as expedições militares. Nos meses seguintes ele dará à

guerra uma nova orientação com uma tropa de novatos sem a experiência de assaltar muralhas

e se bater frontalmente com o inimigo, Maquiavel decide viajar as ratas fluviais e terrestres,

construir barragens, provocar no interior da cidade a subversão e a desordem, espalhar boatos

e falsos alarmas, desfilar com o exército dando a impressão de poder e energia renovadas,

17

Cf. HEERS, op. cit., p. 27. 18

Cf. GRAMSCI. Maquiavel. A política e o Estado moderno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1976, p. 15 e 17.

Page 29: A Guerra de Maquiavel

atear fogo nas plantações, aterrorizar psicologicamente e forçar os dirigentes pisanos a

negociar. Finalmente, no começo de julho de 1509, Pisa se rende. Mal comemorado a vitória,

ele viaja à Lombardia para observar as aliados da Liga de Cambrai na guerra contra Veneza.

Maximiliano I, que pretendia um império universal e não unificara nem seu próprio país, foi

malsucedida na sítio de Pádua, pela insuficiência de bases estratégicas. Maquiavel, todavia,

encontrar-se-á com ele novamente na Alemanha de onde enviará o Relatório sobre as coisas

da Alemanha e o Imperador. Alguns anos depois (1516) Maximiliano ocupará Milão por

menos de um dia, sem dinheiro, seu exército deserta e ele terá de voltar para a Áustria com

seu sonho imperial totalmente abalado. Em 1510, Maquiavel se encontra em França

negociando com Luís XII. Mas a aliança entre Florença e aquele país selará o destino da

república quando os franceses, batidos pelo exército de Ferdinando II em Ravena, retiram-se

de Milão. Por decisão do papa, que há muita defendia a retorno dos Médici, os espanhóis

dirigem-se a Florença. A batalha decisiva acontece em Prato. Maquiavel novamente obtém

permissão para organizar a defesa do distrito. A responsabilidade é muita grande e as

dificuldades tremendas. Sua milícia que só lutara em Pisa e nunca travara uma batalha

defensiva, tem agora de medir seu desempenho diante de um exército profissional,

experimentado e com recursos quase inesgotáveis de uma monarquia. O resultado foi um

fragoroso desastre. Com a notícia da chegada das tropas, as habitantes fogem. Uma brigada de

cavalaria espanhola pilha e devasta os campos das proximidades. A escassa infantaria

f1orentina é impotente. Os 3.000 milicianos mobilizados para a defesa de Prato não têm

víveres e a munição para a artilharia se esgota rapidamente. Os espanhóis, à noite e, quase

sem resistência, saltam as muralhas. Milhares de milicianos são presos e outros milhares

morrem em meio a uma fuga desordenada e caótica. A cidadezinha é saqueada e só com a

chegada do cardeal João Médici, o novo senhor de Florença, é que se impede a chacina.

Os novos tempos são de infortúnio. Maquiavel é destituído do cargo e proibido de

exercer funções públicas. Os partidários dos Médici que, desde a queda de seus senhores, não

cessaram de intervir na política florentina com dinheiro e comando externo (haviam planejado

o assassinato de Soderini numa das conspirações que foi sufocada a tempo) agora são outra

vez os donos da cidade. Vinganças, perseguições, delações, exílio são as marcas do seu

regresso.

Maquiavel, o secretário que acumulava os serviços de comissário da guerra, é um

dos homens mais visados. Ele que, à custa de uma enorme dedicação e habilidade, havia

impedido que os colegas carreiristas fisiológicos, bajuladores, invejosos e oportunistas do

funcionalismo público se apossassem de seu cargo, agora fica à mercê dos que apóiam o novo

Page 30: A Guerra de Maquiavel

governo. Deve ressarcir ao tesouro mil florins de ouro e, como suspeito, antes do processo e

do julgamento não poderá deixar a cidade. Para seu azar, em janeiro de 1513, é descoberto um

atentado contra os Médici, seguido de uma verdadeira caça às bruxas. Os líderes Agostino

Caponi e Pietro Boscoli são torturados e decapitados, os outros são presos e banidos.

Maquiavel, que não participara desse gesto desesperado e malsucedido, é levado para a

prisão. Sua antiga amizade com os conspiradores aumenta a suspeita contra ele. Durante

algumas semanas é interrogado e torturado. Considera a possibilidade sombria de uma longa

pena quando em 21 de fevereiro morre Julio II e, numa disputa que dura menos de uma

semana, o cardeal João torna-se o papa Leão X. O povo exulta. Acorrem delegações de toda a

Europa. Florença é uma festa. A conspiração de janeiro é momentaneamente esquecida e

perdoam-se os prisioneiros.

Maquiavel, que atuara intensamente no calor dos confrontos e das lutas políticas e

militares que tiveram em Florença e na Itália um cenário de destaque, vê-se obrigado a

recolher-se na pequena propriedade da família em San Andrea in Percussina. Numa conhecida

carta ao amigo Francesco Vetori, embaixador em Roma, ele revela sua nova situação material

e seus consolos espirituais. Ocupa-se com a administração de sua casa de campo. Levanta-se

ao amanhecer, prepara armadilhas para tordos, manda derrubar o mato, discute com os

lenhadores, intercede nas brigas entre vizinhos. Vai à fonte onde mantém sua criação de

pássaros, leva sempre um livro de Dante ou Petrarca ou de poetas menores, Tíbulo, Ovídio e

semelhantes, deleita-se com suas paixões amorosas. Toma a estrada que vai dar na hospedaria

e procura informar-se pelos viajantes, sobre tudo o que se passa nas cidades. Almoça com a

família e à tarde encontra-se novamente na hospedaria para jogar cartas com o hospedeiro, o

açougueiro, O moleiro e os padeiros.

Eles discutem, eles se injuriam. Maquiavel amaldiçoa sua triste condição. “Assim

envolvido entre esses piolhos, cubro meu cérebro de bolor e desabafo a malignidade de minha

sorte”. Mas os lamentos e o tédio acabam com o fim do dia. “Chegada a noite, retorno para casa

e entro no meu escritório; na porta, dispo a roupa cotidiana, cheia de barro e lodo, visto roupas

dignas de rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas antigas cortes dos homens

do passado onde, por eles recebido amavelmente, nutro-me daquele alimento que é unicamente

meu, para o qual eu nasci; não me envergonho ao ralar com eles das razões de suas ações. Eles,

por sua humanidade me respondem, e eu não sinto durante quatro horas qualquer

aborrecimento, esqueço todas as aflições, não temo a pobreza, não me amedronta a morte”.19

19

Cf. MAQUIAVEL. Carta a Francesco Vetari. In: O Príncipe. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1981. p.

149 e ss.

Page 31: A Guerra de Maquiavel

Longe das tribulações, Maquiavel terá condições de refletir as próprias

experiências à luz de seus autores clássicos preferidos. A calamidade de sua vida encontrará

amparo e conforto num plano imaginário. Escrever é seu recurso derradeiro. Como Dante,

dois séculos antes, expulso da vida ativa, ele dedicar-se-á a redigir sua obra. Ela divide-se em

dois momentos: antes e depois da desgraça. Antes dela, seu estilo é marcado pela função que

desempenha. Relatos, discursos efêmeros, descrições rápidas e ocasionais, cartas e relatórios

enviados às pressas para chancelaria. Mesmo os escritos militares dessa época são elaborados

na urgência da ação. É, pois, à sua desgraça pessoal que devemos seus melhores trabalhos e a

origem de sua fama de escritor e de pensador político revolucionário. Seu exílio, entretanto,

não deve ser entendido como uma ruptura definitiva com a cidade, pois o desejo de retornar às

atividades práticas permanecerá vivo até sua morte. Na carta a Francesco Vetori, dezembro de

1513, ele mostra-se disposto a aproximar-se dos novos governantes florentinos. Como outros

filósofos, poetas, escritores da corte, ele procurará agora vencer pelo talento literário. Compõe

versos e sonetos e até mesmo canções carnavalescas. O carnaval, a festa popular e profana,

fora incorporado às instituições políticas. Tornara-se um elemento ideológico importante na

defesa do Estado. As Canções de Carnaval, elaboradas entre 1512 e 1523, fora uma das

formas que Maquiavel encontrou para atingir a sensibilidade dos Médici. O amor, a alegria, o

elogio à vida de prazeres; a comida, a bebida, a música são os componentes fundamentais de

qualquer poder. Pão e circo não fora a receita dos romanos? Mas nem só com canções alegres

pode-se agradar aos príncipes. Nas noites em San Andrea, ele retoma a leitura de uma obra

que freqüentou desde a juventude, a História Romana de Tito Lívio. Deve a ela as grandes

lições da política e da guerra. Inicia uma série de comentários que mais tarde resultarão no seu

livro mais importante, os Discursos sobre a primeira Década de Tito Lívio, que interromperá

para escrever O Príncipe com o objetivo de obter a graça e reconhecimento imediato. Ele

vacila muito antes de oferecer o livro - o Médici de Florença ou o de Roma? - Ao final,

decidir-se-á pelo jovem Lourenço, duque de Urbino, a quem Maquiavel, por puro

oportunismo, cognominará de “Magnífico”. Humildemente o autor se apresenta como homem

de condição baixa e ínfima que tenta estabelecer regras a respeito dos governos principescos.

E ele não oferecerá mais um desses presentes com que o príncipe está habituado: ouro, jóias,

belos cavalos ou armas. Oferece-lhe um livro, que trata de um assunto fundamental: como se

deve conquistar e manter o poder. Termina a dedicatória esperando ser diligentemente lido e

considerado, e com um apelo: “se Vossa Magnificência, do ápice de sua altura, alguma vez

Page 32: A Guerra de Maquiavel

volver os olhos para baixo, saberá quão imerecidamente suporto uma grande e contínua má

sorte”20

. Não se sabe se Lourenço o leu, mas de qualquer modo, seu apelo não foi atendido.

Mas a tristeza nunca é plena. O ostracismo em que se encontrava Maquiavel é rompido. Ele

passa a freqüentar assiduamente a villa dos Rucellai. É uma dessas mansões erguidas nos

arredores de Florença, segundo a concepção dos melhores arquitetos e decorada por artistas

de renome. Ali os ricos se refugiam do ruído e da agitação do centro, protegidos por altos

muros, cercados por jardins e fontes, algumas delas mantêm a tradição de reunir círculos

literários e organizar encontros com a fina nata da intelectualidade. Na villa Rucellai reunem-

se os simpatizantes da oposição republicana. Próximo da mansão, à sombra das grandes

árvores do jardim Oricellari, Maquiavel que havia retomado a mais importante de suas obras,

os Discursos sobre a primeira Década de Tito Lívio, dedica-se a lê-la na forma de lições. Seu

público é de jovens. Ele elogia os grandes feitos dos romanos para denunciar a miséria e a

inércia de seus contemporâneos. Trata de mostrar como se formam e como se perdem as

repúblicas e a liberdade. Ao contrário de seu desejo anterior, de buscar as graças dos príncipes

elogiando as virtudes quando o escritor devia “fazê-los corar pelos seus vícios”, agora

Maquiavel dedica sua obra a dois jovens rebeldes, Zenóbio Buondelmonti e Cosmo Ruccelai,

pelas suas qualidades, pois os “homens devem saber discernir entre os que são

verdadeiramente generosos e os que têm apenas o poder material de agir com liberalidade;

entre os que devem dirigir o Estado e os que sem esta capacitação, se acham às vezes à testa

de um império”21

. A Arte da Guerra, escrita em 1521, será dedicada a esses jovens. Alguns

deles, no ano seguinte, põem em ação um complô contra os Médici. Lourenço havia morrido

em 1519 e o papa Leão X em 1521; o regime mediciano perdera o apoio de Roma. A ocasião

parecia favorável. A tentativa de golpe, entretanto, resultou em fracasso e o grupo de

conspiradores foi preso. Os chefes Jacopo Daceto e Luigi Salviati foram decapitados e, junto

com eles, um pouco dos ideais republicanos tão caros à tradição do humanismo civil

f1orentino.

Fiel a seu ofício de escritor, Maquiavel concebera em 1518 uma obra-prima do

teatro: A Mandrágora. É uma comédia que não perde em nada para as melhores obras

clássicas. Nessa obra-prima, aparecem os temas mais caros ao autor: a dissimulação e a

safadeza; revela-nos um mundo onde os valores são máscaras, uma moral que esconde as

relações baseadas na mentira e no engano. Maquiavel mostra a cretinice do casamento

burguês e a triste condição da mulher no papel de esposa virtuosa. Mas como Maquiavel não

20

MAQUIAVEL, N. op. cit., p. 04. 21

MAQUIAVEL. N. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Brasília. Editora UnB, 1979. p. 14.

Page 33: A Guerra de Maquiavel

parece guardar ilusões a respeito de nada, escreve ainda Belfagor o Arquidiabo ou A Fábula

do Diabo que se Casou, onde o personagem central emerge de sua lúgubre morada para uma

temporada terrestre e, em meio às agruras de um casamento, acaba voltando escandalizado e

atormentado para o inferno prometendo a si mesmo nunca mais se envolver numa tão temível

aventura. Por essa época, fortemente influenciado por Terêncio e Plauto, escreve A Adriana e

ainda, talvez a pedido dos amigos do círculo Rucellai, um curioso opúsculo que chamou de

Regras para uma sociedade do Prazer.

Finalmente, em 1520, depois de muitas expectativas, Maquiavel é convidado para

uma missão em Luca a serviço de um grupo de burgueses florentinos preocupado com

enormes dívidas não ressarcidas pelos comerciantes e banqueiros daquela cidade. Enquanto

realiza estas tratativas e fixa as condições de pagamento, como lhe era habitual, investiga a

forma de governo luquense. Daí resulta Descrição do Governo de Luca, onde analisa os

defeitos e as virtudes do sistema de escolha dos governantes p a disposição dos conselhos e da

Senhoria. Em sua passagem por Luca, redige uma de suas obras mais interessantes: A Vida de

Castruccio Castracani; onde mistura história e ficção e cria um dos personagens

inesquecíveis na galeria de seus capitães. O herói reúne as qualidades de um grande

combatente e a irreverência dos homens de espírito arejado do Renascimento. No final do

conto, Maquiavel cita alguns ditos espirituosos atribuídos ao famoso militar; num deles

Castruccio compara os filósofos de seu tempo aos cães “que estão sempre perto dos que

podem alimentá-los melhor”.22

Mas a aproximação de Maquiavel com os Médici será sempre muito tímida e

reservada. Não mais ocupará atividades regulares no governo. Poucos anos antes de sua

morte, em 1521, o papa Leão X, preocupado em manter o poder da família, pede-lhe um

estudo sobre as possibilidades de mudanças nas instituições florentinas. É um trabalho

delicado. Maquiavel, um republicano convicto, tem de cuidar para não ferir as

suscetibilidades de um príncipe que via os republicanos como inimigos eternos. São os

Discursos sobre a Reforma do Estado de Florença. A última obra importante, e a de maior

fôlego, também exigirá de Maquiavel um tratamento cuidadoso. O novo papa Clemente VII,

filho de Juliano Médici encomenda-lhe uma história de sua cidade. As Histórias Florentinas

ocupam-no por quase cinco anos e ainda assim ficarão inacabadas. Em 1525 escreve a

comédia Clizia. A pequena fama que Maquiavel chegou a ter em vida se deve principalmente

às suas obras teatrais. A Mandrágora tornara-se a cada ano mais conhecida e representada.

22

Cf. MAQUIAVEL. A vida de Castruccio Castracani. In: A arte da Guerra. Brasília. Editora UnB, 1980, p. 55 e ss.

Page 34: A Guerra de Maquiavel

Em Veneza, foi aclamada e o autor reconhecido e celebrado. Os venezianos desejavam

conhecê-lo pessoalmente. Mas Maquiavel já estava velho e doente. Antes de morrer, em 21 de

junho de 1527, ele ainda presenciará acontecimentos terríveis para sua cidade e a Itália.

A presença dos exércitos monárquicos estrangeiros começara uma nova e

profunda redefinição das forças no tabuleiro italiano. Florença outra vez estava ameaçada. Em

1526, a convite de Clemente VII, Maquiavel participa de uma comissão com o objetivo de

restaurar as muralhas da cidade e aperfeiçoar seu sistema defensivo. No ano seguinte, as

tropas de Carlos V adentraram com facilidade, dominando e esmagando a frágil resistência

dos citadinos; no ano seguinte ocupam e saqueiam Roma. Novamente os dirigentes

florentinos são substituídos. Maquiavel sequer é lembrado para compor o governo. De

qualquer modo, a civilização que ele vivera chegou ao esgotamento. O fim de sua vida

coincide com o eclipse de sua cidade. Os Médici ainda voltarão mais uma vez, mas de agora

em diante como meros interventores de Carlos V, executores fiéis de sua política

expansionista. A incapacidade das cidades italianas de romperem com os limites ao

desenvolvimento econômico numa nova ordem política, forçou-as a recuar e depois de 1530

iniciou no território italiano um lento processo de refeudalização; porém a complexa

experiência cultural e política destas cidades, acumuladas durante os séculos XIV e XV, já

haviam determinado as bases e o rumo da modernidade.

Page 35: A Guerra de Maquiavel

O CONFRONTO ELEMENTAR: “VIRTÚ X FORTUNA”1

“A virtú é a resposta que o homem dá ao mundo,

ou antes, à constelação da fortuna

em que o mundo se abre, se apresenta

e se oferece a ele, à sua virtú.

Não há virtú sem fortuna nem fortuna sem virtú;

a interação entre elas indica uma

harmonia entre o homem e o mundo”.2

Hannah Arendt

Maquiavel viveu numa época de transição. As mentes estavam impregnadas de

religiosidade, sincretismos filosóficos, teológicos e elucubrações mágicas, alquímicas e

astrológicas. As ciências - que não se formaram da noite para o dia - têm seus conceitos ainda

muito pobres e restritos. Até mesmo um cientista como Isaac Newton, que viveu bem depois,

estava profundamente ligado à simbologia astrológica. O vocabulário que empregamos hoje,

praticamente inexistia no século XVI. Essa transição, de qualquer modo, expressou os

primeiros passos de uma radical transformação nos valores e na relação entre o homem e o

mundo. Sem conceitos “claros e distintos” as lacunas do pensamento eram preenchidas muitas

vezes por alegorias e metáforas. “Numa época em que as formas espirituais manifestavam a

vida em todos os seus aspectos, nos pensamentos capitais sobre o lugar do homem no mundo,

sobre seu destino e sobre a liberdade expressavam sua influência até nas peças festivas, em tal

época, pois, o pensamento não podia limitar-se a ficar fechado em si mesmo e aspirava,

portanto, a expressar-se em símbolos visíveis”.3 O significado de Virtú e Fortuna tem sua

origem na cultura clássica. Os romanos tratavam a deusa Fortuna com admiração e apreensão.

Ela simbolizava o inesperado, o acaso, a inconstância; atribuíam-lhe o governo do mundo e a

representavam na figura de uma mulher que, por ser de natureza caprichosa, distribuía o bem

e o mal a seu bel-prazer. Contrapondo-se a ela, aparece a Virtú que representa a fortaleza de

1 Os termos Virtú e Fortuna, por serem fundamentais ao pensamento de Maquiavel, serão conservados em sua

grafia original. A tradução muitas vezes adultera esses conceitos substituindo-os por virtude ou sorte fazendo-os

perder seu sentido bem mais amplo. 2 ARENDT, H. Que é liberdade? In: Entre o passado e o futuro. São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 1979,

p.188. 3 Conforme CASSIRER. Indivíduo Y Cosmos en la Filosofia del Renascimiento. Buenos Aires, Ed. Emecé S/A,

1951, p. 100 e ss. Huizinga mostrou com que facilidade, no inicio do Renascimento, a religião cristalizava-se em

imagens: “Um dos traços fundamentais do espírito do declínio da Idade Média é o predomínio que está

intimamente ligado à atrofia do pensamento. O pensamento toma a forma visual...” O Declínio da Idade Média,

São Paulo, Editora Verbo, 1978, p. 255. O problema da escassez de conceitos nas filosofias e nas ciências

naturais incipientes na época de Maquiavel é brilhantemente ilustrado por L. Fébvre quando analisa a

aparelhagem mental e “as palavras que faltam” aos intelectuais renascentistas; conforme El Problema de la

Incredulidad en el Siglo XVI - La Religion de Rabelais. México, Editora Uteha, 1959, p. 295 e ss. Sobre a

influência da magia e da astrologia, além das obras acima, ver E. GARIN, Magia Y Astrologia en la Cultura del

Renascimiento. In: La Revolución Cultural del Renascimiento. Madrid, Editora Critica S. A., 1981.

Page 36: A Guerra de Maquiavel

ânimo, a determinação e a solidez. Essas alegorias sofreram interpretações diversas com o

desenvolvimento do cristianismo a ponto de, para ficarmos apenas no caso de Boécio, na

tradição agostiniana, haver interiorizado este confronto, tornando-o um problema de

consciência que, “diante do mar agitado do mundo”, recolhe-se em si mesma para, com o

auxílio da filosofia e da providência, safar-se de suas tribulações.4 Com o ritmo acelerado da

secularização e através do pensamento maquiaveliano, esse conflito representa a luta entre o

homem e a instabilidade das coisas.

A Fortuna é a indeterminação. Ela ameaça de decomposição as instituições e a

vida humana. É a irrupção do irracional, pois não há conhecimento seguro do acaso e do

inesperado. Sua manifestação radical é a morte. No fim da Idade Média, a morte é expressa na

forma de um esqueleto vestindo uma túnica, com um capuz sobre a face e levando nas mãos

esqueléticas uma gadanha, pois a humanidade é como uma vasta plantação que pode ser

colhida a qualquer momento. A antítese Fortuna/Virtú, tal como Maquiavel a mostra, revela a

ruptura com o pensamento anterior. A harmonia dos teólogos escolásticos dá lugar a um

mundo submetido ao imprevisto. A presença da astrologia, por sua vez, é considerada por

Maquiavel, ao afirmar que muitos acontecimentos importantes foram precedidos de sinais

celestes que alertavam para o rumo que seguiriam os acontecimentos e que culminariam num

desastre, na morte de algum príncipe ou numa invasão estrangeira. Nos Discursos, ele cita

alguns casos em que teriam ocorrido esses signos celestes mas reconhece que o esse tipo de

conhecimento escapa-lhe totalmente. “Para explicar a causa desses prodígios, seria preciso ter

das coisas naturais e sobrenaturais um conhecimento que não possuímos. Pode, ser que os

ares - como pensam alguns filósofos - estejam repletos de inteligências celestiais que, pela sua

natureza, conheçam o futuro; movidas de piedade pelos homens, avisam-os para que se

possam preparar e defender”.5 A referência à astrologia faz parte do movimento intelectual

que se esforça para explicar o mundo cada vez mais distante da providência divina. Embora

Maquiavel se refira a Deus ocasionalmente, sua importância é diminuta, se comparada aos

pensadores do seu tempo. Mas, por outro lado, como é difícil obter conhecimentos a partir de

signos e presságios e dos sinais nos céus de origem estranha e sobrenatural, eles são

subsumidos no conceito de Fortuna. Para mostrar seu poder quase desenfreado, Maquiavel

retira exemplos de suas leituras e experiências. De Tito Lívio retém a descrição do momento

histórico em que a Fortuna levou os romanos a total insensatez como a desordem, a falta de

disciplina e zelo nos assuntos públicos, quando até mesmo o exército, símbolo das grandes

4 BOÉCIO. La Consolación de la Filosofia. Buenos Aires, Editora Aguilar, 1964.

5 Discursos I, 56.

Page 37: A Guerra de Maquiavel

conquistas, espalhou-se em fuga e os soldados refugiaram-se no exílio. Uma situação que

levou o eminente historiador a formular uma máxima plenamente compartilhada por

Maquiavel: “A tal ponto a Fortuna cega os espíritos, quando não quer deter-se no seu curso”.

Uma afirmação dessas dá a entender que a qualquer momento o mundo pode tornar-se

atribulado e absurdo e, essa indeterminação radical torna os homens incapazes de discernirem

quaisquer fins ou perseguirem algum projeto distinto. Entretanto, a Fortuna não é puramente

negativa. É no bloqueio de suas ameaças que se desenvolve a Virtú. A manifestação da

Fortuna desperta possibilidades para a ação humana e é vislumbrando as ocasiões (caziones) e

aproveitando-se delas que se pode vencer a adversidade. Assim como a Fortuna pode arrasar

tudo com sua fúria, também ela dá chances para os homens mostrarem sua grandeza. “De

fato, a maioria dos que chegaram à grandeza, e dos que ficaram pelo caminho, seguiram rota

imposta pela Fortuna, que lhes deu ou retirou oportunidades de mostrar o seu valor. Quando

ela escolhe um homem para grandes feitos detém-se comumente num mortal de gênio que

percebe com rapidez as oportunidades que lhe são oferecidas. Do mesmo modo, quando se

quer espantar o mundo com um grande desastre, confia as regras do Estado a insensatos. E se

surge alguém capaz de opor obstáculo a seu curso, este é logo vitimado, ou perde de algum

modo a faculdade de praticar qualquer bem”.6 Assim, os obstáculos da Fortuna não devem

desanimar. Maquiavel afirma que diante dessas enormes dificuldades os homens “não devem

desesperar, já que ignoram o seu fim, e a Fortuna caminha de um modo oblíquo e

desconhecido (per vie transverse e incognite). Devem sempre esperar, e nesta esperança não

se devem entregar, mesmo nas mais adversas circunstâncias”.7 A pressão dessa aparente

fatalidade é aprovação da Virtú, pois quanto menor for ela mais facilmente os homens serão

esmagados. Assim, a ausência da Virtú significa o infortúnio. Quanto mais os homens

mostrarem-se fracos e covardes, mais a Fortuna manifesta sua força e seu domínio.

A partir desse confronto elementar é que Maquiavel elabora os modelos de

homens virtuosos que se destacaram ao enfrentar a inclemência da Fortuna. Alguns são

contemplados por ela, outros são obrigados a pagar o mais alto preço. Savonarola tinha tudo

para vencer, exceto as armas para defender-se, o que o levou à derrota e à morte. Na novela

sobre Castruccio Castracani é narrada a vida admirável do capitão luquense. Trata-se da

formação de um homem em meio às aventuras, os esforços, as dificuldades e os perigos da

vida militar. São exemplos “extraordinários da ação de valor e da Fortuna”. Diante da escolha

entre ser padre ou soldado, Castruccio não hesita e escolhe as armas. Ainda jovem, torna-se

6 Idem, II, 29.

7 Idem, ibidem.

Page 38: A Guerra de Maquiavel

um exímio cavaleiro. Sua participação ativa nas lutas de sua cidade logo tornaram-no um

cidadão famoso e respeitado. Mas quando sua glória parecia definitivamente assegurada, após

vencida uma batalha decisiva e no momento em que esperava o regresso das tropas para

anunciar e festejar a vitória, contrai, às margens do Arno, uma enfermidade mortal. “A

Fortuna, inimiga da glória de Castruccio, no momento em que devia dar-lhe a vida, a roubou,

interrompendo os planos que ele há muito tinha imaginado executar”.8 César Bórgia é outro

caso exemplar. O modo com que Maquiavel narra os enfrentamentos do Duque Valentino

contra as adversidades e os percalços assumem um tom dramático. No capítulo Dos

Principados Novos que se conquistam com as Armas e Fortuna dos Outros, ele distingue dois

tipos de principados: aqueles que foram construídos com muitas dificuldades e perigos e que

depois se mantém sem maiores problemas, como foi o de Francisco Sforza em Milão, e

aqueles que, forjados através dos mesmos empecilhos, acabam arrasados pela Fortuna, como

aconteceu com César Bórgia. Maquiavel não se cansa de elogiar as qualidades do duque, a sua

energia inesgotável, a habilidade na condução do exército e nas negociações e acordos, o

talento de resolver as intrigas a seu favor e sua extrema crueldade empregada sempre no

momento certo. Mas tudo isso alicerçava-se com a proteção de seu pai, o Papa Alexandre VI.

Bórgia podia precaver-se de tudo, mas nada pôde fazer para impedir a morte do pai; e quando

isto ocorreu tudo o que havia construído se esfacelou. O duque ainda tentou reagir com sua

astúcia habitual, mas um novo quadro já se havia configurado. A sua participação na escolha

do outro Papa não impediu que as novas forças se voltassem contra ele. O brilho com que

César Bórgia revelara sua Virtú deve servir de paradigma aos outros príncipes: “não se saberia

que melhores preceitos dos exemplos de suas ações poderia indicar a um príncipe novo; e se

as suas disposições não lhe serviram, não foi por culpa sua, mas sim em resultado de uma

extraordinária e extrema má-sorte”.9 Assim, a Virtú de César Bórgia cresceu na medida que

contra ela se interpôs a Fortuna, que não lhe deu tréguas, que o tornou um grande capitão e

que, inesperadamente, o aniquilou.

Se a Fortuna destrói até mesmo os homens mais ousados e astuciosos, a

preocupação de maquiavel é focalizar com lente de aumento a ausência da Virtú. Assim como

existem bons também existem maus príncipes que, mesmo que tivessem boas oportunidades,

carecem de vontade, inteligência, coragem ou experiência para levar a cabo seus objetivos.

Como os acontecimentos mudam a cada momento, todo aquele que não atentar

constantemente às novas situações de sua época terá dificuldades crescentes em vencer os

8 MAQUIAVEL. A vida de Castruccio Castracani. In: A arte da guerra. Brasília, UnB, 1970, p.52 e 55.

9 O Príncipe. Cap. 7.

Page 39: A Guerra de Maquiavel

novos problemas surgidos. Superar a força dos hábitos e costumes adquiridos, pois querendo

manter-se a boa sorte, deve-se sempre mudar com os tempos: “um homem acostumado a agir

de um só modo nunca muda... se a necessidade o obrigar a alterações de conduta e contrariar

os seus hábitos, perecerá”.10

Foi o que aconteceu com Soderini que, não mudando sua

conduta, deixou que seus adversários tomassem-lhe o governo. Esperava que, agindo como

sempre fez, honrada e distintamente, poria fim às iniciativas dos Médici. Deveria, ao menos,

usar das mesmas táticas de seus inimigos, mas limitou-se a esperar e esse foi, segundo

Maquiavel; seu mais grave erro: “Soderini não sabia que não se deve confiar no tempo, que a

bondade não basta e que a Fortuna varia incessantemente, e que nada que se possa dar à

maldade mitiga sua fome”.11

Entretanto, não se pode conceber a Fortuna como o momento

objetivo e a Virtú como sua contraposição subjetiva. Á Fortuna, como um deus voluntarioso,

está presente em tudo o que existe, mesmo na subjetividade humana. Se o que consideramos

como o mundo objetivo é o genuíno campo das experiências, com seus fracassos e sucessos, a

Fortuna deve ser também combatida no interior. Superar as deficiências do caráter, buscar a

identidade e manter a vivacidade da memória, onde estão guardados os acontecimentos

passados, pois eles tornam-se indispensáveis no momento da ação. O homem de Virtú não

teme a dor física ou moral e supera o medo da morte. Como não há para quem apelar, os

homens devem despertar dentro de si a energia e o ânimo.

A Fortuna, geralmente, é inimiga dos homens e é na luta contra ela que eles

efetivam sua liberdade. É como a matéria bruta que só a ação do homem pela Virtú pode dar-

lhe forma. No Príncipe Maquiavel dedica um capítulo à defesa do livre-arbítrio. O título desse

capítulo é sugestivo: De quanto pode a Fortuna nas Coisas Humanas e de que Modo se lhe

deva Resistir. De saída, ele, rompe com a idéia pessimista de que tudo está submetido à

Fortuna e que nada se poderia contra ela. Confessa que algumas vezes compartilhou desta

posição que se tornara mais facilmente aceita no seu tempo pelas profundas alterações que

ocorreram em todas as coisas. Mas acrescenta logo a seguir: “para que o nosso livre-arbítrio

não seja extinto, julgo poder ser verdade que a Fortuna seja o árbitro da metade das nossas

ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase”. O confronto entre o

homem e a adversidade é apresentado por Maquiavel numa metáfora que se tornaria muito

conhecida quando comparou a Fortuna “a um desses rios impetuosos que, quando se

encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores e os edifícios, carregam a terra de um

lugar para outro; e todos fogem diante dele, tudo cede a seu ímpeto, sem poder opor-se em

10

Discursos III, 9. 11

Idem, 30.

Page 40: A Guerra de Maquiavel

qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impede que os homens, quando volta a

calma, tomem providências com reparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as

águas corram por um canal, ou o seu ímpeto não seja desenfreado nem tão danoso”.12

Assim,

a Fortuna avança quando não se está prevenido para resistir-lhe. É como um tumor maligno

que, se não for combatido a tempo, espalha-se pelo organismo, minando-lhe as resistências e

tornando-se depois impossível de ser eliminado. A conjuntura não pára. O bem varia sempre

e, para persegui-lo, é necessário prudência e paciência e, quando surgir a ocasião, não se deve

hesitar em utilizar a violência se ela for indispensável. Diz ele: “Considero que seja melhor

ser impetuoso do que dotado de cautela, porque a Fortuna é mulher e, conseqüentemente,

torna-se necessário, querendo dominá-la, batê-la e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por

estes do que por aqueles que procedem friamente. A Fortuna, porém, como mulher, sempre é

amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais afoitos e com maior audácia a

dominam”.13

Esta metáfora maquiaveliana confirma uma posição revolucionária que une a

liberdade com a ação e retira-a de seu aspecto puramente introspectivo, comum à grande parte

do movimento humanista, do cristianismo e do neoplatonismo. O enfoque dado a Virtú é,

talvez, a melhor ilustração do poder e da autonomia do homem, definidos por uma ação

constante contra a resistência e a indeterminação do mundo.14

12

O Príncipe. Cap. 25. 13

Idem, ibidem. 14

ARENDT, H. op. cit., p.188.

Page 41: A Guerra de Maquiavel

A FUNDAÇÃO DO ESTADO

“Sem dúvida, a fundação do Estado é o empreendimento

mais nobre, o mais perigoso e o mais glorioso

que é oferecido à reflexão do teórico,

pois ele confere a um povo sua identidade política

e requer do Príncipe que se joga nela a mais alta Virtú.”1

Claude Lefort

O objeto central das preocupações de Maquiavel é o Estado ou, mais

precisamente, sua fundação ou conquista: sua preservação ou defesa. Este tema é o eixo em

torno do qual gira seu pensamento; por isso foi ele o primeiro intelectual moderno a distinguir

com nitidez a autonomia do político. Tudo o que escreveu talvez possa ser enunciado numa

afirmação hoje banal: sem o Estado seria praticamente impensável qualquer vida civilizada,

ao menos como foi legada pelos gregos e os romanos. E se o Estado é a mais importante das

instituições; constitui o tema mais delicado e relevante. Fundar e refundar o Estado, eis a luta

decisiva contra a Fortuna. A organização estatal é o requisito mínimo para a ordem, a lei, o

dever, a glória e o castigo. Maquiavel diz: “De fato, que é um governo se não o meio de

conter os cidadãos de modo que eles não se injuriem mutuamente? Meio que consiste em dar

completa segurança à população ou em reduzi-la à impossibilidade de praticar o mal; ou

ainda, em fazer tantos benefícios ao povo que este não tenha razão para procurar mudar sua

sorte”.2

A necessidade do Estado é justificável uma vez que os homens, entregues a si

mesmos, sem que nada os contenha e regre, suas vidas, estraçalha-se-iam como animais

ferozes. Aliás, Maquiavel mostra-nos um mundo sem deuses ou seres transcendentes a que se

possa apelar ou obter uma garantia definitiva. É um mundo brutal, pleno de ameaças e

acontecimentos inesperados. O próprio homem não traz inscrito em si nada que o revele como

portador da justiça, da bondade ou da paz. Ao contrário, o homem parece ser mau por

natureza. Suas virtudes só aparecem sob pressão ou na ambição do poder e da riqueza. Se os

homens possuem uma “natureza”, ela é, diferentemente da posição de Tomás de Aquino,

propensa à corrupção e à maldade.

O ensinamento de Maquiavel dista muito da Utopia de Morus ou da Abadia de

Theleme de Rabelais. Para ele, é um puro devaneio crer que os homens possam realizar algum

dia sociedades desse tipo. Maquiavel aboliu o céu e pôs freios às grandes esperanças terrenas.

1 LEFORT, C. Lê Travail de l‟Ouevre. Paris, Galimard, 1972. p. 366.

2 Discursos II, 23.

Page 42: A Guerra de Maquiavel

Este é o ponto de partida de todo humanismo sério de que falava Merleu-Ponty3 e que se

afasta das concepções dos luminares acadêmicos como Polizziano, Marcílio Ficino ou Pico de

la Mirandola que, apesar do destaque dado ao homem, não se libertaram nem de Deus nem

das sagradas hierarquias e, por isso, preservaram a dupla natureza humana situada entre este e

o reino do outro mundo. Mas Maquiavel, por seu lado, entende que os homens são geralmente

“ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo e ambiciosos de ganho”4 e que, por isso,

todo aquele que tentar ser honesto acabará por fracassar, e todo aquele que tentar ser bom

“perder-se-á em meio a tantos que não são bons” e ainda que “os homens esquecem mais

facilmente a morte do pai do que a perda da propriedade. Se existem leis que expressam a

natureza dos homens são aquelas que, desde sempre, fincam raízes profundas nas paixões.

“De fato, a natureza criou os homens com sede de tudo abraçar e a impotência de atingir todas

as coisas. Como o desejo de possuir é mais forte do que a faculdade de adquirir, disto resulta

o descontentamento por si próprios. Esta é a origem dos seus variados destinos. Uns querem

mais, outros temem perder o que já ganharam; daí o atrito e a guerra que, por sua vez, provoca

a destruição de um império para servir à elevação de outro”.5 Só o Estado tem condições de

frear as paixões que, entregues a si mesmas, levariam a comunidade ao colapso.

Antes era o caos. É com o Estado que se chega à ordem. É com ele que a matéria

bruta (o povo desordenado) toma forma e vida civilizada; antes dele, os homens viviam como

animais selvagens sem regras ou leis, exceto o instinto de sobrevivência. Esta fase primordial

da humanidade é superada pela fundação das instituições. Os fundadores são, para Maquiavel,

os que manifestam a mais alta Virtú e, num mundo passageiro, resgatam uma parcela da

eternidade, conquistando o bem mais desejado: a fama e a glória. Alguns deles são Moisés,

Ciro, Rômulo e Teseu. Maquiavel, entretanto, estabelece uma divisão segundo o alcance de

sua glória. Primeiro estão os fundadores de religiões, depois os fundadores de reinos ou

repúblicas, a seguir os comandantes militares que alargaram as fronteiras de sua pátria,

seguem-nos os grandes artistas e, por último, todos os homens que também devem ser

elogiados pela contribuição que cada um dá com seu ofício ou profissão.6

O tema da fundação do Estado é recorrente em todas as obras políticas de

Maquiavel. Interessa-lhe fundamentalmente discernir o papel do Príncipe nessa empreitada

formidável. Agindo como um deus, é o, príncipe fundador que dá forma à matéria bruta e que

supera a desordem anterior, por isso ele é portador do gesto político supremo capaz de

3 MERLEAU-PONTY, M. Nota sobre Maquiavel. In: Sinais. Lisboa, Ed. Minotauro, 1962, p.331 e ss.

4 O Príncipe, Cap. XVIII.

5 Discursos I, 37.

6 O Príncipe VI e Discursos I, 10.

Page 43: A Guerra de Maquiavel

ultrapassar a barbárie original. A fundação política compara-se ao próprio sagrado, como

afirma Duvernoy numa passagem que merece ser destacada: “Se não é o sagrado que irrompe

no gesto político dos homens, é que o sagrado não é exterior ao homem. O príncipe que

engendra um status civilis - um vivere civile, como bem o diz a filosofia política italiana,

engendra o sagrado. Numa linguagem que não poderia ser outra do que foi, Maquiavel utiliza

a mística num sentido que é inteiramente contrário ao que a mística cristã: dizia, em sua

época, do universo político. O agostianismo submetia a política ao sagrado; o homem político

aí jamais é profeta; é, ao contrário, o fato de ser profeta que lhe confere os direitos políticos.

Maquiavel, por sua vez, sacraliza o próprio político. O Príncipe é construtor de um mundo: lá,

onde existia somente o caos, universo humano disperso, rivalidade de indivíduos e

esfacelamento da virtude, ele realiza um universo regrado; para Maquiavel, ele evidentemente

apropria-se dos atributos de Deus”.7

Ao destacar a função decisiva do Estado, Maquiavel assemelha-o ao coração ou às

fontes centrais da vida, pois se pode viver com membros atrofiados ou em falta, mas se o

coração é atacado, a morte torna-se inevitável.8 Se preservar a saúde do Estado é uma ação

que deve ser mantida permanentemente a sua fundação é a tarefa suprema. Para melhor

destacar o ato fundador, Maquiavel distingue a república do principado e divide-o em dois

tipos: os hereditários e os novos. O principado é totalmente novo quando sua fundação leva-o

à autonomia e à liberdade. Se o principado (ou república) é conquistado, aparecem as

dificuldades que só os príncipes dotados de uma grande Virtú podem superar. Entre todos os

meios a que podem recorrer, o da guerra é praticamente inevitável. Ela decide a vida ou a

morte dos Estados, pois “a guerra não se evita, mas apenas se adia em benefício dos outros”,

afirma Maquiavel e ainda acrescenta que muitas vezes “não se pode deixar de perseguir uma

crise para escapar a uma guerra, mesmo porque dela não se foge mas apenas pode-se adiá-la

para desvantagem própria”.9

As dificuldades num empreendimento de conquista variam conforme a situação

dos Estados. Resultarão mais fáceis se forem da mesma província e da mesma língua, e

também quando o governo for despótico e não tiver apoio popular. O conquistador, portanto,

não deve alterar a língua e os costumes do povo. A melhor forma de assegurar o poder - após

eliminar os antigos governantes - é o próprio príncipe habitar o território conquistado para

aplacar as revoltas e impedir a pilhagem pelos seus oficiais e comandados. Se isto não for

7 DUVERNOY, J.F. Para Conhecer o Pensamento de Maquiavel. Porto Alegre, L&PM Editores. 1984, p.98.

8 Discursos II, 30.

9 O Príncipe, Cap. III.

Page 44: A Guerra de Maquiavel

possível deve instalar Colônias no país conquistado. O príncipe, na província conquistada,

deve tornar-se defensor dos fracos e oprimidos e, assim, diminuir a influência dos

poderosos.10

Nesses momentos extremamente difíceis da fundação de um Estado, o critério

básico é o sucesso, e não importa como ele foi obtido. A regra básica do príncipe é não

perder, pois sua derrota significa o desmantelamento do poder do Estado. Na obra de

Maquiavel encontram-se muitos exemplos de príncipes que recorreram à violência para

atingir seus propósitos. Além de César Bórgia, cuja brutalidade bem exercida não evitou o

choque fulminante da Fortuna, há o caso de Agátocles que, desde a juventude, praticou os

piores delitos, infâmias, traições e que, numa seqüência sensacional de crimes, se tornou rei

de Saracusa e, então, governou-a eliminando seus grandes conflitos internos e ainda

defendeu-a corajosamente do cerco dos cartagineses que ameaçavam escravizá-la; do mesmo

modo Oliveroto da Fermo que também alcançou o poder per scelera mas que, mesmo

espalhando pavor no território que conquistara, acabou ioga após sendo enganado e eliminado

por César Bórgia. O que diferencia Agátocles de Oliveroto é o sucesso na conquista do Estado

que resultou do favorecimento da Fortuna e da crueldade bem empregada. Oliveroto da Fermo

foi um homem cruel e impiedoso mas na direção do Estado não teve a capacidade de

preservá-lo.

As crueldades bem visadas são aquelas que são feitas com rapidez, no momento

da afirmação do poder e logo após transformadas em bem ou utilidade para os súditos; a

crueldade mal empregada é aquela que sendo pouca no começo, com o passar do tempo

aumenta quando deveria extinguir-se. O emprego da crueldade revela a Virtú do príncipe; se

bem usada, garante-lhe o poder; se mal empregada, desperta contra si o ódio da população.

Mesmo que os exemplos de Oliveroto da Fermo ou Agátocles mostrem tiranos ou déspotas,

seu poder absoluto tem o tempo do ato da fundação. Maquiavel jamais prescreve a brutalidade

permanente ou a violência indiscriminada; ao contrário, para preservar o Estado, o príncipe

tem de fazer a economia da violência. Quando da fundação do Estado, os crimes são virtudes,

depois passam a ser pura idiotice. “Ao ocupar um Estado, diz Maquiavel, deve o conquistador

exercer todas as ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para

10

“E a ordem das coisas é que, tão logo um estrangeiro poderoso penetre num, província todos aqueles que nela

são mais fracos a ele dêem adesão, movidos pela inveja contra quem se torna poderoso sobre eles; tanto assim é

que em relação a estes não se torna necessário grande trabalho para obter seu apoio, pois logo todos eles,

voluntariamente, formam bloco com o Estado conquistado. Apenas deve haver o cuidado de não permitir que

adquiram eles muito poder e muita autoridade, pode o conquistador, facilmente, com suas forças e com o apoio

dos mesmos, abater aqueles que ainda estejam fortes, para tornar-se senhor absoluto daquela província”. O

Príncipe, Cap. III.

Page 45: A Guerra de Maquiavel

não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los

com benefícios... As ofensas devem ser feitas todas de uma só vez a fim de que, pouco

degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos para que

sejam melhor apreciados”.11

O Príncipe é um recado decisivo ao governante para que evite o pior dos males

que pode ter contra ele: o ódio do povo. Conquistar e preservar o Estado significa contar com

o apoio popular, pois o príncipe novo nunca desarma seus súditos, ao contrário, só com eles

constrói sua força armada e desse modo tem necessariamente de conquistar sua confiança. Os

maiores inimigos do príncipe quase sempre se encontram dentro de seu principado, mas se ele

tem o apoio popular não deve temer golpes ou conspirações. De nada adianta erguer fortalezas

contra os invasores se um príncipe receia seu próprio povo. Todas as armas e as virtudes

bélicas nada valem se antes de tudo não se tem a confiança da população. Por isso, diz

Maquiavel, que a melhor fortaleza é não ser odiado pelo povo: “mesmo que existam

fortificações, elas nada valem se o povo te odeia, eis que a este, quando toma armas, nunca

faltam estrangeiros que o socorram”.12

Mas o apoio popular não é conquistado com

benevolência exagerada e aqueles que tentaram assim consegui-lo, tiveram o triste fim dos

profetas desarmados. Acontece que há muita diferença entre ser odiado e ser temido. O ódio

exagerado causa reação desesperada e desejo de liberdade, mas o temor, habilmente

empregado, causa respeito e obediência. Por isso, um príncipe entre ser amado e ser temido

deve sempre preferir esta última opção, pois e o temor e não o amor que o garante contra os

piores males: as ameaças externas, as revoltas ou conspirações. A fama de cruel, quando

mantêm os súditos reunidos e leais, é melhor que a excessiva piedade capaz de fomentar a

ambição dos inimigos e a desagregação do Estado. A crueldade do príncipe, quando bem

empregada, atinge indivíduos ou pequenos grupos, mas a excessiva benevolência deixa

margem a desordem que resulta em morticínios e barbaridades que afetam toda a comunidade.

A fama de cruel acompanha os príncipes novos uma vez que, em sua ação, têm de recorrer à

violência. Então, não há lugar para a bondade ou o amor; para preservar o poder, deve o

príncipe considerar atentamente esses sentimentos, pois “os homens têm menos escrúpulos

em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é

mantida por um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada

oportunidade que a eles convenha, mas o temor é mantido pelo receio do castigo”.13

11

O Príncipe, Cap. VIII. 12

Idem, Cap. XX. 13

Idem, Cap. XVII.

Page 46: A Guerra de Maquiavel

O príncipe-fundador deve imitar aqueles que forem excelentes pois, mesmo que

não possa atingir sua glória, que ao menos tente reproduzir suas grandes façanhas. Se nem

todos podem efetivar a Virtú máxima da política, devem, no entanto, olhar longe como um

arqueiro que, conhecendo a capacidade de seu arco, mira bem mais alto que o alvo e, mesmo

desconfiando que sua flecha não alcance tais alturas, possa atingir seu objetivo possível.14

A

renovação completa das instituições é a coisa mais difícil e mais duvidosa a conseguir. Criar

novas ordens é ter por inimigos ferrenhos os que obtinham vantagens com as velhas

instituições e ter como aliados e fracos defensores aqueles que o novo governo poderá

beneficiar, dificuldade acrescida pela descrença da maioria dos homens nas inovações. O

povo só começa a acreditar nas inovações com o passar do tempo, pelo costume, depois de

uma longa experiência. Os empreendimentos de renovação profunda são os mais perigosos

porque todas as regras da estabilidade são destruídas e os valores antigos já não servem como

referência ao novo, o futuro da ordem tradicional é, inesperadamente, arrancado aos homens

que carecem de entendimento sobre as finalidades ou objetivos da nuova alterazione. Se eles

continuam a interpretar o novo pelo antigo, isso se deve à experiência do terror original que os

atingem, fazendo da novidade o imprevisível ou o extraordinário, e são efetuados pela

angústia de não poder prever nada ao certo.15

Num terreno delicado e inseguro como este as

hesitações e fraquezas do príncipe são fatais. Mas, por outro lado, se ele provoca o medo no

povo também é sobre si que o povo projeta a salvação; isto é, o retorno à ordem e à

estabilidade.

Em Maquiavel o problema da fundação do Estado não pode ser considerado num

plano unicamente teórico. Ele não é um pensador frio e distante dos acontecimentos de seu

tempo. O Príncipe é um panfleto exaltado pela causa italiana. Maquiavel entendeu o

significado e a importância das grandes nações como Estados organizados: seu poder

econômico e seus recursos quase infindáveis destacam-se comparados às cidades

individualmente. Podiam financiar exércitos profissionais e mantê-los por longas campanhas.

E porque a Itália não conseguira a unidade capaz de enfrentá-los à altura, tinha de, impotente,

conviver com invasões estrangeiras e conflitos intestinos realimentados por elas. Mudar a

dramática situação política italiana era, então, uma tarefa quase sobre-humana. O novo

príncipe teria de fazer uma revolução total. Maquiavel dedica seu livro a Lourenço de Médici,

mas, com certeza, estava longe de acreditar que esse príncipe tivesse condições subjetivas

para efetuar tão vasto empreendimento.

14

Idem, Cap. VI. 15

STRAUS, L. Pensées Sur Maquiavel. Paris, Payot, 1982, p.240.

Page 47: A Guerra de Maquiavel

Discordamos, portanto, de J. F. Duvernoy, para quem Maquiavel não teria

pensado além dos problemas de sua “cidade-estado”.16

Os escritos de Maquiavel,

especialmente O Príncipe, são bastante incisivos a este respeito. O capítulo XXVI leva o

título Exortação para procurar tomar a Itália e Libertá-la das Mãos dos Bárbaros. Ele faz

um diagnóstico de uma Itália que se encontra à semelhança dos piores momentos dos hebreus,

persas ou atenienses “sem chefe, sem ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida e

suportando ruína de todo o tipo”.17

Apesar disso, ele não perde o otimismo. Acredita que o

Príncipe-redentor encontrará no povo a disposição de seguir a bandeira que indique o caminho

da libertação italiana, pois “aqui existe grande valor no povo, enquanto ele falta nos chefes”.18

Se Lourenço Médici carecer de ousadia, qualquer príncipe que se propor a empunhar essa

bandeira será pelo povo bem recebido pois “a todos repugna esse bárbaro domínio”.19

16

DUVERNOY. Op. cit., p.149 e SS. 17

O Príncipe, Cap. XXVI. 18

Idem, Cap. XXVI. 19

A objeção de Maquiavel à Igreja não é apenas moral, mas também política. Ele critica sua incapacidade de

conduzir o processo de unificação da Itália: “Com efeito, só há uma união e felicidade nos Estados sujeitos a um

governo único e a um só príncipe, como a França e a Espanha. A razão por que a Itália não se encontra na

mesma situação daqueles dois países, não possuindo um governo único, monárquico ou republicano, é

exclusivamente a Igreja, a qual, tendo possuído e saboreado o poder temporal, não tem contudo força suficiente,

nem a coragem bastante, para se apossar do resto do país, tornando-se dele soberana. Por outro lado, se a Igreja

nunca foi tão forte para poder ocupar toda a Itália. não permitiu que qualquer outro pais dela se apossasse; fez

assim com que esta nação não se pudesse reunir sob um só chefe, mantendo-se dividida entre vários príncipes ou

senhores. Dai a desunião e a fraqueza que a tornaram presa não só dos bárbaros ferozes mas do primeiro que

quisesse atacá-lo”, Discursos I, 12 e 55.

Page 48: A Guerra de Maquiavel

AS VIRTUDES DA REPÚBLICA

“Um cidadão perverso não poder ter

êxito numa república que não

esteja corrompida”.1

Maquiavel

Se Maquiavel é um autor cujo pensamento gira, principalmente, em torno da

instauração do Estado, não se pode, por outro lado, deixar de reconhecer que também o

problema do melhor regime foi objeto de suas preocupações. Ele não perde de vista a forma

de governo onde se pode construir e manifestar as habilidades e as virtudes dos cidadãos. No

início de O Príncipe ele informa que já considerara sobre as repúblicas em outra

oportunidade. Trata-se do livro primeiro dos Discursos sobre Tito Lívio onde ele examina

com maior atenção o período em que essa forma de governo foi estabelecida em Roma,

Maquiavel não se limitou a consultar apenas a obra de Tito Lívio, mas, especialmente, a

História de Políbio, no capítulo que versa sobre as mutações das formas do poder.2 As

considerações polibianas são de tal modo recolhidas e assumidas por Maquiavel a ponto de

alguns trechos dos Discursos parecerem não apenas longas paráfrases, mas pura e simples

tradução.3 É certo que Políbio, neste assunto, não expressa nada de muito singular se

atentarmos para as fontes gregas em que se apoiou (Heródoto, Platão e Aristóteles); mas, com

certeza, é em sua obra que Maquiavel buscou a concepção circular dos eventos históricos e a

classificação das formas de governo.

Aqui a originalidade maquiaveliana foi a de ter pela primeira vez empregado a

palavra Estado para designar principado ou república; de resto Maquiavel segue os passos de

Políbio no exame de cada uma das seis formas clássicas compostas de três boas e três mas

para, por fim, deter-se numa forma mista como a única capaz de resistir ao tempo ou aos

embates da Fortuna. Cada forma boa degenera numa ma que lhe corresponde até chegar ao

ponto mínimo e, então, recomeçar o ciclo.

1 Discursos III. 8.

2 Políbio. História. Trad. Mário Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília. 1985, Cap. 6.

3 BÓBBIO. N. A Teoria das Formas de Governo. Brasília. UnB. 1980. p.73 e ss.

Page 49: A Guerra de Maquiavel

A instabilidade que perpassa todos os governos, seus processos de ascensão e

decadência levam Maquiavel a buscar modelos de constituições que mais resistiram ao

desgaste. Considera um destino feliz aquele que dá a um legislador prudente condições de

elaborar leis que garantam uma relativa estabilidade e não precisem ser reformadas durante

muito tempo, como em Esparta, onde as leis foram respeitadas durante oito séculos sem

grandes alterações; a estabilidade constitucional pode ainda se mostrar de diferentes modos

como Licurgo, na Macedomônia, que sozinho elaborou as leis de sua cidade ou como em

Roma cujas leis foram sendo instituídas lentamente segundo os desdobramentos sócio-

políticos.4

Todas as constituições estão à mercê da corrupção.5 “Para mim, todas estas

formas de governo são igualmente desvantajosas: as três primeiras, porque não podem durar;

as três outras, pelo princípio de corrupção que contêm. Por isso, todos os legisladores

conhecidos pela sua sabedoria, evitaram empregar exclusivamente qualquer uma delas,

reconhecendo o vício de lada uma. Escolheram sempre um sistema de governo onde

participavam todas, por julgá-lo mais sólido e estável: se o príncipe, os aristocratas e o povo

governam em conjunto o Estado, podem, com facilidade, controlar-se mutuamente”.6 Foi este

o segredo de Licurgo em Esparta que, ao contrabalancear essas forças fez uma constituição

estável; enquanto que esse discernimento faltou a Sólon, que, por servir-se fundamentalmente

do poder popular fez com que sua constituição tivesse uma duração tão curta que ainda antes

de sua morte viu eclodir em Atenas a cruel tirania de Pisistrato. Embora o sistema de Sólon

tenha reaparecido um século depois, novamente teve uma vida curta, o que mostra a

instabilidade constitucional dos gregos. É em Roma que Maquiavel encontrará o paradigma

4 Discursos I. 2.

5 “Da mesma forma que a ferrugem, que é um mal congênito do ferro, o carruncho e as traças. que são os males

(internos) da madeira. pelos quais um e outro são consumidos, ainda que escapem a todos os danos externos,

assim também toda a constituição apresenta um mal natural que lhe é inseparável; o despotismo com relação ao

reino; a oligarquia com relação ã aristocracia; o governo brutal e violento com respeito a democracia. Nessas

formas, como já disse, é impossível que não se alterem com o tempo todas as constituições”. POLÍBIO. Op. Cit.,

Cap. 6. 6 Discursos I, 2.

Page 50: A Guerra de Maquiavel

do governo misto capaz de, por mais tempo, resistir à decadência. Tal constituição não

consolidou-se de um momento para outro, mas ao longo dos séculos, carregando, portanto,

todas as experiências acumuladas pelos romanos que foram mudando ou substituindo as

velhas leis pouco significativas ou defeituosas. O príncipe-fundador, Hômulo, assim como os

reis que lhe sucederam, promulgaram leis para atender as liberdades civis, mas, como

inicialmente fundaram uma monarquia, só bem mais tarde, com o aumento da liberdade,

puderam os romanos instituir a república. Esta forma governamental continha, a princípio,

uma expressão monárquica, pois os reis, ainda que tivessem desaparecido, na verdade,

cederam lugar a dois cônsules que desempenharam uma função semelhante; essa forma

governamental, resguardava também a expressão da aristocracia, mas faltava-lhe o poder

popular que só se consolidou como reação à insolência e rapacidade da nobreza, que foi

forçada a entregar parte de seu poder. Nas palavras de Maquiavel: “A Fortuna favoreceu

Roma de tal modo que, embora tenha passado da monarquia à aristocracia e ao governo

popular, seguindo a degradação provoca da pelas causas que estudamos, O poder real não

cedeu toda sua autoridade para os aristocratas, nem o poder destes foi todo transferido para o

povo. O equilíbrio dos três poderes fez assim que nascesse uma república perfeita”.7

Quando os Tarqüínios foram depostos e mortos, a nobreza, cujas ambições foram

por eles limitadas, teve mais espaço para explorar, agredir e humilhar o povo; essa voracidade

desenfreada só foi sustada ao criar-se novas instituições capazes de amortecer o poder dos

senadores e defender melhor os interesses do povo; foi o caso dos tribunos populares.8

Maquiavel, seguindo Políbio, vê na constituição do Tribunato o órgão de controle popular

capaz de introduzir na república um relativo equilíbrio entre o governo, os poderosos e os

plebeus.9 Uma vez que nem na tirania e nem a anarquia acatam-se as leis, é o regime misto,

onde as forças se regulam e equilibram a melhor forma de governo, capaz de disciplinar os

cidadãos; pois os deveres civis são conseqüências de leis apropriadas e de instituições que

pos¬suam autoridade para aplicá-las e preservá-las.

Maquiavel, entretanto, não antevê qualquer sociedade utópica onde a lei seja

plenamente respeitada e a liberdade assegurada pela eliminação dos conflitos; ao contrário,

ele afirma que os conflitos, as disputas e as dissensões é que verdadeiramente mantêm a

7 Discursos I, 2.

8 “A autoridade desses novos magistrados foi cercada de tantas prerrogativas e prestígio que puderam manter o

equilíbrio entre o povo e o Senado, oferecendo um obstáculo as pretensões insolentes da nobreza.” (Discursos I. 3). 9 Sobre o poder dos tribunos e sua função republicana. Políbio afirma: “O mais importante é que se um só dos

tribunos se opuser, o Senado é incapaz de decidir, em última instância, sobre qualquer assunto, e os senadores

não podem sequer reunir-se e ocupar os seus assentos; cabe observar aqui que os tribunos são sempre obrigados

a agir segundo a vontade do povo e a levar em consideração os seus desejos, logo, por estas razões o Senado

teme as massas e deve dispensar a devida atenção ã opinião pública.” História. Cap. 6.

Page 51: A Guerra de Maquiavel

liberdade nas repúblicas. Sem a voracidade da nobreza, o povo não teria reagido e não teria

criado os tribunos para defendê-lo. Foi exatamente a disputa entre a plebe e o Senado que

produziu a grandeza e expandiu a liberdade na república romana. “Os que criticam as

contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas

que asseguravam fosse preservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e

rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares. Não querem

perceber que há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da

aristocracia. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião, como prova o

que aconteceu em Roma, onde, durante os trezentos anos e mais que transcorreram entre os

Tarqüínios e os Gracos, as desordens havidas produziram poucos exilados, e mais raramente

ainda fizeram correr o sangue”. Este é o cerne da república romana que deu mostras de

grandes feitos e virtudes, uma vez que os bons exemplos nascem da boa educação e esta, por

sua vez, nasce das boas leis, mas as leis nascem das contradições e das desordens que,

segundo Maquiavel, “todos condenam irrefletidamente”.10

As disputas e a intranqüilidade são o preço da liberdade. Considerar uma

sociedade sem conflitos é apostar em regimes que extirpam a livre manifestação dos cidadãos,

e, antes, apostar na tirania onde as liberdades são eliminadas pela opressão; por outro lado,

exatamente é a opressão que desperta nos homens o desejo da libertação. Os homens são

livres não de modo espiritual apenas, mas na reação contra as forças que desejam aplastá-los.

Se Lutero visava a salvação do homem na interioridade, Maquiavel trata da liberdade no

espaço público. É na mais cruel necessidade que nasce no povo a vontade política para livrar-

se da opressão. O povo deixa de ser apenas um objeto de manobra das elites e se torna

também sujeito dos acontecimentos. Para Maquiavel, a liberdade supõe a presença do povo.

Em Roma, o Senado tinha a autoridade, mas o povo tinha o poder; por isso, sobre a questão, a

quem se pode confiar com mais segurança a liberdade, Maquiavel não hesita em criticar os

nobres pela avidez infatigável de poder e riqueza e elogiar o povo pela sua disposição de

defender a república, pois ele melhor expressa seu desejo de não ser explorado e vilipendiado.

A guarda da liberdade é feita sempre por aqueles que têm menos avidez: os plebeus, que,

mesmo que não possam apropriar-se totalmente do poder, criam uma forte resistência à

rapacidade dos nobres. Fiel à noção de equilíbrio entre os poderes, Maquiavel não pensa num

governo totalmente popular, pois isso o levará, logo à anarquia e o Estado teria de ser

refundado. O povo é sujeito, mas não pode exercer o poder por conta própria sem causar

10

Discursos I, 4.

Page 52: A Guerra de Maquiavel

grandes transtornos. E a república é a forma de governo que, por seu equilíbrio, melhor

defende o bem comum. “Compreende-se a razão disto: não é o interesse particular que faz a

grandeza dos Estados, mas o interesse coletivo. E é evidente que o interesse comum só é

respeitado nas repúblicas; tudo o que pode trazer vantagens gerais é nelas conseguido sem

obstáculos. Se uma certa medida prejudica um ou outro indivíduo, são tantos os que ela

favorece que se chega sempre a fazê-la prevalecer, a despeito das resistências, devido ao

pequeno número de pessoas prejudicadas.”11

O povo, geralmente, é mais constante que os príncipes, pois estes podem

rapidamente mudar de opinião enquanto que as oscilações da multidão são mais lentas e

comedidas.12

Maquiavel elogia o povo da república romana enquanto esta preservou os

costumes e as leis. O povo não regulado por boas leis se joga nos excessos e não tem como

frear suas paixões; um povo digno é resultado das melhores leis possíveis, enquanto que a

covardia e a mediocridade de um povo são resultados do vício das instituições que o levou a

perder a dignidade e a coragem. A formação de um povo autêntico ocorre com as liberdades

civis; por isso, as melhores formas governamentais são as repúblicas “pois elas possuem mais

germes de vida, e têm sorte mais duradoura do que as monarquias; elas podem mais

facilmente acomodar-se à variedade das circunstâncias do que um monarca absoluto, dada a

diversidade de cidadãos que as compõem”.13

Não poderia ser diferente, pois no regime misto o povo tem o poder de participar

na escolha dos magistrados e dos tribunos. A escolha popular mostra que a maioria dos

cidadãos tem condições de fazer a seleção dos melhores. Os escolhidos, obviamente, são

gente de sua confiança e não do Senado; só deste modo é possível criar mecanismos que

protejam as liberdades e promovam os homens pelos méritos e os punam pelos crimes. Os

méritos não podem compensar os crimes. Maquiavel cita o exemplo de Horácio que corajosa

e brilhantemente vencera os Curiáceos e fora cumulado de méritos e honrarias, mas que, pelo

assassinato de sua irmã, foi punido com o maior rigor. Com o que fizera pelo Estado e pelo

povo, Horácio esperava livrar-se do castigo, mas o tribunal não arredou em aplicar os

princípios elementares da justiça, e isto “pela razão de que num império bem governado

nunca os serviços prestados por um cidadão deve apagar um crime. As recompensas se

destinam a premiar as boas ações; os castigos as más. Quando um cidadão é recompensado e

11

Discursos II. 2. 12

“Se o povo se deixar as vezes seduzir por propostas que demonstram coragem. ou que parecem úteis, isto

ocorre ainda mais freqüentemente com os príncipes. que se deixam arrastar pelas suas paixões, mais numerosas e

irresistíveis do que as do povo.” (Discursos I, 48). 13

Discursos III. 9.

Page 53: A Guerra de Maquiavel

depois se comporta mal, deve ser punido sem consideração pelo que fez de bom. Quando esta

regra é observada escrupulosamente, o Estado mantém por muito tempo a liberdade; em caso

contrário logo se arruína”.14

As salvaguardas do regime republicano em Roma chegaram ao ponto de criar-se

figura dos ditadores. Quando o regime se encontrasse em dificuldades para exercer sua

autoridade e estivesse, portanto, correndo o risco de esfacelamento ou de profundas

transformações resultantes de acontecimentos inesperados como epidemias, fome ou revoltas

intestinas ou ataques externos, eram escolhidos ditadores que, com poderes supremos, tinham

a missão de, com a maior rapidez possível, eliminar essas graves ameaças. Maquiavel chama

a atenção para o fato de que as sujeições por que Roma passou não são devidas à ação dos

ditadores. Esses governantes excepcionais eram designados por tempo limitado, cujo término

coincidia com o fim das circunstâncias que forçaram sua intervenção. A instituição dos

ditadores deve-se fundamentalmente ao caráter muito lento que tem a república para, em

momentos cruciais, tomar decisões rápidas e firmes. Na ordem habitual da república, as

decisões executivas passam por assembléias que envolvem o povo e o Senado e que

geralmente se arrastam por longo tempo até a promulgação das leis. Em circunstâncias

difíceis e urgentes só o ditador dispõe de condições para a tomada das medidas imediatas mais

apropriadas. Sem a figura do ditador, esse remédio extraordinário, as repúblicas poderiam

abrir oportunidades para sua aniquilação externa ou interna. Mas a função constitucional dos

ditadores prevê que eles não ultrapassem seus objetivos: “enquanto a ditadura se manteve

dentro das normas legais. e não foi usurpada pelos cidadãos, representou um sustentáculo à

república. De fato, os magistrados instituídos por meios extraordinários, e o poder alcançado

por esses meios não são perigosos para o Estado. Se examinarmos os acontecimentos

ocorridos na república romana, veremos que os ditadores só lhes prestaram serviços

importantes por razões evidentes”.15

A função do ditador era executiva; ele não podia legislar;

suspendia momentaneamente as leis, mas não podia alterá-las e, desse modo, estava

legalmente impedido de modificar a organização do Estado.16

Maquiavel não trata apenas de

elogiar a Roma clássica, mas de usá-la como paradigma para criticar às misérias e apontar as

alternativas políticas para seu país e sua cidade. O passado é exemplar. Como homem do

14

Idem I. 24. 15

Idem, 34. 16

BÓBBIO, Op. Cit., p.165.

Page 54: A Guerra de Maquiavel

Renascimento, ele participa igualmente dessa redescoberta das virtudes antigas: “esta terra da

Itália parece destinada a ressuscitar as coisas mortas”.17

Foi em seu primeiro ano de exílio, em San Casciano, que Maquiavel escreve a

parte dos “Discursos sobre Tito Lívio”, com o objetivo de analisar essa fase da história

romana, certamente levado pelo fracasso do governo para que trabalhou e defendeu: a

república de Soderini. Em suas reflexões republicanas, ele mostra como o povo romano se

protegia da voracidade do Senado; sua intenção, entretanto, é muito menos focalizar o

passado, mas, a partir dele, chamar a atenção para a aristocracia de seu tempo. Maquiavel

atribui aos nobres a corrupção dos países e dos Estados. Define o aristocrata como “aquele

que vive no ócio sustentado pelos frutos dos seus bens; que passa seus dias na abundância,

sem preocupar-se com os meios de sobrevivência, como a agricultura ou outro trabalho

qualquer. Essas pessoas são perigosas para todos os Estados. Dentre eles, deve-se temer acima

de tudo os que, além das vantagens assinaladas, possuem castelos e vassalos sob as suas

ordens”.18

Para Maquiavel, a aristocracia é uma fonte de degeneração dos governos e de

perversão dos costumes e, com seu estilo moralista, responsabiliza-a por tornar os franceses,

italianos e espanhóis as nações mais corruptoras do universo; em outros países, para prevenir-

se a corrupção e a desordem, essa gente é morta sem piedade. Maquiavel não cita

explicitamente tais países, talvez porque não existissem, mas registra sua indignação contra

essa classe ociosa. Por outro lado, o governo de Soderini foi golpeado pelos Médici,

representantes da burguesia comercial e financeira, aliados aos invasores estrangeiros. Os

Médici significavam a ditadura populista que se aproximava muitas vezes de uma tirania. Ora,

a obra maquiaveliana está impregnada de críticas às tiranias por fugirem totalmente ao

controle e por exercerem o poder de forma indiscriminada.

O pensamento político de Maquiavel expressa-se em vários planos. Como já

vimos, dois deles se constituíam em problemas cruciais em sua época: a fundação de um

Estado unitário para a Itália como condição de livrá-la dos conflitos internos e da barbárie

estrangeira e ainda a questão da forma republicana como capaz de equilibrar as forças

políticas e assim permitir a liberdade dos cidadãos. Maquiavel, entretanto, sempre desloca sua

visão para o lado do Estado. Sem essa instituição formidável não há qualquer vida civilizada.

É como se a história da humanidade se dividisse em antes e depois dele. Se a Fortuna é

poderosa e nenhuma forma de governo é perene, resta aos homens iniciativas para preservar

17

MAQUIAVEL, N. El Arte de la Guerra. In: Obras Escogidas. Buenos Aires. Libreria El Ateneo Editorial.

1957. p.741. 18

Discursos I. 45.

Page 55: A Guerra de Maquiavel

ao máximo as instituições da decadência. Essa luta distancia-se da busca pela paz do coração

ou da alma, ao contrário do recolhimento subjetivo; ela mostra que só na sabedoria e no

esforço político há possibilidades de manter a vida social e cultural. O resultado maior desse

esforço cristaliza-se no Estado, por isso Maquiavel não hesita em fazer afirmações do tipo:

“Quando é necessário deliberar sobre a decisão da qual depende a salvação do Estado, não se

deve deixar de agir por considerações de justiça ou injustiça, humanidade ou crueldade, glória

ou ignomínia. Deve-se seguir o caminho que leva a salvação do Estado e à sua manutenção,

rejeitando-se tudo o mais”.19

A forma mista que ele estudou em Políbio e ainda as

experiências que viveu em Florença revelaram-lhe a importância e a força do povo, que já não

mais aparece com a imagem de um rebanho conduzido por um pastor, mas dotado de vontade

e relativa autonomia. Mas, se o povo é também sujeito dos acontecimentos, Maquiavel

concebe-o a partir da organização do próprio Estado, o Sujeito maior da ação, a instituição

que retém o monopólio do conhecimento e da política.

19

Idem III. 41.

Page 56: A Guerra de Maquiavel

O PRÍNCIPE: SUJEITO DO CONHECIMENTO E DA POLÍTICA

“A ação revela oportunidades que a

passividade teria deixado escondidas”1

Maquiavel

Com Maquiavel, o estatuto do Sujeito sofre uma profunda alteração. Não há mais

a garantia da Providência ou de uma razão natural que atravesse todos os graus do ser. A

verdade não está de antemão inscrita nas coisas. Acompanhando as mudanças filosóficas do

Renascimento, com a contínua descoberta da natureza e a reabilitação do real, o saber do

Príncipe-Sujeito funda-se sobre sua própria atividade prática. A experiência, os fatos, a

resistência da Fortuna, como natureza ou sociabilidade, é que traçam agora os limites da

racional idade possível. Portanto, a mudança maquiaveliana, mesmo ao destacar a instância da

política, ocorre simultaneamente com o surgimento da consciência moderna, pois a alteração

do estatuto da política e a questão do Sujeito do conhecimento estão vinculados uma à outra e

preparam o caminho para a formulação do “cogito” cartesiano.2 Mas, diferente de Descartes,

Maquiavel)não; busca a verdade no interior da subjetividade e sim na ação (Virtú) sobre as

coisas, os acontecimentos sociais e históricos.

A reflexão sobre o acerto e o fracasso dá início à autoconsciência que só pode

fundar-se num constante sair de si para o mundo dos fatos. Na dedicatória de O Príncipe,

oferecido a Lourenço Médici, Maquiavel procura mostrar que seu pequeno tratado não é

produto de pesquisa acadêmica, mas que resulta, ao contrário, daquilo que, entre seus

cabedais, lhe é mais caro: “o conhecimento das ações dos grandes homens, aprendidos através

de uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas”.3 Sem passar

pelas experiências do mundo, de que maneira se comprovariam os exemplos dos antigos e de

que valeriam? É o príncipe, mais do que qualquer outro, que terá de ser habilidoso nos

assuntos políticos. Nas obras de Maquiavel encontra-se uma galeria de bons e maus príncipes.

Os elogios recaem sobre aqueles que alcançaram o poder à custa de longo esforço e sacrifício

e que, vencendo todas as adversidades, retêm os melhores conhecimentos das relações entre

os homens e, portanto, o saber de que o poder não tem garantias que o transcendam, mas que

necessita uma atividade ininterrupta para garantir sua legitimação. Assim, não há mais lugar

para ilusões metafísicas e os preceitos de uma moral estabeleci da para sempre. O novo

1 MACHIAVELLI, Nicolo. Opere. In: La Literatura, Storia e Testi. Mila-Nápoli, Ed. Ricardo Ricciardi, 1954, 29v.

2 LEFORT, Claude. Le Travail de L‟Oeuvre. Paris, Edition Galimard, 1972, p.91.

3 LEFORT, Claude. Op. Cit., p. 73.

Page 57: A Guerra de Maquiavel

sujeito do conhecimento implica a relação teoria e prática, o que significa que o príncipe

destaca-se por perseguir, antes de tudo, a “veritá efetuate de le cose”.

Como sabemos, o acontecer máximo é a guerra. É quando se decide a sorte dos

Estados e das sociedades, sua fundação e decadência. A arte da guerra é, pois, o conhecimento

privilegiado do príncipe. É o assunto com que o príncipe deve se ocupar na maior parte do

tempo. “A prática da arte da guerra é a única que se espera de quem governa; ela é tão

importante que não apenas resguarda os que nasceram príncipes, como, muitas vezes, faz com

que homens do mais baixo extrato social se elevem até àquela posição”.4 Os movimentos de

uma guerra - que não se definem apenas pelo simples recurso às armas mas pela adoção de

estratégias e táticas que se correspondam - dão uma imagem do exercício da política, assim

como o exercício da caça dá uma imagem que mais se aproxima da guerra. O príncipe nos

tempos de paz não pode se dar o luxo de uma passividade ociosa. Entre suas opções, a que

mais se aproxima do treinamento militar é a caça. Seguindo a narração de Xenofonte na

Ciropédia, Maquiavel trata a caça como algo mais que um esporte, como uma atividade capaz

de dar ao príncipe conhecimentos sobre essa arte que lhe é tão cara e indispensável.

Aconselha sua prática constante, pois, sem essas experiências, qualquer campanha militar

seria, no mínimo, uma temeridade. “E se todas as ciências exigem longa prática para que se

possa dominá-las, esta exige experiência maior ainda (prática grandíssima). É uma

experiência que se ganha caçando, mais do que qualquer outro exercício. Os historiadores

antigos relatam que seus heróis passavam a vida nas florestas caçando; atividade que oferece

um conhecimento particularizado dos lugares e muitas outras noções indispensáveis à

guerra”.5 Tal prática não dispensa, portanto, os conhecimentos fornecidos pelos exemplos dos

antigos; ao contrário, os exercícios físicos pressupõem simultaneamente o exercício da mente

que consiste na leitura atenta das obras de história para que se considere as grandes ações dos

vultos do passado, procurando comparar seus procedimentos, examinando as causas de suas

vitórias ou derrotas. No interregno entre os conflitos bélicos, a reflexão sobre o passado,

associada à prática da caça, é uma excelente oportunidade para a educação do príncipe. As

caçadas fornecem-lhe informações sobre seu país que poderá usar nas guerras internas ou

externas; permitem-lhe considerar as semelhanças e os contrastes do seu território com os das

províncias vizinhas ou distantes; oportunizam ao príncipe observar com o máximo de atenção

os rios, as posições das montanhas e dos vales, examinar com detalhe a vida do povo, a

localização dos vilarejos, das plantações e dos rebanhos. É com o conhecimento efetivo

4 O Príncipe XIV.

5 Discursos III, 39.

Page 58: A Guerra de Maquiavel

desses lugares que o príncipe poderá planejar com mais segurança suas ações futuras e

prevenir-se das possíveis ações contra ele.

No entanto, é em meio às relações políticas e sociais e do choque dos diversos

interesses que, com maior nitidez, o príncipe se revela como sujeito do conhecimento e como

sujeito político. O príncipe conhece a si mesmo mediado pela sociedade, bem como as

relações da sociedade através de sua atuação sobre ela. O sujeito se constitui pelo Outro à

medida que é posto à prova por ele; neste caso, o Outro é a sociedade dividida

fundamentalmente entre os magnatas (popolo grasso) e os pobres e assalariados (popolo

minuto). “Porque em toda cidade se encontram estas duas tendências diversas e isso resulta do

fato de que o povo não quer ser mandado nem oprimido pelos poderosos e estes desejam

governar e oprimir o povo; é destes dois anseios diversos que nasce nas cidades um dos três

efeitos: ou principados ou liberdade ou desordem”.6 A intervenção do príncipe dá-se no

sentido de manter um mínimo de convivência entre as partes tão díspares, impedindo-as que

se joguem numa luta genocida. Para isso o príncipe tem de evitar que os grandes venham a

golpeá-lo ou o povo venha a odiá-la. A Virtú está em equilibrar-se entre essas duas forças.

Maquiavel insiste em que não há nada pior para um príncipe do que ser abandonado por um

povo hostil. Mesmo que tenha o apoio dos grandes, no momento em que perde a confiança no

povo abre o caminho de sua perdição. Pode ser temido, mas nunca odiado. Numa sociedade

dilacerada por poderosos conflitos, o controle que o príncipe possa ter sobre ela depende de

seu conhecimento, das relações das forças que a atravessam impedindo seu crescimento

exagerado num grupo ou acentuando maior poder àqueles que, por não terem nenhum,

possam revoltar-se de modo catastrófico. Há limites para o sofrimento e a miséria do povo,

um príncipe que os desconhece, estará abrindo espaço para sua própria desestabilização. A

necessidade - diz Maquiavel - é a mãe da coragem. O medo atroz transforma-se em coragem,

e, em certas circunstâncias, O desespero torna-se revolta ou disposição para a luta. A Virtú

consiste, portanto, em prevenir a aparição do mal que, como a tuberculose, esta no início tem

cura fácil mas é difícil de ser diagnosticada, e quando muito evoluída é de fácil diagnóstico

mas de cura muito difícil. Isto também vale para o príncipe que, para prevenir-se, deve

guardar o monopólio das informações recorrendo a conselheiros que o mantenham a par dos

acontecimentos, boatos, opiniões e críticas e, com isto, conhecer, pelo comportamento do

Outro, as dimensões de sua ação. Esse saber possibilita ao príncipe evitar o uso

indiscriminado da força. Maquiavel afirma claramente “jamais considerei um erro combater

6 O Príncipe IX.

Page 59: A Guerra de Maquiavel

uma opinião com argumentos racionais sem usar a força ou a autoridade”7 Ocorre que a posse

privilegiada dos conhecimentos dá ao príncipe as condições de ser o grande articulador entre

os diversos interesses e, desse modo, ele pode integrar os conflitos políticos.

É na compreensão do conflito dos interesses e das forças sociais que Maquiavel

analisa, por exemplo, formas de Estado tão distintas como a da França e da Turquia. O

governo turco se assemelha a uma tirania, uma vez que o príncipe tem poder absoluto para

nomear ou destituir quem quer que seja segundo sua própria vontade, inclusive sobre a

propriedade e a vida dos súditos. O rei da França, ao contrário, tem de dividir sua autoridade

com os senhores aristocratas, uma vez que estes têm poder sobre seus súditos; a autoridade do

rei é limitada e ele não pode suprimir qualquer dessas parcelas de poder sem colocar em

perigo sua própria autoridade. Assim, o príncipe que tiver intenção de assaltar esses Estados

encontrar-se-á diante de situações adversas: terá muitos empecilhos para conquistar o Estado

turco, mas terá depois facilidades para governá-lo; enquanto que o Estado francês será fácil de

ser conquistado mas tornar-se-á extremamente difícil de ser governado. A explicação de

Maquiavel é de que no despotismo oriental o povo está unido rigidamente em torno do

soberano e a ameaça de rebelião de um príncipe é remota. Para atacar um Estado destes, um

príncipe estrangeiro deve contar apenas com suas próprias forças, pois as cisões internas

inexistem. Entretanto, se conseguir uma vitória campal poderá com mais facilidade

desmantelar completamente o poderio do inimigo, extinguindo o monarca e sua estirpe e,

como não encontrará nenhum outro príncipe autóctone com poder e prestígio comparável

àquele que derrotou, terá espaço aberto para consolidar seu novo governo. Na França seria

mais simples uma invasão pois o invasor poderia contar com o apoio de um ou mais príncipes

descontentes ou revoltados com o rei que podem-lhe abrir caminho e facilitar-lhe a vitória,

mas é então que surgem os maiores problemas ao conquistador. Aqueles que o auxiliaram na

empreitada, também desejam dividir com ele os frutos da vitória e o exercício do poder. E não

lhe basta acabar com a estirpe do príncipe, pois outros senhores reivindicarão para si o

reinado e tornar-se-ão, por isso, chefes de revoltas ou contestações. O príncipe-conquistador,

não podendo contentar ou exterminar a todos, andará sempre na iminência de perder o

controle do poder. Muitas vezes Maquiavel chamará a atenção para os obstáculos quase

insuperáveis que um príncipe encontra ao assaltar uma república porque, numa cidade desse

tipo, o poder se distribui pelo conjunto da sociedade e o invasor não tem como inimigo apenas

o príncipe mas toda a população que retém grande parte das forças políticas. Se o invasor

7 Discursos I, 58.

Page 60: A Guerra de Maquiavel

tomar a cidade onde o povo se acostumou à liberdade, só conseguirá governá-la exterminando

ou espalhando seus habitantes.8

Numa sociedade fundada sobre uma dilaceração estrutural e sobre todos os seus

desdobramentos conjunturais, é o exercício racional da violência que é, portanto,

fundamentalmente retido pelo príncipe. Os homens almejam a segurança e a paz, mas

segundo Maquiavel, sua natureza não lhes dá condição para bastarem-se a si mesmos, para

organizarem as suas próprias vidas e, por isso, necessitam depositar a autoridade em alguém

que lhes garanta a coexistência social. A função do príncipe é realizar esse serviço articulando

e dosando a violência potencial ou atual, o que mostra que antes é o conhecimento das

relações de força do que seu uso indiscriminado que dá ao príncipe o monopólio do poder

político. Assim, fundada uma nuovi ordini o príncipe tem que acabar o mais rápido o terror e

as arbitrariedades. O príncipe agora deve conquistar as graças e o reconhecimento do povo e

legitimar sua autoridade sobre ele, o que não é uma tarefa simples, pois a natura del popolo é

varia (a natureza do povo é complexa), isto é, há uma variedade de forças sociais que ora se

entrechocam, ora se reforçam ou se anulam. E é à luz dessa oposição entre o popolo grasso e

o popolo minuto e o governante que se constitui a forma de um regime; é nesse campo de

forças que o príncipe deverá buscar um equilíbrio mínimo. O príncipe, para preservar seu

poder, deve exercer pressão e dirigir esse conjunto de forças de tal modo que sua hegemonia

não seja contestada. Não lhe resta uma transcendência a quem apelar ou a garantia de um

saber vinculado às causas últimas capaz de orientar sua ação. Há apenas os fatos resultantes

das relações entre os próprios súditos ou do príncipe em relação a eles e vice-versa. Essas

relações é que constituem o objeto do conhecimento do príncipe. E na persistente observação

e análise desses fatos que o sujeito-conhecimento aprende a destacar no particular o universal,

a recolher nos acontecimentos presentes os indícios do que poderá ocorrer e assim calcular a

dimensão e o significado dos conflitos futuros que poderão perpassar a sociedade. Desse

modo, Maquiavel, “afirmando a permanência do conflito, rejeitando a idéia de uma forma

política que carregue em si a estabilidade, reconhece a permanência dos acidentes e,

conseqüentemente, designa a função do príncipe como a de um sujeito que adquire a verdade

num movimento contínuo de racionalização da experiência. Ao mesmo tempo, arroga-se o

direito de conceber as relações de força em sua generalidade, ensina que estas sempre se

instituem pelas operações empíricas dos agentes postos em condições contingentes. Ao

mesmo tempo em que extrai de toda a situação os termos de um problema e torna sensível a

8 O Príncipe IV, VI, XIX.

Page 61: A Guerra de Maquiavel

exigência de um método, mostra que os dados desse problema não cessam nunca de mudar e

que a solução nunca é fornecida de antemão”.9 É por isso que Maquiavel insiste tanto nas

mudanças dos tempos. O tempo torna o bem em mal e o mal em bem, o bom príncipe se

diferencia do mau por sua habilidade em se adaptar aos novos tempos. As mudanças na

conjuntura não dão tréguas ao príncipe que deve fazer o melhor uso das ocasiões (caziones)

que se lhe apresentam na interminável busca da preservação de sua autoridade.

Nesse processo, em que o príncipe busca permanentemente a legitimidade,

instaura-se um jogo entre o exercício do poder e sua manifestação pública. A relação do

príncipe com os súditos envolve a delicada tarefa da dissimulação, esse jogo onde o

governante desempenha o papel semelhante a um ator diante de um público sequioso de

imagens e de lances espetaculares. O príncipe, antes de tudo, deve ser um mestre da

simulação e exercer o poder antes pelo engano do que pela força. Maquiavel afirma que “os

homens se importam tanto com a aparência das coisas, tanto com o que elas realmente são; e,

muitas vezes, se interessam mais pelas aparências do que pela realidade”.10

O poder é o

espaço da representação e da ilusão. O príncipe deve dominar amplamente os recursos

cênicos, pois ele nunca é visto como de fato é, mas como parece ser. Sua Virtú está em usar

da aparência, mudá-la com a alteração dos cenários e, pela sua destreza, conduzir o público

segundo seus interesses. O príncipe virtuoso nunca revelará suas verdadeiras intenções. Ao

apresentar-se como pacífico, bondoso ou religioso esconde que seu objetivo é a guerra, a

conquista de outros principados ou um ainda maior controle sobre os homens. Desse modo, o

Papa Júlio II, o mais importante dignatário da religião cristã, mobilizou exércitos, aliou-se aos

espanhóis e conquistou territórios ampliando o poder da Igreja, ou o caso do Papa Alexandre

VI que nunca pensou ou fez outra coisa senão enganar os homens sempre que a ocasião lhe

pareceu propícia. Nunca, segundo Maquiavel, existiu alguém com maior facilidade para

prometer e, conquistado seus objetivos, romper com seus juramentos. Outro exemplo é o do

rei Fernando, o Católico, que pregava a paz e a fé, mas era, na verdade, inimigo de ambas,

pois, se as tivesse praticado de fato, teria sucumbido e perdido o reino. Maquiavel não hesita

em apontar o relevante papel do engano na ação política. “O engano (ingano) foi sempre

indispensável àqueles que partindo de condição muito baixa quiseram subir a uma mais

elevada. Contudo, quanto mais encobertas essas fraudes - como as empregadas pelos romanos

- menos censuráveis elas são”.11

Maquiavel, entretanto, jamais afirmou que não fosse louvável

9 LEFORT, Op. Cit., p. 359.

10 Discursos I, 25.

11 Discursos II, 13.

Page 62: A Guerra de Maquiavel

um príncipe manter a fé na palavra dada e que pudesse governar com integridade e não com

artimanhas. Isto seria o ideal, mas ocorre que no mundo em que vivemos os príncipes só

realizam grandes feitos independentes de manterem seus juramentos ou compromissos e que

os que tentam ser leais nunca levam adiante seus objetivos. Em tais circunstâncias instaura-se

um limite para agir conforme as leis ou exercer uma violência indiscriminada. O príncipe tem

de atuar em dois níveis, mantendo sua autonomia entre um ou outro: agir conforme as leis, o

que parece próprio do homem; e, conforme a força, procedimento característico dos animais.

Acontece que, como as leis nem sempre são suficientes, deve-se recorrer à força. É necessário

ao príncipe atuar com a propensão animal e humana. Maquiavel inaugura um humanismo

totalmente distinto dos seus ancestrais ou contemporâneos (Pico, Polizzianno, Ficino), pois,

ao invés de aproximar o homem dos anjos, aproxima-o da besta. Lembra que os antigos

escritores atribuíam a lenda da educação de Aquiles e muitos outros príncipes ao centauro

Quíron, meio homem e meio animal; e, portanto, o príncipe deve incorporar essas duas

naturezas, pois uma só delas não será suficiente para preservá-lo. A este exemplo Maquiavel

acrescenta outro, tirado totalmente do reino animal, nas figuras do leão e da raposa: o

primeiro não sabe como escapar da rede do caçador, e a última é impotente contra os lobos.

Ao príncipe cabe ser ambos simultaneamente, leão para afugentar os lobos e raposa para

escapar às redes. Aqueles que só empregam a força do leão não conhecem a sua arte. O

príncipe exerce o poder num espaço de grande mobilidade, onde as situações raramente são

iguais e as correlações de forças se compõem de modos diversos. Manter a fé na palavra: dada

ou dirigir a força numa só direção é não entender a verdade central da política. “Um senhor

prudente não pode nem deve guardar sua palavra quando isso seja prejudicial a seus interesses

e quando desaparecem as causas que o levaram a empenhá-la”.12

Talvez por isso o mundo

está um pouco menos para leões do que para raposas; imitar a astuta raposa e esconder o leão,

para só usá-lo nos casos inevitáveis; eis aí a arte que o príncipe autêntico deverá aperfeiçoar.

O âmbito da simulação se amplia à medida em que o território da realidade parece diminuir. É

fundamental parecer possuir qualidades mesmo que não se as tenha. Mais importante que ser

bom é representar sê-lo; aliás, Maquiavel considera que o príncipe deve aprender a não ser

bom para poder usar ou não da bondade conforme a ocasião. “Antes, ousarei dizer que

possuindo qualidades e usando-as sempre, elas são danosas; enquanto que, aparentando

possuí-las, são úteis. Por exemplo: parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo

realmente; mas estar com o espírito preparado e disposto de modo que, precisando, possa e

12

O Príncipe VIII.

Page 63: A Guerra de Maquiavel

saiba tornar-se o contrário”.13

É preferível não ter nenhuma dessas qualidades e manter o

poder do que possuí-las e perdê-lo. Maquiavel lembra que César Bórgia não tinha talvez

qualquer virtude cristã, que estava muito longe de ser um homem piedoso e bondoso, mas sua

ação violenta e bem calculada levou a paz à Romanha enquanto os piedosos florentinos,

incapazes de se organizar e agir, perderam províncias aos seus inimigos e assim aumentaram

as revoltas e a repressão, acabaram coma vida pacífica dos camponeses das proximidades e

passaram um longo tempo atormentados com as ameaças de uma fulminante invasão

estrangeira.

O príncipe exerce suas funções num equilíbrio instável e se falharem sua atuação

não terá tribunal a que recorrer. Para melhor proteger-se dos acontecimentos inesperados ele

deve reunir à sua volta uma equipe de conselheiros; mesmo assim, como comprovará o grau

de veracidade das informações que lhe são passadas? O príncipe seleciona as informações,

mede e pesa sua importância para calcular o significado dos acontecimentos e distinguir os

méritos de seus opositores. A medida inicial é precaver-se dos aduladores que o envaidecem

lisonjeando-o e, desse modo, afastam-no da compreensão dos fatos. A busca de informações,

entretanto, é da iniciativa do príncipe que tem de evitar que os conselheiros não se

amedrontem pois, caso contrário, para diminuir seu temor, acabam passando informações

falsas. O príncipe é quem deve selecionar todos os dados e checá-los para solucionar os

dilemas e afastar as dúvidas. Antes “deve ser um grande perguntador e, depois, a,cerca do que

perguntou, paciente ouvinte da verdade (paciente auditore del vero)”.14

Maquiavel, desse

modo, não trata de um príncipe que apenas represente ter certas qualidades, mas que, de fato,

as possua. Conselhos judiciosos para um príncipe imbecil são de todo inúteis. Um príncipe

que, não é sábio por si mesmo, nunca poderá ser bem aconselhado. Isto porque a garantia

última nunca vem dos conselheiros mas do próprio príncipe. Há limites para, a confiança; o

bom conselheiro é um, conspirador em potencial. A qualidade das informações resulta antes

da prudência do príncipe e não se espera que sua prudência resulte dos bons conselhos. o

saber político desloca-se para esse Sujeito onde, prudentemente, é constituída a verdade

possível.

O Príncipe é Sujeito do conhecimento porque simultaneamente é Sujeito político;

é de sua posição que irrompem na sociedade as mais decisivas ações políticas. Entretanto, a

busca incessante de legitimação revela que nem sempre o poder coincide com o príncipe. Ao

analisar os principados, Maquiavel detém-se naqueles de caráter hereditário onde a

13

Idem, ibidem. 14

O Príncipe XXIII.

Page 64: A Guerra de Maquiavel

substituição dos príncipes, solidificada por uma longa tradição, ocorre como se fosse algo

natural. A verdade, porém, é que esses principados fundaram-se sobre a violência e na ruptura

com a Ordem anterior, quando o príncipe novo destroçou o regime estabelecido. A

continuidade dinástica parece natural devido ao esquecimento dessa fundação original.15

Nenhum poder possui garantia absoluta. O príncipe está sempre sob ameaça. Como Sujeito

político sua atividade mais importante é impedir que se destaque na sociedade Um outro

Sujeito adverso que reúna forças de tal modo expressivas que passem a ameaçar sua

autoridade. No último livro dos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel

se propõe a mostrar como simples cidadãos, ao assaltarem o governo estabelecido,

contribuíram para a grandeza romana. Ele não deixa, é certo, de lembrar que os exemplos dos

grandes reis sempre devam ser celebrados, coisa que os historiadores acabam fazendo de um

modo ou de outro. Mas Maquiavel, agora, pretende passá-los em silêncio para deter-se

atenciosamente em gente como Brutus que, ao liquidar com a ditadura dos Tarqüínios, se

transformou no pai da liberdade em Roma.16

Ele descreve a atuação sub-reptícia de Brutus

junto aos governantes, simulando até mesmo a loucura para conquistar-lhes a proximidade e

assim aguardar a melhor ocasião para atacá-los. Em outra oportunidade, Brutus interpreta o

oráculo de Apoio, fingindo cair e beijar a terra e com esse gesto mostrar que os deuses se

inclinavam a favor de seus objetivos, ou ainda, junto ao corpo de Lucrécia, retirar o punhal

que a matara e prometer a seus pais, parentes e amigos que Roma nunca mais voltaria a ter

reis. Brutus é um mestre da simulação e Maquiavel torna-o mais um de seus personagens

modelares: “O exemplo deste homem deve ensinar a todos os descontentes com algum

príncipe que, antes de agir, melhor será pesar por muito tempo suas forças; se elas forem

suficientes para declarar guerra aberta ao inimigo, que a decisão do ataque seja tomada, esta

será menos perigosa e mais honrosa. Mas se não forem suficientes para um ataque aberto, que

se faça todo o esforço para conquistar a amizade do soberano, sem esquecer nenhum dos

meios necessários para este fim: que se partilhe do que dá prazer e que se deleite com as

mesmas volúpias. Esta intimidade terá, antes de mais nada, o efeito de assegurar nossa

tranqüilidade; acompanhando a boa sorte do príncipe, teremos, a cada momento, uma

oportunidade para levar a cabo o que desejamos”.17

Brutus mostra o poder fulminante da

astúcia. Nada de força indiscriminada ou de lances grandiosos, antes a paciência e a

perseverança aliadas ao talento para representar o papel de bobo ou de intérprete dos

15

O Príncipe I, II, III. 16

Discursos III, 1. 17

Idem, ibidem, 2.

Page 65: A Guerra de Maquiavel

desígnios divinos e a habilidade em articular esses procedimentos até atingir o coração do

alvo. Brutus atua como num palco, conhecendo perfeitamente os cenários, os atores e as

relações mais ou menos complexas que possam existir entre si. Entretanto, diferentemente de

um ator, em sua ação política, Brutus unifica o representar e o ser. É um outro sujeito cuja

distância em relação ao poder oscila até o momento de alcançá-lo e tomá-lo para si.

Maquiavel destaca a ação de Brutus porque ele não foi um conspirador que desejasse apenas o

poder. Ele desejava ardentemente a liberdade e, para preservá-la, após a morte dos Tarqüínios,

ele vê-se no dever de condenar seus próprios filhos que ameaçavam sua autoridade e, com

isso, mostrar que sua determinação não possuía meias medidas. A liberdade de Roma

transcendia seu possível amor pelos filhos; daí a famosa lição: “Quem se apodera da tirania e

deixa Brutus vivo é logo derrubado, como também o é quem funda um Estado livre e não

imola os filhos de Brutus”.18

A figura desse Sujeito político, cujo objetivo central é atacar a autoridade

estabelecida, Maquiavel dedica o mais longo capítulo de sua obra política: As Conspirações.

Mesmo que John de Salisbury ou Tomás de Aquino tenham se referido ao direito de um povo

ao tiranicídio, sobre as conspirações nada de semelhante havia sido escrito até a época de

Maquiavel, ao menos com a riqueza de detalhes que ele dá a esse tema. Sabemos das

circunstâncias em que foram escritos os Discursos, e que Maquiavel tinha todo interesse em

que houvesse mudanças em Florença e que se reunia freqüentemente com jovens opositores

ao governo ditatorial e populista dos Médici nos jardins dos Oricellari para comentar a obra

de Tito Lívio e de que Roma era o modelo, o objeto de referência de onde podia buscar os

melhores exemplos para a reflexão política. Nesse restrito grupo de ouvintes, encontravam-se

alguns jovens que mais tarde iriam conspirar contra o governo, numa tentativa que resultou

em fracasso, morte e exílio. Florença, aliás, semelhante à velha Roma, já tinha uma longa

história de complôs, assassinatos políticos, golpes de Estado e revoltas populares. A

conspiração é, portanto, um assunto delicado e perigoso. Tema relevante, pois, segundo

Maquiavel, as conspirações destronaram mais, soberanos do que as guerras.

Ao tratar das conspirações Maquiavel analisa a racionalidade da ação política,

observando-a de duas posições opostas: a da conquista e a da preservação do poder. A figura

do conspirador adquire uma expressão relevante. Ele atua numa atmosfera pesada e

incandescente. Sua ação se desdobra em vários níveis, qualquer deslize significa o fracasso e

a morte, ele depende apenas de si mesmo, o sucesso está determinado por sua capacidade de

18

Idem, ibidem, 3.

Page 66: A Guerra de Maquiavel

preservar o segredo de seu projeto. Deve estar sempre atento às mudanças da conjuntura e sua

repercussão nas relações entre o príncipe e o povo e entre o príncipe e seus ministros ou sua

corte. Deve ser capaz de detectar o nascimento e os limites das crises político-sociais. É, desse

modo, um paciente observador dos fatos e dos comportamentos dos homens capaz de usá-los

como apoio silencioso e indireto, não explícito, pois o conspirador não pode confiar em

ninguém. É o empreendimento político de maior envergadura e o mais solitário. Ao longo de

seu estudo das conspirações, Maquiavel tende a se colocar cada vez mais do ponto de vista do

conspirador, mas sem deixar de voltar ocasionalmente a situar-se do ângulo do príncipe. Essa

oscilação faz com que sua escritura guarde uma tensão que conduz os leitores (ou ouvintes) a

julgar todas as dificuldades e a considerar todos os perigos que uma tal iniciativa comporta.

Por isso, antes que uma defesa do monarca, este capítulo é muito mais um pequeno manual

para conspiradores, dirigido ao círculo dos oposicionistas florentinos. As dificuldades dessa

empresa - alerta Maquiavel - são de tal ordem que é melhor desaconselhá-la sempre e para

aqueles que desejam levá-la adiante talvez seja melhor “obedecer ao governo que a fortuna

lhes destinou”19

, pois, se é verdade que poucos podem declarar guerra ao príncipe, mas que

todos podem conspirar contra ele, é necessário, porém, lembrar que pouquíssimas

conspirações têm sucesso.

Depois de chamar a atenção sobre os perigos de tal empreendimento para, assim,

definir melhor seu objeto, Maquiavel procura examinar as conspirações na sua origem. De

todas as causas possíveis, a que sobressai de imediato é a do ódio geral do povo contra um

príncipe: Esse sentimento disseminado pela sociedade facilita que os cidadãos mais ofendidos

pelo soberano levem adiante seus desejos de vingança. A indignação popular cresce quando

um príncipe desrespeita os menores direitos, ataca os bens e a honra dos homens; ou ainda

quando uma longa opressão por parte do príncipe cria na população o desejo de liberdade.

Mas, se, na tirania, por não serem respeitadas as leis e os costumes, cria-se a insatisfação que

dá origem aos conspiradores, isto não significa que seja muito distinto nas repúblicas

corrompidas onde também cresce pelo conjunto dos cidadãos a disposição de conspirar contra

o governo. Maquiavel afirma que também nas repúblicas existem muitos caminhos para se

chegar à tirania. As repúblicas são mais abertas e livres e, por conseguinte, têm menos

precauções, além de serem mais vagarosas nas resoluções e de distinguirem em excesso os

cidadãos, tornando-os ambiciosos e empreendedores.20

Portanto, não há poder, por mais

tirânico que seja, que não esteja à mercê de alguma conspiração; nem há leis tão democráticas

19

Discursos II, 6. 20

Discursos III, 6.

Page 67: A Guerra de Maquiavel

e eficientes que não possibilitem, de algum modo, a sua transgressão. Não importa qual a

forma de governo, há sempre espaço para a contestação e a rebeldia; o Sujeito político e as

leis guardam uma distância, uma fissura que nunca é preenchida completamente. Há sempre

um mínimo de autonomia que abre condições para a ação contra a autoridade estabelecida. É

neste espaço mais ou menos restrito que atua o conspirador. E os conspiradores são

geralmente homens muito próximos aos príncipes, capazes de acompanhar todos os seus

passos e suas reações. As dificuldades, entretanto, são extremas e ocorrem antes, durante e

depois das conjuras. O perigo da revelação cresce com o número de seus participantes por

serem maiores as chances do segredo ser descoberto. O conspirador reúne a coragem física e a

fortaleza de espírito. Deposita em si mesmo a mais alta confiança, pois, se der mostra de uma

“consciência pesada”, é porque carrega seu próprio delator, o que poderá levá-lo a fraquejar

nos momentos decisivos de sua ação. Ele tem de estar rigorosamente preparado para os

acontecimentos imprevistos, capazes de mudar o rumo de seus planos. Por esses motivos,

Maquiavel trata a conspiração como o ponto culminante da política. Sobre a figura do

conspirador, uma consideração de Claude Lefort contribui para mostrá-lo como o outro

Sujeito do conhecimento político: “No conspirador, portanto, melhor que no príncipe, se

revela o Sujeito político; pois ele é por excelência aquele que não dispõe de quaisquer

garantias exteriores, que não conta com O apoio nem dos homens nem das instituições, que

tem contra si a força do Estado e a do costume. Mas de que modo ele é Sujeito? É que,

precisamente, ele enfrenta a maior indeterminação no momento de sua ação, é porque ele se

subtrai, se desvia da dominação do real, do domínio da lei e da dominação de seus próprios

desejos para fazer valer a verdade de seu projeto. Em outras palavras, é assim que o Sujeito se

torna agente de um novo caminho, que rompe com a ordem das coisas estabelecidas”.21

As críticas mais atualizadas que se preocuparam com a questão do

Sujeito do conhecimento, além do trabalho decisivo de Claude Lefort,

são as de Gérald Namer e as de Lars Vissing. O primeiro busca em

Maquiavel os indícios da moderna sociologia do conhecimento e,

portanto, uma teoria dos interesses sociais; o segundo encontra na

obra maquiaveliana uma verdadeira teoria da aparência política.

21

LEFORT, op. cit., p.618.

Page 68: A Guerra de Maquiavel

A ORIGEM DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO22

Em sua tese, Gérald Namer afirma que Maquiavel é o fundador da sociologia do

conhecimento como a ciência do saber desigual. Ele teria feito os primeiros estudos dos

interesses sociais bem antes da aparição do conceito de ideologia. Maquiavel se inscreve na

história das correntes pré-sociológicas corno o teórico que abordou os conflitos e as formas de

integrá-los. Diferentemente do enfoque de urna sociologia dualista (própria de algumas

versões do marxismo) e, seguindo os passos de Maquiavel, Namer orienta-se para aquela que

focaliza três personagens centrais e as suas relações: a nobreza, o povo simples e o Estado. O

saber desses três elementos é diferentemente repartido. O objetivo de Namer, entretanto, não é

apenas mostrar as diferenças entre os níveis mas também os processos de legitimação desses

conhecimentos e de como todos eles são dominados e conduzidos pelo saber político,

expresso na racional idade da tecnologia política genuína detentora desse saber, uma vez que

“o príncipe só conserva a hegemonia do conhecimento político e a autoridade de seu

pensamento racional e casual, tomando emprestado aos dominados sua linguagem moral ou

religiosa; é graças a sua dissimulação e a sua dupla linguagem que a ideologia permanece o

apanágio dos dominados; é pela ciência do príncipe e por sua criatividade, sua Virtú, que se

poderia evocar a célebre assertiva de Marx e dizer que a ideologia dominante não é mais do

que a ideologia das classes dominadas”.23

É, portanto, o monopólio dessa ciência do saber

desigual que forja as vigas mestras do poder político. A sociologia fundada por Maquiavel

renega a metafísica, uma vez que não há modelos ideais que substituam a prática como

instância determinante. O príncipe compreende as relações humanas a partir de sua prática e

não a partir de valores pré-estabelecidos; O problema central é que a sociedade é perpassada

por conflitos e o príncipe atua como um mediador ou regulador deles. A sociedade dilacerada

por duas grandes forças encontra-se dominada por uma terceira força que, pela sua posição,

tem condições de integrá-las. É, portanto, o príncipe, como o Terceiro Homem, que retém um

conhecimento privilegiado que lhe dá condições de controlar os dominados, manipulando as

ideologias que expressam as contradições da sociedade. Essa manipulação de um saber maior

sobre os conhecimentos não científicos do povo ou aristocracia é a condição básica para

preservar o Estado. Desse modo a sociologia do conhecimento trata das diferenças ou das

hierarquias dos conhecimentos do dirigente e dos dirigidos. “O príncipe tem um

22

NAMER, Gérard. Maquiavel ou As Origens da Sociologia do Conhecimento. São Paulo, Editora Cultrix,

1982. 23

NAMER, op. cit., p.2.

Page 69: A Guerra de Maquiavel

conhecimento racional das ideologias. Este conhecimento exclusivo compreende um

momento teórico, a redução da ideologia a causas concretas, que são da ordem do interesse

das classes em presença, e um momento prático que consiste em reduzir esses obstáculos,

jogando com a sociologia dos interesses”.24

É assimetricamente que o conhecimento é distribuído e o maior entre todos é o da

arte da guerra, mas há todavia o conhecimento moral que se preocupa fundamentalmente com

a origem e eficacidade da moral. Não há apenas uma moral mas muitas delas e também

muitas maneiras de conhecê-las que mudam segundo as classes, grupos ou formas sociais. A

posse desse saber moral é um dos instrumentos principais de qualquer príncipe que, munido

das diversas técnicas de dissimulação, buscará preservar sua legitimidade. O príncipe deve

sempre agir como se seu comportamento fosse moral embora esconda intenções que, se

expostas ao público, seriam imorais. Neste sentido há como que um abismo entre o príncipe e

o povo, uma vez que este deseja preservar sua segurança e confia plenamente na honestidade,

integridade e veracidade como valores absolutos. Ocorre que, para o príncipe, a moral está

submetida à ação política que é, de fato, o que determina seu comportamento e suas ações

sem que haja um dever-ser necessário para orientá-lo: “Em verdade há tanta diferença de

como se vive e de como se deveria viver que aquele que abandona o que faz pelo que se

deveria fazer, aprende antes o caminho da ruína que o da preservação”.25

O domínio do

político instrumentaliza a moral e a perversidade resulta num dever para o príncipe. Namer

afirma que é justamente a ética da perversidade que diferencia o príncipe do povo. Enquanto o

povo tem apenas um conhecimento passional, o príncipe aplica racionalmente a

perversidade.26

A religião é uma manifestação social que é sempre vista de fora. O príncipe é o

ponto referencial onde a religiosidade é julgada e interpretada. Aliás a análise da função social

da religião é um dos marcos da obra maquiaveliana. A eficácia da religião, na vida pública é

tão determinante que, sem cuidar dela, nenhum príncipe ou Estado poderá persistir. Não mais

se trata de disputas teológicas de dogmas ou princípios, mas antes do seu uso, de

compreendera sua função na economia do imaginário dos homens e de coordenadora da vida

política. “A religião oferece um temor interiorizado que prepara os homens para submeter-se

à força do príncipe como a um valor: ela possui uma continuidade e uma duração que, como a

24

Idem, ibidem, p.56. 25

O Príncipe IV. 26

NAMER, op. cit., p.25.

Page 70: A Guerra de Maquiavel

linguagem alicerça a memória coletiva”.27

Os violentos ataques de Maquiavel ao Cristianismo

acontecem nessa direção. Para ele o cristianismo é o principal responsável pela degeneração

de seu tempo, pela pobreza da Virtú nos homens, pelo amolecimento de sua bravura e

pauperização de sua vida ativa. A religião cristã decaiu a tal ponto que praticamente esqueceu

as lições de seu fundador. A Igreja representa substancialmente essa queda; pois são os povos

situados nas proximidades de Roma aqueles menos religiosos. Os princípios de cristandade

derruiram-se por completo na época dos Bórgias. A Igreja se tornara um antro de

imoralidades que lhe retirara a confiabilidade e enfraqueceram a devoção e o respeito. Mas

como se isto não bastasse, a Igreja - sem religião e sem moral - ainda contribuiu para a divisão

entre as cidades italianas, jogando-as umas contra as outras ou aliando-se a interventores

estrangeiros. A acusação é dupla: a religião cristã corrompeu-se e a Igreja, que a representa.

arruinou completamente a Itália. Bem antes das marteladas de Nietzsche, Maquiavel ataca o

ponto nevrálgico da piedade cristã. Comparando-a com a religião pagã, ele afirma que “nossa

religião, mostrando a verdade e o caminho único para a salvação, diminui o valor das honras

deste mundo” ou ainda “ela só santifica os humildes, os homens inclinados à contemplação e

não à atividade prática. Para ela, o bem supremo é a humildade, o desprezo pelas coisas do

mundo”, ou “esta moral nova tornou os homens mais fracos, entregando o mundo à audácia

dos celerados. Estes sabem que podem exercer sem. medo a tirania, vendo os homens prontos

a sofrer sem vingança todos os ultrajes, na esperança de conquistar o paraíso”.28

Para

Maquiavel, portanto, o Cristianismo só podia dar no que deu: a corrupção do povo e das

instituições. Tendo sua sede na Itália, estraçalhou o país. Se a Santa Sé fosse transferida para a

Suíça ou a Alemanha, imediatamente corromperia também estes países. Atuando não para

formar a virtude verdadeira, estas falsas interpretações cristãs estragam a educação dos

homens, que, diferentemente dos velhos tempos, perdem a coragem das iniciativas e o amor à

liberdade.

É, portanto, de uma posição totalmente secularizada que Maquiavel discorre sobre

a religião. Não nega sua função social e política; ao contrário, procura mostrar sua

importância na formação de uma comunidade ou povo. Novamente é da civilização romana

que tira seu modelo. A função elementar da religião é focalizada, quando Maquiavel relata

que após a morte de Rômulo, seu sucessor, Numa, encontrou um povo rude e bravio e que

para impor-lhe a obediência civil (obedienze civili), para que pudesse conviver em paz,

“voltou-se para a religião como o agente mais poderoso da manutenção da sociedade,

27

Idem, ibidem, p. 22. 28

Discursos II, 2.

Page 71: A Guerra de Maquiavel

fundando-a sobre tais bases que nenhuma outra república demonstrou maior respeito pelos

deuses, o que facilitou todos os empreendimentos do Senado e dos grandes homens que

aquele Estado viu nascer”.29

A religião medeia e regulariza a vida social uma vez que é como

uma válvula de escape às suas tensões; É imprescindível para dirigir os exércitos, levar a

concórdia aonde o povo travou lutas dilacerantes, curar chagas abertas por disputas familiares

ou de grupos, levar segurança e consolo, reconfortar na vida e na morte. Nenhum grande

legislador outorgou leis eficientes sem apelar para os deuses. Maquiavel reconhece que era

mais fácil em tempos remotos fundar um Estado ou um código de boas leis porque os

habitantes eram rudes montanheses, enquanto que, nos tempos atuais, isto seria muitíssimo

difícil pelo grau de corrupção dos costumes. Os exemplos tomados dos romanos não se

situam apenas a partir do Estado ou do legislador, mas do próprio povo, uma vez que é na

religião que se revela a diferença entre os antigos e os modernos cristãos. Os pagãos

perseguiam, acima de tudo, a glória; seus ritos e cerimoniais eram quase sempre violentos e

cruéis, o que excitava a coragem; atribuíam igualmente muitas honrarias a capitães ou chefes

de Estado gloriosos por suas ações militares ou políticas. Era uma religião civil e, como tal,

expressava o amor à liberdade dos homens. O cristianismo, porém, é uma religião de subser-

vientes e escravos.

É a independência de análise do fenômeno religioso que dá ao príncipe as

condições de usá-lo ou manobrá-lo em benefício da perseveração de seus interesses. Ocorre

que o conhecimento religioso também é desigual e é o príncipe o portador da maior dimensão

da sua verdade. Ele é o árbitro capaz de julgar sobre sua utilidade, pois se a religião é falsa o

príncipe poderá, segundo seu interesse, desmascará-la ou fazer crer que a aceita como

verdadeira sabendo que não o é. Nas palavras de Namer, “a religião é um instrumento político

na medida em que o príncipe consciente se apóia numa diferença de hierarquias nos co-

nhecimentos, sua arma política por excelência; entre o povo, a religião domina a política, no

príncipe é o conhecimento político que domina o religioso”.30

O traquejo do príncipe reside

em não partilhar seu poder, mantendo uma relação assimétrica com os súditos; para preservar

a desigualdade ele terá de dissimulá-la.

É com o domínio da técnica da aparência que o príncipe buscará legitimar sua

prática. Enquanto terceiro partido ele tem de usar as imagens como num jogo de espelhos

onde as diversas classes ao mirarem-se neles vêem sempre o seu próprio reflexo, sua

29

Discursos I, II. 30

NAMER, op. cit., p. 27.

Page 72: A Guerra de Maquiavel

identidade ilusória, pois a ideologia do dominante é assegurada, empregando de modo

racional a ideologia dos dominados.

Page 73: A Guerra de Maquiavel

A POLÍTICA DA APARÊNCIA31

Maquiavel é o primeiro pensador a discernir nitidamente a importância da

aparência na ação política e a formular para ela uma teoria. Para Lars Vissing tanto o estudo

de Lefort como o de Namer, embora tenham tratado desse assunto, não conseguiram mostrar

seu aspecto radicalmente inovador por não considerarem os distintos significados dos

conceitos de parecer (parere) e engano (inganno), o que prejudicou uma melhor focalização

do problema do ilusionismo como ceme da política. Numa completa inversão dos grandes

filósofos anteriores como Platão e Aristóteles e seus sucessores mais ou menos expressivos,

cujas teorias do conhecimento tratavam fundamentalmente da crítica das aparências, o

objetivo de Maquiavel foi o de tratar não apenas do ser mas do parecer, mostrando que o

primeiro é de tal forma recoberto por este último que é estabelecer rigorosamente os limites

de um ou de outro. A de Vissing é articulada sobre algumas hipóteses que o ajudam a

delimitar a função das aparências na obra maquiaveliana. Segundo ele, a teoria do Parecer já

fora concebida nas reflexões de Maquiavel anteriores à sua destituição do posto de secretário

da Chancelaria Florentina e de seu exílio em San Casciano; esta teoria também se encontra

presente em outras obras de Maquiavel que comumente não são citadas.

Para Vissing, a concepção maquiaveliana é que a técnica do inganno, visa a

solucionar os problemas imediatos, enquanto a teoria do parem trata mais amplamente do

terna central da ação política: a duração ou preservação do poder. E, desse modo, é possível

mostrar os estreitos laços que unem as aparências com a credibilidade da autoridade política.32

As considerações de Vissing são tecidas a partir de uma atenta leitura de toda

correspondência administrativa de Maquiavel. É um estudo estatistíco-lexográfico de mais de

mil notas, despachos e comunicados, onde o autor crê encontrar todos os indícios - antes ainda

da redação de O Príncipe - de uma verdadeira pedagogia do parecer político. Mas a relevância

da teoria das aparências só poderá ser discernida se se desviar da influência da maioria das

obras posteriores e assim ir ao encontro ao maquiavelismo primitivo que se encontra na

correspondência maquiaveliana e, desse modo, circunscrever o que constantemente reincide

nesses escritos como a questão do parecer (parere); “pois a questão das aparências, da ilusão,

da dissimulação, mantêm uma relação estreita e sempre presente com as constantes da

incidência crítica posterior”.33

Isto é, todas as vicissitudes da obra de Maquiavel bem como as

31

VISSING, Lars. Machiavel et la politique de l‟Apparence. Paris, PUF, 1986. 32

VISSING, op. cit., p. 35. 33

Idem, ibidem, p. 20.

Page 74: A Guerra de Maquiavel

posteriores dos seus comentadores não conseguem dissociar ou desviar a questão das

aparências como um elemento decisivo nos processos e desdobramentos interpretativos

fundados nesse maquiavelismo primitivo que se manifesta na duplicidade e na dissimulação.

A formulação da teoria da aparência ocorre no momento onde as alterações

econômico-sociais desmantelam a sociedade medieval e diminuem o campo religioso e, em

conseqüência, a dimensão do transcendente e privilegiam o reino deste mundo.

Transformações ocorrem em todas as atividades humanas, da filosofia à arte, da natureza à

política. Rompe-se uma cultura milenar onde a ordem natural fora incorporada à ordem

sobrenatural. O renascimento é, antes de tudo, a reabilitação do real. Esta reabilitação se

expressou em profundas alterações nas representações que os homens passam a fazer desse

novo mundo. A constituição de uma teoria da aparência política expressa igualmente as novas

formas dos ritos do poder. Uma nova concepção da realidade carregava junto uma outra

ordem de representação dessa realidade. “Diante da reabilitação do Real, que já não é mais

visto como uma espécie de véu pelo qual as forças sobrenaturais poderiam tentar ludibriar o

homem, passa a existir agora também a da figuração. Reabilitação através da qual a aparência

adquire sua autonomia representativa sendo considerada de ora em diante em função das

técnicas figurativas que põe em movimento. Um parecer humanizado situa-se não mais num

absoluto de uma representação plenipotenciária da coisa, mas em maior ou menor medida na

própria técnica”.34

Como não há mais um referencial externo e absoluto, os referentes mudam

conforme o ângulo de que são vistos. Existe uma multiplicidade enorme de representações

possíveis. Há agora uma vasta mobilidade do objeto em relação ao sujeito e vice-versa. O

objeto pode dar origem a muitas imagens representadas a partir de lugares diferentes. A teoria

da aparência de Maquiavel surge na época das investigações sobre a perspectiva na

arquitetura e principalmente na pintura onde se procurava no espaço bidimensional do quadro

produzir o inganno de uma terceira dimensão, a da profundidade.

A relação entre a ordem das aparências e o real é de tal forma mediada que não é

possível reduzira imagem à coisa e sim reconhecer a autonomia entre ambas. A teoria da

aparência tem como objeto a autonomia dos significantes e assim pode ser empregada para

alterar o sentido segundo os interesses dos sujeitos políticos, ou como diz Vissing: “Entre o

Real e sua representação existe uma escala de possíveis relações diferentes, e a escolha de um

tipo de relação, ocorre em função de estratégias e táticas políticas perseguidas pelo detentor

da palavra. O significante pode efetivamente representar o Real. Mas pode igualmente

34

Idem, ibidem, p. 182.

Page 75: A Guerra de Maquiavel

precedê-lo ou deformá-lo, ou ainda contradizê-lo, ultrapassá-lo ou substituí-lo, buscando criar

um outro Real”.35

Aliás, Maquiavel foi um mestre no emprego desta técnica, deformando e

recriando acontecimentos históricos e políticos como se fossem literários. César Bórgia que,

na verdade era mais um entre as centenas de condottieri do seu tempo, tem sua imagem

distorcida e ampliada por Maquiavel para dar a idéia ao leitor de uma figura majestática.

Castruccio Castracani, que foi um simples capitão luquense, tem sua vida relatada, em grande

parte, como ficção, os homens públicos romanos também são tratados de forma a influir na

imaginação do leitor e conduzi-lo a aceitar as idéias que o escritor deseja defender. Muitas

informações clássicas ou modernas mudam de sentido com a escritura maquiaveliana e até

mesmo Tito Lívio, o historiador romano, torna-se mais um dos personagens de Maquiavel.36

A correpondência administrativa de Maquiavel mostra, segundo Vissing, um

emprego abundante do par inganno/parere e seus sinônimos. Mas o uso dessas palavras

ocorre sempre em planos distintos. Enquanto os inganni são empregados num plano tático,

diante das circunstâncias imediatas ou empíricas, o parere é empregado num sentido mais

amplo e geral para designar os objetivos maiores, nas formas de Estado e na sua legitimação.

A autonomia das aparências chega a tal ponto que se constitui num universo

vastamente dominado por processos miméticos onde a “verdade aparece como inteiramente

subordinada à argumentação, como um apoio ocasional na estratégia da ação política: um

elemento em meio aos outros - útil, mas não necessário - na construção das aparências”.37

Entretanto, a autonomia não é total. A colonização do real pelo fictício não significa,

evidentemente, que a teoria das aparências não tenha objetivos específicos com o da

preservação da autoridade do príncipe ou como justificadora das diferentes formas de

governo. Para isso, terá de jogar com o real revelando-o, ocultando-o, distorcendo-o, apelando

à razão não porque esta mostre a verdade, mas apenas para lhe emprestar a fachada. Acontece

que é pelo mundo das aparências que se tem acesso ao mundo real. Não se trata do confronto

simples e direto, bruto, de forças políticas, mas de suas representações. Dominá-las significa

possuir habilidades (Virtú) para amortecer, desviar, mudar as representações dos outros

sujeitos possíveis. É por isso que o inganno na obra maquiaveliana aparece colado aos fatos e

o parere surge com as reflexões sobre a complexidade das estratégias, instância onde os fatos

são relacionados e julgados. A técnica das aparências expressa um domínio indireto sobre os

35

Idem, ibidem, p. 63. 36

Sobre as deformações realizadas por Maquiavel, LEO STRAUSS. Pensées sur Machiavel. Paris, Payot, 1982,

p.158, 161 e 184. 37

VISSING, op. cit., p. 83.

Page 76: A Guerra de Maquiavel

acontecimentos. Este domínio é o do sujeito de “uma vontade particular capaz de decidir o

que deve ser atribuído ao Real e aos signos... a ação política é feita de montagens,

ornamentos, encenações e representações de idéias em função de motivos precisos; bem como

o inverso dessa ação: a desmontagem das operações similares feitas pelos adversários”.38

A teoria das aparências está vinculada ao interesse fundamental do Príncipe que é

a preservação de sua imagem ou reputação; isto ocorre em vários níveis desde a perspectiva

militar à econômica, da jurídica à religiosa. A reputação para ser eficaz deve ser montada e

encenada como num teatro, pois mesmo os príncipes que realizaram grandes feitos têm

necessidade de preservar sua memória e assim manter sua imagem original. Este trabalho

cenográfico, persistente e meticuloso, pode ser a qualquer momento anulado pelas

representações adversárias, pois mesmo que a força do real (realitá effetuale) seja o

fundamento, a ilusão instaura uma zona decisiva na disputa política, onde a própria

eficacidade sobre o real deve-se ao bom emprego das aparências. Mas a eficácia das

aparências sobre os fatos sociais é um monopólio do príncipe enquanto Sujeito do

conhecimento e da política.

38

Idem, ibidem, p. 84.

Page 77: A Guerra de Maquiavel

A GUERRA DE MAQUIAVEL

“Maquiavel rompe com a Grande Tradição

e inaugura o Iluminismo. Devemos considerar,

entretanto, se o Iluminismo merece aqui

levar esse nome ou se, ao contrário, não é

o de Obscurecimento o nome que melhor convém.”

Leo Strauss - Pensées Sur Machiavel

A filosofia política encontra-se em nosso tempo num estado de decadência e

talvez de putrefação, se é que já não desapareceu totalmente1. Este processo de definhamento

iniciou na Renascença e seu fomentador inconteste foi Nicolau Maquiavel. Ele é responsável

por ter subsumido a moral na política, ter baixado o nível dos fins morais, restringindo desse

modo o dever ao ser e colado os juízos de valor à vertigem dos fatos. Para Leo Strauss, a

ruptura maquiaveliana originou os dois grandes movimentos teóricos que abriram caminho

aos desastres e aos impasses da modernidade. O positivismo e o historicismo resultaram na

barbárie do nazismo e do estalinismo com seus holocaustos, massacres de povos e devastação

do meio ambiente e, agora, levam a humanidade à proximidade de uma guerra atômica que

poderá significar o extermínio total da espécie. O genuíno pensamento político parece ter

sumido em meio ao predomínio do social e este, por sua vez, caminha para a indiferença das

maiorias silenciosas.2 Como escapar ao paradoxo de que o mais elevado desenvolvimento

técnico e científico assim como as novas formas de consciência social tenham conduzido o

homem moderno ao beco sem saída em que, parece encontrar-se? Strauss propõe o retorno ao

pensamento clássico dos filósofos gregos como o único modo de escapar à perdição iniciada

por Maquiavel. Nosso objetivo é mostrar como o ponto de vista de Strauss é insustentável ao

desconsiderar a abertura que a modernidade possibilitou ao homem para pensar-se a si mesmo

e ao mundo sob uma luz nova e distinta dos elementos elitistas e dogmáticos da Grande

Tradição greco-cristã. Trata-se, portanto, não de condenar a façanha de Maquiavel como um

estreitamento - como entende Strauss - mas um verdadeiro alargamento do horizonte do

pensamento sobre o ser do político.

A obra de Leo Strauss - assim como a de Hannah Arendt e Eric Voeglin -

pretende ser uma crítica abrangente da modernidade, e, neste caso, ela é forjada na esteira do

pensamento de Martin Heidegger. Embora Heidegger não tenha escrito obras explicitamente

políticas suas reflexões apontam o homem ocidental submetido a um radical “esquecimento”.

1

2

Page 78: A Guerra de Maquiavel

As vigas mestras sobre as quais se formou nossa civilização dominada pela ciência e pela

técnica estão assentadas na constituição onto-teológica da metafísica ocidental cujo

desenvolvimento significou o ocultamento do ser. É nesta longa história de esquecimento do

Ser que foram criadas as representações da filosofia. Assim a pergunta pelo homem, por

exemplo, não pode ser compreendida sem a prévia interrogação pelo Ser. Se todo o

humanismo - em suas concepções cristãs, marxistas, etc. - funda-se numa metafísica ou é

fundamento de alguma, o que Heidegger tem em vista é questionar esse fundamento mesmo e,

portanto, superar a metafísica tal como ela tem permanecido desde Platão até nossos dias, pois

“por mais que se distingam as espécies de humanismo, segundo suas metas e fundamentos,

segundo a maneira e os meios de cada realização, segundo a forma de sua doutrina, todas elas

coincidem nisto que a humanitas do homo humanus é determinada a partir do ponto de vista

de uma interpretação fixa da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo, e isto

significa, desde o ponto de vista do ente em sua totalidade”.3 Para escapar ao domínio dos

entes Heidegger tematiza os fundamentos da metafísica buscando seu nascimento como a

manifestação da perda do pensamento originário dos sábios gregos que vieram antes da época

socrática. A discussão sobre o humanismo só poderá ser levada a cabo à luz da diferença

ontológica que separa os entes do Ser originário. Os impasses da racionalidade instrumental

que domina as sociedades socialistas ou capitalistas modernas devem-se ao esquecimento ou

ao velamento da questão mais fundamental do Ser. Não é o caso nos determos com mais

detalhes no pensamento heideggeriano, mas apenas mostrar, de passagem, como seu

“paradigma” influenciou as reflexões de Strauss sobre a política com a idéia de algo que foi

perdido ou esquecido e que, por isso, resultou na situação embaraçosa em que se encontra o

homem moderno. Como bom aluno, Strauss reconhece sua dívida para com o mestre, mas isto

não o impede de considerar o pensamento de Heidegger como um dos representantes

máximos do niilismo contemporâneo ao atacar as representações da filosofia ocidental

inclusive as obras de Platão e Aristóteles que Strauss considera os fundadores da verdadeira

reflexão política. Nessa viagem para trás Heidegger foi longe demais e acabou no

despenhadeiro do niilismo. De qualquer modo há um ponto em comum entre ambos: a

rejeição da modernidade. Para Heidegger porque ela, em meio á multiplicidade dos entes,

esqueceu ou ocultou o ser; para Leo Strauss porque os tempos modernos deturparam a

filosofia clássica fundada no direito natural pela intervenção dos filósofos atenienses que a

3

Page 79: A Guerra de Maquiavel

desenvolveram, dos teólogos medievais que, em certo sentido, a preservaram e que,

finalmente, veio a ser pervertida por Maquiavel.

Diante do “imperialismo da subjetividade” da metafísica pós-maquiaveliana que

determina a nossa civilização planetária, Strauss recorre à antiga noção de direito natural

como padrão que permite julgar nossa sociedade ou qualquer outra. Abandonar a idéia de

direito natural significa “cair num relativismo sem limites” ou “reconhecer que todo direito é

positivo, isto é, que o direito é determinado exclusivamente pelos legisladores e os tribunais

de diferentes países”.4 O direito natural se caracteriza por não depender da vontade ou ação

humanas e por isso ele é um padrão que permite separar o ser do dever-ser, o justo do injusto.

Todo o direito positivo deve ser a ele referido; pois sem este padrão de medida ou referência

os princípios que dirigem as sociedades seriam forjados pelo simples reconhecimento que elas

teriam de si mesmas o que significa que os princípios dos canibais seriam tão defensíveis

quanto os homens civilizados. Sem um padrão externo e fixo não se poderia determinar se um

princípio é verdadeiro ou falso. Leo Strauss afirma que se os ideais de nossa sociedade são

históricos e mutantes apenas “um triste e singelo hábito nos impediria de aceitar com toda

tranqüilidade a evolução rumo ao estado dos canibais. Se não existe um padrão mais elevado

que o ideal de nossa sociedade, nós seremos totalmente incapazes de poder diante deles fazer

o recuo suficiente para o julgamento crítico”.5 Ocorre que a elisão do direito natural pelas

modernas ciências naturais e a filosofia social levou ao relativismo e ao niilismo e a passagem

destes ao obscurantismo fanático das ideologias políticas. Numa época tomada pelo império

da subjetividade e “as experiências por ele provocadas, tudo isso forçou o renascer do

interesse geral pelo direito natural”.6 Para Strauss, o ocultamento do direito natural iniciou

com o rebaixamento do padrão por obra de Maquiavel e que deu origem a duas concepções

poderosíssimas; a de que a verdade é produzida pela história e a de que os fatos e os valores

são absolutamente independentes, separados por um abismo intransponível. Modernamente o

direito natural tornou-se injustificável visto que a história e a etnologia nos mostram a

variedade de valores que mudam de. cultura para cultura e com o passar do tempo. O

historicismo tornou a noção de justiça fluida e instável. Isto resultou no esfacelamento de

normas transcendentes que poderiam servir de base, padrão ou medida para a formulação do

melhor regime político. “Ao recusar - diz Strauss - a significação ou mesmo a existência das

normas universais a escola histórica destruiu as bases sólidas de todo esforço sério para

4

5

6

Page 80: A Guerra de Maquiavel

transcender a atualidade”.7 A perpétua fluidez da história impede que dela se tirem normas

objetivas pois estas são constantemente dissolvidas e tragadas pela mudança dos

acontecimentos. A historicidade dos critérios torna impossível discernir um sentido para a

própria história. Desse modo cada época tem seus critérios para interpretar-se, e, como não há

critérios fixos, tudo recai nos julgamentos puramente subjetivos e, assim, o esforço de pensar

os eventos depende pura e simplesmente do acaso. Desse modo os critérios são forjados

livremente pelos indivíduos que decidem sobre o que é bom e o que é mau. Parodiando

William Shakespeare, Strauss afirma que, desse modo, a vida é uma história recontada por um

idiota. “O historicismo desemboca inevitavelmente no niilismo. Os esforços para instalar o

homem neste mundo acabam por exilá-lo”.8 A volubilidade dos critérios que resulta da

posição historicista elimina a condição do direito natural em dar um sentido externo aos

movimentos históricos. A própria tese historicista está submetida à incapacidade de

fundamentar-se a si mesma, pois se toda a concepção é historicamente situada, pode-se

considerar que o historicismo venha a ser substituído por outras concepções novas e

imprevisíveis. Não há como fundamentar na história a tese historicista, a não ser que seja

possível fixar o pensamento humano no acaso, ou no imprevisível, onde não há lugar para

princípios imutáveis e, portanto, acessíveis e evidentes. Ora, o historicismo radical é uma

petição de princípio para não dizer que sua tese é absurda. Strauss recusa-se a admitir que

nada possa transcender a história ou que o pensamento não possa aprender nada de trans-

histórico. O historicismo torna-se impotente para compreender objetivamente as civilizações

ou etapas históricas, pois supõe que as sociedades são “legítimas” desde que construam elas

mesmas seus padrões de julgamento. A sociedade grega, romana, egípcia, feudal ou

capitalista, bem como organizações de piratas ou generais, maçonarias ou seitas, grupos punk

ou new wave reivindicam para si os únicos critérios de juízos corretos e o resultado é o mais

exacerbado relativismo. “Conseqüentemente existe uma pluralidade de visões tão legítimas

entre as quais devemos escolher sem os conselhos da razão (pois esta permanece sempre no

vazio). Entretanto, nós não podemos nos furtar e permanecer neutros, pois suspender nosso

julgamento é totalmente impossível. Nossa escolha não tem qualquer suporte senão em si

mesma, ela não repousa sobre uma certeza objetiva ou teórica; só nossa decisão salva-a do

nada, da completa ausência de significação”. É em tal situação, continua Strauss, “que somos

livres de escolher em meio à angústia nossa visão do mundo ou os critérios que o destino nos

7

8

Page 81: A Guerra de Maquiavel

impõe, ou então nos abandonar numa segurança ilusória ou no desespero”.9 É a insustentável

leveza do dever-ser. Face a essas dificuldades do historicismo é que Strauss busca no direito

natural como foi concebido pela filosofia clássica o fundamento não-historicista de uma

crítica à modernidade.

Outra poderosa ameaça à filosofia política parte do positivismo ao afastar fatos e

valores. Ele surge com o desenvolvimento das ciências naturais - principalmente a partir dos

séculos XVII e XVIII - quando elas transferem seu modelo para as nascentes ciências sociais

ou políticas; Para Strauss, entretanto, as ciências naturais ou sociais são fundamentalmente

não filosóficas; a metodologia cientificista nada tem em comum com a filosofia tal como

Sócrates a concebera. O positivismo também não possui uma resposta satisfatória à mais

elementar e decisiva questão da filosofia política: como o homem deve viver? A flutuação dos

valores afasta a possibilidade de definir critério de referência para a vida ativa. Strauss

entende que a obra de Max Weber expressa claramente este conflito; se de um lado Weber

assume a posição da escola historicista, por outro, ele rejeita qualquer princípio não retirada

dos fatos como metafísico. Desse modo “seus juízos de valor são históricos e relativos; por

conseqüência, a ciência social é essencialmente histórica, pois são nossos valores e a

orientação de nosso interesse que determina todo o quadro conceitual das ciências sociais. Por

conseguinte, falar de um quadro natural de referência, procurar um sistema definitivo de

conceitos fundamentais nada significa. Todos os esquemas de referências são efêmeros”.10

Mas, ao confirmar o caráter passageiro da multiplicidade de valores, Weber também

reconhece a existência de valores essenciais; seu pensamento também está marcado pela

herança neo-kantiana que considera o dever-ser irredutível ao ser; isto é: que os valores

jamais poderão ser inferidos dos fatos. É esta irredutibilidade entre fatos e valores que torna

viável a consolidação de uma ciência social neutra que tem por objeto as relações causais a

que estão submetidas as sociedades embora seja incapaz de enfrentar a questão dos valores,

posicionando-se com relação a eles. Weber não descurou da função dos valores na sociedade,

seu esforço foi tentar situar-se numa instância que deles estivesse isento. Para compreender

cientificamente os valores de uma sociedade o sociólogo tem de permanecer independente

deles. A ciência social, quando muito, poderia mostrar as contradições internas nas

constelações dos valores. Pode-se ter um conhecimento objetivo dos fatos, mas nunca

conhecimentos autênticos do dever-ser. Com isto, observa Strauss, Weber posta-se na tradição

relativista da modernidade, pois, recusando ao homem a possibilidade de um conhecimento

9

10

Page 82: A Guerra de Maquiavel

efetivo dos valores, deixa-o entregue aos conflitos normativos que não podem ser resolvidos

pela razão e, assim, a ciência social, embora possa esclarecer tais conflitos, deixa sua solução

para a ação livre de cada sujeito. Sem fixar-se em instância alguma esta liberdade

individualizada é a verdadeira face do niilismo. A continuidade do niilismo não se deve à

escassez de boas intenções dos indivíduos ou grupos, das causas nobres ou louváveis que

possam ter, mas simplesmente porque elas não têm qualquer apoio na realidade. Max Weber

também rejeita qualquer previsão de validez objetiva aos valores porque as normas fixas e

objetivas são totalmente distintas da ação livre dos homens. Mas Leo Strauss rechaça a idéia

de uma sociologia isenta de preconceitos e, portanto, de valores que penetrem o próprio

núcleo da atividade científica. Não há com o escapar ao fato de que a interpretação sobre

outras sociedades é feita a partir das categorias forjadas na sociedade que modela e determina

o quadro teórico a ser empregado. Assim, o sociólogo tenta entender a época medieval com

categorias totalmente estranhas a ela; ao analisar outras sociedades ele “as obriga a entrar no

leito de Procusto de seu esquema conceitual, ele não as compreende como elas mesmas se

compreendiam”.11

Ora, ao afastar a objetividade dos juízos de valor, torna-se praticamente

impossível a compreensão das sociedades passadas, e, ao contrário do que propõe a tese

positivista, coloca-se em perigo toda a objetividade histórica. A incapacidade da razão em

justificar valores melhores em relação aos piores elimina de vez a consolidação de uma ética

que possa servir de referência e deixa a ação política entregue à oportunidade e à

conveniência. A obra de Max Weber, na leitura de Strauss, é uma mostra do niilismo a que

chegaram as ciências sociais com o advento da sociedade moderna onde - com a quebra de

Maquiavel à tradição - o imperialismo da subjetividade expresso na expansão do cientificismo

e tecnicismo, rompeu e ocultou o direito natural clássico e, desse modo, relativizou e

volatizou todos os valores.

O assalto à cidadela clássica não se deu com um único ataque, mas em

movimentos distintos e subseqüentes que Strauss denomina “as três vagas da modernjdade”.

A primeira delas inicia com Maquiavel, rebaixando o padrão dos valores e submetendo a

moral à política. Maquiavel, entretanto, não deixou de lado o problema do melhor regime,

mas afastou-se radicalmente da forma como, até então, ele fora tratado; se um filósofo como

Platão considerou o melhor regime como algo acima deste mundo e, desse modo, desembocou

numa utopia impossível de ser realizada cuja função é mostrar como idealmente os homens

poderiam viver, para Maquiavel a questão relevante é considerar como realmente eles vivem.

11

Page 83: A Guerra de Maquiavel

A primeira vaga levou à formação do direito natural moderno que nada tem em comum com o

clássico, mas, na verdade, parece seu oposto. A lei natural é imanente, ela revela-se na

casualidade, ao nível dos fenômenos físicos. O nascimento da filosofia social ocorreu quando

Hobbes buscou nas ciências naturais emergentes seu modelo teórico; o desenvolvimento desta

concepção atinge o ápice com Locke, mas com a violenta crítica de Rousseau em nome da

natureza humana pré-civilizatória e pré-racional ocorre a primeira crise que, por sua vez, abre

caminho para a segunda vaga expressa na filosofia alemã, principalmente em Kant e Hegel. É

o momento da elaboração explícita de filosofia da história e que impregnou todo o

pensamento político que se seguiu. Com o hegelianismo surge a idéia da astúcia da razão, de

que a história é uma seqüência racional de eventos e que fundamentalmente a história do

mundo é o tribunal do mundo (Weltgeschichte ist Weltgericht); esta fase entra em crise com a

intervenção de Nietzsche que abre a terceira vaga que se prolonga até nossos dias.12

Strauss

encontra no “existencialismo” de Heidegger a manifestação da última grande ameaça à cidade

clássica pela dissolução completa da antiga noção de direito e que, por conseqüência, impede

a compreensão dos ideais humanos com referência à natureza, pois “os ideais morais e

políticos são estabelecidos sem referência à natureza humana; o homem está radicalmente

liberado da tutela da natureza... o único guia concernente ao futuro, e, portanto, o sustentáculo

do que o homem deve fazer ou aspira fazer é fornecido pela razão. A razão substitui a

natureza. Tal é o significado da afirmação segundo a qual o dever-ser não tem qualquer base

no ser”.13

Diante do niilismo em que desembocou a modemidade, Strauss recorre à filosofia

política tal como fora formulada pelos filósofos atenienses. Mas tais pensadores só

desenvolveram suas reflexões sobre a política após terem formulado a própria filosofia. A

filosofia política é um ramo da filosofia suja existência é caracterizada por padrões fixos e

imutáveis. A filosofia supõe uma visão plena da totalidade. Para Strauss é impossível filosofar

se os princípios fundamentais são permanentemente transformados e substituídos. No

pensamento clássico não existe qualquer vestígio de filosofias da história como foram

concebidas pelos modernos. A filosofia só existe num horizonte absoluto e natural. Isto quer

dizer que se a filosofia busca o conhecimento verdadeiro das coisas, a filosofia política

procura pelos fundamentos da política. Filosofar é inter-relacionar as naturezas em sua

totalidade enquanto que a filosofia política ao considerar a natureza das coisas políticas tem

12

13

Page 84: A Guerra de Maquiavel

de situá-las na totalidade.14

A filosofia, entretanto, não trata da posse da verdade, mas do

questionamento da verdade. Tal como encontramos na interrogação socrática sobre a natureza

das coisas políticas: o que é justiça?, o que é lei?, o que é coragem?, o que é virtude?, o que é

política? A interrogação socrática levou a cabo a ruptura com a tradição e o costume e criou

um conflito insuperável entre a filosofia e a cidade. De qualquer modo a relação entre ambas

só poderá, de ora em diante, ser tematízada desde que se considere, antes, sobre a natureza do

político. Ao descobrir o conceito de natureza, a filosofia substituiu o mito. O primeiro homem

a fazer tal descoberta foi também o primeiro filósofo. Esse acontecimento que decidiu a

história da filosofia até hoje deve-se a algum grego desconhecido há quase três milênios.15

É a

partir dessa descoberta que se pode separar fenômenos naturais e fenômenos não-naturais. O

surgimento do direito natural contestou a tradição e a autoridade fixada nos deuses ou numa

multiplicidade de leis e códigos divinos. Desde então, foi possível separar o natural e o

convencional (physis x nomos), ou seja, o conhecimento filosófico se afasta do reino das

opiniões. Como natural deve ser entendido tudo o que está em oposição ao humano.16

Ao

arruinar a tradição ancestral, a filosofia passa a reconhecer que a natureza é a autoridade

suprema, e isto faz com que “a investigação filosófica das coisas primeiras seja, desde logo,

guiada por esta compreensão do ente ou do ser pela qual a mais fundamental distinção dos

modos do ser é aquela que separa o ser enquanto ta1 do ser com respeito à lei ou à convenção

- diferença que se reconhece na distinção escolástica entre o ens reale e o ens fictum”.17

É a

partir desta distinção que se pode afastar a multiplicidade das convenções sobre as relações

humanas e a idéia de uma vida que seja boa por natureza, isto é, de que o fundamento dessas

relações sociais independe da vontade dos homens. Assim não pode haver noções de justiça

variáveis ao longo da história ou mesmo que sociedades diferentes tenham cada qual sua

noção ou sentido da justiça. Se a justiça existe ela é a mesma para sempre, uma vez que é

inconcebível um direito natural cujos princípios não sejam imutáveis. Sem princípios fixos o

direito ficaria flutuando no móvel mar das convenções e, conseqüentemente, o bem comum

jamais seria universal, mas propriedade de grupos ou facções cujos interesses variam e se

recompõem de distintos modos. A filosofia clássica sempre considerou como suspeitas as

opiniões, o passageiro ou o transitório. Platão faz suas as palavras de Parmênides: o ser é e

não pode não-ser.

14

15

16

17

Page 85: A Guerra de Maquiavel

A vida boa, entretanto, não pode ser pensada sem a forma da organização política

onde possa ser realizada, isto é, a vida boa pressupõe a sociedade boa que, por sua vez, se

assenta no reconhecimento de que a justiça seja boa por natureza. A Politéia é a expressão da

melhor sociedade ou da comunidade ética; o fato de tê-la como objeto específico de sua

ocupação mostra como “a filosofia política clássica é dirigida pela questão do melhor

regime”;18

pois regime quer dizer ordem ou modo de viver em comunidade. A preocupação

com a forma de governo surgiu em meio aos conflitos entre distintos regimes que deram

origem à pergunta sobre qual deles seria o melhor. Para os filósofos atenienses o melhor

regime é o que propicia aos cidadãos as chances para aperfeiçoar-se no convívio com os

outros pela prática da virtude e da prudência. Para tentar realizar o melhor regime, tem-se de

recorrer à filosofia política que esclarece sobre a natureza das coisas públicas manifestas na

constituição e nas leis. A tematização do melhor regime, entretanto, está vedada para a

maioria. A ela só têm acesso os sábios; por isso que o melhor regime é aquele que tem os

sábios no comando. É à luz da lição desses sábios que Strauss interpela a obra de Maquiavel.

Vejamos mais de perto o teor de suas críticas.

Maquiavel foi o extremista que lançou um desafio a toda tradição cultural do

ocidente e, ao fazê-la, fundou a filosofia política moderna. À semelhança de Colombo, ele

teria descoberto um novo continente na moral e, segundo Strauss, a questão mais importante é

saber se nesse novo continente é possível a lida humana.19

O cerne de seu pensamento é a

crítica da religião e da moral o que não seria uma novidade se considerássemos os autores

pagãos que viveram muito antes dele e ainda a doutrina averroísta que tanto escândalo fez em

sua época. Para Strauss sua originalidade foi ter extrapolado todos os limites para se

transformar no grande mestre da blasfêmia. O rebaixamento dos valores revela que a

realização do melhor regime, como pensavam os clássicos, é impossível pois sua idealização

transformou-o em utopia. Igualmente Maquiavel afasta a idéia de que a virtude possa ser

considerada como independente dos acontecimentos; a gente não se pode deixar iludir por ela

visto que a natureza humana é egoísta. E se os homens são maus, só pela compulsão é que se

tornarão bons; isto é, os homens são infinitamente maleáveis e adaptáveis às circunstâncias.

Assim, na compreensão de Strauss a descoberta do novo continente por Maquiavel não

contribuiu para alargar o horizonte, mas, paradoxalmente, acabou por estreitá-lo. “Podemos

afirmar com toda certeza que não há nenhum fenômeno moral ou político conhecido por

Maquiavel, ou cuja descoberta o tornou famoso, que não tenha sido de absoluto conhecimento

18

19

Page 86: A Guerra de Maquiavel

de Xenofonte, sem falar de Platão ou Aristóteles. É verdade que, em Maquiavel, tudo surge

sob uma nova luz, mas isso não se deve a um alargamento do horizonte, e sim ao seu

estreitamento. Muitas descobertas modernas em relação ao homem têm esse caráter”.20

Na visão de Strauss, a disputa entre os antigos e os modernos é claramente

resolvida em favor dos primeiros. A modernidade estreitou os horizontes do homem ao abolir

a antiga noção de natureza. A obra de Maquiavel é uma provocação no sentido de que nos

pode auxiliar a redescobrir os problemas permanentes ou, no caso, aquilo que permanece

sempre como cerne do político. Maquiavel não se cansa de elogiar os grandes feitos dos

antigos, muitos de seus exemplos e modelos são retirados de Tito Lívio e Heródoto, e sua

paixão pela república romana reincide freqüentemente em seus escritos. O retorno aos

clássicos faz parte da intenção de, com seus exemplos, alterar os novos tempos, combater a

corrupção que parece haver minado os homens e as instituições. Mas, ao fazê-la, Maquiavel

acaba por efetivar a destruição da ordem antiga; esse confronto é como uma guerra, o que ele

afirma sobre a estratégia e as táticas militares pode dar uma idéia de como ele conduz seu

combate intelectual. É devido a isto que a leitura de Maquiavel não parece simples e as

tentativas de reduzir seu pensamento superficializá-lo ao ponto de diminuir o complexo

sentido de sua obra.

Leo Strauss reconhece seu engano por ter, precipitadamente, atribuído a Hobbes a

origem do pensamento político moderno e por não haver-se apercebido da mudança radical

com respeito à Grande Tradição que já portavam as obras de Maquiavel, principalmente em

alguns trechos dos Discursos de sobre Tito Lívio.21

Do mesmo modo, ao focalizarem a obra

maquiaveliana, enganam-se os leitores nacionalistas que vêem em Maquiavel apenas um

pensador dos assuntos florentinos ou italianos, pois ele é um pensador universal; enganam-se

também os que julgam um autor eminentemente científico ou técnico, pois seus textos são

abundantes em juízos de valor; seu estudo da sociedade é fundamentalmente normativo. Que

ele tenha rebaixado os ideais da vida contemplativa não significa que ele não tenha moral

alguma. Que tenha sido um violento crítico da religião cristã não quer dizer que tenha sido

indiferente ao fenômeno religioso; ao contrário; considerava-o indispensável à atividade

social e política. O estilo de Maquiavel chama a atenção pela quantidade de gafes, erros

grosseiros, as enormes paródias, distorções e compilações. Mas para Strauss essas

deficiências são aparentes. Maquiavel foi um escritor cuidadoso porque foi um leitor

meticuloso. Tito Lívio foi sua Bíblia e, como ele, desenvolverá uma escritura completa tal

20

21

Page 87: A Guerra de Maquiavel

como os antigos conceberam e que foi esquecida por longos séculos. A arte de escrever

esotérica só é possível se acompanhada da arte de ler esotérica, isto é, quando envolve o

movimento indireto e sinuoso da compreensão no exame atento das armadilhas, dos sinais, o

entrecruzamento de múltiplos planos de sentido.22

Assim, o que parece defeito de estilo, é, na

verdade, sua virtude. Maquiavel, na visão de Strauss, sabe exatamente os passos que deve dar

para atingir seus objetivos. Seus erros são propositais e seu silêncio não quer dizer omissão ou

ignorância. O silêncio de um sábio é sempre pertinente. Maquiavel recorre a ele em muitas

passagens de suas obras como em O Príncipe, livro dedicado a um governante, onde não

aparecem temas polêmicos como consciência ou bem comum e menos ainda a distinção

fundamental entre príncipe e tirano. Aqui quase tudo é observado do ângulo do príncipe. No

primeiro capítulo, Maquiavel trata dos principados novos e hereditários, mas, astuciosamente,

silencia sobre os principados eletivos referindo-se a eles no capítulo décimo nono, de modo a

parecer apenas ocasional e fortuito; por outro lado, nos Discursos, dedicados aos jovens

oposicionistas florentinos, o tema da república ocupa uma posição de destaque; ele aí tem

mais liberdade para abordar determinados temas; torna um de seus mais longos capítulos um

verdadeiro tratado sobre as conspirações; faz duras críticas ao Cristianismo e à Igreja e detém-

se ocasionalmente no delicado e perigoso problema da eternidade do mundo. O ensinamento

de Maquiavel, ao expressar uma visão completamente nova das bases da vida social, rompe,

de tal modo, com o tradicional e o convencional que não pode revelar de modo direto a

dimensão de sua ruptura sem correr sérios riscos e sofrer toda sorte de hostilidades. A

passagem do antigo para o novo deve ser efetuada com extrema prudência; tem de ser levada

como numa espécie de combate simulado, isto é, ao empregar cuidadosamente a arte de

escrever, Maquiavel põe em movimento sua intenção ao mesmo tempo que a dissimula. É

neste sentido que ele é herdeiro da suprema arte de escrever dos antigos que surgiu com

Platão e foi desde então reveladora do distanciamento entre a filosofia e a cidade ou dos

impedimentos dos sábios na cidade onde a filosofia não tem mais direito de cidadania. A arte

de escrever esotérica é como uma alternativa ou uma resposta a esta nova situação em que se

encontrou a filosofia.23

A arte de escrever esotérica surgiu quando a filosofia tornou-se

suspeita aos olhos do povo. A compreensão dos significados transmitidos por uma tal arte que

manifesta a tensão irredutível entre a filosofia e o senso comum está reservada ao leitor sábio

capaz de, pelo árduo trabalho interpretativo, discernir o verdadeiro desígnio de homens tão

sábios quanto ele. Ora, o maquiavelismo origina-se com a manipulação dessa arte no

22

23

Page 88: A Guerra de Maquiavel

momento em que a vida contemplativa, tão cara aos velhos sábios, é jogada por terra,

Maquiavel utiliza a arte de escrever dos antigos contra eles mesmos. A escritura esotérica que

resguardava a autenticidade da filosofia é agora empregada para corrompê-la.

O domínio da arte de escrever fornece ao escritor a possibilidade de dissimular

suas genuínas intenções e, portanto, safar-se da opressão do senso comum e da força das

autoridades estabelecidas. À época de Maquiavel a mais séria ameaça provinha da religião

cristã e do poder da Igreja e suas articulações seculares. É contra esse poder total que ele teve

de empregar a arte de escrever. Certamente não seria sem conseqüências perigosas anunciar

que a Bíblia é apenas um livro entre outros, que sua predileção recaía sobre os autores da

república romana, especialmente a História de Tito Lívio ou de Políbio. Numa atmosfera de

catolicismo, seria no mínimo imprudente manifestar adesão ao averroísmo latino e à idéia de

que o mundo não tem princípio nem fim. Sabemos que a Idade Média foi pródiga em

movimentos heréticos e desvios doutrinários, contestações ao dogma e, portanto, a recusa às

autoridades eclesiásticas. Mas Leo Strauss afirma que Maquiavel leva a cabo uma gigantesca

blasfêmia, pois, se é certo que ele não foi o primeiro a blasfemar contra as sagradas escrituras,

ele foi mais longe que qualquer outro. Hábil em sua arte, ele oculta seu objetivo para melhor

realizá-lo; e assim efetua uma intervenção radical, pois “uma blasfêmia dissimulada é pior

que uma blasfêmia evidente”. É dissimulando sua blasfêmia que Maquiavel obriga o leitor a

participar em sua elaboração, em fazê-lo seu cúmplice; a dissimulação que ele pratica é um

“instrumento de corrupção ou de sedução”.24

A Bíblia perde a aura sagrada para tornar-se

mais uma obra de onde são retiradas lições sobre a ação política. Aparentemente a autoridade

bíblica não é questionada, mas seu enfoque por Maquiavel é distinto de toda a tradição. Os

exemplos de Moisés essencialmente em nada diferem dos de Ciro, Rômulo ou Hieron de

Siracusa; o que importa é que esses príncipes, independente de suas religiões, países ou

culturas, realizaram a mais alta das virtudes: a fundação do Estado. Sabemos que um dos

modelos de educação para os príncipes antigos era representado pela figura mitológica do

centauro Quíron, misto de besta e de homem. Ao ferir a tradição bíblica cristã para ater-se

principalmente ao tema da conquista e preservação do poder, empregando as palavras de Leo

Strauss, “Maquiavel tornou-se o Quíron dos tempos modernos”.25

Se o silêncio de um sábio é sempre pertinente, deve-se considerar a relação de

Maquiavel com os filósofos atenienses como um exemplo do uso indiscriminado deste

recurso. Ele quase nunca se refere a eles de modo explícito. Em suas obras políticas apenas

24

25

Page 89: A Guerra de Maquiavel

uma vez invoca o nome de Aristóteles e numa passagem irrelevante dos Discursos sobre Tito

Lívio. No entanto, é contra sua imbricação da política com a ética que Maquiavel mobiliza as

artimanhas da escritura. Ele instaura a ruptura com a ética clássica ao reconhecer que não é

pura e simplesmente a virtude que conduz ao bem comum, mas o uso judicioso da virtude e

do vício.26

Ele sabe que em teoria a oposição entre ambos é clara, mas que, na prática, isto é,

descendo do ideal para os fatos, a virtude e o vício tendem a se confundir. Por isso sua

atenção recai sobre a veritá eftetuale das coisas e não unicamente no plano dos conceitos.

Deve-se, entretanto, ter o cuidado de entender que “o que Maquiavel contrapõe à filosofia

política dos clássicos, por essência normativa, não tem nada a ver com uma ciência política

puramente descritiva ou analítica; ele opõe a uma concepção normativa errônea urna outra

concepção normativa verídica”.27

A nova base normativa é agora forjada numa postura

completamente diferente a respeito das virtudes morais. A filosofia clássica sempre

considerou inquestionável a diferença entre os valores como a justiça e a injustiça, ai bondade

e a maldade, a mentira e a honestidade. O homem virtuoso é dirigido pela bondade. Somente

o emprego de meios justos e honrados é que legitimará o empreendimento político.

Maquiavel, entretanto, afirma que enquanto os homens elogiam a bondade, a maioria das

vezes têm de agir em conformidade com o mal. Strauss considera que o estudo da contradição

entre o desejo do bem e a necessidade de recorrer ao mal é o ponto de partida da análise que

Maquiavel faz da moralidade.28

Aristóteles concebe a virtude como uma atitude voluntária que consiste em

encontrar o termo médio entre dois vícios, um por excesso e o outro por falta.29

É o

conhecimento racional deste termo médio que torna possível atingir a bondade e a felicidade,

por isso, só os homens bons podem ser amigos. A amizade perfeita pressupõe reconhecer-se

na virtude. É a reta razão que mostra a bravura situada entre o ódio e a covardia ou a virtude

da liberalidade como o justo meio entre a prodigalidade e a avareza. A virtude - cujo

discernimento é decisivo para o bem comum - tem de distinguir-se nitidamente com respeito à

corrupção e às deformidades dos vícios. Mas Maquiavel, por sua vez, rejeita a ética

aristotélica por não vê-la confirmada na vida prática e cotidiana. Ele afasta a idéia da virtude

como intermediário entre os dois vícios para opor a cada virtude um vício. Deixa de lado os

princípios imaginários (imaginate) para ater-se naqueles que são verdadeiros (vero) e, sem

qualquer mediania, nos atributos que lhe acarretam louvor ou reprovação: “Assim é que

26

27

28

29

Page 90: A Guerra de Maquiavel

alguns são tidos como liberais, alguns como miseráveis (no sentido de sovina), alguns são

tidos como pródigos, alguns rapaces, alguns cruéis, alguns piedosos, um fedífrago, o outro

fiel, um efeminado e pusilânime, o outro feroz e animoso, um humilde, outro soberbo, um

lascivo, o outro casto, um simples, outro astuto, um duro, outro fácil, um grave, outro leviano,

um religioso, outro incrédulo, e assim por diante.”30

Estas contraposições afastam Maquiavel

de Aristóteles, pois as soluções do filósofo grego podem ser nocivas e perigosas uma vez que

nem sempre a escolha da virtude é a melhor alternativa. O príncipe virtuoso tem de saber

conviver com o bem e o mal. A necessidade determina, em grande parte, suas escolhas. Os

avaros, por exemplo, em muitos casos não o são por desejarem, mais por carência, e a

liberalidade de um príncipe só é possível depois de ele haver superado a escassez,

apropriando-se dos bens dos outros. A fama da liberalidade de Ciro concretizou-se só depois

que o príncipe pilhou seus inimigos. A virtude da liberalidade funda-se sobre o vício da

rapacidade. O bom príncipe é aquele que, conforme a ocasião, usa do vício ou da virtude.

Muitas vezes é com o emprego da maldade que poderá ser erradicado o mal. Decepando o

membro grangrenado é que se evitará a morte. A Virtú consiste em harmonizar duas naturezas

conflitivas, o que é humano e o que é da ordem da besta; a Virtú é a capacidade de intervir

com sucesso nas oportunidades que surgem ao longo do tempo, “pois o tempo é um fluxo

incessante, um movimento perpétuo que vai do vício à virtude e da virtude ao vício, e que

representa a única via justa”.31

Quando Maquiavel trata como via justa aquela que imita a

natureza, ele a entende como algo totalmente distinto da filosofia clássica que a concebe como

fixa e imutável; ao contrário, a natureza é agora variação incessante e, por isso, ao longo do

tempo, o mal transforma-se em bem e o bem em mal. Sob um novo enfoque, a prudência e

habilidade em empregar tanto o vício como a virtude para dominar a ocasião (cazzione), pois

é a cazzione que revela a natureza das coisas e como tal deve ser conquistada. Pode-se dizer

que a humanidade tornou-se possível ao dominar e utilizar a ocasião.

Maquiavel recusou-se a centrar a moral na idealização da natureza humana ou em

valores transcendentemente estabelecidos. Os homens não se organizaram em sociedade com

a luz proveniente de valores eternos, mas pressionados pelos carecimentos e as dificuldades.

O que primordialmente aproxima os homens não é a justiça, mas o medo. A fome e a miséria

são as verdadeiras origens da coletividade. Acossados pela necessidade é que os homens são

forçados às guerras e à formação dos povos. Os confrontos ocasionados pela carência são

mais originais que os levados a cabo pela ambição, pois antes da luxúria é a penúria que

30

31

Page 91: A Guerra de Maquiavel

constitui a condição humana.32

Na aurora da humanidade os homens viviam dispersos ao

modo dos animais. Foi o medo e o terror original que constituíram as bases do que hoje

entendemos por civilizações. A inversão completa que Maquiavel realiza na moral em relação

aos filósofos da tradição é tematizado por Leo Strauss num trecho marcante de sua

interpretação: “Não somente a necessidade torna os homens virtuosos, mas ela os torna bons.

Os homens, em geral, não têm qualquer inclinação natural para a bondade. É a necessidade

que os leva a ser e a manter-se bons. Esta necessidade, por sua vez, ultrapassa os homens

segundo uma via originalmente estranha a toda a humanidade e que toma a figura de um

terror primordial. Fundamentalmente a bondade é inseparável do estado de insegurança e de

fragilidade. Constrangidos é que os homens formam a sociedade para viver em paz e

segurança. Mas segurança que mantém a vida em sociedade poderia ainda anular a

necessidade de ser bom se esta sociedade não instituísse um outro tipo de exigência que

também forçasse os homens a serem bons: as leis, isto é, a punição e o medo do castigo, são

equivalentes de uma necessidade que tem origem no homem mesmo. É o medo, mas um

medo mútuo, que leva os homens a tornarem-se sociais e a serem bons e assim

permanecerem”.33

Portanto, a origem não é o bem, mas o mal. E o mal não é um princípio

negativo que paira acima dos homens, ele se confunde com a imediatidez da carência. A luta

capital da sociedade não é a realização do bem, mas, antes, o impedimento do mal. O mal não

poderá ser eliminado e a Virtú de um príncipe encontra-se não em eliminá-lo, mas em utilizar-

se dele para atingir seu objetivo principal: impedir a irrupção do terror original garantindo a

segurança dos homens. Mas, para isto, os homens também devem ser manobrados ou, como

afirma Strauss, “com Maquiavel o homem é maleável ou adaptável, é análogo à matéria sobre

a qual pode ser dada uma forma”. Os homens suportam tudo exceto o medo da fome, da dor e

da morte; por isso sua maleabilidade tem limites que o príncipe não poderá exceder sob pena

de perder o controle do poder. Para exercer eficazmente seu poder, o príncipe tem de dosar o

medo; se se exceder em seu emprego levará os homens ao pavor e ao desespero; pois,

conforme Maquiavel, a necessidade é a mãe da coragem. Para Aristóteles, as leis surgem com

a descoberta da idéia da natureza, mas, para Maquiavel, elas surgem do medo original. As

regras para o convívio social nascem do temor ao desamparo e da impossibilidade dos

homens viverem sob um clima de permanente terror. A moral, portanto, resulta do

carecimento que é não-moral. As condições de possibilidade que resultaram na moral fundam-

se na selvageria original. Os grandes príncipes que forjaram a unidade de seu povo foram

32

33

Page 92: A Guerra de Maquiavel

todos criminosos. O fundador de Roma foi um fratricida; através do assassínio de César foi

que Brutus tornou-se o pai da liberdade, o catolicíssímo rei Ferdinando manteve-se no poder

fazendo exatamente o contrário do que pregava; o papa Júlio II reorganizou a Igreja fazendo a

guerra. Por isso, afirma Strauss, para Maquiavel “a moral é como uma ilha artificial cercada

de imoralidade por todos os lados”.34

Se isto é verdade, o homem não é por natureza um ser

político e toda arte da política consiste em dar uma direção às paixões e aos humores

malignos para atingir o bem comum.

A intervenção de Maquiavel, manipulando a arte de escrever esotérica, foi uma

proeza que contribuiu decisivamente para o obscurecimento do estatuto da filosofia. A

dissolução de uma ordem suprapolítica a partir da qual a política pudesse com segurança ser

compreendida e julgada como propunham os clássicos, não levou apenas a um definhamento

da sabedoria, mas a uma completa alteração de seu significado. Para os filósofos é

inquestionável que a conexão entre a moral e a política é possível à luz de uma virtude

superior ou de uma idéia de perfeição que só pode ser atingida pela vida contemplativa.

Ocorre que a vida ativa difere tanto daquela que a relação entre uma e outra é complexa e

difícil, para não dizer impossível. O caso de Sócrates é exemplar; o mais ilustre e brilhante

dos cidadãos atenienses é processado e condenado por impiedade e corrupção dos costumes

da cidade. É a tensão que determinará de ora em diante as relações da filosofia com a cidade.

A maior dificuldade do sábio não se encontra na sua saída para a luz, mas em seu retorno às

trevas da caverna. De volta à cidade, ele torna-se incompreendido, um estranho, um louco.

“Os filósofos e o demos estão separados um do outro por um abismo, seus fins diferem

radicalmente. Somente uma retórica no sentido nobre pode lançar uma ponte sobre o abismo,

uma espécie de retórica em que se expressaria uma função de persuasão por vias repressivas.

A filosofia é incapaz de levar a cabo uma retórica desse tipo. Ela contenta-se em traçar as

grandes linhas. Sua execução pertence aos oradores e aos poetas”. Ora, para Strauss, a

alteração do sentido clássico da filosofia por Maquiavel acaba restringido-se aos limites da

cidade e, desse modo, fechando-a ao verdadeiro e autêntico significado da filosofia. É a

filosofia da caverna. A caverna - instância das opiniões e das aparências - torna-se agora o

“substancial”.35

O que interessa a Maquiavel é a compreensão das relações de força, pois é

manobrando-as que se exercerá a Virtú. É através da ação que se julgará o valor. A natureza

tem de ser controlada; ela deixa de ser um padrão a uma ordem de referência fixa e estável.

34

35

Page 93: A Guerra de Maquiavel

Ela é submetida a um poder cada vez mais abrangente pelo novo sujeito do conhecimento que

independe de essências eternas pré-existentes, mas que, na ação sobre as coisas, constitui-se a

si mesmo. Este imperialismo da subjetividade não submete apenas a natureza, mas também o

homem. Tal qual a matéria bruta os homens podem ser remodelados e transformados. A

eliminação dos fins estáveis deu origem à idéia de evolução ou progresso; isto é, que as coisas

e os homens tornar-se-ão cada vez melhores. Numa inversão completa de sentido, afirma

Strauss, “o que é humano no homem é implicitamente colocado como um ponto de

Arquimedes exterior à natureza”. A descoberta dessa autonomia é a base da filosofia moderna

que “inicia com a esperança, uma esperança que se aproxima da certeza e mesmo se identifica

com ela, da conquista futura ou da conquista do futuro, isto quer dizer que ela antecipa a

época onde reinará a verdade, se não no espírito dos homens, ao menos nas suas

instituições”.36

Strauss entende que o predomínio desse tipo de concepção sobre o homem e

sua realização é oriundo de uma retórica que nada tem a ver com a filosofia clássica; ao

contrário, a coincidência entre a filosofia e o poder político é garantida pela propaganda. A

guerra de Maquiavel só pode ser vitoriosa pelo domínio da arte da propaganda. Strauss vê no

Cristianismo o grande exemplo em que, inteligentemente, Maquiavel se apoiou. Se Moisés é

um modelo de profeta armado, Cristo é o modelo de profeta desarmado. E como pôde um

profeta desarmado solapar o poderoso império romano e a vasta cultura clássica? Não foi pela

luta armada, mas de modo insidioso e persistente que o Cristianismo penetrou as instituições

romanas e acabou por derrotá-las. Agora Maquiavel, a seu modo, inicia contra o Cristianismo

os movimentos de uma gigantesca guerra espiritual. Seu inimigo era exagerada mente

poderoso para ser enfrentado de modo direto e às claras. Para levar adiante seu intento, ele

teve de recorrer à arte de escrever esotérica e, ao fazê-lo, alterou o estatuto da filosofia.

A idéia de que a modernidade levou a um estreitamento do horizonte filosófico

situa Strauss numa perspectiva muito distinta da nossa, pois o que geralmente consideramos

como avanços da história moderna Strauss considera como falhas ou defeitos. A Revolução

Francesa que, para nós, é um marco das novas concepções sobre o poder, o saber e o direito é

tratada por Strauss como o acontecimento que alterou ainda mais profundamente a

originalidade do pensamento político clássico com a presunção desmesurada de seus teóricos

e que influenciou de modo marcante os acontecimentos posteriores, mas que, à luz da sua

novidade tornou quase impossível uma verdadeira leitura dos pensadores antigos.37

Nossa

36

37

Page 94: A Guerra de Maquiavel

posição é contrária à de Strauss, pois consideramos que a guerra de Maquiavel, ao destroçar

uma das vigas mestras da Grande Tradição, iluminou de modo distinto a compreensão da

política.

Simultaneamente à Grande Tradição - representada por Platão, Aristóteles,

Agostinho e Aquino - desenvolveram-se diversas concepções filosóficas e religiosas como o

pitagorismo, o estoicismo, o epicurismo, o cinismo, os neoplatonismos e os neo-

aristotelismos. Nossa atenção não se deterá sobre elas embora tenhamos de reconhecer sua

grande influência na cultura clássica, cristã e, depois do Renascimento, na cultura moderna.

Nosso objetivo recai sobre a espinha dorsal da Grande Tradição encontrada na obra daqueles

pensadores e, fundamentalmente, nos pontos em que são reincidentes como a concepção

teleológica e hierarquizada do mundo. Sabemos que a repulsa a uma tal concepção vem de

longe. Desde o seu nascimento já fora negada pelos sofistas e por algumas concepções

filosóficas que referimos acima. No fim da Idade Média, Nicolau de Cusa, Okham e Duns

Scoto colocaram-na em questão. Mas é com Maquiavel que, com o novo estatuto do sujeito

do conhecimento, ela foi totalmente descartada. A compreensão do sentido desta ruptura é um

dos motivos que nos atasta de Strauss, pois, ao elogiar a filosofia clássica, desconsiderou seus

possíveis defeitos e problemas.

Na obra de Platão encontra-se um radical afastamento entre a filosofia e o pólis. A

miséria dos fatos e a incapacidade de dar solução aos problemas da democracia e a corrupção

que atinge as outras formas de governo, levaram-no a conceber uma cidade modelo. A

República é uma cidade perfeita construída racionalmente; dela foram afastados o mal e a

injustiça. Mas, para compreender tal verdade, é necessário recorrer à mais importante das

artes: a dialética. A dialética revela os princípios sobre os quais se assenta todo o saber; seu

objeto máximo é a idéia de Bem sem a qual a própria justiça é inconcebível. Somente aos

sábios é facultada a contemplação da idéia de Bem, por isso que apenas eles podem dirigir a

República impedindo-a de desviar-se da corrupção e da injustiça. De sua sublime instância

eles podem ver com transparência o que ocorre sob eles enquanto os que se encontram abaixo,

em meio às trevas, têm seus juízos flutuando no acaso das opiniões. Isto não significa que a

maioria dos homens não tenha de algum modo acesso à justiça. Mas é a posição que os

homens ocupam na República que determina o grau de sua participação na justiça. A justiça

platônica é distributiva, isto é, os cidadãos participam dela de modo desigual. Ser justo é fazer

o que sabe cada qual naturalmente. Agir injustamente é ir de encontro a sua própria natureza.

A submissão dos escravos é condição da justiça; o artesão justo é o que desempenha com

eficiência seu trabalho; o soldado justo é o que acata, sem contestar, a ordem dos superiores

Page 95: A Guerra de Maquiavel

que, por sua vez, são justos se defenderem a cidade do inimigo externo e das perturbações

internas seguindo a orientação dos homens sábios. A divisão social do trabalho é natural, o

que significa que não pode ser alterada sem causar desordens ou introduzir fissuras na cidade.

Diz Platão: “vedamos ao sapateiro emprender ao mesmo tempo o mister de lavrador, de

tecelão ou de pedreiro, reduzimo-lo a ser apenas sapateiro; a fim de que sejam bem

executados os nossos trabalhos de sapataria, a cada um dos outros artesãos, similarmente,

atribuímos um só ofício, aquele para o qual é feito pela natureza e que ele deve exercer

durante a vida inteira, sendo dispensado dos outros, se é que pretende aproveitar as ocasiões

favoráveis e realizar belamente sua tarefa”.38

As divisões da cidade ideal são naturais porque

são racionais. A razão é juíza e fonte de toda lei. É o filósofo-rei (ou rei-filósofo) que detém a

idéia total da justiça e, portanto, cabe-lhe zelar pela aplicação ou preservação da justiça entre

as classes e grupos que compõem a cidade. Ninguém poderia contestá-la sem agir

injustamente, pois apenas ele tem o conhecimento racional mais elevado. A racionalidade é

sua legitimidade. Ao homem sábio cabe conduzir os outros de modo que seu ser coincida com

seu dever-ser. Sua instância situa-se ao nível da episteme enquanto que os outros, em ordem

decrescente, vão desde os conhecimentos mais elaborados até a ausência quase total deles, a

doxa. A função do Estado é manter os homens em suas diferenças pois, para Platão, eles são

naturalmente desiguais. Os homens participam de modo distinto da verdade. Os sábios, pela

contemplação, atingem-na de modo mais pleno e acabado que quaisquer outros; usando uma

expressão de Leo Strauss “tudo o que é nobre é justo, mas nem tudo que é justo é nobre” ou

ainda “a verdadeira maneira de viver é a filosófica; e, ao povo, a filosofia é uma incógnita ou

uma ameaça”.39

O povo vive de modo inautêntico por isso não consegue entender as

diferenças e as desigualdades e, entregue a si mesmo, leva a cidade à degeneração.

A crítica de Aristóteles não eliminou as linhas gerais do pensamento de Platão. A

recusa das idéias, como ponto de partida à dedução de todo conhecimento, e, ao contrário, o

primado do mundo sensível levaram-no, a fim e ao cabo, a uma teologia que considerava

como fundamento o motor imóvel, o ato e a forma pura como a condição de todo

conhecimento possível. A concepção aristotélica do primeiro motor assemelha-se, ao fim e ao

cabo, à idéia platônica de Bem. “O motor imóvel, diz Aristóteles, é um ser necessariamente. E

na ordem de sua necessidade, é também um ser na ordem do belo, e deste modo um princípio

de que depende o céu e a natureza toda”.40

A natureza deste ser é distinta de todos os outros

38

39

40

Page 96: A Guerra de Maquiavel

seres; sua essência é eterna e imutável e, por isso, é separado e independente. Este ser

perfeitíssimo é o Deus de Aristóteles, é uma inteligência plena que tem como objeto apenas a

si mesma. O acesso a tal perfeição é um “prazer supremo ou bem absoluto” reservado à

contemplação dos sábios. A proximidade destes ao Deus torna-os quase divinos. É pela

admiração ou contemplação que “se terá uma visão completa do ser - do que é substancial,

mais tudo o que lhe está ligado- na sua totalidade inquebrantável; cada uma das partes será

concebida como um modo de ser e não doutra forma qualquer”.41

Com a contemplação das

causas primeiras poderá o filósofo interpretar a ordem que governa o universo. Aristóteles

concebeu o mundo sideral dividido em esferas concêntricas - que os gregos consideravam

como símbolos de perfeição - que se distinguem pela proximidade em relação ao primeiro

motor. As mais altas esferas consistem em ordem cada vez mais intelectível e, desse modo,

menos submetidas à corrupção. As esferas mais perfeitas situam-se no plano das estrelas fixas

e regulam as revoluções das esferas inferiores como a do Sol, dos planetas e da lua. No

mundo sublunar é que a ordem cósmica padece das alterações constantes dos seres menos

perfeitos; isto é, a ciclofonia que, em suas mais altas instâncias, tem trajetórias fixas e eternas,

e uniformes, sofre no mundo sublunar do desgaste e da corrupção, pois aqui os serem movem-

se de modo aleatório, procurando cada qual seu lugar e instaurando discórdias e conflitos

incessantes. Mas o fato de ter qualidade inferior não significa que o mundo sublunar seja o

caos; ele tem de ser compreendido como uma parte do todo. Ele padece por encontrar-se

distante da rotação terminal do universo, mas não pode nem mesmo existir sem ser sustentado

pelas causas primeiras.42

A compreensão das causas que regulam o universo está reservada

aos filósofos. O acesso a este saber, como em Platão, está vedado àqueles que não têm a

virtude da admiração ou o domínio da ciência superior. O conhecimento é, por natureza,

diferentemente distribuído entre os homens. E se o conhecimento das causas é mais universal

que os que se limitam às aparências dos fenômenos, então, diz Aristóteles, que “há mais saber

e conhecimento na arte do que na experiência, e consideramos os homens de arte mais sábios

que os empíricos, visto a sabedoria acompanhar em todos o saber. Isto, porque uns conhecem

a causa e outros não. Com efeito os empíricos sabem o quê, mas não o porquê e a causa”.43

Desse modo Aristóteles justifica a divisão do traba1ho na cidade. Numa escala crescente, as

funções que os homens desempenham vão desde os conhecimentos mais elementares - os que

sabem o como mas não o porquê - até o saber mais excelente. Em sua grande maioria os

41

42

43

Page 97: A Guerra de Maquiavel

homens dominam a arte do útil ou prático, suas vidas estão submetidas à opressão dos fatos.

Só o que vive no ócio, isto é, aquele que despreocupado do trabalho físico ou afastado do

nível prático-utilitário poderá ocupar-se da contemplação das primeiras causas. É o filósofo.

Este possui o conhecimento da ciência universal e, portanto, de todos os sujeitos.44

Assim

como o cosmos também a pólis está submetida à hierarquia. O filósofo tem de racionalmente

distinguir as qualidades que dividem os homens. Quaisquer que sejam as formas de Estado,

estas divisões não poderiam ser radicalmente alteradas sem destroçar a justiça que estrutura e

organiza a cidade. A justiça (dike) rege o cosmos e a humanidade. Captar essa ordem é o

mesmo que resgatar a verdade pois, para Aristóteles, “injustamente é o mesmo que não

verdadeiramente”.45

A ação verdadeira tem de ter em vista os fins que estão inscritos na

natureza. A razão (logos) fundamenta cada ente em seu ser e em relação a outros entes.

O bem humano máximo é a procura de conexão com a harmonia do mundo, o que

é possível desde que a própria pólis seja ordenada segundo a justiça. Ora, a harmonia revela-

se no conhecimento. Sem a razão total as virtudes levariam à barbárie. Desde Sócrates a

coragem funda-se no saber e não na força bruta. Sem conhecer-se a si mesmo e seu lugar na

comunidade é impossível o exercício da coragem ou qualquer virtude. Diz Aristóteles que a

virtude encontra-se sempre entre dois vícios. A liberalidade, por exemplo, é o termo-médio

entre a prodigalidade e a avareza; a coragem é a média entre a covardia e a brutalidade. Mas

não é na imediatez que se definem as virtudes; elas são determinadas pela reta-razão. Ora, é a

reta-razão que adequa os fins da vida política com os fins supremos do mundo. A pólis justa é

aquela que se insere na vasta ordem dos seres.

Os filósofos atenienses definiram as linhas gerais da Grande Tradição que

fundamentalmente identifica a harmonia com a hierarquia. Pela via do neoplatonismo, Santo

Agostinho recolhe esta concepção e a integra ao Cristianismo. Semelhante à República de

Platão, a Cidade de Deus não se encontra neste mundo; ela serve, antes, como idéia

reguladora, modelo de perfeição e de justiça que os homens não podem desconsiderar sob

pena de perderem o rumo de sua salvação. Cristo indicou o caminho da verdadeira cidade, a

única onde reina a justiça em sua plenitude, onde o homem, ao encontrar Deus, reconcilia-se

consigo mesmo. Uma radical diferença afasta os homens que apenas se ocupam das

atribulações da cidade terrestre e os que almejam a paz da Cidade de Deus. O fim da cidade

terrena encontra-se no céu onde a paz pressupõe a Verdade. Os Estados pagãos são como

Ba¬bilônias onde reina a confusão e as injustiças, uma vez que a fonte de todos os erros

44

45

Page 98: A Guerra de Maquiavel

encontra-se no desinteresse dos homens pela Verdade.46

Santo Agostinho, entretanto,

reconhece que nem todos os seres participam da Verdade com a mesma intensidade; isto é,

cada ente é mais ou menos verdadeiro com relação ao Bem. Sua posição em relação a ele é

medida de seu ser. Para escapar do maniqueísmo, Santo Agostinho teve de reconhecer que o

mal é ausência de perfeição ou carecimento de ser. Os seres superiores são mais perfeitos que

os inferiores, pois entre eles há menos presença do mal; pois o mal não é uma substância, uma

vez que todas as coisas que existem são boas; o mal é uma privação de um bem cujo último

termo é o nada. O mal não existe como algo que se opõe ao bem, ele se manifesta, antes, pela

ausência do ser. Diz Agostinho que “em absoluto, o mal não existe nem para Vós, nem para

vossas criaturas, pois nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem

que lhes estabelecestes”.47

A harmonia da criação significa que cada ente se adapte a seu lugar

e em seu tempo.

Foi a um autor desconhecido que viveu provavelmente no século VIII e que, por

muito tempo, foi tomado por Dionísio Aeropagita, discípulo de São Paulo, que devemos uma

concepção teológica nitidamente centrada na noção da hierarquia. Seus dois livros mais

importantes Da Hierarquia Celeste e da Da Hierarquia Eclesiástica tiveram uma enorme

repercussão nos séculos seguintes, foram lidos e comentados por quase todos os autores

ligados à Igreja. Eles representam o cerne ou mesmo a unidade do pensamento medieval.

Todos os entes procedem de Deus que os sustenta num cosmos organizado em que cada coisa,

segundo sua essência, participa da criação. Dionísio Pseudo-Aeropagita entende por

hierarquia “uma determinada e mui santa instituição (distribuição, disposição), imagem de

beleza incriada, que nos respectivos graus e conhecimentos hierárquicos põe em ação os

mistérios de sua própria iluminação, assemelhando-se o mais possível à sua origem”.48

A

hierarquia celeste é representada pelos seres superiores em perfeição que mais se aproximam

da divindade como os anjos, arcanjos, querubins, tronos e serafins. A hierarquia terrestre,

imitando a mais perfeita, é representada em escala e vai desde os batizados, crismados,

diáconos, sacerdotes, bispos, e, mais acima destes, os monges e os eremitas, e, numa ordem

todavia mais pura, os catecúmenos e os penitentes. A ordem hierárquica é imagem de

formosura de Deus que deu a cada um uma função correspondente aos graus progressivos de

perfeição. A articulação entre estas funções ou graus deve estar conforme a finalidade da

criação, isto é, a razão de todo o existente; “e assim, graças a tais relações divinas e

46

47

48

Page 99: A Guerra de Maquiavel

harmoniosas, cada qual termina por participar da beleza, da sabedoria e da bondade essencial,

na proporção em que lhe permite o seu respectivo grau”.49

Tomás de Aquino, por sua vez, fiel

às linhas desta Grande Tradição, incorporou-a na construção de seu “sistema” que inclui

Deus, a natureza e o homem. Para Aquino todos os seres se inclinam racional e

ordenadamente para Deus. O conceito tomista de inclinatio expressa essa tendência ou

propensão natural que os homens têm para a felicidade e a vida boa. É da articulação

ontológica com o cosmos e de sua regularidade fundada nos mandamentos do Decálogo que

Tomás elabora os quatro tipos de leis básicas: a lei eterna e a lei natural; a lei divina e a lei

humana. A lei eterna é criada na onisciência de Deus que pode criar e recriar o mundo desde

que não atente contra sua própria natureza. É, segundo a lei eterna, que os seres são divididos

em múltiplas essências ou qualidades. A lei eterna a que tudo está submetido é a da instância

da perfeição e por isso encontra-se além da compreensão humana. A razão humana poderá

detectá-la ou discerni-la, mas os homens jamais terão acesso ao que ocorre na consciência de

Deus. Mas, se ela não pode ser totalmente compreendida, isto não quer dizer que seja algo

externo e distante; ao contrário, ela subjaz a tudo que existe. Todas as criaturas participam da

lei eterna, mas apenas o homem tem consciência dela, não de modo direto mas pelo

conhecimento do que Tomás de Aquino entende como lei natural: “Ora, entre todas as

criaturas, a racional está sujeita à Divina Providência de modo mais excelente, por participar

ela pr6pria da providência, provendo a si mesma e às demais. Portanto, participa da razão

eterna, donde tira sua inclinação natural, para o ato e fim devidos. E essa participação da lei

eterna pela criatura racional se dá o nome de lei natural”.50

A razão tem de discernir esta lei

que subjaz às criaturas cujas perfeições relativas são reguladas por fins que lhes deu o

Criador. Mas, se por outro lado, a lei divina se deve fundamentalmente à revelação, uma

oferenda da graça, uma dádiva que se encontra positivada nas Escrituras Sagradas e que,

portanto, dispensam o esforço da razão, bastando-lhe a fé; a lei humana, por sua vez, é

desenvolvida a partir da lei natural, e, em certo sentido, é seu corolário. Para desenvolvê-la e

exercê-la, os homens devem empenhar todas as forças; a razão tem de esquadrinhar a vida da

Societas em sua totalidade e desentranhar as leis que garantam a realização do bem comum.

Tais leis só possuem validade quando promulgadas. Elas devem assegurar os meios para

atingir o objetivo máximo da criação: a beatitude e a vida excelente. Assim os melhores

regimes para Santo Tomás - mesmo que ele não tenha cansado de recorrer ao pensamento

político de Aristóteles - encontram-se na esteira do Cristianismo. Como grande intelectual,

49

50

Page 100: A Guerra de Maquiavel

sua originalidade foi unir o aristotelismo (metafísica + política + física) e o direito romano

com a fé no fim sobrenatural do homem. Por isso considerava a lei humana parte de todo o

sistema de governo divino que rege o céu e a terra e que, portanto, regula as criaturas

animadas ou inanimadas, pois “assim como a ordem da cidade ou reino se deduz da forma de

ordenação do mundo, assim também é da governança (do mundo) que se há de deduzir a

razão do governo (da cidade ou reino)”.51

Nenhuma obra, entretanto, representou de forma mais brilhante a noção de

harmonia e hierarquia do que A Divina Comédia. Dante conseguiu em seu poema a unidade

perfeita entre as tendências dessa tradição que incluía o neoplatonismo, a doutrina cristã e o

aristotelismo interpretado e reformado por Tomás de Aquino. As três grandes divisões da

obra, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, estão cada qual divididas em nove círculos

concêntricos onde se localizam as almas segundo a ausência ou presença de qualidades. O

sistema de Dante vai gradualmente desde os círculos do máximo mal à luminosidade do sumo

bem. Não é o caso de nos determos numa exposição desta obra, mas apenas salientar que ela

expressa cabalmente a unidade do pensamento medieval. Citemos um momento onde a

concepção teleológica é bastante explícita:

“As coisas, todas elas

Têm entre si uma ordem, e essa ordem é a forma

Que dá ao universo similitude com Deus.

As mais altas criaturas vêem nisso o sinal

Do poder terreno, o qual é o fim

Pelo qual se faz a norma sobredita

Na ordem de que falo estão sujeitas

todas as criaturas, segundo suas diversas condições

Mais ou menos próximas de seus princípios

Assim se movem para diferentes portos

No grande mar do ser”.52

Esta Grande Tradição foi posta em xeque durante a Baixa Idade Média e o

Renascimento. Leo Strauss aponta Maquiavel como o responsável por essa transformação

profunda que resultou num estreitamento no horizonte do pensamento, mas Maquiavel não

está sozinho neste movimento econômico, social, político e cultural sem precedentes na

história. A intervenção de Maquiavel calou fundo, mas ela ocorre simultaneamente às grandes

navegações e descobertas marítimas e as alterações nas concepções religiosas e artísticas. A

novidade atinge a literatura, a poesia, a arquitetura, escultura e pintura; caem por terra os

milenares dogmas da física aristotélica e o cosmos ordenado e fechado de Ptolomeu cede às

51

52

Page 101: A Guerra de Maquiavel

descobertas surpreendentes da astronomia de Copérnico, Kepler e Galileu que agora revelam

um universo infinito regido por leis válidas universalmente, enfim, um mundo onde não há

mais lugar para essências ou qualidades estabelecidas por um ser transcendente; agora já não

existem instâncias privilegiadas ou mais puras e sublimes, pois, como considerava Nicolau de

Cusa, ainda no século XIV, o universo parece uma esfera de raio infinito cujo centro

encontra-se em toda parte e em lugar nenhum. Ao tematizar sob um novo enfoque a política,

Maquiavel contribuiu, ao contrário do que afirma Strauss, para alargar ainda mais os

horizontes do pensamento e, com isso, compreender a tradição com maior liberdade e

autonomia.

A rejeição da modernidade feita por Leo Strauss, em nome da filosofia e do

direito natural clássico, falha por minorar e ocultar que, embora os filósofos atenienses

tenham de fato criado a filosofia política, formularam problemas que nunca foram resolvidos.

Platão que escreveu uma obra decisiva recorreu ao tirano de Siracusa para efetivá-la, mas

morreu desiludido com a incapacidade dos sábios (mesmo na tirania) poderem conectar a vida

contemplativa com os assuntos imediatos e cotidianos da política. Se Platão definiu o

paradigma da filosofia ocidental também deu-lhe um nó górdio difícil de ser desatado, mesmo

a golpes de espada. A filosofia se destacou da pólis uma vez que esta estava submetida à

corrupção e que o governo da maioria era o mais instável e periclitante, pois suas instituições

não resistiam, nos momentos de crise, à irracionalidade e ao oportunismo dos fanáticos e dos

demagogos. Mas, mesmo que Strauss considere o afastamento entre a filosofia e a pólis como

inevitável, e que, ao ser aquela rebaixada por Maquiavel ao nível da propaganda, resultou nos

males de nosso tempo, ele deveria reconhecer que a filosofia clássica também não pôde

impedir os males que levaram a civilização grega à total degeneração. E como poderia se,

desde a morte de Sócrates, a filosofia se tornou suspeita aos olhos do povo? Seguindo os

argumentos de Platão, Strauss reconhece que a sabedoria não pode ser entendida pela maioria.

Depois de contemplar o Bem, o filósofo retorna à caverna com os olhos ofuscados e vê apenas

sombras indistintas semelhantes às que via antes de sua ascensão para a luz; ele não poderá

ser entendido, pois sua linguagem resulta incompreensível para os outros homens. Ele é

impermeável à opinião, pois não há como conectar o ser e o não-ser. Ao nível das aparências,

a filosofia é incomunicável. O conhecimento da natureza das coisas é restrito a poucos que,

para preservá-la, comunicam-se através de um discurso esotérico. Mas se a filosofia política

trata do melhor regime, o problema de realizá-lo tem, de qualquer modo, que ser

permanentemente recolocado. O impasse instalado pelo abismo que separa o plano da

episteme e o da doxa foi enfrentado por Platão na tentativa de responder as objeções que A

Page 102: A Guerra de Maquiavel

República suscitou. Em O Sofista ele põe em destaque pela palavra do Estrangeiro de Eléia

uma objeção do qual ele nunca se safou. A viga mestra de seu pensamento retomara a

proposição de Parmênides de que o ser é e que o não-ser não é. A via da verdade se aparta

radicalmente da via da opinião. Mas o Estrangeiro de Eléia indaga se é cabível repudiar por

completo o mundo da opinião sem cair em contradição, pois dizer que ele nada é, já pressupõe

o reconhecimento de sua existência. Negando-o, ainda que absolutamente, é uma forma de

confirmá-lo e, assim, tem-se de conceber o ser do não-ser. A negação não poderia aniquilar o

que nega sob pena de não definir o objeto de sua intenção; isto é, a crítica das opiniões

pressupõe que estas existam.53

O reconhecimento da procedência da objeção de que o mundo

das opiniões nada é, não pôde ser absorvido por Platão, pois isso levaria à eliminação de seu

conceito de verdade. A distinção entre a episteme e a doxa foi preservada ao longo de toda

sua obra, mesmo na parte em que ele se mostra mais preocupado com a ação prática como em

O político e em As Leis. Neste sentido a Sétima Carta testemunha seu desconcerto por

reconhecer a impossibilidade de superar a antinomia entre a filosofia e a cidade. A mesma

dificuldade atinge o núcleo do pensamento de Aristóteles expresso na distinção entre o

homem bom e bom cidadão. O primeiro atinge o ideal da vida contemplativa e afasta-se dos

embates da ação política, o outro, envolvido nas turbulências da vida ativa, carece do ócio e

do desprendimento suficiente para discernir os fins inscritos na natureza.54

Strauss, ao buscar nos filósofos clássicos o fundamento de sua crítica aos

modernos, desemboca no mesmo impasse frente à mais crucial provocação da política: como

realizar o melhor regime? Sua crítica à racionalidade moderna na forma positivista ou

historicista levou-o a fazer um salto prodigioso sobre o abismo a que chegou a filosofia grega

ao afirmar que, para os clássicos, a realização do melhor regime devia-se fundamentalmente à

sorte ou ao acaso. Se o melhor regime é o dos homens sábios, e se eles não podem ser

perturbados em sua vida contemplativa, só uma sorte muito grande poderá efetivar o melhor

regime. É o que Strauss diz explicitamente: “As soluções ao problema político são

perfeitamente pertinentes para os bons cidadãos, mas eles se encontram, por si mesmos,

impossibilitados de levá-las adiante na medida em que esses problemas mesmos fazem-nos

esquecer o ponto de vista da perfeição. É a razão pela qual o melhor regime é uma coisa tão

elevada que sua realização depende antes de tudo do acaso (chance)”.55

A coincidência da

filosofia com o poder político não depende nem da ciência nem da história, mas está entregue

53

54

55

Page 103: A Guerra de Maquiavel

ao azar ou às ocasiões fortuitas e imprevisíveis. A insistência de Strauss em apoiar-se na

filosofia clássica - por oposição ao pensamento pós-maquiaveliano que concebe a “chance”

como algo que deve ser conquistado pela astúcia e pela ação - leva-o a uma outra dificuldade.

A astúcia da razão que ele condena nos modernos em nome da concepção clássica de

“natureza” prende-o, por uma curiosa ironia, a uma “astúcia da natureza” pois o natural para

os gregos é o não humano ou o que estando além do mundo submete-o e regula-o ao

finalismo cosmo-teológico. Desse modo a realização do melhor regime estaria na dependência

da “astúcia da natureza” que se sobreporia à liberdade ou autonomia do sujeito político. Mas,

como oportunamente assinalou Luc-Ferry, a posição anti-historicista assumida por Strauss

não o afasta por completo de toda e qualquer filosofia da história, ao contrário, aproxima-o da

concepção comum à antigüidade que, ao recusar a autonomia da intervenção humana, entende

o futuro como acaso ou destino.56

Por outro lado, a defesa do direito natural, como condição

de uma verdadeira filosofia política, paga o preço de silenciar com respeito à hierarquia dos

seres e, portanto, a aceitar como naturais as divisões sociais da cidade. É essa idéia de

natureza que levou Aristóteles a considerar, não como convencionais mas como fixos e

eternos (naturais), o domínio dos cidadãos sobre os escravos e dos homens sobre as mulheres.

Aceitamos a posição de Strauss que Maquiavel fez uma guerra à tradição clássica,

mas discordamos de que ela tenha reduzido o horizonte da verdade política. Para nós a

artilharia de Maquiavel, ao estraçalhar os muros da cidadela clássica, contribui para ampliar

os horizontes do pensamento. Ao desmantelar a concepção de uma harmonia baseada na

hierarquia das essências celestes ou terrestres ele abriu caminho às profundas alterações

teórico-práticas que resultaram na Declaração Universal dos Direitos do Homem que, na

observação de P. Aubenque, é decididamente um grande avanço em relação ao direito natural

grego.57

Depois de Maquiavel, não se pode, com o conceito de natureza, justificar privilégios

eternos, pois todas as posições sociais podem mudar desde que se transformem as relações das

forças políticas que determinam as formas de governo. Para Maquiavel não há autoridade que

não possa ser posta em xeque e substituída; embora ele entenda que uma cidade estará sempre

dividida entre dois desejos, o de dominar e o de não ser dominado; isto é, a classe dirigente

(Popolo grasso) e o povo (Popolo minuto) se entrechocam na defesa de seus interesses

atuando como dois sujeitos. O povo não é uma massa passiva submetida ao poder e à razão

iluminada dos dirigentes. Esta descoberta de Maquiavel é considerada por Strauss como o

rebaixamento da filosofia ao nível da propaganda. O novo filósofo não se ocupa mais da

56

57

Page 104: A Guerra de Maquiavel

verdade, mas seu reconhecimento da importância do demos na definição do governo torna-o

um demagogo acossado pelas oscilações da conjuntura, daí que o passo à afirmação de que o

tempo altera as coisas de modo que o bem torna-se um mal e o mal torna-se um bem foi muito

rápido. Maquiavel assume plenamente o que Platão evitou a todo preço: a verdade possível

surge da vida ativa. Ora, o novo sujeito do conhecimento que aparece na obra de Maquiavel,

fundamentalmente na figura do príncipe, é construído em meio aos embates contra a Fortuna,

o que lhe possibilitou escapar às grandes linhas da tradição e entender os fenômenos morais e

religiosos de fora, isto é, independente do manto ideológico milenar que o Cristianismo

estendeu sobre o ocidente. Este novo sujeito do conhecimento abriu a perspectiva da análise

dos elementos estratégicos que determinam e diferenciam as sociedades. Aqui é o silêncio de

Strauss que se torna significativo. Não nos parece ser um silêncio pertinente, pois não é

possível que sem a consideração desses elementos estratégicos se possa compreender o fim da

civilização clássica ou ainda a origem da modernidade - de que Maquiavel é um dos

representantes - nas grandes alterações econômicas e sociais que desmantelaram o

feudalismo; acrescidas pelo complexíssimo processo político florentino. Consideramos que

Strauss, silenciando sobre esses elementos, teve prejuízo em sua interpretação, pois o sentido

da obra expressa, de algum modo, o momento em que surgiu.

A arte de escrever esotérica é, segundo Strauss, assunto dos homens sábios que a

dominam plenamente. Maquiavel foi um dos mestres em seu emprego, se bem que com

finalidade distinta dos clássicos. A idéia de que esses escritores de raro talento tinham pleno

controle do estilo esotérico leva Strauss a fazer a afirmação surpreendente de que Maquiavel

não só conhecia os problemas de seu tempo melhor do que nós, mas ainda sabia perfeitamente

o que fazia.58

H.G. Gadamer reconhece como procedente a crítica a esta “falsa aparência de

superioridade insuperável de cada intérprete do presente”, mas, por outro lado, entende que

Strauss, ao afirmar que os clássicos tinham pleno domínio do que diziam, isto é, que possuíam

plena objetividade e clareza em suas proposições, acaba por defender o ideal de uma

interpretação objetiva. Ora, prossegue Gadamer, “haver-se-ia de perguntar se esta oposição

implicada aqui entre claro e confuso é tão unívoca como supõe Strauss. Não compartilha ele

assim objetivamente o ponto-de-vista da perfeita ilustração histórica, e escapa do verdadeiro

problema hermenêutico? Ele parece considerar possível compreender o que a gente mesmo

não compreende, mas sim, um autor diferente, e ainda compreendê-lo tal como ele se

compreendeu a si mesmo”.59

Como saber se Maquiavel conhecia perfeitamente o que escrevia

58

59

Page 105: A Guerra de Maquiavel

sem ao menos desconfiar da parcialidade e insuficiência de nossos juízos a seu respeito, uma

vez que a interpretação de uma obra jamais está deslindada das provocações do nosso

horizonte histórico? Por trás da posição de Strauss a respeito do caráter complexo da escritura

esotérica, encontra-se a crença de que ele guarda um conteúdo de veracidade que se opõe às

opiniões e às contradições, isto é, seu ponto de partida é uma racionalidade iluminista que

pretensamente afasta o claro do escuro, o verdadeiro do falso, sem considerar sobre o

problema ou o enigma da sua própria identidade enquanto intérprete. Ele padece do que

Lefort chama de ilusão da boa leitura. O milagre da boa leitura repousa sobre a fé em um

pensamento puro, destacado da história ou ainda num duplo sentido onde ele não pertença a

uma história e onde ele não carregue em si mesmo uma história.60

O que leva Strauss a

afirmar que um autor clássico possa saber com exatidão e em cada frase exatamente o que

quer dizer é sua aposta num padrão de julgamento (“natureza”) que independe do positivismo

e dos movimentos históricos. Ocorre que sua hostilidade contra a história em benefício do

direito natural carrega em seu bojo o perigo de um novo dogmatismo com o estabelecimento

de um padrão fixo e permanente, ou de uma norma geral que condicione a ação política.61

Além disso, Strauss ao insistir no retorno ao antigo e, portanto, na busca de um regime

conforme a natureza, separa de tal modo a filosofia da política que acaba por “converter em

utopia tudo aquilo que pensa não ter jamais o estatuto de utopia”.62

Ora, a guerra de

Maquiavel foi contra o mito da idade de ouro. A expectativa de uma instância isenta de

problemas ou que não seja de qualquer modo atingida pelo mal está totalmente ausente em

seu pensamento. Em suas obras políticas, os assuntos mais importantes tratam da fundação do

Estado, pois, sem ele, não é possível a vida em sociedade e da república como o regime que

melhor possibilita a manifestação das virtudes dos cidadãos. Maquiavel, porém, nunca teve a

ilusão de que as repúblicas por quaisquer processos históricos e políticos desembocassem

numa sociedade perfeita. Ele reconhecia que as formas de governo não são eternas e que

mesmo as repúblicas têm de, muitas vezes, ir de encontro ao fundamento que as originou para

revitalizar suas instituições e redespertar nos cidadãos a coragem e o sentido da

responsabilidade civil. O pensamento político de Maquiavel forjou-se no século em que foram

concebidas as utopias de Tomas Morus, François Rabelais e Campanela como desejo de

secularizar o céu. Esta esperança por uma sociedade imune à violência e aos carecimentos

prolongar-se-á até nossos dias através de Saint-Simon, Fourier, Phroudon e as tendências

60

61

62

Page 106: A Guerra de Maquiavel

oriundas do marxismo. Nada é mais estranho a Maquiavel do que um mundo sem conflitos.

Mesmo que, em seu tempo, suas categorias teóricas fossem reduzidíssimas, se comparadas

com as de hoje, o conceito de Fortuna como o inesperado, o imprevisto, o inacabamento a que

estão sujeitos as vidas, as instituições e o saber não o impediram de pensar o ser do político

como submetido a uma indeterminação radical. Esta é, aliás, nas palavras de Merleau Ponty, a

grande contribuição de Maquiavel para o saber político, pois o que faz com que seu

pensamento pareça estranho e difícil “é que ele une o mais agudo sentimento da contingência

ou do irracional no mundo, com o gosto da consciência ou liberdade no homem”; esta

indeterminação significa que um poder ou saber que se pretendam totais são, no mínimo, um

contra-senso visto que “não há poder absolutamente fundado, mas apenas cristalização de

opinião”.63

A proximidade de Strauss com o paradígma platônico através da noção de um

direito natural eterno ou de uma justiça distributiva racionalmente estabelecida e que só pode

ser compreendida por alguns iluminados leva-o a reafirmar que a filosofia e a cidade estão

afastadas por um abismo, isto é, instaurou-se uma estranheza incontornável entre o saber e o

demos. Mas se Strauss - nas pegadas de Heidegger - reconhece que o surgimento da pergunta

pelo ente se deve a algum grego obscuro, séculos antes de Sócrates, ele teria também de

reconhecer que a pergunta pela natureza da política, que origina a filosofia política, surge,

pela primeira vez, em Atenas, com a cada vez maior participação dos demos nos assuntos da

pólis quando, então, a escritura das leis tornou-se possível através das discussões públicas.

Esta abertura original significa que, diferentemente dos milênios de tradição mítica, a

sociedade passa a se auto-instituir. A ligação à filosofia platônica afasta Strauss dessa

dimensão e, assim, impede-o de criticar mais profundamente um dos graves problemas que

ele aponta nos nossos tempos: o totalitarismo. O totalitarismo contemporâneo é a forma de

Estado que mais se aproxima da República de Platão, pois é com a pretensão da razão total

que os dirigentes controlam a totalidade de vida social. A auto-instituição da sociedade que

pressupõe a distância entre a ação política e a lei tende a ser abolida. A sociedade instituída

tende a congelar todos os conflitos, pois, através de um poder incontestado, ela é fonte de

criação e legitimação das leis. Em nome da utopia, isto é, da ideologia do fim dos conflitos foi

que o totalitarismo abriu caminho na modernidade. Os novos messias, ao proporem o fim dos

conflitos, acabaram entregando a liberdade aos tiranos. Uma das lições de Maquiavel é que a

intranqüilidade é o preço da liberdade. Imaginar uma sociedade sem fissuras e disputas

significa liquidar a história, pôr fim à possibilidade dos homens manterem aberta a questão da

63

Page 107: A Guerra de Maquiavel

verdade e da justiça. Mas Maquiavel nos ensina que, como não há essências fixas e imutáveis

e que todo poder está submetido a uma indeterminação inesgotável, cabe reconhecer que a

pretensão de uma sociedade sem problemas não passa de um delírio ético. Diz ele: “A pouca

prudência dos homens muitas vezes começa uma coisa que parece boa, sem se aperceber do

veneno que ela encobre, com o já disse a respeito das febres éticas”.64

A idéia de uma

sociedade perfeita é coisa de idiotas ou de fanáticos; pois são os conflitos e as disputas que

fazem a grandeza dos homens.

NOTAS

1 STRAUSS, Leo. Pensées sur Machiavel. Paris, Editora Payot, 1982, p.17.

2 Cf. JEAN BAUDRILLARD. A Sombra das Maiorias Silenciosas. São Paulo,

Brasiliense, 1985. O autor mostra o grande vazio que caracteriza as sociedades pós-

mo¬dernas expressas pelo fim do social, isto é, a indiferença e conformidade das massas.

3 Cf. MARTIN HEIDEGGER. Carta sobre o Humanismo. Tradução de E. Stein.

In: Os pensadores. São Paulo, Abril S/A, 1973, p.351.

4 Cf. LEO STRAUSS. Droit Naturele et Histoire. Paris, Librarie Plon, 1953, p.15.

5 Cf. LEO STRAUSS, Op. Cit., p.15.

6 Idem, ibidem, p.15.

7 Idem, ibidem, p.29.

8 Idem, ibidem, p.32.

9 Idem, ibidem, p.42.

10 Idem, ibidem, p.54.

11 Idem, ibidem, p.73.

12 Luc-Ferry distingue no pensamento de Strauss a rejeição às três formas básicas

de historicismo:

- O historicismo racionalista, cuja figura mais acabada é o hegelianismo que culmina na

afirmação da identidade do real e do racional ou ainda como na Enciclopédia (§ 237) da

“vontade da inteligência”.

- O historicismo empirista, que se encontra hoje em dia nas ciências humanas e cujo atual

positivismo jurídico é, sem dúvida, o herdeiro.

- O historicismo existencialista que, enfim, de modo mais sutil resultou na eliminação da

relação ideal/real denunciada como ilusão “metafísica”. É neste último sentido que Heidegger

é citado por Strauss, mesmo se ele lhe toma emprestado o essencial de sua análise do

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Page 108: A Guerra de Maquiavel

humanismo moderno como pensar “decadente” e fundamentalmente “não grego”. Cf. La

Question du Droi in Sistème et Critique, Bruxelas, Editions Ousia, 1984. p.181-82.

13 The three Waves of the Modernity, citado por Luc-Férry. In: Philosophie

Politique - Le Droit: la novevelle querelle des anciens et des modernes. Paris, PUF, 1984,

p.72.

14 “...o objetivo (político) da expressão (filosofia política) não se refere tanto ao

assunto quanto à sua forma de tratamento. Quero dizer que partindo deste ponto de vista (a

filosofia política), não significa primordialmente o tratamento filosófico da política,e sim o

tratamento político ou popular da filosofia, ou a introdução política à filosofia - a tentativa de

conduzir cidadãos qualificados, ou, melhor, seus filhos qualificados da vida política até a vida

filosófica”. Cf. LEO STRAUSS, Persecution and the art ofwriting, citado por Antony de

Crespigny. In: Filosogia Política Contemporânea. Universidade de Brasília, 1979, p.99.

15 Droit Naturel et Histoire, p.98.

16 What is Political Philosophy?, p.27.

17 Droit Naturel et Histoire, p. 1 07.

18 What is Political Philosophy?, p.34. 19 Idem. p.40.

20 Cf. STRAUSS. Pensées sur Machiavel. Paris, Payot, 1982, p.64.

21 Cf. STRAUSS, The Political Philosophy of Hobbes. 5 ed., Editora

Universidade de Chicago, 1963, p.XV-XVII.

22 Cf. O prefácio de Michael - Pierre Edmond a Pensées sur Machíavel, p.11.

23 “A interpretação, mesmo a mais superficial, mas que não é necessariamente

falsa, terá de considerar a arte de escrever como um domínio de técnicas de simulação e de

dissimulação tendo por fim diminuir, na opinião pública, em suas diversas manifestações, os

efeitos destruidores da teoria ou da verdade. Uma tal arte estaria a serviço da prudência ou da

moderação que deve acompanhar a sabedoria”. Cf. Sur un aft d'ecrire oublíé, Michel - Pierre

Edmond, prefácio a Pensées sur Machiavel. p.12.

24 STRAUSS. Pensées sur Machiavel,p.77-B.

25 STRAUSS, op. cit., p. 103.

26 Idem, ibidem. p.41.

27 Idem, ibidem, p.255.

28 Idem, ibidem, p.239.

29 Cf. Ética a Nicômaco, 1106a.

Page 109: A Guerra de Maquiavel

30 O Príncipe, Capo XV.

31 STRAUSS, op. cit., p.263.

32 Idem. ibidem, p.271.

33 Idem, ibidem, p.271.

34 Idem, ibidem, p.278.

35 Idem. ibidem. p.320.

36 Idem. ibidem, p.321.

37 Idem, ibidem, p.253.

38 República, 373e/374d.

39 Droit Naturel et Histoire, p.155.

40 Metafísica 1072b/l073a.

41 Cf. D.J. ALLAN.A Filosofia de Aristóteles. Lisboa, Ed. Presença, 1983, p.91.

42 Cf. DEL CIELO 278a1279a. A distinção do mundo sublunar e do estelar é

assim expresso por Aristóteles: “É certo que a ordem e a regularidade mostram-se muito mais

claramente nos movimentos celestiais ao redor de nós, ao passo que a inconstância e o acaso

mostram-se melhor entre os seres mortais”. Cf. De Partibus Animalium I, 1 641b 18-23. É

bom lembrar que ao nível humano Aristóteles divide a vida em três momentos: 1) comum ou

vulgar; 2) política; 3) contemplativa. Cf. Ética a Nicômaco I, 1.

43 Metafísica 980b/981b. 44 Metaffsica 981b/982a.

45 Ética a Nicômaco 1276a/1276b.

46 Ct. ETIENNE GILSON. A Evolução da Cidade de Deus. São Paulo, Editora

Herder, 1965, P.57.

47 Confíssões, V, 7.

48 Citado por E. BREHEIER e E. GILSON. In: História da Filosofia Cristã: São

Paulo. Vozes. 1972. p.120.

49 Op. Cit., p.122.

50 Suma Teológica XCI. 1.

51 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Regime dos Príncipes, p.133.

52 A Divina Comédia, Paraíso I. 103-113.

53 O Sofista, 239c/240c - 240c/242a.

54 Política 1277a/1277b.

55 Cf. Pensées sur Machiavel, p. 319, e What is Political Philosophy?, p.34.

Page 110: A Guerra de Maquiavel

56 Cf. LUC-FERRY e ALAN RENAUT. Sisteme et Critique. Bruxelles. Edition

Ousia. 1984. p.189. Cf. também LUC-FERRY, Philosophie Politique, Paris. PUF. 1984. p.91-

2.

57 Cf. LUC-FERRY, Sisteme et Critique. p.189. Num ensaio veemente I, Berlim

destaca a importância do ataque desfechado por Maquiavel à concepção monista herdada da

tradição que entendia o universo como uma vasta harmonia hierarquizada. A ruptura com este

modelo possibilitou compreender a liberdade e a autonomia dos homens, o que levou ao

desenvolvimento de novas concepções sobre o direito e o poder. “Este modelo monístico e

uniforme, diz Berlim, encontra-se no coração do racionalismo tradicional - religioso e teísta.

metafísico e científico, transcendental e naturalístico, - que têm caracterizado a civilização

ocidental. Esta rocha sobre a qual foram edificadas as crenças e as vidas ocidentais. que

Maquiavel rachou. Uma inversão tão total, é claro, não pode ter sido causada pelos atos de um

só indivíduo. Dificilmente teria acontecido numa ordem social e moral estável. Não há dúvida

que, além dele, muitos outros - antigos céticos, nominalistas e seculares medievais,

humanistas renascentistas - trouxeram sua cota de dinamite. A finalidade deste ensaio é

aventar que foi Maquiavel quem acendeu a mecha fatal”. Cf. O Problema de Maquiavel. In:

Sobre Maquiavel. Vários, UnB. 1978. p.61.

58 Cf. Pensées sur Machiavel. p.154.

59 Cf. H.G. GADAMER. Verdad y Método. Salamanca. Ediciones Slquene. 1977.

p.633.

60 Cf. LEFORT. op. cit., p.220. 236 e 638.

61 Cf. GADAMER, op. cit., p. 639.

62 LEFORT. op. cit., p. 299.

63 Cf. MERLEAU-PONTY. op. Cit., p. 331.

64 O Príncipe. Cap. XIII.

Page 111: A Guerra de Maquiavel

CONCLUSÃO

Lemos e relemos Maquiavel contagiados por sua fama de propagador do mal que

se enraíza principalmente na política. O maquiavelismo é o anti-humanismo radical. ele

expressa o diabolismo que atinge as relações humanas. Atraídos por este halo de perversão

torna-se-nos muito fácil associar o significado de sua obra com o pesado lastro de sua fama.

Mas, desde o momento em que começamos a vislumbrar um espaço entre a obra e a fama, é

que podemos entender que a perplexidade suscitada pelo nome de Maquiavel revela, na

verdade, toda a suspeita que guardamos com relação à política. Esta desconfiança da política

manifesta na repulsa ao maquiavelismo acabou por esconder ou distorcer alguns componentes

fundamentais do pensamento de Maquiavel. Um deles é o problema da fundação e

preservação do Estado, exposto principalmente em O Príncipe onde ele não se limita à idéia

da manutenção do poder pelo poder, independente dos meios a que se possa recorrer para isto.

mas procura mostrar que o Estado é a instituição fundamental porque sem ele é impossível

qualquer vida civilizada. Maquiavel vai mais além ao tematizar sobre algo geralmente

esquecido por seus comentaristas: as formas de organização política. Nos Discursos sobre a

Primeira Década de Tito Lívio, ele faz sua profissão de fé republicana. Ele entende que os

regimes republicanos são aqueles em que as classes populares têm maior controle sobre os

órgãos do Estado e, portanto, que é nas repúblicas onde melhor são realizadas as virtudes dos

cidadãos. Se a fundação e a preservação do Estado são os acontecimentos decisivos e

determinantes, é o povo que, a seguir, se torna o depositário dos costumes, das leis e das

liberdades públicas; pois o povo, diz Maquiavel, tende a ser mais constante do que os

príncipes. Maquiavel, entretanto, não tem ilusões de que o povo possa vir a se autogovernar;

ele pode, nas repúblicas, limitar de múltiplas formas o poder dos dirigentes, mas é o

Príncipe/Estado, ao reter o monopólio do conhecimento político e da força, que tem de

impedir, ao fim e ao cabo, que os conflitos e as disputas entre grupos ou classes levem a

sociedade à dilaceração e à dispersão.

A obra de Maquiavel realizou a quebra com a Grande Tradição do pensamento

clássico. Para alguns de seus intérpretes, como Leo Strauss, isso significa um estreitamento no

horizonte do pensar político, isto é, Maquiavel não seria o pensador que inaugurou o

Iluminismo, mas, ao contrário, teria dado início a uma época de obscurecimento. A

modernidade pós-maquiaveliana, através de duas de suas principais matrizes teóricas, o

historicismo e o positivismo, teria perdido de vista a verdadeira sabedoria e o padrão que lhe

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permitiria interpretar e julgar corretamente a realidade: o direito natural clássico.

Consideramos, porém, que a quebra de Maquiavel com os antigos ampliou nossa capacidade

de tematizar o político. Depois dele já não há mais lugar para concepções cosmo-teológicas

que compreendiam o mundo ordenado por uma hierarquia de essências estabelecidas para

sempre. A quebra de Maquiavel possibilitou afastar este manto ideológico acoplado com a

visão religiosa do Universo, da sociedade e do poder.

Ao romper com esta vasta tradição, Maquiavel sacudiu com as ilusões que os

homens costumam resguardar como o que lhes é mais caro: a idéia de uma justiça divina ou a

crença num futuro onde eles, finalmente, se reconciliarão consigo mesmos. A fama de

Maquiavel, expressa no maquiavelismo, reside na afirmação de que o mal nunca será

eliminado. Ora, Maquiavel não faz guerra apenas ao direito natural clássico, mas ao

Cristianismo e sua aposta num outro mundo perfeito; ele ataca a tradição milenarista,

messiânica ou não, que apostava no advento do juízo final, ele rejeita, desse modo, a idéia das

utopias que propõem uma época de comunicação transparente, onde o reino da liberdade

supere definitivamente o reino da necessidade. Ele afirma que essas concepções não passam

de delírios éticos. A desmedida expectativa e a esperança que os homens depositam em

instâncias isentas do pecado, da injustiça, da má-fé, da dor, do poder e do medo, caem por

terra diante das afirmações de Maquiavel. Ele deprecia e desencanta; não há salvação final, o

Paraíso é um blefe, o que não quer dizer que as ilusões devam ser descartadas e esquecidas,

pois elas fazem parte dos costumes e do imaginário dos homens. A revelação dessa verdade é

que tornou Maquiavel um autor perigoso à luz do Cristianismo e dos humanismos.

As utopias modernas, como religiões secularizadas, ao pretenderem trazer o céu à

terra, acabaram por desprezar um assunto dos mais relevantes que trata da organização do

poder; pois, se o mal nunca será eliminado, ele pode ser mais ou menos evitado. Este

problema espinhoso é objeto da reflexão política de Maquiavel e isto porque ele não se

interessa em saber como os homens deveriam viver, mas de fato como eles podem viver. Ele

não sonha com o melhor dos mundos, mas limita-se a buscar o menos ruim dos regimes.

Assim ele faz vista grossa às seduções de um futuro longínquo e indistinto para empenhar-se

maximamente nas possibilidades do presente. Numa sociedade isenta de todo mal, não haverá

lugar para a contestação e a divergência, a verdade e a justiça estão congeladas para sempre.

Ocorre que uma sociedade desse tipo é inconcebível para Maquiavel; é por isso que a

malignidade que se lançou contra ele funda-se também em sua veemente rejeição a todo

projeto utópico por ter como fim um mundo certamente inumano. Ao mostrar que o poder, a

sociedade ou mesmo a vida humana se constroem sobre a Fortuna, a indeterminação, o

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inesperado, Maquiavel formula uma genuína teoria da liberdade. Nenhum poder é pleno. Uma

sociedade conforme consigo mesma é impossível. A aposta numa época em que os homens

incorporem regras fixas para todos é coisa de insensatos ou fanáticos. Ao rejeitar a sociedade

sem conflitos, ele abre a possibilidade da crítica à noção de utopia, a seu inesgotável poder de

sedução e a sua formidável carga ideológica. O totalitarismo contemporâneo abriu espaço

através do desejo de utopia. E o preço pago pelo bloqueio da reflexão política em nome do

projeto utópico é um dos componentes da redução das possibilidades da democracia.

Pressionados por essa crise sem precedentes redescobrirnos o pensamento de Maquiavel e

encontramos na crueza de sua lição a desconfiança de que a idéia de reconciliação final da

espécie humana carrega em seu bojo a ameaça da autoridade total. A crítica das utopias é

condição para o renascimento da filosofia política. E Maquiavel aponta esse caminho.

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