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História: debates e tendências. Passo Fundo, V. 6, nº 2, p. 163-184, 2º sem. 2006 Publicada em 2007 A GUERRA FRIA INTERNALIZADA: da crise do Populismo à política externa do Governo Castelo Branco (1964-1967) André Luiz Reis da Silva * Resumo Este trabalho busca identificar os postulados de atuação do Brasil no contexto interna- cional durante o governo Castelo Branco (1964-1967) e sua articulação com a crise do populismo. Defende a hipótese de que a segurança não subordinou o desenvolvimento nesse período – como as interpretações correntes costumam sugerir – mas sim que a se- gurança articulou-se com uma nova opção de desenvolvimento: o desenvolvimentismo associado ao capital internacional. Dentro dessa perspectiva, este trabalho discute e ma- tiza os princípios fundamentais da política externa do Governo Castelo Branco, bem como sua articulação com a internalização da Guerra Fria. Palavras-chave: Guerra Fria - Política Externa - Castelo Branco Abstract The present study aims at the identification of Brazil’s acting assumption in the interna- tional context during Castelo Branco’s government (1964-1967) and the populism cri- ses. It supports the hypothesis that development was not subjected to security in that pe- riod – as current views usually suggest. Indeed, security was associated as a new option of development: development linked to foreign capital. Within this point of view, this work discusses and varies the main principles in the foreign policy of Castelo Branco’s government and its association to internalization of Cold War. Key words: Cold War - Foreign Policy - Castelo Branco. * Professor de História das Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA) e do Curso de Graduação em Rela- ções Internacionais da UFRGS. Mestre em História e doutorando em Ciência Política (UFRGS). E- mail: [email protected]

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História: debates e tendências. Passo Fundo, V. 6, nº 2, p. 163-184, 2º sem. 2006

Publicada em 2007

A GUERRA FRIA INTERNALIZADA: da crise do Populismo à política externa do Governo Castelo Branco (1964-1967)

André Luiz Reis da Silva

*

Resumo

Este trabalho busca identificar os postulados de atuação do Brasil no contexto interna-cional durante o governo Castelo Branco (1964-1967) e sua articulação com a crise do populismo. Defende a hipótese de que a segurança não subordinou o desenvolvimento nesse período – como as interpretações correntes costumam sugerir – mas sim que a se-gurança articulou-se com uma nova opção de desenvolvimento: o desenvolvimentismo associado ao capital internacional. Dentro dessa perspectiva, este trabalho discute e ma-tiza os princípios fundamentais da política externa do Governo Castelo Branco, bem como sua articulação com a internalização da Guerra Fria.

Palavras-chave: Guerra Fria - Política Externa - Castelo Branco

Abstract

The present study aims at the identification of Brazil’s acting assumption in the interna-tional context during Castelo Branco’s government (1964-1967) and the populism cri-ses. It supports the hypothesis that development was not subjected to security in that pe-riod – as current views usually suggest. Indeed, security was associated as a new option of development: development linked to foreign capital. Within this point of view, this work discusses and varies the main principles in the foreign policy of Castelo Branco’s government and its association to internalization of Cold War.

Key words: Cold War - Foreign Policy - Castelo Branco.

* Professor de História das Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA) e do Curso de Graduação em Rela-

ções Internacionais da UFRGS. Mestre em História e doutorando em Ciência Política (UFRGS). E-mail: [email protected]

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Introdução

O golpe militar de 1964, no Bra-sil, representou o desfecho de uma pro-funda luta envolvendo projetos antagô-nicos que disputavam poder e que se encontravam, nos momentos anteriores a ele, em situação de instável equilí-brio. A solução advinda com o golpe veio acompanhada da instauração de um regime militar, apoiado por civis, que imprimiu um modelo de desenvol-vimento econômico gestado e idealiza-do por aquele novo bloco de poder que estava se assenhorando do país. O mo-delo político-econômico populista, até então vigente, foi interrompido, para ceder espaço a uma modernização con-servadora: modernização, porque pro-curava consolidar a implantação das relações capitalistas no Brasil; conser-vadora, porque negava, à boa parcela da população, os benefícios econômi-cos e políticos advindos dessa mesma modernização. Assim, o golpe militar (e a implantação de seu regime) alterou o equilíbrio de forças e introduziu uma reorientação no curso histórico do país, em suas esferas interna e externa – ou seja, em sua política externa. O objeti-vo deste artigo é analisar a rearticula-ção da política externa brasileira duran-te o Governo Castelo Branco, conside-rando a articulação entre o contexto interno e externo.

Contexto interno e externo: o golpe militar diante da

Guerra Fria

Depois do Golpe de 31 de março de 1964, os militares passaram de uma condição de força moderadora para exercer o poder de fato no Brasil. Com um discurso anticomunista, liberal, cristão e ocidental, eles procuraram executar seu projeto de desenvolvimen-to do país. O Golpe de Estado buscou impedir a ascensão da esquerda no po-der, como também interromper o de-senvolvimento de tipo nacional-populista, e colocar o Brasil nos qua-dros do sistema internacional capitalis-ta a partir de um novo modelo de inser-ção. O modelo de desenvolvimento populista herdado da era Vargas - basi-camente de substituição de importações com ênfase no capital nacional - che-gava a um impasse distributivo e políti-co, e os seus críticos adensaram-se, configurando uma dualidade de pode-res, que refletia a própria dualidade de interesses das classes sociais.1 O golpe fez emergir um novo bloco de poder amparado tanto na bur-guesia internacionalizada, como nos oficiais ligados à Escola Superior de Guerra e nos setores mais conservado-res da classe média e da elite política. Também estão associados a este grupo militares nacionalistas de perfil conser-

1 IANNI, Octavio. O colapso do populismo no

Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

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vador. O “núcleo duro” político golpis-ta compunha-se, entre os principais nomes de militares e civis, de Castelo Branco, Carlos Lacerda (Governador do Rio), Ademar de Barros (Governa-dor de São Paulo), Magalhães Pinto (Governador de Minas Gerais), e Ar-thur da Costa e Silva, que viria a se tornar o ministro da Guerra. Os inte-grantes desse bloco de poder e os gru-pos a eles associados, certamente, vari-avam nas suas concepções e nos inte-resses setoriais específicos, mas agluti-naram-se em torno da idéia de que se fazia necessário, no Brasil, acontecer uma profunda reorientação no modelo de desenvolvimento, de modo a corrigir os “perigosos desvios” da política po-pulista – sinalizados com a aproxima-ção da esquerda ao poder. O Comando Supremo da Revolu-

ção (composto pelo General Costa e Silva, pelo Almirante Rademaker e pelo Brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo) colocou, na presidên-cia provisória do Brasil, Ranieri Mazzi-li no dia 2 de abril e institucionalizou o golpe quando promulgou, no dia 9 do mesmo mês, o AI-1 (Ato Institucional). Um oficial ligado à ESG e um dos mais influentes golpistas, Humberto de A-lencar Castelo Branco, no dia 11 de abril, foi escolhido como o novo Presi-dente da República pelo núcleo duro golpista, e empossado no dia 15. Em seguida ao golpe, foi feita uma “limpe-za” política no país, com cassações e expurgos envolvendo mais de uma cen-tena de pessoas, entre lideranças sindi-

cais e políticas. Algumas lideranças políticas que apoiaram o golpe, mas se opunham à institucionalização do re-gime, dentre os quais Juscelino Kubits-chek e Carlos Lacerda, serão margina-lizadas com o passar do tempo. Mesmo com a Vice-Presidência ocupada por um membro do PSD, o novo governo consistia basicamente numa aliança entre os militares e a UDN. Porém, paulatinamente, o poder foi passando para as mãos dos milita-res, e foi-se institucionalizando o regi-me militar. Em outubro de 1965, Caste-lo Branco promulgou o AI 2, que pro-vocou a extinção dos partidos políticos e autorizou apenas dois novos movi-mentos políticos. Em fevereiro de 1966, foi promulgado o AI 3, que tor-nou a eleição dos governadores e vice-governadores indireta, e instituiu a in-dicação dos prefeitos das capitais dos Estados e de cidades consideradas de “segurança nacional”. Numa tentativa de garantir a continuidade do regime, em janeiro de 1967, foi promulgada uma nova Constituição. Também foram promulgadas a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional, inspirada nos princípios “anti-subversivos” adotados pelo governo. No campo econômico, procedeu-se à luz de uma nova orientação, com a indicação de dois economistas liberais de tendência pró-norte-americana, para ocuparem os principais cargos econô-micos. Otávio Gouveia Bulhões assu-miu o Ministério da Fazenda e Roberto Campos, o Ministério do Planejamento.

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Uma das primeiras medidas tomadas pela nova equipe econômica foi a revo-gação da lei que limitava a remessa de lucros ao exterior. No dia 15 de julho de 1964, foi obtida a aprovação da Câ-mara, após a cassação dos deputados mais nacionalistas, do projeto de lei que substituía a limitação por uma gra-dação na taxa de remessa de lucros. O Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) foi implantado em Julho de 1964, para o triênio 1964-1966, com objetivos de controlar a in-flação, retomar o desenvolvimento e corrigir “distorções do sistema”. Base-ado em leituras monetaristas, esse pla-no elegeu o controle da inflação como o principal objetivo do plano.2 Na prá-tica, as realizações ficaram aquém dos objetivos enunciados, mas logrou-se a implantação do modelo liberal-associado e a remodelação do capita-lismo no Brasil. Por meio da compres-são dos salários, da elevação da taxa de juros, das garantias e seguranças aos investimentos estrangeiros e das retra-tações às empresas estrangeiras encam-padas durante o Governo Goulart, pro-curou-se criar um clima favorável à comunidade financeira internacional em relação ao Brasil.3

2 BRASIL. Ministério do Planejamento e coor-

denação econômica. Programa de Ação Eco-

nômica do Governo (1964-1966). Documen-tos IPEA. Nov. 1964. 240 p.

3 Para obter mais informações, ver: MARTO-NE, Celso. Análise do Plano de Ação Eco-nômica do Governo (PAEG-1964-1966). In:

Além dos condicionamentos in-ternos, os constrangimentos externos constituem fundamento central na aná-lise da formulação da política externa. Convém destacar alguns elementos formativos do sistema internacional no início dos anos 1960, para verificar sua inter-relação com a política externa brasileira no início do regime militar. O sistema internacional pós-Segunda Guerra Mundial foi marcado pela Guerra Fria, uma tensão capitaneada pelos Estados Unidos e União Soviéti-ca que veio a se tornar o elemento arti-culador do sistema internacional, che-gando a subjugar e congelar diversas outras tensões da situação internacio-nal. A Guerra Fria chegou a conhecer momentos mais “quentes”, que foram acontecendo num crescente, os quais culminaram com a crise dos mísseis em Cuba em 1962. A partir de então, com o reconhecimento mútuo da capacidade destrutiva de ambas as superpotências, advindas da ascensão política e diplo-mática da URSS e dos países do Leste Europeu alcançando relativa paridade com os EUA e a Europa Ocidental, iniciou-se um processo de coexistência pacífica (e posteriormente a disten-são)4, calcado no respeito às respecti-vas áreas de influência. Esse processo consubstanciou-se nos acordos de limi-

LAFER, Betty Mindlin. (org.) Planejamento

no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. 4 Embora se reconheça que a détente propria-

mente dita seja um fenômeno dos anos 1970.

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tação de armas nucleares e nos enten-dimentos de proibições dos testes nu-cleares, o que na prática procurava im-pedir a proliferação de tal tecnologia. Tais entendimentos foram denunciados pelas potências emergentes, como uma tentativa russo-americana de congelar o poder no sistema mundial. Ao mesmo tempo, a Guerra Fria direcionava-se para a periferia do sistema mundial, onde ambas superpotências disputavam poder e influência. Todavia, novos e-lementos surgiram e complexificaram o sistema internacional, dentre os quais estão a descolonização, a ruptura chi-nesa no seio do bloco soviético e a per-da do poder relativo dos EUA e da U-nião Soviética.5

Nas década de 1960, começaram a ficar mais nítidos os sinais da frag-mentação política e da multipolaridade econômica no sistema internacional. Dentro do quadro de tentativa de con-gelamento do poder mundial, perce-bem-se as fissuras surgidas no sistema, representadas pela ascensão política e econômica de novos atores. Assim, a bipolaridade, sob a hegemonia norte-americana, estava cedendo espaço a um sistema mundial mais complexo, en-quanto se via o crescimento acelerado do Japão e da Alemanha Ocidental, que transformava-os em competidores dos

5 SARAIVA, José Flávio (Org.). Relações

Internacionais contemporâneas: da constru-ção do mundo liberal à globalização - de 1815 aos nossos dias. Brasília: Paralelo 15, 1997, p. 258-259

EUA e tornava-os novos pólos de atra-ção.

A reação americana ao risco de perda de influência em áreas do Tercei-ro Mundo veio com uma crescente mi-litarização nos anos 60, associada a reformas econômicas, políticas e soci-ais na periferia a partir do projeto Ali-ança para o Progresso, o qual, com a morte do Presidente Kennedy e a as-censão de Lindon Johnson, será lenta-mente esvaziada. A malograda experi-ência norte-americana no Vietnã ainda estava no início, mas já começava a ensinar que apenas a detenção de tec-nologia de guerra e armamento nuclear não era o suficiente para manter o sta-tus mundial. Fazia-se necessário, tam-bém, impedir a ascensão de movimen-tos que pudessem vir a provocar a rup-tura desse sistema, tais como governos populistas, esquerdizantes ou naciona-listas. A experiência diplomática dos últimos governos populistas no Brasil muito contribuiu para esta percepção norte-americana, como veremos a se-guir.

Da política externa independente ao paradigma

da interdependência

A Política Externa Independente (PEI) abarcou os períodos dos gover-nos Jânio Quadros (1961) e João Gou-lart (1961-1964), e manteve uma relati-va continuidade, apesar de terem ocor-

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rido cinco trocas de chanceleres.6 O núcleo ideológico básico da PEI assen-tava-se em cinco princípios que foram enunciados oficialmente: intensificação das exportações brasileiras para todos os países; formulação autônoma do planejamento econômico nacional; manutenção da paz e o desarmamento; autodeterminação dos povos e preva-lência do direito internacional; e desco-lonização completa.7 Assim, o tema do desenvolvimento e da autodetermina-ção das nações deu a tônica do discurso e da prática da PEI. Concretamente, entre as ações de maior visibilidade, percebe-se, sob a PEI, o reconhecimen-to diplomático dos países socialistas, o apoio a Cuba (inclusive com a conde-coração de Che Guevara, por Jânio Quadros), a condenação do colonialis-mo português na África e a aproxima-ção do Brasil com a América Latina.8 A estratégia dos governos popu-listas consistia na exportação de produ-tos primários para os países industriais e na ampliação da exportação de produ-tos industrializados para os países sub-desenvolvidos, em especial a África. Para que o brasil mundializasse suas relações econômicas, era necessário 6BUENO, C. Dos alinhamentos ao Nacional

Desenvolvimentismo. In. CERVO, Amado; BUENO, Clodoaldo. História da política ex-

terior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992. 7 VIZENTINI, Paulo. Relações Internacionais

e Desenvolvimento: o Nacionalismo e a Polí-tica Externa Independente. Petrópolis: Vozes, 1995, p.195-196.

8 Ibid., p. 228.

que se libertasse das rígidas fronteiras estabelecidas pela Guerra Fria, aproxi-mando-se, embora timidamente, do neutralismo terceiro-mundista. Como resultados, a PEI ampliou a área geo-gráfica de atuação do Brasil e mundia-lizou seu espectro de interesses. Como consistia em uma política sem com-promissos entre os dois blocos, logrou a simpatia dos países do Terceiro Mun-do recém-descolonizados e colocou-se como um respeitado interlocutor em fóruns multilaterais, tais como a ONU. Paralelamente a isso, a PEI colhia críticas internas e externas. Sua implan-tação ocorreu quando, internamente, presenciava-se no Brasil um governo que era alvo de pesados ataques por parte dos setores conservadores. Exter-namente, os EUA mudavam sua políti-ca externa para a América Latina, ru-mando do descaso para a crescente militarização. O golpe militar, no Bra-sil, foi uma conjunção desses fatores internos e externos, somados a uma crise geral do populismo no país. Quando Castelo Branco assumiu o poder, a PEI foi repudiada pelos no-vos protagonistas e a política externa sofreu uma nova orientação, calcada no ideário golpista. Em 4 de abril de 1964, Araújo Castro transferiu o cargo de Ministro das Relações Exteriores para o Embaixador Vasco Leitão da Cunha, que, nessa ocasião, discursou de im-proviso, inclusive confessando nada saber sobre a nova orientação da políti-ca externa do Brasil, porque ainda não havia conversado com o Presidente da

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República, alegando inclusive que o próprio Ranireri Mazzilli havia decla-rado estarem “vivendo um governo de transição”.9 Ainda que o Chanceler Vasco Leitão tenha distribuído uma nota à imprensa, três dias depois da sua posse, defendendo o Golpe de 31 de março e afirmando que o Brasil conti-nuaria a manter relações com todos os países,10 de fato, as primeiras inova-ções na orientação da política externa surgiriam no discurso de posse do pre-sidente, em 15 de abril de 1966, quan-do Castelo Branco afirmou:

A independência do Brasil cons-tituirá o postulado básico da nos-sa política internacional. Todas as nações amigas contarão com a le-aldade dos brasileiros, que honra-rão os tratados e os pactos cele-brados. Todas as nações demo-cráticas e livres serão nossos ali-ados, assim como os povos que quiserem ser livres pela demo-cracia representativa contarão com o apoio do Brasil para a sua autodeterminação. As históricas alianças que nos ligam às nações

9 ARAÚJO Castro passa o Itamarati a Vasco

Leitão da Cunha. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1º caderno, p. 05, 05 abr. 1964.

10 NOTA distribuída à imprensa pelo Chanceler Vasco Leitão da Cunha, em 7 de abril de 1964. Revista Brasileira de Política Interna-

cional (RBPI). Rio de Janeiro, ano VII, Nº 26, junho de 1964.

livres das Américas serão preser-vadas e fortalecidas.11

Vasco Leitão da Cunha, agora já plenamente inteirado da nova orienta-ção da política externa brasileira, con-cedeu no dia 6 de julho uma entrevista, no qual, discorrendo sobre os mais im-portantes problemas internacionais, afirmou:

Em primeiro lugar, a recolocação do Brasil num quadro de relações prioritárias com o Ocidente. Isto significa defender a política tra-dicional de boa vizinhança na América, a segurança do Conti-nente contra a agressão a subver-são vindas de fora ou de dentro dele; a consolidação dos laços de toda a ordem com os Estados U-nidos, nosso grande vizinho e amigo do norte; ampliação de nossas relações com a Europa Ocidental e com a Comunidade Ocidental de Nações. Em segun-do lugar diria que um dos objeti-vos fundamentais de nossa políti-ca exterior tem de ser o de traba-lhar para ampliar o mercado para os produtos de exportação do Brasil.12

11 CASTELO Branco vai estimular livre em-

presa com justiça social. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 de abr. 1964, 1º caderno, p. 03.

12 ENTREVISTA do Chanceler Vasco Leitão da Cunha sobre a Política Exterior Brasilei-

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Em 31 de julho de 1964, Castelo Branco proferiu outro discurso, no qual fez a crítica à política de “independên-cia” do Governo João Goulart e afir-mou que a orientação da política exter-na brasileira deveria, a partir desse momento, ser “interdependente”, intro-duzindo ainda o conceito de círculos concêntricos. Esse discurso fornece muitos elementos para a nossa análise. Em primeiro lugar, a formulação da política externa buscava o fortaleci-mento do poder nacional e das possibi-lidades de, a partir daí, alcançar o pleno desenvolvimento econômico e social. Com esse objetivo, Castelo Branco associava a não-intervenção à autode-terminação, condição necessária para um país viver soberanamente. Em se-guida, criticou a PEI, afirmando que, para perseguir os objetivos nacionais, haviam sido preconizadas duas opções: a de independência e a de neutralismo. Castelo Branco criticou ambas as polí-ticas, afirmando que, no contexto de uma confrontação de poder bipolar, com o divórcio político-ideológico en-tre os dois respectivos centros,

a preservação da independência pressupõe a aceitação de um cer-to grau de interdependência, quer no campo militar, quer no eco-nômico, quer no político. Ne-nhum país, seja no mundo oci-

ra. Revista Brasileira de Política Interna-

cional. Rio de Janeiro: IBRI, ano VII, nº 27, set. 1964, p. 595.

dental, seja no soviético, poderá defender-se sozinho contra um ou outro dos centros de poder. A de-fesa tem de ser necessariamente associativa. (...). O interesse do Brasil coincide, em muitos casos, em círculos concêntricos, o da América Latina, do Continente Americano e da comunidade oci-dental.13

Mais adiante, Castelo Branco criticou o neutralismo, afirmando que ele teria assumido algumas feições bá-sicas: passividade, indeterminação, emotividade imatura e fuga da realida-de internacional. Quanto ao naciona-lismo, Castelo Branco afirmou que este havia se tornado uma opção disfarçada em favor dos sistemas socialistas, além de ter agravado tensões internas e cria-do contradições na política externa.14 Em seguida, Castelo Branco rea-firmou a prioridade de relações com os

13 BRASIL. Ministério das Relações Exterio-

res. A política exterior da Revolução brasi-

leira. Seção de Publicações. 1966. Confor-me entrevista concedida por Vasco Leitão da Cunha ao CPDOC, esse discurso foi escrito por Carlos Calero, que o elaborou a partir de subsídios fornecidos pelo próprio Vasco Leitão. Castelo Branco teria apenas acres-centado algumas idéias suas ao discurso ori-ginal. Ver: CUNHA, Vasco Leitão. Diplo-

macia em alto-mar (Depoimento prestado ao CPDOC). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1994, p. 271.

14 BRASIL. Ministério das Relações Exterio-res. A política exterior da Revolução brasi-

leira. Seção de Publicações. 1966, op. cit.

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diversos grupos de países, de acordo com a lógica dos círculos concêntricos: em primeiro lugar, com a América La-tina, com quem, segundo ele, procurar-se-ia ampliar as relações com todos os países, em especial os limítrofes, e for-talecer a ALALC e a OEA. No segundo círculo concêntrico - que compreende todo o continente americano - Castelo Branco procurou ressaltar o panameri-canismo, afirmando que, em relação aos EUA, “temos a convicção de que o Brasil e a grande nação norte-americana cruzam seus interesses eco-nômicos e comerciais no plano de uma digna política de uma amizade recípro-ca”, lembrando que, para os EUA, o desenvolvimento do Brasil também constituiria um benefício político. Quanto ao terceiro círculo concêntrico - o mundo ocidental - Castelo Branco fez menção a ampliar a cooperação com a Europa Ocidental. Com relação a outros espaços, lembrou, também, as possibilidades advindas das relações com os países da África e da Ásia. Quanto ao Leste Europeu, Castelo Branco considera que - embora hou-vesse divergências quanto à filosofia política praticada nesses países - o co-mércio entre o Brasil e o Leste Europeu poderia ser mutuamente proveitoso.15 O que ocorreu foi a construção, pelo bloco de poder que se assenhorou do país, de um quadro conceitual para explicar a nova orientação diplomática,

15 Ibid, s/p.

o qual se orientava com um forte com-ponente ideológico, sendo a Doutrina de Segurança Nacional seu substrato básico. Essa doutrina, aplicada pelo regime que adveio ao Golpe, foi cons-truída pela Escola Superior de Guerra, a partir de subsídios teóricos da Natio-

nal War College norte-americana. Seus fundamentos consistiam na associação entre segurança e desenvolvimento. Para alcançar o desenvolvimento, era condição necessária obter a segurança, e esta estava calcada na luta contra os inimigos interno e externo, identificado com o comunismo, o não-alinhamento e a crítica aos valores ocidentais. A nova orientação diplomática propugna-va que a política externa tinha de ser interdependente, dada a interpenetra-

ção do capital e das questões de segu-rança.

Assim, a Guerra Fria consistia numa das principais fontes de inspira-ção das doutrinas de segurança nacio-nal. A ênfase da Guerra Fria no discur-so político de Castelo Branco era evi-dente, e a ESG, certamente, influenciou nas decisões estatais, colaborando para a construção da hegemonia de um novo bloco de poder. Entretanto, não se pode deixar de considerar que esse conjunto de aspectos refere-se apenas a um ele-mento do binômio norteador da política externa do período - a segurança. Nos-sa hipótese é a de que tanto a segurança como o desenvolvimento constituíam o eixo articulador da nova orientação da política externa. A partir da análise do

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período, entendemos que a outra di-mensão - o desenvolvimento - também forjou, de forma expressiva, a política externa do Governo Castelo Branco. A dimensão político-estratégica disputava com a econômica, sendo que os inte-resses inerentes a esta constituíam o outro elemento do binômio - o impera-tivo do desenvolvimento- de tipo libe-ral e associado. Nesse sentido, Castelo Branco afirmava no discurso de 31 de julho de 1964 que o reconhecimento da interdependência seria entendido como inevitável, embora não devesse limitar as possibilidades de expansão do co-mércio: “(...) é necessário reconhecer um certo grau de interdependência, sem contudo ser levado ao ponto de cercear contatos comerciais e financeiros com países de diferentes sistemas políticos e econômicos.”16 O discurso calcado na Guerra Fria era utilizado mais para o consumo interno - internalização da política ex-terna. Lembrando constantemente do perigo interno e externo do comunis-mo, os militares legitimavam tanto a sua intervenção como a eliminação da oposição. Externamente, o discurso da Guerra Fria, que no continente ameri-cano encontrava eco, era utilizado co-mo elemento de legitimidade e barga-nha. Fortalecia-se a idéia de que, para não revolucionar, era necessário desen-volver e reformar, mediante a entrada massiva de recursos.

16 Ibid, s/p.

Assim, ao mesmo tempo em que o Brasil reafirmava a prioridade das relações com o mundo ocidental, decla-rava a necessidade de comerciar com todos os países. Nesse sentido, em ju-nho de 1964, o Presidente Castelo Branco enviou uma mensagem a Nikita Kruchov, afirmando o interesse do Bra-sil em incrementar relações comerciais com a União Soviética. Seguiu-se a esse comunicado a visita do Embaixa-dor Assis Chateubriand à URSS, em agosto de 1965, com vistas à realização de contatos na área cultural. No mês seguinte, o Ministro Roberto Campos visitou a URSS, seguido por uma mis-são comercial brasileira, em novembro de 1965. Em novembro de 1966, o Ministro do Interior da União Soviética visitou o Brasil e assinou um protocolo comercial. As relações comerciais com os países do Leste Europeu, igualmen-te, se desenvolveram. Essas relações eram definidas pelo próprio Ministro Roberto Campos como “puramente comerciais” e afirmando que o Brasil deveria ir buscar capital onde ele esti-vesse.17 Devemos igualmente lembrar que, para o mundo capitalista, os novos inimigos comunistas eram a China e Cuba, uma vez que a URSS e os signa-tários do Pacto de Varsóvia procura-vam a coexistência pacífica com o campo capitalista, ao mesmo tempo em

17 RC: Desenvolvimento firme no comércio

Brasil-Rússia. Diário de Notícias, Porto A-legre, p. 03, 1 set. 1965.

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que Guerra Fria direcionava-se para a periferia do sistema mundial. Enquanto isso, a China tinha um discurso socia-lista militante, buscava a independência do bloco socialista e desenvolvia auto-nomamente tecnologia nuclear.18 No plano continental, a Revolução Cubana de 1959 introduziu uma fissura no po-der dos EUA frente a América Latina, aterrorizando os governos conservado-res. Além disso, Fidel Castro referia-se constantemente aos militares brasilei-ros como “gorilas”. Assim, entende-se o distanciamento da política externa brasileira em relação ao governo cuba-no e chinês.

A prioridade das relações hemisféricas e a defesa

continental: relações com os Estados Unidos

O apoio diplomático norte-americano veio logo a seguir ao Golpe. No dia 2 de abril, com João Goulart ainda em território Nacional, os Esta-dos Unidos reconheceram o novo re-gime. Os norte-americanos tinham pressa. Em resposta, os militares brasi-leiros promoveram uma reaproximação do Brasil com os Estados Unidos, re-conhecendo a liderança deste país no 18 Ver: VIZENTINI, Paulo. Da Guerra Fria à

Crise (1945-1995), op. cit.; e HOBS-BAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve

século XX. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1995.

hemisfério ocidental. Na tentativa de eliminar todos os vestígios deixados pela Política Externa Independente, os militares dispuseram-se a colaborar com os EUA na defesa hemisférica para, assim, colocarem-se sob o seu “guarda-chuva nuclear” e retomar os investimentos e empréstimos america-nos, que haviam sido suspensos no período da Presidência de João Goulart. Contudo, esse alinhamento não foi tão automático quanto se apregoa. Embora as boas relações com os EUA fossem consideradas prioritárias, veri-fica-se que, com o tempo, foram sur-gindo vários pontos de desacordo nas posições dos dois países. O primeiro encontro de Castelo Branco com o embaixador norte-americano, Lincoln Gordon, ocorreu no Palácio do Planalto, no dia 18 de abril de 1964, com o objetivo de buscar uma tomada geral de contatos. Nesse encon-tro, Gordon - apesar de um pouco reti-cente com as repercussões que a pro-mulgação do Ato Institucional e algu-mas cassações, como a do economista Celso Furtado (membro do comitê da Aliança para o Progresso), provocaram na opinião pública norte americana - reafirmou a disposição de os Estados Unidos apoiarem o Brasil.19 Apesar da expressiva aproxima-ção do Brasil com os EUA, devem ser feitas algumas matizações: Em primei-

19 DULLES, John W. F. Castelo Branco: o

presidente reformador. Brasília: Ed. UnB, 1983, p.16-17.

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ro lugar, se no plano diplomático-estratégico-militar o Brasil permaneceu alinhado aos EUA, no plano econômi-co-comercial, ele buscou ampliar e manter parcerias extra-hemisféricas, inclusive com os países socialistas. Em segundo lugar, em especial após o ano de 1966, o governo brasileiro começou a dar sinais cada vez mais fortes de insatisfação com a falta de retorno eco-nômico, que seria a contrapartida ao apoio político prestado aos EUA. Embora as boas relações com os EUA fossem consideradas prioritárias, verifica-se que, com o tempo, foram se delineando vários pontos de desacordo nas posições dos dois países, tais como na reforma da Carta da OEA, na ajuda econômica aquém das expectativas brasileiras, e nas críticas internas, nos EUA, com referência ao apoio na ma-nutenção dos regimes militares. Além disso, também houve divergências no campo da tecnologia nuclear. Mesmo evitando atingir os EUA diretamente, os dirigentes brasileiros começavam a esboçar a orientação, que foi aprofun-dada nos governos seguintes, de que o Brasil não poderia abrir mão do uso da tecnologia nuclear para fins pacíficos. Na realidade, as desavenças situ-avam-se, principalmente, no campo econômico. O Brasil não vinha rece-bendo a ajuda norte-americana que considerava necessária ao seu desen-volvimento, como contrapartida ao apoio no campo político-militar. Ainda sob o enfoque desenvolvimentista, o Brasil buscou diversificar os parceiros

comerciais, mesmo com sua opção pelo mundo ocidental. Esse é o caso dos acordos de comércio com os países do Leste Europeu. Ante as dificuldades colocadas aos países em desenvolvi-mento, o Brasil referia-se, seguidamen-te, à questão da deterioração dos ter-mos de troca, inclusive na ONU. Nesse sentido, o Brasil chegou a se solidarizar com a luta terceiromundista na ONU, especialmente as reivindicações dos países em desenvolvimento (G77). Embora com um discurso mais mode-rado do que os populistas da PEI, o Brasil detinha a força de ser um país com um governo conservador e aliado aos EUA. Assim, no dia 15 de abril de 1966, o Secretário-Geral do Itamaraty, Manuel Pio Corrêa, afirmava que “(...) as relações entre os Estados Unidos e o Brasil são excelentes, mas de qualquer modo existem áreas de desacordo”. Parecia que o diplomata estava aludin-do o pedido constante do Brasil para que os Estados Unidos lhe dessem pre-ferência comercial.20 Em agosto de 1966, face às declarações feitas pelo Presidente Lyndon Jonhson, condenan-do as ditaduras na América Latina, o Itamaraty teve de responder que o Bra-sil também estava do lado daqueles que desejavam governos constitucionais e afinados com os princípios essenciais da democracia representativa. Estava claro que havia uma disputa política

20 EXCELENTES as relações Brasil-EUA

apesar de áreas de desacordo. Correio do

Povo, Porto Alegre, p. 01, 16 abr. 1966.

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interna nos Estados Unidos e que o Brasil teria sido utilizado como o obje-to de polarização política.

Relações com os países da Bacia do Prata

Nos anos 1960, a instalação de regimes de segurança nacional, na Ba-cia do Prata, provocou convergências de interesses entre os países, embora o acentuado pensamento geopolítico ain-da incentivasse algumas rivalidades e ressentimentos. A aliança com os EUA tornava-se a consagração do projeto geopolítico dos militares brasileiros, o qual, desde a década de 1930, vinha sendo construído. Os geopoliticos bra-sileiros desenhavam como objetivos a ocupação efetiva do território nacional, a expansão na América do Sul e, pos-teriormente, a formação de uma po-tência mundial.21

Como contrapartida à aliança com os EUA, os militares brasileiros tinham, como objetivos, manter a regi-ão da Bacia do Prata sob a sua hege-monia para, assim, impedir o assédio dos países comunistas e orientar essas economias a favor do desenvolvimento do Brasil. Os objetivos e a atuação do Brasil no Prata durante o Governo Cas-telo Branco indicam que este se preten-

21 COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segu-

rança Nacional: o poder militar na América Latina: Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-ra, 1978, p. 27.

dia um papel de país-chave dos EUA na América Latina, executando uma política subimperialista 22 A instauração de regimes milita-res foi a principal característica dos países do sub-continente na década de 1960. No período que compreende o Governo Castelo Branco, o Uruguai foi o único país com regime democrático no Prata. O Paraguai, na época, vivia um regime militar desde que um golpe de Estado, em 1954, colocou Stroesse-ner no poder. Depois do Brasil, a Ar-gentina sofreu um golpe militar, co-mandado pelo General Ongania, em 1966. Já na Bolívia, o General Barrien-tos comandou um golpe de Estado, tendo assumido o poder no final de 1964. As relações entre o Brasil e a Argentina voltaram a se estreitar após ao Golpe de 1964, uma vez que as es-tratégias de segurança coincidiam: am-bos defendiam a revisão do conceito de soberania e propunham a implantação das fronteiras ideológicas. A doutrina das Fronteiras Ideológicas passou a ser defendida pela Argentina, quando o General Juan Carlos Ongania coman-dou um golpe de Estado, em de junho de 1966, e implantou um regime seme-lhante ao do Brasil. O novo Governo argentino passou a defender a institu-cionalização da Junta Americana de Defesa junto à OEA. Já em 1967, o

22 TRIAS, Vivian. Imperialismo y geopolitica

en America Latina. Montevidéu: El Sol, 1967, p. 256.

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Brasil relativizava a Doutrina das Fron-teiras Ideológicas, praticamente aban-donando-a, tomando um rumo mais independente em sua política externa. A Argentina passou, nesse momento, a disputar com o Brasil a posição de pa-ís-chave ou satélite privilegiado, na política hemisférica dos EUA.23 Dessa forma, no período Ongania, a Argenti-na passou, de um primeiro momento, de “satélite do satélite”24, para, após, competir com o Brasil como país-chave dos EUA na América do Sul. Já a Bolívia, de posse de uma grande reserva de minerais e de gás, além da sua posição geopolítica, prati-camente o centro da América do Sul, é considerada, por alguns autores, como “o fiel da balança” nas relações entre o Brasil e a Argentina. De fato, a Bolívia executou uma política pendular, com alianças oscilando entre um e outro país.25 Um golpe de Estado ocorrido na Bolívia, em 5 e 6 de novembro de 1964, derrubou o Governo de Paz Es-tensoro. O Brasil apoiou o golpe e re-conheceu o Governo do General René Barrrientos afastando, assim, a possibi-

23 BANDEIRA, Moniz. Estado Nacional e

Política Internacional na América Latina: o continente nas relações Argentina-Brasil. São Paulo: Ensaio, 1995, p. 287.

24 Ibid., p. 239. 25 CAMARGO, Sônia de; VASQUEZ OCAM-

PO, José Maria. Autoritarismo e democracia

da Argentina e Brasil: uma década de polí-

tica exterior, 1973-1984. São Paulo: Conví-vio, 1988, p. 367.

lidade iminente de haver uma interven-ção militar brasileira na Bolívia. O Uruguai deu mostras de boa vontade para com o Brasil, anunciando o reconhecimento do Governo Castelo Branco, em 23 de abril de 196426 Po-rém, havia, por parte dos dirigentes uruguaios, o receio das pretensões he-gemônicas do Brasil na região.Após defender o principio de intervenção em países com focos de instabilidade co-munista, a intervenção brasileira no Uruguai revelou-se provável. Somente em fevereiro de 1965 a questão enca-minhou-se para um entendimento, com o estabelecimento de um prazo para que diversos exilados deixassem o U-ruguai.27 Entretanto, os problemas de relacionamento entre os dois países, em virtude da questão dos exilados, não impediu que se continuassem as ativi-dades da comissão mista Brasil-Uruguai, com vistas ao desenvolvimen-to da região

Nas relações com o Paraguai, o fato mais importante foi a assinatura da Ata das Cataratas, em 1966, que permi-tiria o aproveitamento conjunto do po-tencial hidrelétrico no Rio Paraná. 28 O 26 URUGUAI decide manter suas relações

diplomáticas e comerciais com o Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 abr. 1964, 1º caderno, p. 09.

27 NOVA fase de relações entre Brasil e Uru-guai. Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 03, 17 fev. 1965.

28 BRASIL e Paraguai entendem-se encerrando as suas diferenças. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 01 24 jun. 1966.

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Brasil já tentara construir uma usina hidrelétrica na região durante o Gover-no João Goulart, mas esbarrara no em-bargo de capitais promovido pelos EUA nesse período. O retorno de capi-tais ao Brasil, após o Golpe, permitiu a reabilitação do aludido projeto. Com esse tratado, o Paraguai incorporou-se à esfera de influência do Brasil. Porém, ante a oposição argentina ao acordo bilateral, somente em 1979 foi assinado o Acordo Tripartite, juntamente com o Paraguai, sobre o aproveitamento hi-drelétrico do Rio Paraná Dessa forma, o Governo brasilei-ro logrou uma maior aproximação com os países da Bacia do Prata e procurou evitar que eles formassem algum tipo de associação que excluísse o Brasil. Pode-se afirmar, também, que o Brasil desenvolveu uma política de orientar as economias nacionais dos países da Ba-cia do Prata para uma articulação regi-onal, onde o Brasil, atuando como pon-ta de lança dos capitais monopolistas norte-americanos, que afluíssem para a região, ocuparia o papel de país indus-trial. Como se pôde observar, embora a política externa do Governo Castelo Branco, para o hemisfério, fosse pauta-da pela aliança com os EUA, em diver-sos momentos houve algum distancia-mento, provocado pela relativa falta de retorno como contrapartida à aliança estratégica.

As relações extra-hemisféricas e a atuação nos fóruns

Multilaterais

As relações extra-hemisféricas mantidas pelo Brasil durante o Gover-no Castelo Branco sofreram um relati-vo recuo ante a proposta de intensifica-ção das relações com o continente ame-ricano. A política anterior, promovida pela PEI, de incrementar a cooperação com o continente europeu como alter-nativa aos EUA, foi abandonada. Com relação à Europa Ocidental, o possível fortalecimento norte-americano, advin-do do alinhamento do Brasil, desagra-dava aos políticos europeus. Ainda assim, no campo econômico, o governo brasileiro logrou, em julho de 1964, um reescalonamento junto aos países da Europa, membros do Clube de Haia (credores do Brasil na Europa, além de Estados Unidos e Japão), que represen-tou uma redução de 149,9 milhões de dólares nos pagamentos devidos em 1964 e 1965. As relações do Brasil com a França já estavam abaladas desde o episódio que ficou conhecido como a “Guerra da Lagosta”, que teria come-çado em 1962, quando um navio mili-tar brasileiro aprisionou dois barcos pesqueiros franceses na costa brasilei-ra. Nesse sentido, o governo Francês deu uma receptividade fria ao Golpe Militar no Brasil, concluindo que tal fato provavelmente significaria uma maior aproximação do Brasil aos Esta-

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dos Unidos.29 Todavia, o presidente Francês Charles de Gaulle visitou o Brasil em outubro de 1964. Falando perante o Congresso Nacional, no dia 14 de outubro de 1964, o estadista francês afirmou que o Brasil e a França deveriam se unir mais, naquele mo-mento e no porvir, e fez apelos aos dois países para que liderassem, respecti-vamente, na América e na Europa, um esforço conjunto em prol do equilíbrio e da paz. No final de abril de 1964, fontes diplomáticas brasileiras afirmaram que a Alemanha Ocidental havia recebido favoravelmente a queda de Goulart, embora com menos entusiasmo do que os Estados Unidos. A Alemanha Oci-dental continuou a ser, no continente europeu, um dos principais parceiros econômicos do Brasil. Tanto assim que, já em maio de 1964, o Presidente alemão Heinrich Luebke visitou o Bra-sil. Em agosto de 1964, o Brasil estabe-leceu um acordo para o pagamento de suas dívidas com a Alemanha, em complementação às negociações de-senvolvidas pelo Clube de Haia. Em julho de 1965, anunciou-se a execução do Acordo alemão-brasileiro, mediante o qual seriam aplicados, no Brasil, re-cursos no total de 200 milhões de mar-cos. Os primeiros contatos com vistas à conclusão desse acordo foram realiza-dos em 1961. O acordo havia sido pre-

29 FRANÇA não competirá com EUA na Amé-

rica Latina. Diário de Notícias, Porto Ale-gre, p. 02, 05 abr. 1964.

viamente assinado em novembro de 1963, mas estava congelado até en-tão.30 No que se refere a Portugal, Ju-racy Magalhães esteve, em setembro de 1966, em Lisboa e se encontrou com o Primeiro-ministro Antonio Salazar. O Chanceler brasileiro procurava manter uma relativa cautela quanto à questão da descolonização; no entanto, Portu-gal pressionava, sustentando que o Bra-sil deveria outorgar-lhe pelo menos apoio moral na luta contra os movi-mentos de descolonização africanos, por estes estarem recebendo apoio dos comunistas. Na ocasião, o Ministro das Relações Exteriores de Portugal, Fran-co Nogueira, qualificou o Atlântico como uma espécie de lago que separa-va duas zonas de culturas semelhantes, Portugal e Brasil. José Flávio Saraiva pondera que, sob o Governo Castelo Branco, houve um recuo nas relações do Brasil com o continente africano, embora tal retro-cesso não possa ser considerado como um abandono.31 De fato, o Brasil pro-curou manter boas relações com os países africanos, recebendo, inclusive, o presidente Léopold Senghor, do Se-negal, entre os dias 19 e 25 de setem-bro de 1964. Consta que essa visita

30 A AJUDA alemã começará a funcionar. O

Estado de São Paulo, São Paulo, p. 14, 10 jul. 1965.

31 SARAIVA, José Flávio Sombra. A África e o Brasil: encontros e encruzilhadas. Ciências

& Letras. Número 21- 22, 1998, p. 153.

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teria ocorrido dentro de um clima de cordialidade. Em 23 de setembro de 1964, foram firmados acordos comer-cial e cultural destinados ao fortaleci-mento das relações entre os dois países. Esses acordos previam, ainda, a consti-tuição de uma comissão mista para fortalecer o desenvolvimento e o inter-câmbio mútuo. O acordo comercial previa tratamento favorável em matéria comercial e aduaneira. Em novembro de 1964, o Minis-tro das Relações Exteriores do Marro-cos visitou o Brasil, a convite do Ita-maraty. Nos anos seguintes, seguiram-se também a visita de diversos repre-sentantes africanos ao Brasil: de Alto Volta (1965), Nigéria (1966), África do Sul (1966). Em 1965, o Brasil enviou a primeira missão comercial à África Ocidental, que visitou o Senegal, Libé-ria, Gana, Nigéria, Camarões e Costa do Marfim. Em setembro e outubro de 1966 ocorreu a segunda visita da mis-são comercial brasileira à África, a qual esteve na África do Sul, Moçambique, Angola, Gana e Costa do Marfim. Em relação à África do Sul, a importância do comércio bilateral pesava nas rela-ções políticas, uma vez que aquele país representava, sozinho, quase noventa por cento do mercado africano para o Brasil. Assim, o Brasil evitava desgas-tar as relações com seu principal par-ceiro econômico - evitando engrossar o coro das críticas ao regime do Apar-

theid e procurando, ao mesmo tempo, aumentar sua presença econômica so-bre o conjunto da África negra.

Se, do ponto de vista teórico, o continente asiático sequer fazia parte dos círculos concêntricos, na prática, o distanciamento foi quase completo. Excluindo-se episódios ligados à Guer-ra Fria e contatos eventuais com aquela região, as relações chegaram, muitas vezes, a beirar o descaso. Na realidade, as relações do Brasil com essa região somente terão maior densidade diplo-mática a partir dos anos 1970. Com a China comunista, insta-lou-se um clima de provocação e dis-tanciamento. A discussão bilateral foi intensa em torno da prisão no Brasil, logo após o golpe militar, de nove chi-neses do Escritório Comercial, sob acu-sação de subversão.32 Nesse contexto, em setembro de 1964, o Congresso Nacional brasileiro rejeitou um acordo comercial com a China. Após a deci-são, no final de 1964, do Conselho Permanente de Justiça, de condenação dos nove chineses, com pena de 10 anos de prisão, os chineses foram jul-gados e expulsos do Brasil em abril de 1965.33 Em contrapartida, Juracy Ma-galhães, em 27 de janeiro de 1967, visi-tou a China Nacionalista e, além de propor cooperação, aliou-se àquele país

32 CHINA ameaça Brasil por causa de agentes

presos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 01, 18 abr. 1964.; e ITAMARATY respon-de ao pedido da China. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 03, 22 abr. 1964.

33 CHINESES expulsos deixarão o Brasil den-tro de 15 dias. Diário de Notícias, Porto A-legre, p. 03, 05 fev. 1965.

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nas críticas à China comunista. Não obstante as boas relações com Formo-sa, o Brasil revelou seu pragmatismo, ao ser um dos seis países que propuse-ram a nomeação, pela Assembléia Ge-ral da ONU, de uma comissão para estudar a questão do ingresso da China comunista naquela organização.34 Em relação à Guerra do Vietnã, o Brasil, pragmaticamente, manteve uma posi-ção de solidariedade tanto com os EU-A, como com a República do Vietnã, embora se recusasse a enviar tropas para lá. Sob o signo da Política Externa Independente, havia ocorrido o restabe-lecimento das relações diplomáticas com a URSS e o início das relações diplomáticas com vários países do Les-te Europeu. Com o Golpe militar, inau-gura-se a perspectiva de ocorrer um afastamento desse grupo de países. Todavia, o discurso da Guerra Fria não correspondeu à prática: ao mesmo tem-po em que o Brasil não rompeu com os países socialistas do Leste Europeu, a URSS procurava aumentar o intercâm-bio comercial. Em setembro de 1964, a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados havia informa-do que os países socialistas deviam, ao Brasil, cerca de 40 milhões de dólares. Ocorreu, então, um debate sobre a van-tagem ou não de comerciar com os socialistas, e acabou vencendo a tese de

34 BRASIL propõe reexame da admissão da

China. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 01, 22 nov. 1966.

que o Brasil poderia ter uma balança comercial favorável e equilibrada, le-vando-se em conta os benefícios da potencialidade do mercado dos países socialistas. Em agosto de 1965, Assis Chateubriand, juntamente com a comi-tiva da Sociedade de Estudos Históri-cos Dom Pedro II, esteve na União Soviética, para tratar de assuntos cultu-rais, antecedendo a visita de Roberto Campos.35 Os contatos comerciais au-mentaram. O Brasil esperava vender navios e ferramentas de precisão para a União Soviética, conforme anunciava a Embaixada brasileira, ao comentar as conversações comerciais entabuladas entre os dois países.36 Mesmo com a clara opção pelas relações bilaterais, durante o Governo Castelo Branco, não se menosprezou a participação em fóruns multilaterais. A OEA e a ONU foram, certamente, dois importantes espaços de atuação brasi-leira. Ainda sobre a orientação bilateral da política externa, convém lembrar a maneira como Vasco Leitão considera-va o multilateralismo: ele afirmava que, na ONU, fazia-se “ (...) uma lo-gomaquia, uma disputa por palavras. Mas é melhor que existam, a OEA e a ONU, para servirem de lugar para os

35 DIÁLOGO Brasil-URSS tem a cultura e o

comércio acima das ideologias. Diário de

Notícias, Porto Alegre, p. 03, 06 ago. 1965. 36 BRASIL oferece navios à Rússia. Diário de

Notícias, Porto Alegre, p. 03, 16 dez. 1965.

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países dizerem desaforos uns aos ou-tros e não fazerem nada”37 Nos fóruns multilaterais, o Brasil adotou então uma postura mais discre-ta, esvaziando-se o conteúdo terceiro-mundista dos discursos e das práticas do Governo, até então vigentes sob a PEI. Com um enfoque mais técnico que político, e a partir de uma postura mais individualista, o Governo brasileiro buscou uma melhoria das condições do comércio mundial e, crescentemente, passou a debater a questão nuclear.38 Conforme Clodoaldo Bueno, a atuação do Brasil nos fóruns multilaterais so-bre esse tema era orientada pela posi-ção de que a tecnologia nuclear criava um distanciamento das duas superpo-tências e os outros países e de que abrir mão dessa tecnologia significava abrir mão da pesquisa nacional, da soberania e do desenvolvimento. Daí nascia a resistência do Brasil, que defendia o desarmamento, em aceitar a proposta americano-soviética do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP).39 Na realidade, tentava-se pre-parar o terreno, sem entrar em choque com os EUA, para a negociação da mudança dos termos do TNP. Essa política continuou com Costa e Silva, 37 CUNHA, Vasco Leitão, op. cit., p. 293. 38 VIZENTINI, Paulo. A política Externa do

Regime Militar brasileiro. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998, p. 69.

39BUENO, Clodoaldo. A política multilateral Brasileira. In: CERVO, Amado (org.). O

desafio internacional, op. cit., p. 92.

não obstante ele ter mudado a ênfase nos discursos, quando assinou, no Mé-xico, em maio de 1967, o Tratado de Tlatelolco - que prescrevia o uso de armas nucleares na América Latina.- e recusando-se a assinar o TNP.

Conclusões Após o Golpe de 1964, foi intro-duzido, no Brasil, um novo modelo de inserção internacional, fundamentado em novos condicionamentos internos e externos. Internamente, logrou-se a ruptura do modelo de desenvolvimento do tipo populista e o afastamento de sua base social. Externamente, embora o mundo bipolar começasse a apresen-tar fissuras, a crescente militarização da América Latina - impulsionada pelos Estados Unidos como forma de manter sua hegemonia, sob o discurso da Guerra Fria – proporcionou o apoio necessário ao regime militar brasileiro e a uma nova inserção do país no sis-tema internacional. A dimensão de segurança calcada na Guerra Fria, como orientação fun-damental da política externa do gover-no Castelo Branco, não teve a profun-didade e a extensão que se apregoa. Embora as questões relativas à segu-rança tenham sido a maré-montante do novo governo, o desenvolvimento tam-bém constituía uma prioridade, ainda que sob novas bases. Assim, o binômio segurança e desenvolvimento articula-

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va-se continuamente. Permanecia, não como um elemento residual, tampouco movimentando-se por inércia, um tra-balho de buscar, no exterior, os recur-sos necessários para alcançar o desen-volvimento do Brasil, a partir da ex-pansão dos mercados externos, da in-trodução de um moderno capitalismo no Brasil - de tipo liberal e associado - e da retomada dos investimentos para continuar o processo de industrializa-ção. Nessa esfera, a política externa foi orientada a buscar parcerias econômi-cas nos mais diversos países e conti-nentes, insubordinando-se às fronteiras ideológicas. Quanto ao caráter da política ex-terna de Castelo Branco, se comparada com o acumulado histórico, pode-se reconhecer três principais movimentos: em primeiro lugar, verifica-se a inter-

nalização da política externa da Guerra Fria, cujo discurso procurava sujeitar, principalmente, os atores internos, com o objetivo de legitimar o Golpe militar. As doutrinas anticomunistas e de con-tra-insurgência buscaram a criação de um clima de pânico coletivo e permiti-ram, mais facilmente, que os militares - e o bloco de poder que representavam - tomassem o poder. A internalização da Guerra Fria provocou a elaboração de um conjunto de conceitos e teorias de contra-insurgência, que serviam, ao mesmo tempo, como justificativa à intervenção militar direta na vida do Estado e a necessidade de intervenção nos países adjacentes, no case de eles

se colocarem na órbita de influência do comunismo. Em segundo, ocorreu a continen-

talização da política externa sob o dis-curso da Guerra Fria. A tese da segu-rança coletiva no continente pressupu-nha a liderança dos EUA e algumas sub-lideranças, que se encarregariam da manutenção da ordem, contra as investidas comunistas, e do desenvol-vimento, articulado aos capitais inter-nacionais. Sob a perspectiva do estran-gulamento econômico, que imperava no final do Governo Goulart, a admi-nistração Castelo Branco identificou que a retomada do desenvolvimento econômico somente se daria mediante investimentos maciços estrangeiros, dada a insuficiência da poupança inter-na. No imediato pós-Golpe, os EUA eram considerados a única fonte dispo-nível desses recursos em larga escala. Dessa forma, o alinhamento com aque-le país foi entendido como a contrapar-tida necessária; o contexto da Guerra Fria permitia, ao mesmo tempo, ali-nhar-se com os EUA, buscando a ob-tenção de vantagens, e justificar, inter-namente, um regime de segurança na-cional. Entretanto, o discurso e a práti-ca da segurança coletiva ,como uma necessidade da Guerra Fria, só foram dirigidos ao continente americano, on-de, também, as relações foram mais densas. Ainda assim, a tese do alinha-mento incondicional do Brasil aos Es-tados Unidos perde sua força quando se verifica que, na prática, houve vários momentos de desacordo.

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Em terceiro, ocorreu a continui-

dade da vertente desenvolvimentista. A política externa do Governo Castelo Branco, embora submetida aos ditames da estratégia de segurança nacional e do contexto da Guerra Fria, orientou-se também no sentido de prosseguir o desenvolvimento econômico do Brasil e iniciar uma nova etapa no regime de acumulação, superando, pela via con-servadora, os impasses do regime po-pulista. Nesse momento, as forças in-ternas de sustentação do regime - uma aliança entre o Estado e a burguesia ligada ao capital estrangeiro – tinham, como orientação, a crescente liberali-zação econômica e os ajustes estrutu-rais na economia, com o objetivo de romper o modelo de desenvolvimento populista e suas bases sociais. O capital nacional ficaria em segundo plano. Tal condição enfurecia a burguesia nacio-nal - que não era, em essência, antigol-pista - e seus setores associados, pro-vocando instabilidades e oposições ao regime.

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