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De Comunidades Negras Rurais, Quilombos e Guetos Negros: à guisa de introdução O presente tópico – De comunidades negras rurais, quilombos e guetos negros – pode ser visto como introdução à presente edição da minha tese de doutorado em Antropologia Social, originalmente denominada A Comunidade Negra dos Arturos: o drama de um campesinato negro no Brasil, defendida e aprovada em setembro de 1997, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade de São Paulo. 1 O objetivo da tese era expor a trajetória da Comunidade Negra Rural dos Arturos como detentora de uma tradição cultural afro- brasileira, com destaque para o rito de Primeira Capina de Milho. Rito agrário esse que estava em processo de extinção 2 . Designativo esse, de Arturos, que lhes era atribuído pela sociedade envolvente, local, por serem descendentes de um casal negro – Artur Camilo e Carmelinda Maria de Jesus. A bem da verdade, a Comunidade é mais conhecida pela sociedade envolvente por seu protagonismo na celebração da Festa do Rosário da Irmandade de Nossa Senhora de Rosário, de 1 Para que o leitor possa diferenciar melhor o que foi dito, na tese, do que está sendo dito nesta obra, somente neste tópico e, por vezes, em novas notas de rodapé, deixo de falar na primeira pessoa do plural majestático, corrente na tese, para falar na primeira pessoa do singular. 2 Para se evitarem generalizações, convém esclarecer que o termo comunidade será aqui entendido no sentido dado a ele, na Sociologia Clássica, em oposição à noção de sociedade, que implica vida comunitária, de contatos primários, fundamentada em laços territoriais, familiares. Aqui, no caso, fundamentada nos laços de descendência e parentesco, conforme vem tratado no quarto tópico A comunidade dos Arturos e a sociedade envolvente. 23

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De Comunidades Negras Rurais,

Quilombos e Guetos Negros:à guisa de introdução

O presente tópico – De comunidades negras rurais, quilombos e guetos negros – pode ser visto como introdução à presente edição da minha tese de doutorado em Antropologia Social,

originalmente denominada A Comunidade Negra dos Arturos: o drama

de um campesinato negro no Brasil, defendida e aprovada em setembro de 1997, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade de São Paulo. 1

O objetivo da tese era expor a trajetória da Comunidade Negra Rural dos Arturos como detentora de uma tradição cultural afro-brasileira, com destaque para o rito de Primeira Capina de Milho. Rito agrário esse que estava em processo de extinção 2. Designativo esse, de Arturos, que lhes era atribuído pela sociedade envolvente, local, por serem descendentes de um casal negro – Artur Camilo e Carmelinda Maria de Jesus.

A bem da verdade, a Comunidade é mais conhecida pela sociedade envolvente por seu protagonismo na celebração da Festa do Rosário da Irmandade de Nossa Senhora de Rosário, de

1Para que o leitor possa diferenciar melhor o que foi dito, na tese, do que está sendo dito nesta obra, somente neste tópico e, por vezes, em novas notas de rodapé, deixo de falar na primeira pessoa do plural majestático, corrente na tese, para falar na primeira pessoa do singular. 2Para se evitarem generalizações, convém esclarecer que o termo comunidade será aqui entendido no sentido dado a ele, na Sociologia Clássica, em oposição à noção de sociedade, que implica vida comunitária, de contatos primários, fundamentada em laços territoriais, familiares. Aqui, no caso, fundamentada nos laços de descendência e parentesco, conforme vem tratado no quarto tópico – A comunidade dos Arturos e a sociedade envolvente.

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Contagem, em outubro, mês dedicado à Nossa Senhora do Rosário, e na celebração da Festa de São Benedito, no dia Treze de Maio, data cívica da Libertação dos Escravos (13/05/1988). É quando seus cortejos de Congados conduzem seus Reinados de Reis Negros, pelas ruas da cidade, para participar das missas e dos banquetes. Ritos esses que, como se verá, ainda que mais conhecidos, por ora deixaram de ser abordados sistematicamente na tese.

Quanto a essas festas e ritos do Congado, ainda que tenham sido objeto inicial da minha pesquisa, a sistematização do material de pesquisa de campo sobre o assunto, fi cou adiada, pelo fato de que, ainda que muito transformados, teriam sua continuidade, por se tratarem de ritos religiosos ligados à Igreja Católica da então Paróquia de São Gonçalo3. De mais a mais, quanto a congados e festas do Rosário existem muitas festas e trabalhos escritos dispersos pelo Estado de Minas Gerais, realizados a gosto ou contragosto das paróquias locais, apoiados ou não pelas administrações municipais.4

3Conforme registrado na tese, a antiga Igreja do Rosário que conheci em 1969, que fi cava em uma grande praça da cidade e que se poderia considerar uma peça barroca, foi derrubada, às escondidas, e depois demolida pela Prefeitura, certamente para modernizar o espaço. A antiga e pequena capela existente dentro da Comunidade dos Arturos passou a funcionar como espaço do Congado. Creio que, como forma de compensação para a Mitra, uma igreja nova foi construída com o apoio da Prefeitura e à base de mutirões da Comunidade. Essa nova igreja foi recentemente (2012) elevada à condição de Paróquia de Nossa Senhora do Rosário.4Vem ao caso registrar a existência até mesmo de uma Associação de Congados de Nossa Senhora do Rosário, em Minas Gerais, fundada antes do golpe militar (1964) que, discretamente, esteve na mira da repressão política e, posteriormente, veio a se tornar Federação dos Congados de Nossa Senhora do Rosário de Minas. A essa Federação pertencia a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, de Contagem. Durante meus longos anos de pesquisa (de 1970 a 1996), eu era assíduo frequentador das reuniões semanais e das assembleias mensais da Federação dos Congados, funcionando como pesquisador e colaborador, chegando, posteriormente a ser eleito Presidente da entidade (1989), o que gerou manifestações contrárias de lideranças dos então recentes movimentos negros, em Minas, sob a alegação de que eu não era negro nem congadeiro. Designativo esse, interno e corrente no Congado, para se referir a quem o praticava.

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Como se verá, quando cheguei aos Arturos (junho de 1969), estava à procura de congados mineiros para estudar, quando aindaera professor e pesquisador de Antropologia Social na que é hoje a PUC/MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais). Foi nessa época que tive o primeiro contato com uma Comunidade Negra Rural, Comunidade essa até então desconhecida e vítima de discriminação pela sociedade local. Tratava-se de uma descoberta etnográfi ca e casual. Quanto ao Rito de Primeira Capina do Milho, foi também uma descoberta etnográfi ca casual, mas, porque estava em processo de extinção, foi objeto de tratamentro sistemático. Não poderia esperar mais para ser documentado, pelo fato de estar vinculado a atividades econômicas rurais da Comunidade, também em processo avançado de extinção.

Exceto no caso do Quartel do Indaiá, estudado por Aires da Matta Machado Filho, na primeira metade da década de 1940 (MACHADO FILHO, 1943), a identifi cação e o estudo de Comunidades Negras Rurais no Brasil eram novidades etnográfi cas que vieram a gerar um novo e fecundo ciclo de produção antropológica, a partir da década de 1970 (BRANDÃO, 1976; SABARÁ, 1980; FRAY; VOGT, 1982; QUEIROZ JÚNIOR, 1983; BAIOCCHI, 1983; BANDEIRA, 1988)5. Tratava-se de Comunidades Negras Rurais, senão isoladas, pelo menos semi-isoladas, que demandavam uma abordagem metodológica similar à de estudos de comunidades indígenas. Questão essa que me levou a fazer uma comunicação no IV Encontro Anual da ANPOCS, realizada no Rio de Janeiro, 1980, sob o título Comunidades Negras Rurais do Brasil: um novo campo de estudos monográfi cos e que veio a se tornar um tópico desta tese (SABARÁ, 1980).5Muitas dessas publicações resultaram em dissertações de mestrado e teses de doutorado, apresentadas e defendidas no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da USP, como linha de pesquisa que tinha Borges Pereira e outros como orientadores. (PEREIRA, 1981)

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Evidentemente, o fato de ter ido a Contagem, em 1969, para pesquisar o Congado local e ter me deparado com a Comunidade Negra Rural dos Arturos mudou profundamente os rumos da minha pesquisa inicial – Congados em Minas Gerais – ampliado o campo de compreensão do fenômeno. Isso também ocorreu posteriormente (1973), quando comecei a pesquisar a Festa do Rosário, na cidade do Serro, e a Festa do Divino, na cidade de Diamantina, e vim a me deparar com a Comunidade Negra Rural de Milho Verde, no Município do Serro, e com a Comunidade Negra Rural de Quartel do Indaiá, no Município de Diamantina.

Por outro lado, se a revelação da Comunidade Negra Rural dos Arturos mudou o rumo da minha pesquisa inicial, a minha pesquisa, por sua vez, ainda que contra minha vontade, contribuiu negativamente para mudar também o curso da história da Comunidade, para que se tornasse um mercado de cultura negra a ser oferecida ao mercado de consumo cultural e à manipulação política local, que, desde então, insiste em fazer do congado de Contagem uma atividade mais cívica e menos religiosa possível. É o que foi também objeto de exposição na tese.

Como também o presente tópico – De comunidades negras rurais, quilombos e guetos negros – pode ser visto senão como uma tese sobre minha tese, como uma justifi cativa para legitimar a sua publicação ainda que tardia (2015). Com efeito, a Comunidade Negra Rural dos Arturos veio a se tornar meu campo de pesquisa em junho de 1969; mas a tese de doutorado foi defendida somente em 1997 e a sua publicação, em 2015. Nesse intermédio, muitos outros pesquisadores que passaram pela Comunidade e que lá permaneceram por pouco tempo publicaram seus trabalhos.

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Contudo há de se levar em conta que, entre 1975 e 1982, eu me afastara dos temas Congados e Comunidades Negras Rurais e me dedicara à questão indígena, com vistas a apresentar o tema como dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UNB, plano de trabalho este que tive de postergar, em função de problemas de percurso, que aqui não vêm ao caso.6 Somente em 1982, retomo o projeto de qualifi cação, desta vez, no Programa de Pós-Gradução em Antropologia da USP, retomando meu projeto inicial, Congados e Comunidades Negras Rurais, mas, novamente, tive de adiar meu plano de trabalho para retomá-lo em 1987, na mesma instituição. Em 1989, faço exame de qualifi cação para Mestrado, quando sou credenciado diretamente para o doutorado e, em 1991, faço exame de qualifi cação para doutorado.

Tanto o prolongamento da pesquisa como esta trajetória acadêmica sinuosa e as demoras na defesa de tese e na sua publicação devem-se a limitações que demandam explicações relevantes a ser aqui dadas, ainda que resumidamente. Mas, ao fazer a sua revisão, fui arrastado pela vontade de responder a três questões que poderiam ser feitas pelos leitores:

- Se o objeto da tese foi expor a trajetória da Comunidade Negra Rural dos Arturos como detentora de uma tradição cultural afro-brasileira, e se ela é mais conhecida em função das tradicionais Festas de Congado que realizam, por que essas festas deixaram de ser abordadas sistematicamente

6Esses referidos Problemas de percurso serão objeto de consideração em um outro ensaio – Memórias de um antropólogo da UFMG – disponível, em versão inicial, em meu blog (romeusabara.blogspot.com)

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na tese, sendo que a Festa de Primeira Capina, pouco conhecida, veio a ser objeto de exposição sistemática?- Em um momento em que se fala tanto em comunidades remanescentes de quilombos ou, até mesmo, em comunidades quilombolas, por que estou a falar em Comunidades Negras Rurais e não em Comunidades Quilombolas?- Se muitos outros pesquisadores que passaram pela Comunidade, permaneceram pouco tempo e publicaram seus trabalhos, por que eu, tendo iniciado a minha pesquisa muito cedo (1969), demorei tanto a defender a tese (1997) e mais ainda a publicá-la (2015)?

Parte deste assunto vem no corpo da tese ao tratar do que eu vinha abordando como processo ideológico de produção da tese. Com efeito, no primeiro capítulo desta obra – A Proposta Metodológica de Malinowsky e a nossa – presunçosamente ou não, eu me proponho a dar minha modesta contribuição à metodologia, na Antropologia Social, expondo a proposta de trabalho de campo utilizada e confrontando-a com a proposta de trabalho de campo da etnografi a clássica, em comunidades isoladas ou semi-isoladas, tendo como referencial a proposta de Malinowsky (1917). Assim, eu dizia então (SABARÁ,1997, p. 23):

Certamente muitos fatores contribuem para determinar como seria uma produção etnográfi ca. Contudo, para os presentes propósitos, alguns se tornam para nós importantes porque podem condicionar ideologicamente o resultado fi nal – a monografi a fi nal. Mencionaremos os seguintes:

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i. - compromisso do pesquisador com a ordem scial; ii. - fontes de recursos materiais, fi nanceiros e iii. humanos utilizados; iv. - mercado consumidor; v. - origem e consciência de classe do pesquisador; e

vi. - preparação e efi ciência técnico-científi ca do pesquisador.

Depois de tratar da proposta metodológica de Malinowski e expor a minha proposta, concluía:

Contudo, a pesquisa antropológica em um Estado como Minas Gerais não é fácil, ainda que neste fi nal de século. Inexiste ainda um público acadêmico-científi co bem estruturado em torno do trabalho antropológico. A possibilidade de se conseguir uma melhor preparação técnico-científi ca existe somente buscando outros centros acadêmicos.Evidentemente não deixamos de fazer nossos esforços para isso. Porém, diferentemente de Malinowski, não tivemos que deixar o País para ir nos reciclar na Inglaterra, na London School of Economics. Depois de breves passagens pelos mestrados em Antropologia no Museu Nacional (estágio) e Universidade de Brasília, chegamos à Universidade de São Paulo - USP. De qualquer forma, esta sinuosa trajetória acadêmica, paralela a uma não menos tortuosa trajetória de pesquisa, pode ter retardado em muito a nossa produção fi nal, mas creio que ganhamos em consistência. (SABARÁ, 1997, p. 37)

Com o objetivo de detalhar e enriquecer a proposta do referido primeiro tópico da tese, redigi dois tópicos complementares. Um deles é este, aqui apresentado como introdução à edição da tese – De comunidades negras rurais, quilombos e guetos negros – que trata de limitações que se deram dentro do próprio campo de pesquisa e da produção da tese, aqui desdobrados em quatro subtópicos:

1) De teses, dissertações e monografi as sobre a Comunidade dos Arturos – expõe, resumidamente, o meu roteiro e faz uma breve revisão bibliográfi ca de pesquisas publicadas sobre os Arturos que chegaram ao meu conhecimento;

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2) Do congado mineiro à Comunidade Negra Rural dos Arturos - para tratar dos caminhos que me levaram a fazer um corte epistemológico na minha proposta inicial e mais ampla de estudo do congado mineiro no contexto da cultura mineira tradicional;

3) De comunidades negras rurais, quilombos e guetos negros – para manifestar o meu distanciamento com relação ao uso indiscriminado da designação de quilombos ou comunidades quilombolas em substituição às designações de Comunidades Negras Rurais;

4) Da Pesquisa Antropológica e da Revolta dos Nativos – para expor a problemática antropológica de reações de nativos aos estudos de comunidades consideradas exóticas, próximas às sociedades de consumo.

Outras formas de limitações impostas a este pesquisador vêm registradas como depoimento pessoal deste antropólogo em outro texto – Memórias de um antropólogo da UFMG. Trata de limitações que se deram fora do campo de pesquisa, umas de ordem pessoal, outras, de ordem institucional, como pesquisador e professor de Antropologia Social, da UFMG, lotado no antigo Departamento de Sociologia e Antropologia, da Faculdade de Filosofi a e Ciências Humanas (FAFICH), no qual assim me expresso:

Evidentemente que, como pesquisador da Comunidade Negra Rural dos Arturos, tive que enfrentar estes problemas como condições de produção acadêmico-científi cas. Como se verá, o histórico dessas limitações teve início com a minha nomeação como Auxiliar de Ensino (1970) e se prolongou até a minha aposentadoria, como Titular (1996). Histórico este que, grosso modo, pode ser dividido em três períodos: 1) de 1965 a 1969, como aluno do Curso de Ciências Sociais da FAFICH/ UFMG; 2) de 1970 a 1984, quando já era professor e

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pesquisador da UFMG, com uma trajetória sem litígios na esfera administrativa da UFMG, ao lado de uma trajetória política, conturbada, fora da UFMG; 3) de 1985 a 1996, com uma trajetória recheada de litígios na esfera administrativa da UFMG, ao lado de uma trajetória política, sem litígios, fora da UFMG. Períodos esses em que se deram diferentes modalidades de limitações às minhas pesquisas, que serão discutidas sob os seguintes subtópicos:

1 - o ensino e a pesquisa antropológica na UFMG, no contexto da ditadura militar (1964 a 1984);

2 - a natureza política da prisão deste antropólogo, da UFMG, por suposto crime hediondo, em 1973, e suas consequências nefastas para as suas atividades como professor e pesquisador;

3 - o assédio moral institucional contra este antropólogo, na UFMG, e suas consequências (1985 a 1996) (SABARÁ, 2015).

Contudo, minha intenção era, inicialmente, deixar este texto inédito, até mesmo por se tratar de limitações de ordem pessoal e institucional, ainda que, em termos acadêmico-científi cos, o registro destas limitações tenha sentido. Mas, por fi m, admiti, para mim mesmo, que seria importante que elas fossem editadas, senão como anexo, pelo menos como artigo isolado, disponibilizado no meu blog (romeusabara.blogspot.com), para que outras pessoas, interessadas na questão, possam ter acesso para tirar as conclusões que quiserem e fazerem as refl exões que lhes aprouverem.

1 – Das Teses, Dissertações e Monografias sobre a Comunidade dos Arturos

É oportuno esclarecer que, no ato da defesa da tese, esta levava o seguinte título: A Comunidade Negra dos Arturos: o drama de um

campesinato negro no Brasil. Contudo, no presente momento, ao editá-la, preferi colocar o subtítulo, como título, no seguinte formato: O drama

de um campesinato negro no Brasil: a Comunidade Negra dos Arturos. Isso

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porque a refl exão teórica da temática ― o drama de um campesinato negro no Brasil ― tem um alcance de cunho etnológico, maior, em termos da problemática agrária do negro, no meio rural brasileiro, do que o estudo de caso – A Comunidade Negra dos Arturos – de cunho mais etnográfi co, portanto descritivo.

Como também vem ao caso elucidar que o capitulo introdutório da tese, como foi defendida (1997) – Objetivos da Pesquisa e sua Problemática Operacional – foi retirado e substituído pelo presente tópico introdutório (2015) – De comunidades negras rurais, quilombos e guetos negros – para cumprir duas funções: 1) suprir a função introdutória do primeiro capítulo da tese defendida (1997), de situá-la, no contexto da minha pesquisa mais ampla; 2) facultar-me a oportunidade de acrescentar alguns dados mais recentes e algumas novas considerações. (2015)

A versão original, apresentada na defesa de tese (1997), compreendia cinco partes, sendo que a primeira parte levava o seguinte título – Do Congado Mineiro à Comunidade Negra dos Arturos. Isso porque, como foi dito, continha o referido capítulo introdutório – Objetivos da Pesquisa e sua Problemática Operacional – que dizia respeito à pesquisa mais ampla – O Congado em Minas Gerais. Tema este que eu vinha desenvolvendo, desde 1969, no qual a pesquisa do Congado de Contagem e, com ele, a pesquisa da Comunidade Negra Rural dos Arturos devem ser vistas como estudos de caso, ou, então, como pontas de pesquisa.

Sendo assim, ainda que a Comunidade Negra Rural dos Arturos seja mais conhecida em função das tradicionais Festas de Congado que realizam, essas festas deixaram de ser abordadas sistematicamente, na tese, sendo que a Festa de Primeira Capina, ainda que em processo de extinção e pouco conhecida, veio a ser o objeto da exposição

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A tese aqui editada, como exposta no presente momento, além deste novo tópico introdutório, compreende quatro partes:

I) As Comunidades Negras Rurais e os Estudos de Comunidade; II) A Comunidade Negra dos Arturos e a Sociedade Envolvente; III) A Festa de Primeira Capina de Milho entre os Arturos; IV) A Comunidade Negra dos Arturos e o Mercado de Bens

Simbólicos.

A primeira parte – As Comunidades Negras Rurais e os Estudos de Comunidade – compreende três tópicos que podem ser vistos como questões metodológicas e introdutórias. No capítulo 1 – A Proposta Metodológica de Malinowsky e a Nossa – eu me proponho a dar minha modesta contribuição à metodologia, na Antropologia Social, expondo a proposta de trabalho de campo utilizada e confrontando-a com a proposta de trabalho de campo da etnografi a clássica, tendo como referencial a proposta de Malinowski, em 1917 (MALINOWSKI, 1986).

No capítulo 2 – Os Estudos Clássicos de Comunidades no Brasil – faço considerações críticas aos Estudos Clássicos de Comunidades e apresento um modelo descritivo e analítico de comunidades rurais, tendo como referencial a noção de modo de produção doméstico. Somente então, no terceiro capítulo, desenvolvo a tese inicial – As comunidades negras rurais como formas de campesinato negro no Brasil – como subproduto do escravismo decadente. Demonstro a incidência dessas formas, principalmente em Minas Gerais, universo da pesquisa, e formulo a hipótese da existência de um projeto de campesinato negro, em Minas Gerais, ainda não detectado, na forma de comunidades domésticas rurais, contendo um projeto latente de posse comunal da terra, consolidação de família e parentela e cultivo de tradições seculares.

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Na segunda parte – A Comunidade Negra dos Arturos e a Sociedade Envolvente – tratei sistematicamente da vida dessa comunidade e do seu relacionamento com a sociedade envolvente, como estudo de caso da hipótese anterior. Utilizando, como referencial analítico, as noções de comunidade e sociedade envolvente, situo a Comunidade no universo local, regional e nacional, sendo o município visto como sistema mediador entre essa sociedade e a sociedade mais ampla. Uma vez feito isso, passo a descrever e a analisar as instituições comunitárias mais importantes como território, família e parentesco, propriedade e descendência, na forma como funcionaram, desde minha chegada, em 1969, até o fi nal da década de 1970, antes que os fatores de industrialização e urbanização tivessem maior impacto sobre a comunidade. Nesta parte, como produtos da tese maior, emergem três teses menores: a busca essencial da propriedade coletiva da terra, a reconstituição da família ampliada e da parentela, e o culto dos antepassados, como valores maiores que foram negados a escravos e a seus descendentes no Brasil. Contudo, mesmo postergando a descrição e a análise do rito e do mito do Congado Mineiro, repasso informações sobre como ele era vivenciado, em Contagem, pelos Arturos.

A terceira parte – A Festa de Primeira Capina de Milho entre os Arturos – é dedicada a descrever essa festa como demonstração maior da campesinidade dos Arturos, dedicando capítulos diferentes aos seguintes tópicos: 1) O Mutirão de Primeira Capina do Milho; 2) As Cantigas de Eito do Mutirão; 3) A Brincadeira do Juão-do-Mato: mito e rito; 4) A Brincadeira do Juão-do-Mato: rito e mito; 5) O Batuque ou a Festa propriamente dita.

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Trata-se de um rito agrário que pode ser visto como drama de literatura oral e discurso social de uma comunidade sobre a sua própria saga no contexto de transição da situação de mão de obra escrava do século XIX para a situação de mão de obra no século XX. Essa é a tese central e que dá razão de ser ao título da tese editada: O drama de um campesinato negro no Brasil.

A quarta e última parte – A Comunidade Negra dos Arturos e o Mercado de Bens Simbólicos – tem como objetivo descrever a trajetória dessa comunidade no mercado de bens simbólicos, a qual já podia então ser considerada portadora de uma cultura étnica estereotipada, situada a poucos quilômetros da Capital do Estado (23 km), a face mais visível desse mercado cultural de consumo Assim fi z em três tópicos: 1) A Cultura Étnica e o Mercado de Bens Simbólicos; 2) A Comunidade e o Mercado de Bens Simbólicos; 3) A Comunidade, sua Cultura e o Mercado Cultural. É nesta parte fi nal que procuro demonstrar como ocorreu, a partir da década de 1980, o processo de transformação da cultura comunitária dos Arturos, com seu suposto exotismo, em produto cultural para o mercado de bens simbólicos, salientando dois fatores: a mídia e a administração municipal.

Mais ou menos a partir de 1984, quinze anos depois que lá estava a fazer pesquisa, e até mesmo em função do meu trabalho, tanto a Comunidade como o Congado de Contagem passaram a ser objeto tanto de curiosos como de pesquisadores que lá atuaram no decorrer do meu trabalho de campo. Pesquisadores esses que produziram trabalhos fi nais, dissertações de mestrado e teses, sendo que alguns deles conseguiram até mesmo publicá-los. Pode-se até mesmo dizer que a Comunidade tornou-se um campo de concorrência acadêmica, ao lado da concorrência da mídia e das disputas eleitorais. A bibliografi a

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da tese aqui editada vem acrescida de referências de onze desses trabalhos publicados, incluindo reedições.

1988 - Negras Raízes Mineiras: os Arturos - de Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edimilson de Almeida Pereira. Universidade Federal de Juiz de Fora.)

1990 - Arturos: olhos do Rosário - de Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edimilson de Almeida Pereira.

1997 - Religiosidade, identidade negra e educação: processo de construção da subjetividade de adolescentes dos Arturos – de Erisvaldo Pereira dos Santos. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação da UFMG. Belo Horizonte.

1999 - Os sons do Rosário: um estudo etnomusicológico do congado, Arturos e Jatobá - de Gaura Lucas, dissertação de mestrado apresentada no Departamento de Música, da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo.

[1999?] – A infl uência africana na Cultura Brasileira. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Videocassete (133 min.): VHS, son., color.

2000 – Negras Raízes Mineiras: os Arturos. Núbia Pereira de Magalhães Gomes; Edimilson de Almeida Pereira. 2. ed.

2002 - Os sons do Rosário: o congado mineiro dos Arturos e Jatobá. Glaura Lucas.

2003 – História e Tradição do Congado na Comunidade dos Arturos [manuscrito] Monografi as Graduação - Ana Carolina Rodrigues Cunha; Gustavo Pereira Cortes.

2005 – Música e Tempo nos Rituais do Congado Mineiro dos Arturos e do Jatobá. – tese de Doutorado. Defendida no Centro de Letras e Artes da UNIRIO. (LUCAS, 2005)

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2006 – Cantando e Reinando com os Arturos - Glaura Lucas e José Bonifácio da Luz. CD.

2007 – A Comunidade dos Arturos: um estudo sobre suas relações de pertencimento ao lugar e de suas interações com a sociedade envolvente. Júnio Eustáquio de Sousa Faria; José Antônio Souza de Deus. enc. 1 CD-ROM.

Vem ao caso perguntar: Por que, apesar de ter iniciado a pesquisa tão cedo (1969), teria eu demorado a defender a tese (1996) e, por fi m, demorado tanto tempo para publicar?

Não vem ao caso julgar as razões pelas quais meus colegas foram tão ágeis em dar por acabado os produtos fi nais de seus trabalhos para edição, mas tão somente tecer algumas considerações.

Algumas diferenças fundamentais existem entre os trabalhos dos referidos pesquisadores e o meu, que merecem destaque. O fundamental é que o objeto da minha exposição foi a vida da comunidade em seu cotidiano, a sua relação com a sociedade envolvente e o mutirão de capina, como rito agrário – A Festa de Primeira Capina do Milho. Por sua vez, o objeto de estudo desses pesquisadores era a função ritual dos Arturos, como guardiões da tradição do Congado de Contagem.

Uma breve revisão bibliográfi ca sobre os trabalhos referentes à Comunidade e ao Congado de Contagem mostra que os autores, por vezes, equivocaram-se ao tratarem a Comunidade Negra Rural dos Arturos como uma comunidade meramente festeira, descurando do seu cotidiano, exceto em se tratando da dissertação de mestrado no estudo de Erisvaldo Pereira dos Santos – Religiosidade, identidade negra e educação: processo de construção da subjetividade de adolescentes dos Arturos (1997) – na qual o autor foi mais além.

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Como também mostra que os autores se equivocaram ao tratar da Comunidade dos Arturos do Congado de Contagem e da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem como se fossem um único elemento – a Comunidade Negra Rural dos Arturos. Na verdade, são elementos diferentes de um sistema sociocultural mais amplo - 1) A Comunidade 2) o Congado 3) a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.

Essa distinção entre o que é a Comunidade Negra dos Arturos, o que é o Congado e o que é a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem não é bem clara nos trabalhos publicados, o que prejudicou, em parte, suas conclusões. Deixaram de explicar como as Festas de Congado de Contagem deixaram de assim ser para se refugiarem na Comunidade dos Arturos. Como também deixaram de contextualizar a função histórica da antiga Igreja do Rosário, do Congado de Contagem, peça barroca que foi demolida, em contraponto à matriz de São Gonçalo.1

No caso de Núbia Pereira de Magalhães Gomes e de Edimilson de Almeida Pereira, realizaram pesquisa de campo em 1986 e 1987, e em 1988, publicavam o livro – Negras Raízes Mineiras: os Arturos – em sua primeira edição, pela Universidade Federal de Juiz de Fora, dezenove anos depois que eu chegara aos Arturos (1969). É importante registrar que os autores, não sei o porquê, ignoraram meus trabalhos, tanto sobre o Congado, como sobre a Comunidade, até mesmo deixando de relacioná-los na bibliografi a, privando seus leitores dessas informações (SABARÁ, 1980; 1982,1983; 1984). Como também fazem referência à Missa Conga, como uma criação da 7A demolição da antiga Igreja do Rosário, de Contagem, juntamente com os casarões e com as fazendas coloniais de Contagem, veio a se tornar uma prática muito comum nas quatro últimas décadas do século XX. Ao que parece, a Cidade procurava apagar seu passado para ser mais moderna.

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Comunidade dos Arturos, ou seja, do Congado de Contagem, o que não é verdade. Trata-se de uma experiência paralitúrgica, iniciada em 1973, na Arquidiocese de Belo Horizonte, montada por mim, como antropólogo, com a colaboração de Pe. Nereu Teixeira, baseada em minhas pesquisas de Congado, em Minas Gerais. Missa Conga essa que veio a ser introduzida nas festas de vários congados de Minas Gerais, como é o caso da que veio a acontecer, pela primeira vez, no Congado de Contagem, somente em 1974 (SABARÁ, 1984). Erisvaldo Pereira dos Santos (1997), em sua referida dissertação de mestrado, comenta no subtópico – A família de Arthur Camilo Silvério – sobre a obra de Edimilson e Núbia – Negras raízes mineiras:

os Arturos (1988) – no qual faz uma resenha crítica da obra dos autores em vinte páginas (p. 19-39), assim se expressando: “O ponto de vista sobre o qual eles trabalham tem como foco a comunidade considerada como resistência cultural” (p. 21). Refuta essa tese, considerando que ela pode ser vista muito mais como uma postura romântica de militantes negros querendo ver nos Arturos a concretização de “uma ontologia africana”. E diz “Novamente, faz-nos falta o conceito de reinterpretação muito bem utilizado por Roger Bastide, pesquisador a quem eles atribuem o aposto de ‘o grande estudioso de religiões africanas no Brasil’” (p. 23). Contudo nem Gomes e Pereira, nem Santos deixam claro se estão tratando da Comunidade dos Arturos ou do Congado, o que é bem diferente. Diga-se de passagem que os Arturos não são o Congado, mas, isso sim , um dos inúmeros grupos espalhados pelo Estado e pelo Brasil que praticam o Congado. Em se tratando da dissertação de Santos – “Religiosidade, identidade negra e educação: processo de construção da subjetividade de adolescentes dos Arturos” – a originalidade de sua abordagem está

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no fato de deixar de lado as pretensões comuns aos pesquisadores de dar conta da complexidade do conjunto – Comunidade, Congado e Irmandade do Rosário – para escutar não somente os mais velhos, mas, de modo especial, os adolescentes da Comunidade em suas crises de identidade já então vividas entre ser congadeiros ou funkeiros (1996). Contudo, pena é que, pelo que parece, ao se preocupar em abordar a educação informal, na Comunidade, deixou de ir com eles à Escola para poder verifi car como se dava a experiência deles em termos de educação formal, ouvindo colegas, professores e funcionários para responder, com mais profundidade, à seguinte questão: “Como se dava o preconceito contra as crianças e adolescentes da Comunidade dos Arturos, na Escola?” Como também deixou de lado a oportunidade de verifi car o impacto dos livros didáticos nas crianças e adolescentes da Comunidade. Fez-lhe falta também não ter tomado conhecimento da minha publicação – Libertação e Celebração: o Treze de Maio e a Princesa Isabel no Congado Mineiro (SABARÁ, 1990) – na qual apresento e analiso uma narrativa histórica1, circulante na comunidade, ou melhor, uma reinterpretação da história ofi cial do Brasil, repassada na Escola (SABARÁ, 1990).

Estas colocações estão sendo feitas muito mais para estimular este autor ou outros pesquisadores interessados, a retomar um tema de que gostaria de tratar sistematicamente, mas não pude, e que Santos deixou de aprofundar. Em que pese isso, sua contribuição em termos de mudança na vida da Comunidade foi fundamental e

8Diga-se de passagem que, mesmo não tendo feito do Congado de Contagem meu objeto de exposição, tenho a lamentar o fato de que os autores, não sei por que motivo, desconheceram ou ignoraram as comunicações científi cas que fi zera, antes da defesa da tese (1997) e a publicação de meu artigo, em 1990 - Libertação e Celebração: o Treze de Maio e a Princesa Isabel no Congado Mineiro (SABARÁ, 1990; cf Apêndice).

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será reconhecida no momento em que eu tratar do subtópico – De Comunidades Negras Rurais, Quilombos e Guetos Negros.

Em se tratando especifi camente dos trabalhos de Glaura Lucas, verifi quei que fez discreta menção a minha tese, na bibliografi a, sem o fazer em sua revisão bibliográfi ca. Contudo, mesmo que deixasse de tratar da pesquisa etnográfi ca e etno-historicista que vinha sendo feita por mim e por outros, deve-se levar em conta que seu enfoque, como musicista ou etnomusicóloga, era muito especializado. Mas ouso dizer que essa pesquisa etnomusicológica estava por ser feita, e que foi feita por ela com toda a competência necessária. No decorrer dos seus trabalhos de campo, mantivemos um bom nível de cooperação, o que era raro, que compensaria ser retomado e aprofundado.

Por fi m, a grande distância entre esses trabalhos e os meus era que eu operava um modelo macro e explicativo do fenômeno congado em Minas Gerais, o que implicava a abertura e desenvolvimento de várias frentes de pesquisa, demandando tempo e recursos, como se verá.

2 - Do Congado Mineiro à Comunidade Negra Rural dos Arturos

No subtópico anterior, dediquei-me a expor o roteiro da tese

editada e a apresentar uma breve revisão bibliográfi ca, procurando

ainda responder a uma das possíveis indagações dos leitores:

Por que, apesar de ter iniciado a pesquisa tão cedo (1969),

teria eu demorado a defender a tese (1996) e, por fi m,

demorado tanto tempo para publicá-la?

No presente momento, quero esclarecer uma outra das

possíveis indagações de leitores:

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Se o objeto da tese foi expor a trajetória da Comunidade Negra Rural dos Arturos como detentora de uma tradição cultural afro-brasileira, e se ela é mais conhecida em função das tradicionais Festas de Congado que realizam, por que essas festas deixaram de ser abordadas sistematicamente na tese, sendo que a Festa de Primeira Capina, pouco conhecida, veio o ser objeto de exposição sistemática? (SABARÁ, 1997)

Meu estudo de Congado Mineiro teve início com o estudo do Congado de Contagem/MG, em junho de 1969. Depois disso, procurei acompanhar diferentes Festas de Congados em diferentes partes do Estado. Em 1973, vim a conhecer a Festa do Rosário, do Serro, e optei por dedicar mais atenção a ela por ser, ao lado da Festa do Rosário, em Contagem, mais relevante para explicar o complexo cultural congadeiro no Estado de Minas Gerais. Também, para manter mais contatos com outras manifestações, passei a frequentar e acompanhar a Federação dos Congados de Minas Gerais, sediada em Belo Horizonte.

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Sistemas de religiosidade

popular

Reisados (Folias de Reis)

Reinados (Congados)

Modelo interpretativo da cultura mineira tradicional

Origem

Afro-brasileira

Ciclos festivos

Natalino

Outubro

Invocação religiosa

Menino Jesus e Reis Magos

Nossa Senhora do Rosário,

São Benedito

Pentecostes Divino Espírito Santo

Predominância étnica

Camadas populares brancas e mestiças

Camadas populares negras e mestiças

Impérios do Divino

Luso-brasileira

Luso-brasileira

Elites brancas

Minhas pesquisas de campo sobre festas populares, tradicionais, em Minas Gerais, muito cedo me levaram a formular um modelo interpretativo da cultura mineira tradicional, a partir dessas festas, conforme o quadro ilustrativo abaixo: É o que vinha explicitado no tópico introdutório à tese ― Objetivos da Pesquisa e Sua Problemática Operacional ― apresentada à banca examinadora (1997), mas foi retirado para ser retomado em outro momento. Com efeito, lá, assim me expressava:

A interpretação destes fatos, à luz de nossa pesquisa de campo, leva-nos a formular um modelo interpretativo da cultura mineira, a partir dessas festas populares, o qual pode ser representado no quadro ilustrativo de religiosidades populares mencionadas ― Impérios do Divino e Reisados. Assim também, outras festas deveriam ser objeto de tratamento mais intensivo e sistemático da nossa parte, como subsistemas que seriam da cultura mineira tradicional, importantes para se entender melhor o Congado no contexto dessa cultura. Aliás, era essa a nossa intenção inicial, conforme já frisamos, de acordo com a nossa proposta de trabalho, apresentada no processo de qualifi cação para doutorado, em agosto de 1993, sob o título - Reinados de Negros no Império dos Brancos: o Congado em Minas Gerais. De acordo com essa proposta, os Reinados do Rosário ou Congados e Impérios do Divino seriam vistos como expressões rituais de subsistemas da Cultura Mineira Tradicional. (SABARÁ, 1997, p.6)

Acrescentava ainda: Era nossa intenção desenvolver esta hipótese de forma sistemática, mas, neste caso, seria outra tese complexa e extenuante a ser desenvolvida e defendida. Razões essas nos levaram a adiar este projeto maior, para centrar nosso trabalho na presente monografi a - A Comunidade Negra Dos Arturos: o drama de um campesinato negro no Brasil - pelo fato de esse grupo constituir a base operacional do Congado de Contagem. (SABARÁ, 1997, p.6)

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Ou seja, meu plano de trabalho para qualifi cação de doutorado em Antropologia Social, no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, apresentado em setembro de 1991, levava um título – “O congado em Minas Gerais: reinados de negros no império dos brancos” – que expressava seu objetivo (SABARÁ, 1991). Nesse, tanto as festas do congado, em Contagem como a Festa do Rosário, na cidade do Serro/MG, funcionariam como estudos de caso, reveladores do modelo explicitado anteriomente. Isso porque minhas pesquisas de campo me apontavam que somente se entenderia o signifi cado do Congado, das Festas do Rosário e dos Reinados de Congos, quando fossem vistas como (1) um complexo cultural que tivesse, como base de apoio, camadas populares negras e mestiças, contrapondo-se a (2) outro complexo cultural vinculado às elites brancas: os Impérios do Divino.

Tinha essa hipótese de trabalho e, para tanto, tinha material de pesquisa de campo comprobatório, tal como: anotações, entrevistas gravadas, danças gravadas, imagens e outros materias de campo. O que precisava era de tempo e recursos para sistematizar e redigir. No meio do caminho, sem poder abarcar os dois casos ― de Contagem e do Serro ― decidi centrar a redação da tese nas festas do Congado de Contagem. Contudo, era impossível redigir monografi a fi nal sobre o Congado de Contagem, sem tratar sistematicamente da Comunidade Negra Rural dos Arturos. Mas era possível eu redigir a tese sobre a Comunidade Negra Rural dos Arturos sem tratar sistematicamente das festas do Congado de Contagem, adiando o tema para ser sistematizado, posteriormente. Foi o que fi z, propondo-me a expor a trajetória dessa comunidade negra rural, como detentora de uma tradição cultural afro-brasileira.

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Mesmo tendo essa hipótese em estado avançado e deixando de tratar do Congado, em geral, e do Congado de Contagem, devo explicações por adiar essa abordagem sistemática do Congado para outra oportunidade. Como já disse, cabe repetir a pergunta:

Por que, apesar de ter iniciado a pesquisa tão cedo (1969), teria eu demorado a defender a tese (1997) e, por fi m, demorado tanto tempo para publicá-la (2015)?

Em princípio, esta minha missão ― tratar do Congado de Contagem ― estaria sendo cumprida pelos pesquisadores anteriormente relacionados e que vieram depois de mim, o que me desobrigaria de tratar sistematicamente desse aspecto da vida da Comunidade. Contudo, não posso me furtar ao tema e devo retomar o assunto, quando, para tanto, eu tiver tempo e recursos, pelo fato de que posso ter a presunção de ser detentor de material de campo inédito sobre o Congado em Contagem, aguardando oportunidade para sistematizá-lo e editar. Com isso, quero dizer que não estou me furtando ao dever de tratar do Congado de Contagem, mas estou apenas adiando o estudo deste tema para aprofundar o conhecimento do que o modelo interpretativo me sugere ― a predominância étnica de camadas populares negras e mestiças nas Festas de Reinados e Congados e, com isso, o signifi cado da Comunidade Negra Rural dos Arturos. Como dito, meu estudo de Congado Mineiro teve início com o estudo do Congado de Contagem/MG, em junho de 1969. Contudo, foi posteriormente (1973), com a abertura de dois novos campos de pesquisa, com dois estudos de caso – A Festa do Rosário, no Serro (MG) e A Festa do Divino, em Diamantina(MG), que vim a perceber melhor como as festas populares tradicionais revelavam o funcionamento do

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modelo interpretativo, acima descrito. Ocorre que, por uma destas surpresas que o trabalho de campo nos reserva, vim a me deparar com a existência, em Contagem, não somente do Congado local, mas também de uma Comunidade Negra Rural, semi-isolada, que funcionava como guardiã do Congado de Contagem. Comunidade essa que sobrevivia a cerca de três quilômetros da sede municipal, cerca de nove quilômetros do maior complexo urbano-industrial do Estado de Minas Gerais, e vinte e dois quilômetros de Belo Horizonte, capital do Estado. Essa constatação funcionou para mim como se fosse uma descoberta de um fato etnográfi co novo e de riquíssimo signifi cado, ainda não estudado em Minas Gerais, exceto no caso do Quartel do Indaiá, estudado por Aires da Mata Machado, em 19431. Era do meu entendimento que, para estudar o Congado de Contagem e apresentar um estudo acabado sobre o mesmo, far-se-ia necessário, antes, estudar e descrever a Comunidade do Arturos. Essa era a minha proposta. Contudo, em função de uma outra dessas surpresas, tive de ampliar o trabalho de campo e a ordem de exposição dos fatos para dissertar sobre a Festa de Primeira Capina entre os Arturos. Como de costume, muitas noites eu pernoitava na casa principal da Comunidade, casa de Dona Carmela, viúva de Artur Camilo. Conforme já registrara, em uma dessas noites, estava eu, ela e seus fi lhos, com alguns netos, em volta do fogão de lenha, a conversar despretensiosamente, quando sua fi lha, Juventina, falou em um tal de “Juão-do-Mato”. Por intuição, querendo saber o que estava por trás daquela expressão, comecei a perguntar o que era

9Estudos de casos semelhantes vinham sendo realizados por pós-graduandos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da USP, sob orientação de João Batista Borges Pereira (BAIOCCHI, 1983; QUEIROZ, 1983; BANDEIRA, 1988).

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“Juão-do-Mato”. Disseram que era uma “brincadeira” que faziam na Festa de Primeira Capina do Milho, no mês de dezembro, antes do Natal, e que não fazem mais. Pedi que fi zessem para eu ver (documentar) e assim fi zeram no dezembro daquele ano e em outros mais. Tratava-se de um rito agrário vinculado a um mutirão da primeira capina do milho, muito comum no meio rural, e que carecia de uma documentação sistemática, antes que se tornasse impossível de se ver e documentar. É o que foi objeto de exposição e considerações na parte da tese – A Festa de Primeira Capina de Milho Entre Os Arturos – desdobrando-se em cinco tópicos, conforme foi dito nesta introdução, ao ser apresentado o esquema de exposição da tese.

Mas meu aparente afastamento do tema foi mais longe. Ao estudar a Comunidade Negra Rural dos Arturos, passei a me interessar por verifi car a existência ou não de comunidades semelhantes, em Minas Gerais. Com isso, deu-se um desdobramento da pesquisa inicial sobre a Comunidade Negra Rural dos Arturos. Em 1980, fi z uma comunicação científi ca no IV Encontro Anual da ANPOCS (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação), no Rio de Janeiro, sob o título – Comunidades Negras Rurais do Brasil: um novo campo de estudos monográfi cos. Comunicação essa que veio atualizada (1997) e é aqui apresentada no terceiro capítulo, sob o título – Comunidades Negras Rurais: formas de campesinato negro no Brasil.

Mais do que verifi car a semelhança entre essas diferentes comunidades, vim a constatar que nelas era comum se encontrarem, Igrejas do Rosário ou capelas. Como, também, verifi quei que, se não realizavam essas festas de Congado ou similares atualmente, assim o fi zeram antigamente. Com isso, quero dizer que esta obra é um estudo de caso que contempla duas frentes de pesquisas – a de

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Congados em Minas Gerais, e a de Comunidades Negras Rurais, em Minas Gerais.

Foi naqueles momentos, em Contagem (1969-1970), que se deu a minha percepção inicial da ligação visceral entre Congado Mineiro e Comunidades Negras Rurais de Minas Gerais, o que me levou a fazer da Comunidade Negra Rural dos Arturos um estudo de caso, a ser aprofundado, juntamente com o estudo do Congado, de Contagem, cujo material de trabalho de campo ainda está para ser sistematizado.

Quero dizer também que o estudo dessa Comunidade constitui um estudo de caso, um produto fi nal de uma ponta de pesquisa de uma pesquisa mais ampla. Foi justamete a partir dali, do meu estudo de caso do Congado, de Contagem, associado ao estudo da Comunidade Negra Rural dos Arturos, que fui arrastado para este segundo objeto de pesquisa ― o Estudo de Comunidades Negras Rurais, em Minas Gerais. Enfi m, esta estratégia de conduzir simultaneamente as duas frentes de pesquisa se deu em função das imposições dos próprios objetos de pesquisa. Considerando que a tese foi defendida em 1997 e está sendo publicada 18 anos depois (2015), muitas mudanças ocorreram, tanto em termos culturais, quanto econômico-sociais. Normalmente, a edição de teses sempre incorpora dados, reformula alterações, radicalmente ou não, em função de novos fatos ou sugestões da banca examinadora, o que, por vez, faz com que sejam novas teses. No presente caso, a questão é ainda mais complexa. Tanto o prolongamento da minha pesquisa (iniciada em junho de 1969), na Comunidade, indo até a defesa de tese (1997), como a demora da publicação da tese (2015) podem dar a sensação de que estou a publicar algo defasado e superado. Com efeito, as transformações

pelas quais a outrora Comunidade Negra Rural dos Arturos passou,

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depois que a conheci (1969) e depois da minha defesa de tese (1997), poderiam ter me dado a sensação de perda de objeto. Mas não foi assim. Muito pelo contrário, o tempo e o afastamento do objeto me permitiram ver aspectos que não via e incorporar dados que não tinha, além de ter, em si, a importância de documentar um rito agrário como este – a Festa de Primeira Capina de Milho. Mas, para não desconfi gurar a tese, optei por não incorporar esses novos dados nesta obra, mas tão somente em algumas notas de pé-de-página e nesta introdução.

Já foi dito que meu objeto de exposição foi a trajetória dessa comunidade negra rural, como detentora de uma tradição cultural afro-brasileira, que sobrevivia, marginalizada e semi-isolada, a cerca de nove quilômetros do maior complexo urbano-industrial do Estado de Minas Gerais, sediado no Município de Contagem, cerca de três) quilômetros da sede municipal, cerca de 22 quilômetros de Belo Horizonte, capital do Estado. Comunidade negra rural que veio a se transformar em uma comunidade urbana, em função do avanço do processo acelerado de expansão urbana da cidade de Contagem. E, comunidade negra rural essa que, uma vez revelada, veio a se transformar em um centro de consumo do exótico, em função do seu modo de vida e do seu capital cultural – a tradição afro-brasileira do congado mineiro.

Até o fi m da década de 1970 e meados de 1980, o modo de vida dos Arturos me autorizava a tratá-los como nativos de uma comunidade negra isolada no Brasil. Minha audácia etnográfi ca chegou ao ponto de tratar o seu modo de vida como um modo de produção doméstico, o que equivale a dizer um modo de produção primitivo. Não é que vivessem essa situação por uma questão de

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atraso, na escala evolutiva, mas como um processo de retorno do escravismo ao modo de produção doméstico, como estratégia de sobrevivência. É o que vem exposto no subtópico 3 – O Modo de Produção Doméstico e a Comunidade Doméstica e no tópico 2 – Os Estudos Clássicos de Comunidade: limitações e sugestões.

De 1969 a 2015, muitas mudanças ocorreram. A outrora Comunidade Negra Rural dos Arturos veio a se tornar um bairro urbano, com todos os benefícíos e problemas sociais que essa nova situação implica. Dos onze descendentes diretos do casal Artur Camilo e Carmelinda Maria, conforme consta no tópico 5 – Família e Parentesco entre os Arturos – restam somente três: a) Conceição Natalícia da Silva (que, depois de casada, foi morar fora da Comunidade); b) Mário Braz da Luz; c) Antônio Maria da Silva.

Ainda que o direito de posse, articulado ao critério de descendência, continue regendo a comunidade, não se sabe se assim acontece em respeito à tradição, ou se é em função do fato de não mais terem condições de concretizar uma partilha legal, em função de tantos herdeiros e tão pouca terra. Se antes havia lugar para uma roça e um pasto, mesmo que pequenos, a comunidade, com seu terreno, passou a funcionar muito mais como bairro urbano e dormitório de trabalhadores negros, cercada de loteamentos e bairros novos da Cidade de Contagem, que cresce em sua direção. A geração de netos e bisnetos de Artur Camilo vem construindo residências em volta das residências dos fi lhos de Artur Camilo, elevando, assim, o número de residências e aumentando o nível de densidade demográfi ca do grupo e. com isso, certamente, gerando novos problemas a serem diagnosticados e enfrentados.

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Contribuindo para evitar a decadência total da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem e do Congado de Contagem, a Comunidade Negra Rural dos Arturos veio a funcionar como guardiã dessas tradições, a ponto de essas duas instituições passarem a ser vistas, tanto no imaginário da sociedade envolvente quanto no da Comunidade, como instituições, não da Cidade de Contagem, mas, isso sim, da Comunidade Negra dos Arturos. Contudo, essa distinção veio a se tornar muito clara, recentemente, quando dos preparativos para a realização da Festa de Treze de Maio de 2014. Anteriormente, a festa era realizada nas escadarias da Igreja Matriz de São Gonçalo, patrocinada pela Prefeitura, com direito a palanque e discursos, e a missa era celebrada dentro dessa igreja matriz. Porém, havia pouco tempo, a Igreja Capela de Nossa Senhora do Rosário, que fora erguida pelos Arturos e pela comunidade local, tornara-se igreja matriz, sede de nova paróquia. Travou-se uma disputa para saber como seria a festa e quem mandaria nela: se ela seria uma festa religiosa, tendo o pároco e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário como protagonistas, como antigamente, ou se era uma festa cívica, tendo o Prefeito e a Comunidade dos Arturos como protagonistas. Ao que parece, foi feito um acordo, pois, na parte da manhã, deram-se duas celebrações: uma celebração cívica, com o Congado no adro da igreja, com direito a danças e performances estranhas à tradição do Congado e discurso do prefeito; depois, houve a celebração tradicional da missa do congado, dentro da igreja. Ainda que o patrimônio cultural afro-brasileiro cultivado e guardado pelos mais velhos, fi lhos de Artur Camilo, continue preservado parcialmente, ele passou a ser apropriado por alguns

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membros mais novos (netos), funcionando como moeda de troca, a pretexto de preservação da tradição. A previsão deste pesquisador, na quinta parte da obra – A Comunidade Negra Dos Arturos e o Mercado de Bens Simbólicos – de que a Comunidade se transformaria em grupo de espetáculo vem sendo concretizada. É importante registrar que exatamente no momento em que eu estava a redigir o presente tópico, ocorrem dois fatos que vão aquecer o fl uxo turístico em direção à Comunidade (abril de 2014). O jornal de maior circulação no Estado (Estado de Minas, 13/04/14), no seu caderno Bem Viver, trazia extensa reportagem de capa sobre benzedores, na qual meu antigo informante, Mário Braz, o sétimo fi lho de Artur Camilo, aparece como benzedor, com direito à imagem de capa, exibindo os instrumentos rituais de benzedura e, em imagem interna, benzendo uma criança branca, no colo da mãe. A mesma reportagem comunicava:

No próximo domingo, dia 28, a Comunidade do Arturos, em Contagem, na Grande BH, recebe o título de Patrimônio Imaterial de Minas Gerais (IEPHA). Seu Mário mora lá, desde os dez anos, e é o benzedeiro mais conhecido na região, atraindo até mesmo gente de outros lugares do Brasil. (EVANS, 2014)1

Era sabido que a Comunidade Negra Rural do Arturos vinha sempre se negando a ser reconhecida como comunidade de remanescentes de quilombo, pela Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura. Na época em que isso aconteceu, não tive condições de apurar os motivos. Contudo, recentemente, em 2014, vim a saber que evitaram ser reconhecidos como remanescentes de quilombos porque os Arturos estavam providenciando ou tinham

10EVANS, Luciene. Longe do Fim: Considerados anjos, os benzedeiros carregam em si a fé e as boas energias que passam para outras pessoas. Em Minas Gerais, há um estudo para transformar o ato de benzer em bem imaterial. Estado de Minas, Belo Horizonte, Caderno Bem Viver, 13/04/14, p. 1.

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providenciado a partilha da terra, lavrada em cartório. Se confi rmado o fato, vem ele demonstrar o avanço da Comunidade para se afastar do direito costumeiro de uso comunal da terra, para adequar-se ao direito de propriedade. Agora, em 2014, o fato de a Comunidade Negra dos Arturos estar, neste ano, recebendo o título de Patrimônio Imaterial de Minas Gerais, pelo IEPHA (Instituto Estadual de Patrimônio Histórico), dá o que pensar.

3 - De Comunidades Negras Rurais, Quilombos e Guetos Negros

Neste subtópico, nossa intenção é responder a uma das possíveis dúvidas dos leitores:

Em um momento em que se fala tanto em comunidades remanescentes de quilombos ou, até mesmo, em comunidades quilombolas, por que estou a falar em Comunidades Negras Rurais e não em Comunidades Quilombolas?

Pode parecer estranho o fato de esta publicação ter o presente título: o drama de um campesinato negro no Brasil: a Comunidade Negra dos Arturos. Se quisesse fazer concessão à moda, poderia ter outros títulos, tais como: “A Comunidade Quilombola dos Arturos: o drama de um campesinato negro no Brasil”, ou “O drama de um campesinato negro no Brasil: a Comunidade Quilombola dos dos Arturos”, ou simplesmente: “A Comunidade Quilombola dos Arturos”. Assim não farei e tentarei dar minhas razões.

A cobrança tem sentido maior ainda se levar-se em conta que produzi, posteriormente, mais dois trabalhos sobre duas comunidades negras rurais, encomendados por órgãos públicos e que não foram editados1 :11Evidentemente, depois da defesa de referida tese (SABARÁ, 1997), inúmeras outras Comunidades Negras Rurais, semi-isoladas ou não, estudadas ou não, foram reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, como comunidades remanescentes de quilombos (SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIREITO PÚBLICO, 2002). A mais recente delas e que vem sendo visitada por mim, esporadicamente, desde a década de 1990, e que está para ser posta como objeto de estudo, é a Comunidade Negra Rural de Felipe, localizada no Município de Bom Jesus do Amparo (MG), a 65 quilômetros de Belo Horizonte. Comunidade essa que foi reconhecida como remanescente de quilombo, pela Fundação Cultural Palmares, conforme publicação no Diário Ofi cial da União, de 19/09/13, Seção, p. 6.

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- Em 2001 - Comunidade Negra Rural de Pontinha: agonia de um modo de produção - Pesquisa e relatório técnico encomendados pela Secretaria do Estado de Turismo de Minas Gerais, via TURMINAS. (SABARÁ, 2001)- Em 2003 - A Comunidade Negra Rural de São Domingos do Paracatu e o Programa Fome Zero - Pesquisa e relatório técnico encomendados pela Fundação Cultural Banco do Brasil, via Grupo Coordenador Fome Zero, Minas Gerais. (SABARÁ, 2003)

Conforme dito, em 1980, minhas pesquisas sobre comunidades negras isoladas em Minas Gerais tinham tomado corpo como linha de pesquisa, tendo sido objeto de comunicação no IX Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado de 29 a 31 de outubro de 1980. Tratava-se de minha contribuição ao grupo – Temas e Problemas das Populações Negras no Brasil – sob o título Comunidades Negras Rurais: um novo campo de estudos monográfi cos. Comunicação essa que vem incorporada a esta publicação, e vem aqui editada como terceiro capítulo. (SABARÁ,1980)

Sei perfeitamente que o que vou dizer desagrada profun-damente aos movimentos negros. Que discordem, logo de início, mas que aguardem a minha posição final. Os movimentos negros vêm alimentando uma onda equivocada de confundir metáforas de quilombo com quilombo e passaram a ver quilombos onde não existem nem mesmo remanescentes desses.

Diga-se de passagem que até mesmo já se fala em quilombos urbanos. O site da Comissão Pro-índio de São Paulo, de 10 de dezembro de 2014, arrola alguns desses supostos quilombos entre os quais vem arrolada a Comunidade Negra dos Arturos. Assim consta:

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Na região metropolitana de Belo Horizonte, até março de 2007, três comunidades quilombolas haviam sido identifi cadas: Arturos, Luízes e Mangueiras (Cedefes, 2007). No entanto, o número de quilombos urbanos em Minas Gerais é maior. A pesquisa realizada pelo Cedefes destaca a existência de quilombos urbanos que foram formados pela migração de uma comunidade para uma determinada área urbana em função da perda de suas terras. Segundo o Cedefes, essa é a história de formação das comunidades do Baú, em Araçuaí, na região do Vale do Jequitinhonha; a dos Amaros, em Paracatu, na região Noroeste; e a de Palmeiras, no município de Teófi lo Otoni, no Vale do Mucuri, que surgiu em função da aglomeração de trabalhadores negros da linha ferroviária. (www.cpisp.org.br 10/1214)

Acredito que isso tem a ver, em parte, com a publicação de Abdias Nascimento – O Quilombismo – pela Editora Vozes, em 1980 (NASCIMENTO, 1980). A própria Fundação Cultural Palmares também contribui para esse equívoco. A revista Palmares, nº 5, de novembro de 2000, leva o título – Quilombos no Brasil. Contudo, na verdade, trata é de comunidades negras rurais, umas sendo comunidades remanescentes de quilombos, e outras não. Talvez eu mesmo possa ser acusado de ter incorrido neste equívoco, como consultor do Grupo Coordenador do Programa Fome Zero, em Minas Gerais, referente ao eixo – Comunidades Remanescentes de Quilombo – ao repassar um projeto com o seguinte título: Quilombo por Quilombo: Programa Fome Zero para

Comunidades Negras Rurais em Minas Gerais (SABARÁ, 2003b). Como também acredito que isso tem nuito mais a ver com

a Comissão da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), o que é por ela reconhecido. É o que se deduz do que vem dito pelaCoordenadora do Grupo de Trabalho da ABA – Terra de Quilombos

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– Eliane Cantarino O’Dwyer, na apresentação do caderno Terra de Quilombos, organizado por essa antropóloga e editado pela ABA, em 1995.

A diretoria da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), sob a presidência do Prof. João Pacheco de Oliveria, defi niu como um desafi o desta gestão que a ABA deixe de se manifestar apenas em relação às questões que envolvem assuntos indígenas e se faça presente em outros domínios e campos de atuação signifi cativos. Foi com essa atribuição que se constituiu o Grupo de Trabalho da ABA para refl etir sobre a conceituação de Terras de Remanescentes de Quilombos, a sistemática administrativa para sua implantação e o papel do antropólogo nesse processo. (O’DWYER, 2008, p. 10)

A primeira reunião do Grupo deu-se em 17/10/94, quando foi elaborado um documento para o Seminário das Comunidades Remanescentes de Quilombos, proomovido pela Fundação Cultural Palmares/Minc, realizada em Brasília, uma semana depois da referida reunião (25/10/94 a 27/10/94). Sobre o referido documento, assim fala a antropóloga:

De acordo com este documento, o termo Quilombo tem assumido novos signifi cados na literatura especializada e também para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado (grifo da autora) para designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. (Ibidem)

Não sei o que diz a Associação Nacional de História (ANPUH) sobre a questão, mas, em se tratando da ABA, chegou atrasada no processo e deixou-se levar pela tendência de ressemantização do termo quilombo, em vez de se postar como sociedade científi ca, à qual caberia defi nir parâmetros sobre o assunto. Ou melhor, não se sabe o porquê, mas a ABA parece ter preferido carimbar um pseudociclo

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de produção sobre o assunto – estudos de comunidades quilombolas ou de remanescentes de quilombos, como queiram. Contudo, para tanto, teve de ignorar linhas de pesquisa e literatura especializada e corrente, pelo menos em termos de Antropologia sobre Comunidades Negras Rurais até então produzidas. (SABARÁ,1980; PEREIRA, 1981; BANDEIRA, 1988, dentre outros autores)

Esse quilombismo teve sua continuidade na ABA, patrocinando relatórios de identifi cação de terras de quilombos, com recursos da Ford Foundation, culminando com uma segunda publicação da ABA, em 2002, sob o título - Quilombos: identidade étnica e territorialidade - também organizada por Eliane Cantarino O’Dwyer, cujo tópico introdutório assim dizia: “Alguns relatórios de identifi cação de terras de quilombos foram elaborados por antropólogos pertencentes a uma rede constituída através da ABA, tendo contado, para sua intensa articulação, com recursos da Fundação Ford através do Projeto Terra de Quilombo”. (O’DWYER, 2002, p. 19) Complicando ainda mais a questão, têm-se os casos dos dois decretos com os objetivos assim defi nidos: “Regulamenta o procedimento para identifi cação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. O primeiro deles, Decreto Nº 3.912, DE 10/12/01, foi efetivado ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso. O segundo, Decreto Nº 4.887, de 2011/03, foi efetivado na gestão de Dilma Roussef, revogando o primeiro, por conter inúmeras contradições e incorreções legais. É o que vem apontado no texto de Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira, Procuradora Regional da República, membro da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, apresentado como anexo – Breves Considerações sobre o Decreto Nº 3.912/12 (PEREIRA, 2002).

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Quero remontar ao Artigo 2 do decreto vigente, incluindo o seu parágrafo primeiro:

Art. 2, Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fi ns deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específi cas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.§1º Para os fi ns deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefi nição da própria comunidade.

Os termos – critérios de autoatribuição, presunção de ancestralidade, autodefi nição da própria comunidade – correntes no decreto vigente, por sua vez, contêm uma aberração científi ca. Tratam como fenômeno objetivo – a consciência social – o que é fenômeno subjetivo, autoatribuição ou autodefi nição. Em termos dialéticos, em se tratando de um confl ito étnico, como é o caso, é impossível se comungar uma identidade étnica sem que se haja outra identidade que lhe contrapõe. Vem daí a necessidade de um tercius para opinar sobre o caso. Consequentemente, com isso, o referido decreto ignora, em bloco, o que poderiam contribuir os estudos de Antropologia do Direito, mormente do direito étnico. Ao mesmo tempo, ilegitima tanto a função dos antropólogos na condição de relatores, como a de juízes e promotores na condição de tercis em confl itos étnicos. Com isso, deixam-se vulneráveis os referidos “procedimentos para identifi cação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos”.

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Mas as consequências mais desastrosas desse deslize científi co-jurídico estão no ato de estimular a proliferação de falsidades ideológicas de não-remanescentes de quilombos se declarando como remanescentes, com o intuito de se apropriarem de terras de remanescentes. Essa incongruência jurídica do decreto tem seus paralelos tanto no caso de quotas para negros e índios nas universidades públicas, quanto na demarcação de terras de comunidade indígenas, quando não-negros se declaram negros para se benefi ciarem das quotas universitárias para negros, e não-índios se declaram índios para solicitarem demarcações de terras como territórios indígenas, Trata-se de uma patologia social que pode ser vista como um caso de manipulação de identidade.1

De mais a mais, o decreto vai à contramão da Convenção nº 169, da OIT, de 07/06/89, que, no seu artigo 7, parágrafo 3, assim reza:

Artigo 1 - A presente Convenção aplica-se:(...)b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfi ca pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte dela.

12Em 1997, estava eu a sistematizar um ensaio de refl exões sobre identidade negra, sob o título – Identidade Étnica e Ascendência Africana ou Identidade Negra. Neste trabalho, tecia considerações sobre manipulação de identidade negra. Por razões que não vêm ao caso, mas deixei de lado o tema. No atual momento, eu me vejo retomando-o e estou me propondo a aprofundá-lo.

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Artigo 7, parágrafo 3:Os governos deverão zelar para que, sempre que for possível, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento previstas possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.

Por essas e outras razões, prefi ro continuar a falar em Comunidades Negras Rurais, o que não exclui o que se pode denominar como comunidades remanescentes de quilombos, como uma das formas de Comunidades Negras Rurais e, por sua vez, como uma das formas de campesinato negro no Brasil.

Falar em quilombos nos dias atuais, como fato social, é um equívoco, pois se trata de uma problemática agrária, rural, vinculada ao período da escravidão, no Brasil. Só se poderia assim falar em sentido metafórico. Contudo, metáforas de quilombo, quilombismo, quilombolas, comunidades quilombolas, nos dias atuais, podem ser estimulantes, mas não resolvem o problema, de fato, do campesinato negro brasileiro, dos trabalhadores rurais negros, de negros sem-terras. Negros que, diferentemente dos índios e do campesinato indígena, nem mesmo tiveram terras para serem tomadas. Foi efetivada uma abolição da escravatura, sem reforma agrária para negros, reforma essa que entrou para o limbo da História do Brasil.

Do meu ponto de vista, a insistência em se reconhecer toda e qualquer comunidade negra rural ou urbana como quilombo ou remanescente de quilombo, contribui negativamente, para mascarar a questão central – o acesso do negro à terra. Em termos de políticas públicas de inclusão do negro na sociedade brasileira, à semelhança do,

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que se faz na educação, reservando-se quotas para negros nas universidades públicas, deveriam ser reservadas terras para negros, sendo ou não remanescentes de quilombos. Questão essa que o atual movimento dos sem-terra não tem levantado e que deveria entrar em sua pauta de discussões.

Sou inclinado a pensar que o imaginário brasileiro, por mero preconceito, procura ocultar a existência de um campesinato negro no Brasil, tanto com terra, como sem terra. A categoria campesinato no Brasil, se não é entendida como um campesinato branco, soa como se não existisse um campesinato negro. É o que me leva a parodiar aquela conhecida brincadeira que faz parte do folclore nacional, de fazer perguntas capciosas, tal como esta: qual é a cor do cavalo branco de Napoleão? Poder-se-ia perguntar também: qual é a cor do campesinato negro, no Brasil? É possível que nem se saiba se ele existe ou existiu, o que é discutido no tópico 3 – Comunidades Negras Rurais: formas de campesinato negro no Brasil.

Penso que os movimentos negros atuais deveriam, mais do que cobrar urgência na demarcação de terras de remanescentes de quilombolas, cobrar do governo um programa de reforma agrária para negros. O poder público, por sua vez, poderia avançar mais além do que fi car na simples demarcação de terras de remanescentes de quilombos, para implantar uma política agrária de concessão de terras para famílias negras do meio rural. Algo como Minha Terra, Minha Vida, parafraseando o atual programa habitacional do Governo, Minha Casa, Minha Vida.

Para tanto, os dispositivos constitucionais que embasam as demarcações de terras para remanescentes de quilombolas são limitados, como se pode ver:

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Art. 215. Parágrafo 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Esses dispositivos constitucionais não se prestam a embasar as demarcações de terras para remanescentes de quilombolas, muito menos de outras comunidades fundadas por negros libertos que não tiveram origem no movimento quilombola do período escravista. Restringem-se à esfera da cultura negra, o que leva as comunidades negras rurais a fi car na dependência da Fundação Cultural Palmares, a qual, como órgão do Ministério da Cultura, por função, está mais voltada para preservar essas comunidades como possíveis depositárias de valores culturais, patrimoniais, do que garantir a sobrevivência dessas famílias. A referida Fundação, sem condições políticas e técnicas para tratar de terras de negro do meio rural, remanescentes de quilombos ou não, fi ca na dependência do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O artigo 68, do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Provisórias), por sua vez, tem o mérito de trazer ao caso a questão fundiária, a cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ao assim reger: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade defi nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

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Esse Ministério, por sua vez, mesmo tendo a função de “identifi car, reconhecer, delimitar, demarcar e titular as terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos”, além de promover a reforma agrária e desenvolvimento sustentável da agricultura familiar e das regiões rurais, tem de esperar pelas provocações da Fundação Cultural Palmares. Contudo, mesmo que o Ministério do Desenvolvimento reconheça, delimite, demarque e titularize terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos, as comunidades negras rurais que têm origem em doações, usucapião ou compras sem escrituras, perderão terras, simplesmente por falta de amparo legal. São habitantes da terra que perdem a posse desta, por viverem encantoados, discriminados e explorados, além de ser analfabetos e desconhecerem totalmente os processos de tramitações cartoriais de lavratura de propriedades individuais. Vem daí essa hipocrisia de se fi car a descobrir quilombos, onde não existem nem mesmo remanescentes de quilombos, e de se deixar de garantir a posse do território negro. Também, que não se vá, agora, mascarar a questão, tratando essas comunidades negras rurais, como mera questão de agricultura familiar ou de economia de subsistência. Melhor ou mais correto seria se fossem vistas e tratadas como sugestivos embriões de comunas rurais, resgatando a pertinência, nos dias de hoje, do modo de produção primitivo, na forma de modo de produção doméstico, à semelhança de como deveriam ser vistas as comunidades indígenas.1

13Meus estudos de Comunidades Negras Rurais, quanto mais avançavam, mais me apontavam na direção de que essas comunidades negras rurais constituíam movimentos negros rurais de retorno ao modo de produção primitivo ou doméstico, à semelhança das comunidades indígenas. Como tais deveriam ser tratadas pelo Estado e pela sociedade envolvente como nações, em sua totalidade sociocultural, e não fi carem à mercê deste ou daquele Ministério. Hipótese de trabalho que começou a se delinear nesta obra e veio a avançar no estudo da Comunidade Negra Rural de Pontinha, de Paraopeba/MG e no estudo da Comunidade Negra Rural de São Domingos, de Paracatu/MG independente de agradar ou não à Fundação Cultural Palmares ou à Fundação Nacional do Índio. Hipótese esta que gostaria de retomar, caso consiga publicar os meus estudos sobre essas referidas comunidades. (SABARÁ, 2001, 2003)

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Pode-se até mesmo considerarem-se estranhas estas minhas conclusões, mas são o produto das minhas leituras e releituras das Formações econômicas pré-capitalistas de Marx (1985) e do esquema de Evolução das sociedades, em Maurice Godelier (GODELIER, 1973). De modo especial, pode corroborar o que afi rma Claude Meillasoux, quando diz: “A comunidade doméstica agrícola, pelas suas capacidades ordenadas de produção e de reprodução, representa uma forma de organização social integral que persiste desde o neolítico.” (MEILLASOUX, 1976, p.13)

O capítulo terceiro deste livro, – Comunidades Negras Rurais: formas de campesinato negro no Brasil – veio muito a propósito para tratar da problemática do campesinato negro no Brasil e da Comunidade Negra Rural dos Arturos, enquanto essa era uma comunidade rural. Assim o faz em três subtópicos: 1) Campesinato: defi nição e identifi cação; 2) Campesinato brasileiro e campesinato negro: problemas de identifi cação; 3) Comunidades negras rurais no Brasil: um projeto de pesquisa. Mais especifi camente no segundo subtópico, discute como se deu a formação de campesinato negro no Brasil, antes e depois da abolição da escravatura, em dois itens: a) quilombos e comunidades negras rurais: formas de campesinato negro; b) alforrias, fugas de escravos e formação inicial do campesinato negro. Por fi m, no item Comunidades negras rurais: formas de campesinato negro em Minas Gerais, arrola as comunidades negras rurais, remanescentes de quilombos ou não, identifi cadas até então (1980), em Minas Gerais.

Espero que, com essa longa exposição, tenha conseguido responder satisfatoriamente à questão: “Em um momento em que se fala tanto em comunidades remanescentes de quilombos ou, até

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mesmo, em comunidades quilombolas, por que estou a falar em Comunidades Negras Rurais e não em Comunidades Quilombolas?” É óbvio, que, para estudar comunidades negras rurais, tive de me aprofundar em pesquisas bibliográfi cas feitas sobre a história dos afro-brasileiros, durante e depois da abolição, até mesmo quando eram somente afros. Contudo, não sou historiógrafo nem arqueólogo para poder fazer pesquisa sobre quilombos, apesar de toda a minha admiração pelos historiógrafos e arqueólogos com competência e paciência para descobrir escritos e vestígios referentes aos afros e aos que chegaram a ser afro-brasileiros. Sou meramente um modesto etnógrafo com pretensões de ser etnólogo, a escutar, gravar, fotografar e escrever depoimentos de afro-brasileiros, sem-terra ou não, analfabetos ou semianalfabetos, mas sempre abaixo da linha da pobreza e lutando, por si e pela família, para sobreviver.

Contudo, minhas últimas visitas à Comunidade Negra Rural dos Arturos, participando ou não das festas, seja para rever uns poucos informantes sobreviventes do meu tempo de trabalho de campo ou para checar novos dados, antes da presente publicação, levaram-me a registrar algumas novas observações e refl exões e a concluir que a Comunidade Negra Rural dos Arturos já não o é mais.

O Parque Industrial de Contagem se expandiu, deixando de estar a nove quilômetros, para fi car a cerca de seis, havendo crescimento de oferta de trabalho. Com o processo acelerado de urbanização da sede de Contagem e a emergência de seus bairros periféricos, a Cidade de Contagem e, com ela, a sociedade envolvente atravessa a porteira daquele território negro e chega às portas das suas famílias.

Por outro lado, o antigo casario de onze residências veio a se transformar em um bairro negro, urbano. O crescimento demográfi co

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da Comunidade e o fato de que a terra era reduzida à Comunidade Negra Rural dos Arturos, como a conheci, em junho de 1969, deixa de assim ser, para constituir um dormitório de famílias de trabalhadores negros. Foi mudando de suas atividades econômicas de cunho rural para as de trabalhadores da indústria local. Enfi m, a passos largos, chegou à condição de uma Comunidade Negra Urbana, a habitar um território negro, o que geralmente se conhece como gueto negro.

A rotina de vida da Comunidade geralmente se quebra quando a Comunidade se transforma em sede principal dos eventos religiosos ligados ao Congado de Contagem, principalmente na celebração da Festa de Treze de Maio, quando recebe as visitas de tantos outros congados do Estado, interessados no evento religioso. É o momento também em que se transforma em campo cultural, aberto a curiosos, pesquisadores, fotógrafos, jornalistas, políticos e outros, mais interessados na festa como espetáculo. Quanto à Festa do Rosário, realizada em outubro, esta, à qual se referiam como Festa Grande, com relação à de Treze de Maio, tida como Festa Pequena, atualmente, fi cou Festa Pequena, ao lado da Festa de Treze de Maio que ganhou impulso nas três últimas décadas, em função do assédio da Prefeitura, da mídia e de curiosos.

Por essas e por outras razões, penso que a Comunidade Negra dos Arturos não deva mais ser abordada como Comunidade Negra Rural, mas, isso sim, como uma Comunidade Negra Urbana ou, simplesmente, como um gueto negro, tanto quanto os guetos negros que surgiram nos Estados Unidos ou em outras partes do mundo. No meu entender, a noção de gueto negro seria mais operacional para se abordar a nova realidade da referida Comunidade. Nisso, em se tratando de Brasil, não estou só e posso citar sugestivo artigo

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de Brasilmar Ferreira Nunes (UFF/CNPq/FAPERJ) e Letícia Veloso (UFF/FAPERJ) – “Guetos e Favelas: a recorrência do ‘défi cit’ de territórios nas metrópoles contemporâneas” – apresentado no 34º Encontro Anual da ANPOCS, no qual assim se expressam:

Ainda dentro do processo de reconstrução sociológica que transformava um termo que originalmente denominava um espaço em conceito explicativo, o uso do “gueto” foi se ampliando para se referir aos espaços marginalizados, empobrecidos e segregados, habitados pelos afro-americanos em metrópoles como Nova York, Detroit, Chicago, Pittsburgh, Washington, D.C. e, mais tarde, Los Angeles e Philadelphia. (NUNES; VELOSO, 2010, p. 5)

Apenas para que se possa avaliar, em parte, esse processo de mudança, basta trazer ao texto alguns novos dados. Dos onze fi lhos do casal Artur Camilo e Carmela, restam somente três fi lhos idosos. O antigo casario, que era composto por onze casas residenciais, quando lá cheguei (1969), em 2015, deu lugar a cerca de 70 casas residenciais, muitas delas com puxadinhos e carros nas garagens. A terra é povoada por netos, bisnetos e tataranetos de Artur Camilo, na condição de herdeiros de Artur Camilo e Carmelinda Maria de Jesus.

Quando lá cheguei (1969), a Comunidade vivia nos tempos da lamparina e lampião, e da civilização oral, sendo que Bil, um dos fi lhos do casal, porque era motorista de uma olaria próxima, possuía uma televisão, que funcionava a bateria. Posso dizer que os Arturos já se encontram além da era de eletrodomésticos e da televisão onde veem o mundo e se veem, mudando seus hábitos. Em 2015, chegaram à era digital. Se antes, como descrito e diagnosticado na tese, a Comunidade foi transformada em mercado de cultura negra, vulnerável à apropriação por setores da sociedade envolvente, com destaque para a mídia, atualmente, os Arturos caminham para

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gerenciar, bem ou mal, a sua produção cultural, sem que precisem tanto depender de intermediários, sejam eles jornalistas, fotógrafos, técnicos, pesquisadores ou curiosos.

Para os pesquisadores, trata-se de uma nova realidade. A pesquisa e a dissertação de mestrado de Erisvaldo Pereira dos Santos – Religiosidade, identidade negra e educação: processo de construção da subjetividade de adolescentes dos Arturos (1997) – é muito ilustrativa com relação a esse momento da Comunidade. Nos anos de 2006 e 2007, lá esteve para estudar o que se poderia denominar como processo pedagócio de educação informal, na transmissão de herança cultural afro-brasileira dos mais velhos para os mais novos. Para sua surpresa, deparou-se com um número considerável de jovens que vivem a crise de identidade, entre serem, de fato, congadeiros, devotos de Nossa Senhora do Rosário ou participantes de movimento funk à brasileira. Em 41 páginas, no quinto capítulo da dissertação – “Desmistifi cando a identidade: desvelando o discurso de adolescentes”, pág. 125 a 169, – aborda a questão e registra:

Além do clima da festa de Nossa Senhora do Rosário, esta primeira entrevista foi marcada pelo meu interesse em investigar as relações existentes entre duas práticas socioculturais na vida dos adolescentes e jovens daquela Comunidade. O Congado não é, de forma exclusiva, a única prática sociocultural vivenciada por eles. O funk, o pagode, as capoeiras constituem práticas socioculturais com as quais eles estão interagindo. (SANTOS, 1997, p. 127).

Na parte conclusiva da dissertação, assim se expressa:

Vale ressaltar que, quando iniciei esta pesquisa, uma das minhas certezas sobre os Arturos era a de que havia um processo de transmissão de conteúdos realizando-se no cotidiano da Comunidade. Tal certeza

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estava fundamentada na efi cácia da tradição oral. Entretanto, diante do diálogo com T. C. S., e do efeito de sentido produzido na interação com os outros sujeitos participantes, não estou certo de que a oralidade continue sendo sufi ciente para a realização dessa tarefa. (SANTOS, 1997, p. 171)

Ilustrativo também é o caso da etnomusicista, Glaura Lucas. Em 2006, a Comunidade consegue produzir um livreto e um CD – Cantando e Reinando com os Arturos, pela Editora Roma, com recursos do Ministério da Cultura. A referida pesquisadora aparece somente como coordenadora ou assessora, juntamente com José Bonifácio da Luz, neto de Artur Camilo, então presidente da Irmandade do Rosário (COMUNIDADE DOS ARTUROS, 2006).

Quanto ao impacto ou não do evangelismo atual sobre a Comunidade e sobre o Congado de Contagem, não tive ainda condições de verifi car. Quando cheguei (1969), lá residia, de favor, uma evangélica, que, certamente, por fi car incomodada com aquele clima religioso de santeria de congado, mudou-se. E, ao que parece, essa questão não vem sendo objeto de consideração por ninguém.

Concluindo, até o fi nal do século XX, eu podia falar em uma Comunidade Negra Rural dos Arturos, mas a esta altura do século XXI , tenho elementos para dizer que se trata de um gueto negro, com toda minha avaliação positiva sobre guetos como espaços políticos de resistência ou não. Contribui também para se entender a questão, uma problemática que vinha de longa data, mas somente vim a tomar conhecimento dela recentemente – as resistências, na comunidade, à publicação da minha tese, por parte das novas gerações. É o que será objeto de consideração no próximo subtópico – Da Pesquisa Antropológica e da Revolta dos Nativos.

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Anteriormente dizia-se que a insistência em se reconhecer toda e qualquer comunidade negra rural como comunidade remanescente de quilombo contribui negativamnte para mascarar a questão central – o acesso do negro à terra. Sugeria então que se fi zesse como foi feito em termos de políticas públicas, com relação às quotas para negros nas universidades públicas. Deveriam ser reservadas terras para negros, remanescentes ou não de quilombos. Com relação aos Arturos, em termos de políticas públicas, enquanto formavam uma comunidade rural, agrária, nada foi feito para que tivessem mais terras para que pudessem continuar como produtores rurais. mesmo sendo eles vistos ou não como remanescentes de quilombos No atual momento, já não lhes é mais possível se benefi ciarem de políticas públicas voltadas para comunidades quilombolas ou remanescentes de quilombos. Terão de aguardar uma elaboração e implementaçao de políticas públicas que contemplem sua situação atual de bairro negro ou gueto negro da Cidade de Contagem, políticas públicas estas que ainda não existem. É por isso que eu dizia que essa generalização de quilombos, com referência a comunidades negras urbanas ou guetos negros, somente se presta a difi cultar a luta dos trabalhadores negros urbanos, aglomerados ou não em guetos negros.

4 – Da Pesquisa Antropológica e da Revolta dos Nativos

Convivi com as mais adversas condições de produção acadêmico-científica, que me levaram a demorar tanto para defender a tese (1969-1997) e, mais ainda, para publicá-la (2015). Nos três subtópicos anteriores, fiz menção a algumas dessas limitações. No primeiro deles – De teses, dissertações e monografias sobre a Comunidade dos Arturos

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– além de expor o roteiro da tese e fazer uma breve revisãobibliográfi ca, expus o meu problema de ter de conviver com outros pesquisadores, na Comunidade, em uma situação que poderia ser vista como de pouca cooperação e muita concorrência acadêmica. No segundo subtópico – Do congado mineiro à Comunidade Negra Rural dos Arturos – tratei das minhas contingências de ter de afunilar meu objeto de pesquisa, fazendo um corte epistemológico na minha proposta inicial e mais ampla de estudo do congado mineiro no contexto da cultura mineira tradicional, para centrar o objeto da tese na Comunidade Negra Rural dos Arturos. No terceiro subtópico – De comunidades negras rurais, quilombos e guetos negros – tive de demarcar meu campo de pesquisa, em face do uso indiscriminado da designação de quilombos ou comunidades quilombolas em substituição às designações de comunidades negras rurais.1 Contudo, jamais pensara que, um dia, teria de me defrontar com uma condição adversa de produção acadêmico-científi ca, da qual somente vim a tomar ciência no fi nal do ano de 2013 e início de 2014, quando já estava para publicar a tese. Ou seja – as resistências, na comunidade pesquisada, à tese e à sua publicação.

Eis que, a essa altura, vim a me deparar com pessoas da Comunidade Negra dos Arturos que, mais do que fazerem restrições à minha tese, vinham se empenhando, com sucesso para evitar que Administrações Municipais de Contagem dessem apoio à sua publicação. Mais do que isso é o fato de que, ao lhes dar conhecimento de

14Em um texto divulgado em meu blog (romeusabara.blogspot.com), apresentado como depoimento – Memórias de um antropólogo da UFMG. apontei outros problemas a mais que tive de enfrentar para concluir a tese: questões de ordem político/familiar e problemas de ordem administrativa, no meu Departamento de origem, na UFMG, além dos preconceitos acadêmico-científi cos contra o folclore, seus estudos e estudiosos do tema, e contra as populações negras, seus estudos e estudiosos do tema. Texto este que, por envolver questões pessoais do meu relacionamento familiar e do meu local de trabalho como professor e pesquisador da UFMG, preferi não incorporar no texto desta publicação.

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que ela seria publicada, independente de apoio da atual Administração Municipal, vieram a se julgar no direito de proibir a sua publicação.

Com efeito, a bem da transparência, depois de defender esta minha tese de doutorado em 1997, ainda que somente um ou outro da Comunidade fosse alfabetizado, eu repassara uma cópia para eles. Se não leram, poderiam ter repassado para amigos e visitantes que quisessem ler e comentar, o que, certamente, deve ter ocorrido. Ingenuamente, eu pensava que eles se sentiriam orgulhosos de me ver chegar ao ponto de defender e publicar uma tese de doutorado na qual eles eram protagonistas, depois de tão longo e extenuante trabalho etnográfi co. Pensava ainda que eles seriam gratos por eu ter revelado a Comunidade ao meio acadêmico-científi co e ter travado algumas lutas políticas ao seu lado, em sua defesa. No fundo, eu pensava também que, se a Comunidade manifestasse interesse, a Administração Municipal daria suporte para a publicação, assim como aconteceu no caso da edição de trabalhos de outros pesquisadores que lá chegaram cerca de 17 anos depois de mim, em 1986.

Ledo engano, ou melhor, ingenuidade minha. Algumas lideranças mais novas da Comunidade faziam restrições, sem que eu soubesse o porquê. Mais do que isso, fi zeram esforços para que ela não fosse publicada e conseguiram retardar o fato, até o presente momento. Por isso e por questões políticas, dois pedidos de apoio para publicação foram feitos por mim a duas administrações municipais anteriores, sem resultado, sendo que algumas das monografi as escritas sobre a Comunidade dos Arturos, de pesquisadores que passaram pela Comunidade, durante nossa pesquisa de campo, relacionadas anteriormente, vieram a ser publicadas com suporte fi nanceiro das administrações municipais anteriores.

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Vim a tomar conhecimento disso e de forma clara, somente em novembro de 2013. Eu fora à Secretaria Municipal de Educação, da Prefeitura Municipal de Contagem, para tratar da implantação de um subprojeto – Negro(a) que te quero negro(a) – de meu projeto pedagógico – Ofi cinas Pedagógicas de Prosa, Poesia e Teatro (SABARÁ, 2009) – quando me encontrei com uma professora da Rede Municipal de Ensino, que era esposa de um fi lho de Mário Braz da Luz, neto de Artur Camilo, e que morava na Comunidade. Comuniquei-lhe que iria publicar a tese sobre a Comunidade. Ela, por sua vez, comunicou-me que lera minha tese, que gostara muito e que deveria ser publicada, mas me alertou para que, antes, conversasse com a Diretoria da Irmandade do Rosário para desfazer mal-entendidos e restrições à tese. Comunicou ainda que, a pedido deles, estava lendo a tese outra vez e se prontifi cou a conversar com a Diretoria da Irmandade. Referia-se à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, de Contagem, entidade religiosa da Igreja Católica que vinha dos tempos da escravidão, e que, como tal, não se confundia com a Comunidade dos Arturos, mas assim funcionava no imaginário até mesmo dos pesquisadores.

Não entendi bem o motivo da recomendação, já que se tratava de um estudo da Comunidade dos Arturos, e não da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, de Contagem, ou do Congado de Contagem. Mesmo assim, de início, considerei a proposta como sendo muito interessante. Via esta possiblidade como se fosse um segundo exame de tese, quando os pesquisados ou nativos comporiam algo, como se fosse uma outra banca examinadora, composta por eles mesmos, para julgar uma tese sobre eles. Fui à Comunidade, encontrei-me com a professora e comecei a examinar os pontos críticos e criticados da tese. Chegamos ao meio e paramos. Fui embora, com a intenção de voltar.

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Quando estava me programando para voltar, telefonei, e ela me passou um recado da Diretoria da Irmandade para eu repassar as fotos deles que eu tinha, para não sei quem digitalizar.2 Ao que retruquei, dizendo que era material de trabalho de campo e que só poderiam ser reproduzidas e interpretadas por mim, como pesquisador.

Em 18/02/2014, levando em conta a recomendação da referida professora que mora na Comunidade, fui à Casa de Cultura, da Fundação Municipal de Cultura, de Contagem, encontrar-me com um rapaz, membro da Diretoria da Irmandade, genro de Antônio Maria da Silva, fi lho de Artur Camilo, um dos meus informantes, marido de uma neta de Artur Camilo. Ou seja, já estava a lidar com um segundo agente público. O motivo era para repassar-lhe uma carta, em que eu comunicava, formalmente, a minha intenção de publicar a tese, até a data histórica do Dia Treze de Maio, de 2014. Informava-lhes ainda que, quanto às restrições da Comunidade com relação à tese e que não eram do meu conhecimento, vinha me reunindo com a referida professora, para dirimir dúvidas e me colocava à disposição. Nesta oportunidade, sentei, conversei com o citado rapaz e procurei saber o que estava acontecendo e o porquê das restrições da Comunidade com relação à tese. A conversa foi fi cando áspera, e ele me informou que a Irmandade tinha decidido avaliar o trabalho, antes da publicação, porque já haviam tido problemas com pesquisadores, na web, onde narravam fatos que não eram do conhecimento da Comunidade. Mesmo assim, voltei a telefonar para a professora para retomar o trabalho, mas ela me informou, literalmente: Eu estou proibida de tratar do assunto.

15Posteriormente, vim a tomar conhecimento de que se tratava de um projeto de memória da Comunidade, do IEPHA, Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, envolvendo a Escola de Música da UFMG e outros setores.

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De início, cheguei a pensar que as resistências da Comunidade estavam no fato de eu ter registrado a fala caipira dos informantes ipsis literi, sendo que assim fazia com o intuito de registrar a fala caipira da Comunidade e suas formas literárias.3 Mas poderia pensar também que essa atitude tinha a ver com várias passagens da tese, especialmente em função de tudo o que escrevi na quarta e última parte – A Comunidade Negra dos Arturos e o Mercado de Bens Simbólicos – desdobrada em três tópicos:

1 - A Cultura Étnica e o Mercado de Bens Simbólicos 2 - A Comunidade e o Mercado de Bens Simbólicos 3 - A Comunidade, sua Cultura e o Mercado Cultural.

Com efeito, assim introduzia o assunto:A presente parte – A Comunidade Negra dos Arturos e o Mercado de Bens Simbólicos – corresponde aos nossos estudos posteriores, quando pudemos verifi car uma série de transformações pelas quais passava a Comunidade. De modo especial, vai nos interessar o mercado de bens simbólicos, devido ao assédio de pesquisadores, pseudoestudiosos, curiosos, turistas, políticos e repórteres. A trajetória da Comunidade Negra dos Arturos, no mercado de bens simbólicos, é um caso muito ilustrativo de como uma cultura estudada por antropólogos e folcloristas transforma-se em mercadoria cultural. (SABARÁ, 1997, p. 149

Mais motivos ainda poderiam ter em função do que vem escrito no último tópico, em quatro subtópicos: 1) Os “Especialistas” em Arturos; 2) Embalando o Produto; 3) No Limiar do Espetáculo; 4) Para Onde Vai a Comunidade dos Arturos e a Sua Cultura? Vem ao caso transcrever os seguintes trechos, à guisa de ilustração:16Quanto ao registro de falas, faz-se necessário esclarecer que não sou linguista nem etnolinguista para poder registrar a fala deles – o português caipira- como determina essa ciência, mas procurei fazer o melhor possível. Pelo menos em se tratando das suas formas literárias de narração, consegui preservar muitas delas. Independente disso, o material está disponível para o devido tratamento etnolinguístico.

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Diante desses fenômenos de produção de espetáculos afro-brasileiros, muitas vezes tão refi nados, não seria de se estranhar se um dia nos deparássemos com alguma publicidade para ir ver um espetáculo para turistas na Comunidade dos Arturos, inclusive com cobrança de ingressos e vendas de artesanato que não fabricam. Resta-nos esperar para ver o que virá acontecer.

(...)Nos últimos seis anos (1982/1988), esta Comunidade, formada por negros pobres e discriminados, que pouco conheciam da capital perto da qual moravam, transfomou-se em manchete de jornal e atração. Assim, assistimos a um paradoxo: Se por um lado, como negros, são pobres e discriminados, usufruindo de baixa cidadania, como portadores de uma tradição cultural negra possuem uma imagem altamente positiva, perante a mídia e um público externo. (SABARÁ, 1997, p. 172)

Contudo, não acredito que essas duas hipóteses venham a explicar essas atitudes de lideranças da Comunidade. Tenho outras duas hipóteses que, talvez, possam vir a ser explicativas: ou se tratava de um confronto – pesquisador(x) pesquisados, etnógrafo (x) nativos – ou seria fruto de manipulação política.

Os fatos poderiam ser entendidos como um saudável confronto – pesquisador (x) pesquisados, etnógrafo (x) nativos – como respostas ao assédio à Comunidade Negra Rural dos Arturos pela sociedade envolvente. Sendo assim, eu entendia e relevava as atitudes ásperas de alguns membros mais novos da Comunidade, em função do que me ensinou Franzt Fanon:

Ao nível dos indivíduos, a violência desintoxica. Desembaraça o colonizado de seu complexo de inferioridade, de suas atitudes contemplativas ou desesperadas. Torna-o intrépido, reabilita-o a seus próprios olhos. Mesmo que a luta armada seja simbólica, e mesmo que seja desmoralizada por uma descolonização rápida, o povo tem de se convencer de que a libertação foi

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o assunto de todo e de cada um, o líder tem seu mérito especial. A violência ergue o povo à altura do líder. Daí essa espécie de reticência agressiva com relação à máquina protocolar que os novos governantes se apressam em montar. Quando participarem, na violência, da libertação nacional, as massas não permitem que alguém se apresente como ‘libertador’. Mostram-se ciumentas do resultado de sua ação e abstêm-se de confi ar a um Deus vivo seu futuro, seu destino, a sorte da pátria. Totalmente irresponsáveis ontem, pretendem hoje tudo compreender e tudo decidir. Iluminadas pela violência, a consciência do povo rebela-se contra toda pacifi cação. Os demagogos, os oportunistas, os mágicos enfrentam daí em diante uma tarefa difícil. A práxis que a lançou num corpo a corpo desesperado confere às massas um gosto voraz do concreto. A empresa da mistifi cação torna-se, a longo prazo, praticamente impossível. (FANON, 1979)4

A vida da Comunidade estava muito devastada, o que me levou a assim dizer, no tópico 13 – A Comunidade e o Mercado de Bens Simbólicos:

O processo de transformação da cultura da “Comunidade Negra dos Arturos” em matéria-prima para o mercado cultural foi mais acelerado e visível do que o processo de transformação de sua mão de obra em trabalhadores assalariados. A Comunidade Negra dos Arturos, mais do que como força de trabalho, entrou no mercado como produtora de uma forma especial de mercadoria – a cultura afro-brasileira – como bem simbólico, sem que, para tanto, tivessem que emigrar. Nesse processo atuaram, coincidentemente ou não, diferentes fatores entre os quais identifi camos os seguintes:

1. a pesquisa e os pesquisadores; 1. outros mediadores e agentes externos;2. o poder público municipal;3. a “mídia”.

Em função disso, eu pensava que, mais dia menos dia, a

Comunidade Negra Rural dos Arturos daria resposta a esse assédio 17Infelizmente, não foi possível localizar a página exata na qual consta este trecho. Entretanto, sabemos que pertence à obra de Fanon (1978), e dada a sua importância, decidimos citá-lo.

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da sociedade envolvente, como, de certa forma, está acontecendo até

mesmo comigo. Essa atitude não me assusta porque até mesmo assim

dissera no subtópico da tese – A Etnografi a como Processo Produtivo

– no tópico – A Proposta Metodológica de Malinowski e a Nossa:

Esta contingência histórica da prática antropológica fez com que a relação de trabalho de campo implicasse uma modalidade especial de relação colonial que pode ser expressa na seguinte fórmula inicial: Pesquisador x pesquisado, ou seja, Etnógrafo x nativo.A relação – etnógrafo/nativo – conforme o modo como venha a acontecer, constitui uma relação colonial de expropriação de informações, ou, quando não, uma relação de troca, em que o etnógrafo, para obter determinadas informações, oferece ao nativo alguma compensação, quando não material, pelo menos moral. (SABARÁ. 1997, p. 20)

Sou devedor de muitas coisas à Comunidade Negra Rural dos

Arturos, mormente em se tratando dos fi lhos de Artur Camilo. Mas,

de minha parte, muito fi z também pela Comunidade, em função de

todo o tempo que a ela dediquei, não somente como pesquisador, mas

também como cidadão, o que não precisa ser propalado. Contudo,

alguns atos dessa natureza são arrolados no subtópico O Pesquisador,

a Comunidade e o Mercado de Bens Simbólicos, no tópico 13 – A

Comunidade e o Mercado de Bens Simbólicos. Mas a nova geração

de Arturos pode pensar diferente. Pelo menos, é o que me sugere o

referido incidente. Foi quando pude perceber mais claramente o que

eu dissera anteriormente, no subtópico dois – Do Congado Mineiro à

Comunidade Negra Rural dos Arturos – o patrimônio cultural afro-

brasileiro cultivado e guardado pelos mais velhos, fi lhos de Artur

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Camilo, passou a ser apropriado por alguns membros mais novos

(netos) e a funcionar como moeda de troca, a pretexto de preservação.

Para tanto, o controle da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário

e do Congado de Contagem pela nova geração de Arturos passou

a ser fundamental. Nisso, a ambiguidade da noção da Irmandade

e do Congado com a noção de Comunidade veio a contribuir. A

presidência da Irmandade passou a ser confundida com a presidência

da Comunidade, sobretudo ultimamente, devido ao fato de que um

neto de Artur Camilo é o atual presidente da Irmandade. Não foi

senão por isso que a referida proibição de publicação da minha tese

viesse por parte da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, falando

pela Comunidade.

Pode ser também, que, atrás dessa atitude de algumas lideranças

da Comunidade, esteja o fator poder local, em função do que vem

dito na tese, de modo especial, no quarto tópico – A Comunidade dos

Arturos e a Sociedade Envolvente – no qual assim me expressava:

Antigamente, na Sede de Contagem, os Arturos eram até mesmo ridicularizados, quando, com seu Congado, desfi lavam pelas ruas da Cidade, celebrando seus centenários rituais. Com a corrida de pseudopesquisadores e da mídia, os Arturos foram estimulados na sua vaidade, transformando-se em uma espécie de “cartão de visita” para Contagem. Com a criação da Assessoria de Imprensa e a Secretaria de Turismo na Prefeitura, durante as últimas administrações, os Arturos foram transformados em autênticas mercadorias culturais. São hoje conhecidos em todo o Brasil, como um fato exótico, ganhando continuamente as páginas de jornais e as câmeras de televisão, assunto que será objeto de discussão na última parte. (SABARÁ, 1997, p. 79)

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Ao reler a tese, tive o senso crítico de ver que os meus registros

e análises deixavam a elite local e o poder local em situação

desconfortável, o que me leva a pensar que a publicação não fosse de

interesse deles. Contudo meu compromisso com a verdade dos fatos é

maior do que meu desejo de lhes agradar.

Enfi m, gostaria mais é de entender esses fatos como mero confronto

pesquisador (x) pesquisados, etnógrafo (x) nativos. Contudo, se por um

lado posso entender essas atitudes de alguns membros da Comunidade

como anticolonialistas, que combatem a invasão da privacidade da

vida comunitária ou a exploração da sua cultura comunitária, posso

entendê-las também como uma curiosa faceta mercantilista. Nesse

caso, alguns membros da Comunidade podem se ver como capazes

de descartar da mediação do pesquisador e se propor a oferecer, sem

intermediário, a cultura da Comunidade no mercado cultural, vendo

o pesquisador como um mero concorrente.

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