A Hermeneutica Reformada Das Escrituras

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O termo hermenêutica tem sido empregado em dois sentidos.Historicamente, nos compêndios clássicos de interpretação bíblica, designa a disciplina que, partindo de pressupostos básicos, estuda e sistematiza a teoria da interpretação das Escrituras, enquanto a exegese designa a prática. Neste sentido, o objetivo da hermenêutica é descobrir e sistematizar os princípios e métodos apropriados para a compreensão do sentido que o autor intentou transmitir aos seus leitores originais.

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INTRODUÇÃO1 

Orare  e labutare  foram palavras empregadas por Calvinopara resumir a sua concepção hermenêutica. Com estes termosele expressou a necessidade de súplica pela ação iluminadora doEspírito Santo e do estudo diligente do texto e do contextohistórico, como requisitos indispensáveis à interpretação das

Escrituras. Com o mesmo propósito, Lutero empregou umafigura: um barco com dois remos, o remo da oração e o remo doestudo. Com um só destes remos, navega-se em círculo, perde-seo rumo, e corre-se o risco de não chegar a lugar algum.

Palavras e figuras como estas revelam a consciência que osreformadores tinham do caráter divino-humano das Escrituras eo equilíbrio fundamental que caracteriza a hermenêuticareformada da Palavra de Deus.

O mesmo não ocorre hoje. O evangelicalismo brasileiroparece estar vivendo dias difíceis. Quando se considera adiversidade doutrinária e prática que, em geral, caracteriza asigrejas evangélicas no nosso país, talvez não seja descabidoquestionar até mesmo se o termo "evangélico" ainda tem algumsentido, se ainda se presta para distinguir um grupo definido depessoas dentro da igreja cristã.

1  Esta apostila está baseada no livro de Paulo Anglada, Introdução a HermenêuticaReformada . Belém: Knox Publicações, 2006. E ampliada com outros comentários pelo Prof.Antonio de Pádua para uso no Seminário Teológico Congregacional do Nordeste, Campus deItabaiana, PB.

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Pode haver muitas razões para tal estado de coisas. Mas,sem dúvida, a rejeição da sã doutrina é uma delas. Na prática, asigrejas evangélicas em geral não têm professado teologia precisa,

sistemática, confessional e histórica. Mesmo as denominaçõesmais tradicionais parecem estar se distanciandoprogressivamente das doutrinas e práticas reformadas quecaracterizavam as igrejas protestantes do passado, e pelas quaismuitos chegaram a dar suas vidas.

É convicção deste autor que boa parte destadescaracterização teológica e eclesiástica das igrejas evangélicasno nosso país se explica pelas hermenêuticas deficientes que têmregido a interpretação e pregação da Palavra de Deus. Também é

convicção deste autor que a hermenêutica reformada dasEscrituras é um modelo de interpretação bíblica capaz depromover, com a graça de Deus, a reforma teológica, litúrgica eeclesiástica que o evangelicalismo brasileiro necessita. Este é oassunto deste artigo.

I. DELIMITAÇÃO DO ASSUNTO

O termo hermenêutica  tem sido empregado em dois sentidos.

Historicamente, nos compêndios clássicos de interpretaçãobíblica, designa a disciplina que, partindo de pressupostosbásicos, estuda e sistematiza a teoria da interpretação dasEscrituras, enquanto a exegese  designa a prática. Neste sentido,o objetivo da hermenêutica é descobrir e sistematizar osprincípios e métodos apropriados para a compreensão do sentidoque o autor intentou transmitir aos seus leitores originais.

Mais recentemente, entretanto, estes termos têm sidousados com sentidos diferentes, a exegese , para designar oestudo das Escrituras com vistas a descobrir o sentido originalpretendido pelo autor e hermenêutica , no sentido restrito da suacontemporaneidade.

Ou seja, a exegese seria uma primeira tarefa histórica pelaqual se busca compreender o que os leitores originaisentenderam; enquanto que a hermenêutica seria uma tarefateológica prática e posterior, na qual se busca compreender a

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relevância da sua mensagem para nós, hoje, no nosso contextoespecífico.2 

Nesta apostila estes termos são usados no sentido histórico

mais comum:a) hermenêutica , designando a disciplina que estuda e

sistematiza os princípios e técnicas, com as quais,partindo de determinados pressupostos, se buscacompreender o sentido original do texto bíblico;

b) exegese , designando a prática destes princípios etécnicas;

c) 

e aplicação , designando a busca da relevância do texto aonosso contexto específico. Isto é: tendo compreendidoqual a mensagem do texto para os seus leitores originais,em que sentido esta mensagem é aplicável aos nossosdias e ao nosso contexto?

Convém esclarecer também que o termo reformada , não éempregado neste trabalho para designar especificamente ahermenêutica dos reformadores.

Não se pretende aqui fazer uma descrição específica edetalhada da hermenêutica desenvolvida e praticada por Lutero,Melanchton, Calvino e outros. O termo também não se refere àdenominação reformada (ramo da reforma como ficou conhecidoespecialmente na Europa).

O termo hermenêutica reformada , neste trabalho, refere-se a uma corrente ou escola de interpretação bíblica histórica,distinta de outras correntes, fundamentada em pressupostosbíblicos quanto à natureza das Escrituras, e que empregaprincípios e métodos específicos.

 Trata-se de uma escola ou corrente de interpretação queadota o método histórico-gramatical, em contraposição aosmétodos intuitivos (da corrente espiritualista) e histórico-crítico(humanista) de interpretação bíblica.

Com a expressão hermenêutica reformada , quer-sedesignar neste trabalho o modelo de interpretação bíblicadefendida e aplicada pelos reformadores, pelos principais

2 Gordon D. Fee e Douglas Stuart, Entendes o Que Lês? Um Guia para Entender a Bíblia com

o Auxílio da Exegese e da Hermenêutica  (São Paulo: Vida Nova, 1986) 19, 25.

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símbolos de fé protestantes (inclusive batista)3, pelos puritanosingleses, pelos huguenotes franceses, e pelas igrejas evangélicasortodoxas em geral até os nossos dias.

Esta corrente de interpretação poderia ser chamadade hermenêutica protestante  ou hermenêutica evangélica . Mas, aoque parece, estes termos já não caracterizam muita coisa —  pelomenos no campo da hermenêutica  — , pois englobam, semqualquer distinção, defensores e praticantes de todas as correntesde interpretação bíblicas: desde a corrente espiritualista(intuitiva) até a corrente humanista (histórico-crítica).

II. IMPORTÂNCIA DO ASSUNTO

A importância do assunto dificilmente pode ser exagerada,pois a hermenêutica é a base teórica da exegese, que, por sua vez,é o alicerce tanto da teologia (quer bíblica, quer sistemática) comoda pregação. O diagrama a seguir ilustra estas relações:

Parece que, atualmente, pelo menos no Brasil, estasdisciplinas têm sido parcialmente relegadas por alguns segmentosevangélicos a um segundo plano. Exegese, doutrina e pregaçãotêm sido substituídas por coisas ‘‘mais práticas’’ (tais como aação social, o engajamento político, a administração eclesiástica,o evangelismo, a liturgia, as exortações morais, etc.). Quando nãose nega a importância da exegese, da doutrina e da pregação, nateoria, nega-se na prática.

Convém observar, entretanto, que o apóstolo Paulo exorta

 Timóteo a:

3 Ver o capítulo primeiro da Confissão de Fé Batista de 1689 .

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a) cuidar ‘‘de si mesmo e da doutrina’’ , de modo quepossa ser ele mesmo salvo bem como os seus ouvintes (1 Tm4.16).

“ Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina.Continua nestes deveres; porque, fazendoassim, salvarás tanto a ti mesmo como aosteus ouvintes ”. 

b) Ele o admoesta a apresentar-se a Deus ‘‘aprovado, comoobreiro que não tem do que se envergonhar, que maneja bem a

palavra da verdade’’ (2 Tm 2.15).

“ Procura apresentar-te a Deus aprovado,como obreiro que não tem de que seenvergonhar, que maneja bem a palavra daverdade ”. 

c) E afirma que devem ‘‘ser considerados merecedores dedobrados honorários (ou honra) os presbíteros que presidem bem,com especialidade os que se afadigam na Palavra e no ensino’’ (1 Tm 5.17).

“ Devem ser considerados merecedores dedobrados honorários os presbíteros que

 presidem bem, com especialidade os que seafadigam na palavra e no ensino ”. 

Não se pode esquecer de que ‘‘aprouve a Deus salvar aos quecrêem, pela loucura da pregação’’ (1 Co 1.21); e de que ‘‘a fé vempela pregação e a pregação pela palavra de Cristo’’ (Rm 10.17). 

A importância da doutrina é vista especialmente nas cartasdo apóstolo Paulo e no tratamento que faz da questão da justificação pela fé na carta aos Gálatas. Nem a Igreja de Corinto,com todos os seus problemas morais, foi tão duramente tratada

pelo apóstolo quanto as igrejas da Galácia, em função do seudesvio doutrinário.

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A verdade de Deus expressa em sua Palavra é o instrumentoempregado pelo Espírito Santo para salvar e santificar.

“e que, desde a infância, sabes as sagradasletras, que podem tornar-te sábio para asalvação pela fé em Cristo Jesus. Toda aEscritura é inspirada por Deus e útil para oensino, para a repreensão, para a correção,

 para a educação na justiça, a fim de que ohomem de Deus seja perfeito e perfeitamentehabilitado para toda boa obra” (2 Tm 3.15 -17)

Richard Baxter, um dos puritanos mais conhecidos doséculo XVII, foi o instrumento nas mãos de Deus em umreavivamento na sua cidade. Autor de dezenas de obras, amaioria de cunho prático, usou uma figura para expressar arelação entre a verdade da Palavra e a santidade.

Eis suas palavras:

“ ...as verdades de Deus são os própriosinstrumentos da santificação de vocês; essasantificação é o resultado produzido por essasverdades sobre o entendimento e a vontadede vocês. As verdades são o selo e a alma devocês é a cera; a santidade, é a impressão

 feita. Se vocês receberem apenas algumasverdades, terão apenas uma impressão

 parcial... Se vocês as receberem de modo

desordenado, a imagem que produzirão nasalmas de vocês será igualmentedesordenada; como se os membros dos corposde vocês fossem unidos de modomonstruoso ”.4 

Aí está a importância da hermenêutica: ela é a base teóricada exegese, que por sua vez é o fundamento da teologia e dapregação, das quais depende a saúde espiritual da igreja, e da

4 Richard Baxter, "Directions for Weak Distempered Christians," em The Practical Works ofRichard Baxter  (Grand Rapids: Baker, 1981) 677.

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nossa própria vida. Uma hermenêutica deformada fatalmenteresultará em exegese deformada, produzirá teologia e pregaçãodeformadas, e se manifestará tragicamente em igrejas e vidas

deformadas.

III. NECESSIDADE DA HERMENÊUTICA

 Todo leitor é um intérprete. Mas ler não implicanecessariamente em entender. Quando não há barreiras nacompreensão de um texto, a interpretação é automática einconsciente. Mas isso nem sempre ocorre.

De conformidade com a doutrina reformada da clareza ouperspicuidade das Escrituras, a Bíblia é substancialmente, masnão completamente clara. As verdades básicas necessárias àsalvação, serviço e vida cristã são evidentes em um ou outrotexto, mas nem todos os textos das Escrituras são igualmenteclaros.

Por ser um livro divino-humano, inspirado por Deus, masescrito por homens, admite-se que há dificuldades de ordem

espiritual e de ordem humana para a compreensão dasEscrituras. O apóstolo Pedro reconheceu essa dificuldade comrelação aos escritos do apóstolo Paulo, dizendo que neles ‘‘hácertas coisas difíceis de entender...’’  

“ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suasepístolas, nas quais há certas coisas difíceisde entender, que os ignorantes e instáveisdeturpam, como também deturpam as demaisEscrituras, para a própria destruição deles”  (2Pd 3.16)

Isto significa que a compreensão das Escrituras não énecessariamente automática e espontânea. É, sim, o resultado daação iluminadora do Espírito Santo, por um lado, e por outro, doestudo diligente da língua e do contexto histórico em que foi

escrita.

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A. Dificuldades de Ordem Espiritual.

O aspecto espiritual envolvido na interpretação dasEscrituras é demonstrado claramente em passagens bíblicas tais

como 1 Coríntios 2.14 e 2 Coríntios 4.3-6:

“Ora, o homem natural não aceita as coisasdo Espírito de Deus, porque lhe são loucura; enão pode entendê-las, porque elas sediscernem espiritualmente” (1Co 2.14)

“se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto,nos quais o deus deste século cegou oentendimento dos incrédulos, para que lhesnão resplandeça a luz do evangelho da glóriade Cristo, o qual é a imagem de Deus. Porquenão nos pregamos a nós mesmos, mas aCristo Jesus como Senhor e a nós mesmoscomo vossos servos, por amor de Jesus.Porque Deus, que disse: Das trevasresplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceuem nosso coração, para iluminação doconhecimento da glória de Deus, na face deCristo”. (2 Co 4.3 -6)

Nestes textos o apóstolo Paulo ensina claramente a absolutaincapacidade do homem natural (não regenerado) de compreendera revelação de Deus. A razão desta incapacidade é a cegueira

espiritual em que se encontra como resultado da queda dohomem do seu estado original, e da ação diabólica. E a cura destacegueira não é intelectual, mas espiritual. Só o Espírito Santopode fazer resplandecer a luz do Evangelho da glória de Cristonum coração em trevas.

Outro texto que demonstra o caráter espiritual envolvido nainterpretação das Escrituras é 2 Coríntios 3.14-15. Neste texto oapóstolo Paulo explica que os judeus tinham como que um véuembotando os seus olhos espirituais, de modo que não podiamcompreender o significado do que liam, por causa daincredulidade:

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Mas os sentidos deles se embotaram. Pois atéao dia de hoje, quando fazem a leitura da

antiga aliança, o mesmo véu permanece, nãolhes sendo revelado que em Cristo é removido.Mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu está

 posto sobre o coração deles. (2 Co 3.14-15).

Como este véu pode ser retirado? Pela conversão, responde oapóstolo no verso seguinte:

„„Quando, porém, algum deles se converte aoSenhor, o véu é retirado.‟‟  (2 Co 3.16)

Na carta aos Efésios, o apóstolo Paulo ensina a mesma coisacom relação aos gentios:

...não mais andeis como também andam os

gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento,alheios à vida de Deus por causa daignorância em que vivem, pela dureza dosseus corações (Ef 4.17-18).

A ação iluminadora do Espírito Santo é, portanto,indispensável na interpretação e apreensão do ensino das

Escrituras. A erudição piedosa é preciosa e indispensável para apreservação da sã doutrina. Um erudito, por mais bem equipadoque esteja hermeneuticamente, desprovido, porém, da açãoregeneradora e iluminadora do Espírito , possivelmente nãoalcançará o sentido da Escritura tanto quanto um crente simplese fiel, mesmo que indouto em métodos e técnicas deinterpretação.

Mesmo o crente precisa da ação iluminadora contínua doEspírito Santo para progredir na compreensão das Escrituras.

Seu coração não está embotado como o dos judeus descrentes;nem seu entendimento está obscurecido, como o dos gentiosincrédulos. Mas ainda há muito a compreender; e a ação

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iluminadora do Espírito Santo permanece indispensável. Comesse propósito o apóstolo Paulo orava insistentemente peloscrentes, a fim de que Deus lhes iluminasse mais e mais, para

compreenderem mais profundamente a natureza do evangelho e asuprema riqueza da sua graça.

Eis um exemplo apenas na carta aos Efésios:

...não cesso de dar graças por vós, fazendomenção de vós nas minhas orações, para queo Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai daglória, vos conceda espírito de sabedoria e de

revelação no pleno conhecimento dele,iluminados os olhos do vosso coração, parasaberdes qual é a esperança do seuchamamento, qual a riqueza da glória da suaherança nos santos, e qual a supremagrandeza do seu poder para com os quecremos... (Ef 1.16-19).

 Textos como este revelam o papel do Espírito Santo e da féna compreensão das verdades espirituais. A interpretação ecompreensão das Escrituras torna-se essencialmente uma tarefaespiritual  —   embora não rejeitando habilidades naturais outécnicas.

B. Dificuldades Naturais

Deve-se observar, entretanto, que as Escrituras tambémrevelam, por ensino direto e por inúmeros exemplos, que ocoração do homem é mais enganoso do que todas as coisas edesesperadamente corrupto (Jr 17.9), não sendo, portanto,totalmente confiável.

“ Enganoso é o coração, mais do que todas ascoisas, e desesperadamente corrupto; quem oconhecerá? ”  

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Além disso, não existe somente o Espírito da verdade; hátambém o espírito do erro (1 Jo 4.6).

“ Nós somos de Deus; aquele que conhece aDeus nos ouve; aquele que não é da parte deDeus não nos ouve. Nisto reconhecemos oespírito da verdade e o espírito do erro ” .

O pai da mentira está sempre pronto a enganar, se possívelfor, até os eleitos. Logo, o caráter espiritual envolvido nainterpretação das Escrituras não elimina, de modo algum, o lado

humano, também necessário para a sua correta interpretação ecompreensão. Afinal, é pela própria Palavra, e através da Palavra,que o Espírito Santo realiza essa obra iluminadora.

Por haver sido escrita em línguas humanas, em contextoshistóricos, sociais, políticos e religiosos específicos, umconhecimento adequado da língua e do contexto históricotambém é necessário para uma melhor interpretação ecompreensão das Escrituras.

Deve-se lembrar também que o ministro da Palavra é aqueleque se afadiga no estudo dela (1 Tm 5.17).

“ Devem ser considerados merecedores dedobrados honorários os presbíteros que

 presidem bem, com especialidade os que seafadigam na palavra e no ensino ”. 

Logo, para uma interpretação e compreensão adequada dasEscrituras, fazem-se necessários requisitos de naturezaespiritual, bem como requisitos de natureza intelectual. Ambossão necessários e imprescindíveis.

IV. PRINCIPAIS CORRENTES DE INTERPRETAÇÃO

As classificações normalmente pecam pelo simplismo. É defato difícil resumir e agrupar adequadamente as diversas ênfases,tendências, princípios e práticas de uma determinada área de

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estudos, sem negligenciar peculiaridades importantes. Com ahermenêutica não é diferente. Contudo, observando as diferentesênfases, tendências, princípios e práticas de interpretação das

Escrituras adotados no curso da história da Igreja, pode-seperceber pelo menos três correntes gerais nas quais as diversasescolas podem ser de certo modo agrupadas:

1. CORRENTE ESPIRITUALISTA

Muitos grupos na história da interpretação bíblica secaracterizaram por superenfatizar o caráter espiritual (místico)

das Escrituras, em detrimento do seu caráter humano. Estacorrente distingue-se especialmente pela insatisfaçãogeneralizada com o sentido natural, literal das Escrituras.

Dois dos textos mais explorados são 2 Coríntios 3.6: ‘‘...aletra mata, mas o Espírito vivifica’’ e 1 Coríntios 2.7: ‘‘...falamos asabedoria de Deus em mistério’’. 

O maior perigo dessa corrente de interpretação é osubjetivismo e o misticismo. Nenhuma das duas passagens

mencionadas prescreve a supremacia de sentidos "espirituais" eocultos da Escritura sobre sentidos naturais e óbvios.

2 Coríntios 3.6 faz um contraste entre os dois ministérios oualianças exercidos por Moisés e por Cristo;

1 Coríntios 2.7 trata do mistério de Deus, que é Cristo,mistério agora revelado.

Nada há nestas passagens que exaltem sentidos ocultos daEscritura, disponíveis apenas aos "espirituais" ou avançados.

Alguns sistemas hermenêuticos pertencentes à correnteespiritualista são descritos abaixo.

A) A Hermenêutica Alegórica

 Trata-se de um dos métodos de interpretação mais antigos.

Fortemente influenciados pelo platonismo e pelo alegorismo judaico, os defensores desse método de interpretação atribuíamdiversos sentidos ao texto das Escrituras, enfatizando o sentido

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chamado de alegórico. Clemente de Alexandria (†215) e Orígenes(†254) são os dois principais nomes da escola alegórica deAlexandria, no Egito.

Clemente identificava cinco sentidos para um dado texto dasEscrituras:

1) histórico,

2) doutrinário,

3) profético,

4) filosófico e

5) místico.

Orígenes distinguia três níveis de sentidos:

1) o literal, ao nível do corpo,

2) o moral, ao nível da alma, e

3) o alegórico, ao nível do espírito.

A hermenêutica alegórica prevaleceu durante toda a IdadeMédia, especialmente em sua forma quádrupla. Sua origem éprovavelmente o sistema hermenêutico de Agostinho.

Segundo este método, as passagens das Escrituras teriamquatro sentidos: um sentido literal, e três sentidos espirituais:moral, alegórico e anagógico.

O sentido literal   seria o registro do que aconteceu (o fato);o sentido moral  conteria uma exortação quanto à conduta (o quefazer); o sentido alegórico   ensinaria uma doutrina a ser crida (o

que crer); e o sentido anagógico  apontaria para uma promessa aser cumprida (o que esperar).

Assim, uma referência bíblica sobre a água, teria um sentidoliteral   (a água), um sentido moral  (exortação a uma vida pura),um sentido alegórico  (o sacramento do batismo), e um sentidoanagógico  (a água da vida na Nova Jerusalém).5 

5  F. F. Bruce, "The History of New Testament Study," em New TestamentInterpretation : Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The PaternosterPress, 1979) 28.

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Este método pode fornecer esplêndidas interpretações, masrouba o real significado do texto, desviando a atenção do leitor doseu verdadeiro sentido, que o Espírito Santo intentou transmitir.

O caráter fantasioso deste método de interpretação ficamanifesto na conhecida interpretação alegórica de Orígenes6  daparábola do bom samaritano (Lc 10.30-37). Segundo ele, Ohomem atacado pelos ladrões simbolizava Adão (a humanidade); Jerusalém, os céus; Jericó, o mundo; os ladrões, o diabo e suashostes; O sacerdote, a lei; o levita, os profetas; o bom samaritano,Cristo: o animal sobre o qual foi colocado o homem ferido, o corpode Cristo (que suporta o Adão caído); a estalagem, a igreja; asduas moedas, o Pai e o Filho; e a promessa do bom samaritano de

voltar, a segunda vinda de Cristo.7 Outro exemplo do caráter fantasioso desse método de

interpretação pode ser percebido nas diferentes interpretaçõesalegóricas atribuídas às duas moedas mencionadas nessaparábola: o Pai e o Filho, o Antigo e o Novo Testamento, os doismandamentos do amor (a Deus e ao próximo), fé e obras, virtudee conhecimento, o corpo e o sangue de Cristo, etc.

B) A Hermenêutica Intuitiva

Muitos são consciente ou inconscientemente adeptos destacorrente de interpretação bíblica. Também chamados deimpressionistas,8  os hermeneutas intuitivos caracterizam-se poridentificar a mensagem do texto com os pensamentos que lhesvêm à mente ao lê-lo, sem contudo dar a devida atenção àgramática, ao contexto e às circunstâncias históricas, geográficas,

culturais, religiosas, etc.Um passo adiante estão os místicos, que aqui e ali aparecem

na história da igreja, com a sua ênfase na iluminação interior.Uma versão moderna do método de interpretação intuitiva podeser verificada na prática de abrir as Escrituras ao acaso para

6 Um dos iniciadores e um dos principais nomes da escola alegórica de interpretação dasEscrituras.

7 Bruce, "The History of New Testament Study," 28.8  Ralph P. Martin, "Approaches to New Testament Interpretation," em New Testament

Interpretation : Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The PaternosterPress, 1979) 220. 

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pregar ou encontrar uma mensagem para uma ocasião específica,sem o devido estudo do texto e do seu contexto histórico.

C) A Hermenêutica Existencialista

Há uma escola contemporânea de interpretação dasEscrituras que enfatiza excessivamente o conhecimento subjetivoem detrimento do seu sentido gramatical e histórico. Trata-se daassim chamada nova hermenêutica , que nada mais é do que umdesenvolvimento dos princípios hermenêuticos de Bultmann, comsua ênfase na relevância da mensagem do Novo Testamento para

o homem contemporâneo.Para Bultmann e para a nova hermenêutica  —  

reconhecidamente influenciados pela filosofia existencialista deMartin Heidegger 9  —   o importante não é a intenção do autor,nem o que o texto falou aos seus leitores originais, mas o que falaa nós, hoje, no nosso contexto: esse é o sentido do texto.

Para a hermenêutica existencialista o importante mesmonão é o texto, mas o que está por trás dele. Não interessa tanto o

que o texto diz (historicamente), mas o que ele quer dizer(existencialmente). Logo, as Escrituras só serão interpretadasrealmente se lidas existencialmente, se forem experimentadas. Ouseja, as Escrituras não são objetivamente a Palavra de Deus, elasse tornam Palavra de Deus, quando nos falam subjetivamente.

 Talvez as principais críticas à hermenêutica existencialistasejam que ela rejeita o elemento sobrenatural das Escrituras(milagres, encarnação, ressurreição, etc.) como sendo mitos, eque torna subjetivo o conceito de Palavra de Deus, com sua

ênfase existencialista. Com isso, ela esvazia a mensagem bíblicae, assim como o método alegórico e o método intuitivo, abreespaço para se ler no texto quaisquer idéias ou conceitosoriginados na mente do leitor.10 

2. CORRENTE HUMANISTA

9 Bruce, "The History of New Testament Study," 51.10 Outros dados sobre a hermenêutica existencialista podem ser encontrados em BernardL . Ramm, "La Nova Hermeneutica", em Diccionario de la Teología Práctica; Hermeneutica , ed.Rodolf G. Turnbull (Grand Rapids: Subcomisión Literatura Cristiana de la Iglesia CristianaReformada, 1976) 83-88.

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No extremo oposto da corrente espiritualista encontra-se acorrente que se pode chamar de humanista. Esta correntecaracteriza-se por dar ênfase excessiva ao caráter humano das

Escrituras e por uma aversão ao seu caráter sobrenatural. Aênfase dessa corrente está no método, na técnica, nos aspectosliterários ou históricos das Escrituras, em detrimento do seucaráter divino, espiritual e sobrenatural.

A) Precursores

Os saduceus, com o seu repúdio à doutrina da ressurreição

e descrença na existência de seres angelicais, podem serconsiderados como precursores dessa corrente de interpretaçãodas Escrituras. Pouco se sabe sobre a origem desse partido judaico, mas parece haver adotado uma posição secular-pragmática de interpretação das Escrituras.11 

Ao negarem verdades básicas das Escrituras, os saduceuspodem ser considerados, guardadas as devidas proporções, comoos modernistas ou liberais da época.12 

B) Humanismo Renascentista

Os humanistas renascentistas, com seu interessemeramente literário e acadêmico nas Escrituras, e com suaênfase na moral, também podem ser incluídos nesta corrente deinterpretação bíblica. Alguns se dedicaram ao estudo dasEscrituras, outros chegaram até a editar textos bíblicos na língua

original. Mas o interesse deles era meramente acadêmico,lingüístico, literário e histórico. Estavam interessados nasEscrituras por sua antigüidade e não por serem a Palavra deDeus.

C) Escola Crítica

11  S. Taylor, "Saduceus," em Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã,  vol. III (São

Paulo: Vida Nova, 1990) 332.12  B. J. Van der Walt, Anatomy of Reformation : Flashes and Fragments of a ReformedCosmocope  (Potchefstroom: Potchefstroom University for Christian Higher Education, 1881)10, 26.

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A escola mais característica e influente desta corrente deinterpretação bíblica é a escola crítica, com o seu método

histórico-crítico. Uma das razões para o surgimento do métodohistórico-crítico parece ter sido ‘‘a pretensão de tornar científicosos estudos bíblicos, ou seja, faze-los compatíveis com o modelocientífico e acadêmico da época.’’ 13 

E o resultado desta nova postura para com as Escrituras(crítica, ao invés de gramatical) foi o liberalismo teológico que temassolado a Igreja desde o século passado.

 Trata-se sem dúvida de uma hermenêutica racionalista. Ao

invés da revelação governar a razão, a razão é que determina arevelação. A razão e o intelecto passaram a ser determinantes,sendo rejeitado como erro, fábula ou mito tudo o que não puderser explicado ou harmonizado com a razão.

Os adeptos desta corrente rejeitam as doutrinas reformadasdas Escrituras, tais como inspiração, autoridade, inerrância, epreservação; enfatizam a moralidade e descartam o sobrenatural.

Sob forte influência do evolucionismo de Darwin e dadialética de Hegel, as Escrituras deixaram de ser vistas como aPalavra de Deus inspirada na qual ele se revela ao homem,passando a ser considerada ‘‘como um registro dodesenvolvimento evolucionista da consciência religiosa de Israel (emais tarde da Igreja)’’ .14 

O conceito liberal de inspiração das Escrituras só é objetivono sentido de as Escrituras serem o objeto da inspiração. Nomais, é subjetivo: elas são o sujeito: elas é que inspiram, com o‘‘seu poder de inspirar experiências religiosas’’.15 

Na prática, portanto, a principal característica da escolacrítica de interpretação é o pressuposto de que as Escriturasdevem ser estudadas do mesmo modo que as demais literaturasantigas, pelo emprego das mesmas metodologias. Esta postura,crítica, com sua ênfase apenas no caráter humano dasEscrituras, resultou em uma série de metodologias críticas de

13  Enio Ronald Mueller, "O Método Histórico-Crítico: Uma Avaliação," em Entendes o QueLês?  Um Guia para Entender a Bíblia com o Auxílio da Exegese e da Hermenêutica , eds.Gordon D. Fee e Douglas Stuart (São Paulo: Vida Nova, 1986) 245.14  Henry A. Virkler, Hermenêutica: Princípios e Processos de Interpretação Bíblica  (Miami:Editora Vida, 1987) 52.15 Bernard Ramm, Protestant Biblical Interpretation: A Textbook of Hermeneutics , 3a. ed. rev.(Grand Rapids: Baker, 1973) 64.

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caráter histórico ou lingüístico que vêm sendo empregadas nainterpretação das Escrituras.

A crítica ou história da tradição é uma dessas metodologias,

cuja pretensão é ‘‘descobrir a história percorrida por determinadotrecho, no âmbito da tradição oral, ou seja, na fase anterior à suafi xação literária mais antiga’’.16  Isto é: estudar como os eventoshistóricos e ensinos originais de Jesus teriam dado origem àsdiversas formas de tradições orais até o seu registro escrito. Seupropósito é ‘‘destradicionalizar’’ (semelhante à desmitologizaçãode Bultmann) os Evangelhos, em busca do ‘‘fato’’ ou ensino‘‘original’’.17 

A crítica da forma  é outra metodologia crítica. Sua pretensãoé classificar os escritos do Novo Testamento em gêneros literáriose identificar as tradições que teriam dado origem às fontesempregadas pelos autores do Novo Testamento. Segundo osteóricos da crítica da forma,18  os evangelhos provém de tradiçõesorais não cronológicas existentes (chamadas de paradigmas,novelas, lendas, mitos e exortações).

Posteriormente essas tradições orais teriam sido organizadasem relatos cronológicos escritos que foram empregados pelos

evangelistas. Mas a teoria é extremamente especulativa, visto quenão explica como esses gêneros teriam surgido e se desenvolvido.Além disso, não existe registro histórico dessas supostas coleçõesnão cronológicas.19 

Outra metodologia desenvolvida pela escola crítica deinterpretação é a crítica das fontes . De acordo com esta teoria hámuito pouco nos evangelhos (especialmente nos sinópticos)originário dos evangelistas. Eles teriam sido mais coletores eeditores dos diversos relatos (tradições escritas) existentes sobre a

vida de Jesus do que propriamente autores.A teoria se baseia nas palavras de Lucas no início do seu

evangelho (cf. Lc 1.1,3), e na observação de que os evangelhos deMateus e Lucas normalmente concordam literalmente com oevangelho de Marcos (ambos ou cada um isoladamente),

16 Mueller, "O Método Histórico-Crítico ," 257.17  Mais sobre o assunto em David R. Catchpole, "Tradition History," em New Testament

Interpretation : Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The PaternosterPress, 1979) 165-180. 18 Tais como K. L. Schmidt, M. Dibelius e R. Bultmann.19  Mais sobre o assunto pode ser encontrado em Stephen H. Travis, "Form Criticism,"em New Testament Interpretation : Essays on Principles and Method, ed. I. H. Marshall(Exeter: The Paternoster Press, 1979) 153-164.

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enquanto que raramente concordam entre si, quando discordamde Marcos. A conclusão mais comum a que se chegou é queMateus e Lucas foram copiados de Marcos (quando concordam

com ele) e de outra suposta fonte chamada "Q", quandoconcordam entre si, mas discordam de Marcos.

Não há, contudo, concordância entre os críticos da forma. Asevidências internas (baseadas em supostas inconsistênciascronológicas, estilísticas, teológicas e históricas) a favor dessateoria são bastante limitadas, subjetivas, ambíguas econtraditórias com as evidências externas (afirmativas dos paisda igreja que apontam de modo unânime em direção oposta).20 

Muitas outras possibilidades tornam qualquer conclusãoextremamente incerta. Marcos poderia ter usado Mateus e Lucas;os três evangelistas podem ter usado as mesmas fontes; Jesuspode ter repetido ensinos e parábolas com palavras diferentes emocasiões diferentes, etc. A verdade é que não se sabe comexatidão como os evangelistas escreveram seus evangelhos.

Parece evidente que pelo menos um, Lucas, lançou mão dealgumas fontes, mas conforme ele mesmo afirma, ele e suasfontes basearam-se no que lhes transmitiram ‘‘testemunhas

oculares’’ dos acontecimentos (Lc 1.2). Entretanto, não há meiosde saber concretamente que fontes foram estas e até que ponto ecomo as usaram. Isso torna a crítica da forma necessariamenteespeculativa. De concreto, mesmo, têm-se os Evangelhos, comoPalavra de Deus escrita por homens inspirados (movidos) peloEspírito Santo, fundamentados no que testemunharam e notestemunho de outras testemunhas oculares, e, portanto,fidedignas.

Além dessas metodologias, há também a crítica da redação ,

que se propõe a estudar como os evangelistas teriam usado(editado) as suas supostas fontes na composição dos evangelhos;isto é, que mudanças peculiares (ou contribuições) teriam sidointroduzidas pelos evangelistas às fontes que usaram, e com quepropósito (especialmente teológico).21 

Mas, a que conclusões seguras se pode chegar com a críticada redação, se nem mesmo há certeza alguma com relação ao usodas fontes?

20  David Wenham, ‘‘Source Criticism,’’ em New Testament Interpretation : Essays onPrinciples and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 144.21  Stephen S. Smalley, "Redaction Criticism," em New Testament Interpretation ; Essays onPrinciples and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 181.

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Por fim, pode ser mencionado o criticismo histórico . Suapretensão é avaliar a historicidade das narrativas bíblicas, ou,como escreve Marshall, ‘‘...testar a precisão do que se propõe ser

uma narrativa histórica.’’ 22

 Mas este propósito não é somente pretensioso (inconsistente

do ponto de vista bíblico); é também tendencioso, na medida emque explora as aparentes contradições internas (especialmenteentre as passagens paralelas dos evangelhos) e externas (comfontes seculares e históricas); e encara os relatos de ocorrênciassobrenaturais por uma perspectiva altamente especulativa.

Assim, o criticismo histórico não vê os textos paralelos comocomplementares, mas como contraditórios; atribui às fontesseculares autoridade superior à das Escrituras; rejeita asintervenções sobrenaturais; e considera muitas narrativashistóricas como invenção da igreja, novelas ou mitos.

O gráfico a seguir resume estas metodologias críticas dométodo histórico-crítico de interpretação dos evangelhos, emordem lógica.

Os resultados de todas estas metodologias críticas sãoinseguros, questionáveis e dúbios, e sua aplicação prática

extremamente limitada (se possível). São hipóteses construídassobre especulações infrutíferas que não contribuem empraticamente nada para a compreensão do texto do Novo Testamento, a não ser para lançar dúvidas sobre a suainspiração, autoridade e inerrância.23 

22  Howard Marshall, "Historical Criticism," em New Testament Interpretation ; Essays onPrinciples and Method, ed. I. H. Marshall (Exeter: The Paternoster Press, 1979) 126. 23  Uma crítica em português ao método histórico-crítico de interpretação das Escrituras

pode ser encontrada em Mueller, "O Método Histórico-Crítico," 255-271. Nestas páginasMueller expõe resumidamente as metodologias críticas e apresenta as objeções ao métodohistórico-crítico levantadas por Gerhard Maier, de Tübingen, no livro Das Ende derHistorisch-kritischen Methode  ("O Fim do Método Histórico-Crítico"), publicado em 1974, e no

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Não obstante, parece que a corrente humanista deinterpretação das Escrituras tem começado a prevalecer em umnúmero considerável de seminários teológicos no nosso país. A

ênfase hermenêutica destes seminários está no método, natécnica, nos aspectos literários ou históricos das Escrituras, emdetrimento do seu caráter divino, espiritual e sobrenatural.

A metodologia predominante tem sido o método histórico-crítico. E, em virtude da impossibilidade de conciliar este métodocom as doutrinas bíblicas da inspiração, autoridade, suficiência,inerrância e preservação das Escrituras, muitos destesseminários têm se afastado cada vez mais da verdadeira fidesreformata (fé reformada).

Como os resultados das metodologias críticas empregadaspelo método histórico-crítico são quase sempre infrutíferos, e suaaplicação prática extremamente limitada, não é incomum que oproduto final de muitos dos nossos seminários seja formandosdespreparados para o ofício de ministros da Palavra.

Nesta condição, não é de estranhar que, como observouLopes, „„...os púlpitos de bom número das igrejas evangélicasdestilam uma espécie de sermão onde pouca ou nenhuma atenção

se dá ao sentido original do texto bíblico‟‟ .24

 Destilam também, acrescento, teologias imprecisas e

inconsistentes, que pouco edificam os membros de suascongregações.

3. CORRENTE REFORMADA

A corrente reformada de interpretação das Escrituras (objetoespecífico deste estudo) posiciona-se entre as duas correntesextremas já consideradas. Ela (a corrente reformada) caracteriza-se pelo equilíbrio resultante do reconhecimento do caráter divino-humano das Escrituras.

Em função disso, os intérpretes desta corrente reconhecem anecessidade da iluminação do Espírito falando através da própria

artigo ‘‘Concrete Alternatives to the Historical Critical Method," em Evangelical Review ofTheology  6/1 (abril 1982).24 Augustus Nicodemus Lopes, ‘‘Lutero Ainda Fala: Um Ensaio em História da InterpretaçãoBíblica,’’ em Fides Reformata  1/2 (1996) 110.

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Palavra, ao mesmo tempo em que admitem a necessidade deinterpretação gramatical e histórica das Escrituras.

A interpretação reformada rejeita, por um lado, a

alegorização indevida das Escrituras e, por outro, repudia umapostura primariamente crítica com relação a elas.

A) Método Gramático-Histórico

O método de interpretação adotado e praticado pela correntereformada ou protestante conservadora é conhecido pelo nome demétodo gramático-histórico; o método de interpretação honradopelo tempo, no dizer de M. Lloyd-Jones.

 Trata-se de um método fundamentado em pressuposiçõesbíblicas quanto à própria natureza das Escrituras, que empregaprincípios gerais e métodos lingüísticos e históricos coerentescom o caráter divino-humano da Palavra de Deus.

B) Precursores: Escola de Antioquia e Agostinho

Os reformadores não criaram este método de interpretaçãobíblica do nada. Eles se fundamentaram no próprio ensino bíblicosobre a sua natureza e na prática apostólica. As origens dainterpretação reformada também são encontradas na escola deAntioquia da Síria, que pode ser considerada precursora dométodo gramático-histórico.

Seus principais representantes foram Teodoro de

Mopsuéstia (†428) e João Crisóstomo (†407), o ‘‘Boca de Ouro’’.Eles rejeitaram tanto o literalismo judeu, como o alegorismo deAlexandria; defendiam uma interpretação literal e histórica dasEscrituras; criam na realidade histórica dos eventos descritos noAntigo Testamento; defendiam a unidade das Escrituras eadmitiam o desenvolvimento ou progressividade da revelação.25 

Agostinho também pode ser considerado precursor dométodo gramático-histórico de interpretação bíblica. Ele nãoparece haver sido consistente na aplicação do seu método. De

fato, sua distinção de quatro sentidos das Escrituras foi tão

25 Ramm, Protestant Biblical Interpretation , 48-50.

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influente que prevaleceu por toda a Idade Média, como já foi visto.Apesar disso, ele estabeleceu importantes princípios deinterpretação bíblica no seu manual de hermenêutica e

pregação, De Doctrina Chistiana .Eis alguns desses princípios:26 

a) A fé é um pré-requisito fundamental para o intérprete daPalavra de Deus.

b) Deve-se considerar o sentido literal e histórico do texto.

c) O Antigo Testamento é um documento cristológico.

d) O propósito do expositor é descobrir o sentido do texto enão atribuir-lhe sentido.

e) O credo ortodoxo deve controlar a interpretação dasEscrituras.

f) O texto não deve ser estudado isoladamente, mas no seucontexto bíblico geral.

g) Se o texto for obscuro, não pode se tornar matéria de fé.As passagens obscuras devem dar lugar às passagens claras.

h) O Espírito Santo não dispensa o aprendizado das línguas

originais, geografia, história, ciências naturais, filosofia, etc.i) As Escrituras não devem ser interpretadas de modo a se

contradizerem. Para isso, deve-se considerar a progressividade darevelação.

C) Princípios Reformados

 Tem sido reconhecido que a reforma teológica e eclesiásticado século XVI foi o resultado de outra reforma: uma reformahermenêutico-exegética.27 

De fato, a redescoberta das doutrinas bíblicas pelosreformadores e a reforma eclesiástica decorrente foramprecedidas por um evidente rompimento com os princípioshermenêuticos e com a prática exegética medieval.

26 De acordo com Ramm, Protestant Biblical Interpretation , 36-37, e Virkler, Hermenêutica ,45.27 Ramm, Protestant Biblical Interpretation , 52.

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a. A Única Regra Infalível de Interpretação  

A Reforma Protestante rejeitou veementemente ahermenêutica alegórica medieval, e registrou seu repúdio emalguns dos seus principais símbolos de fé. Eis um exemplo: oparágrafo IX do capítulo I da Confissão de Fé deWestminster  (idêntico ao mesmo parágrafo da Confissão de FéBatista de 1689 ):

A regra infalível de interpretação da Escrituraé a mesma Escritura; portanto, quando houver

questão sobre o verdadeiro e pleno sentido dequalquer texto da Escritura (sentido que não émúltiplo, mas único), esse texto pode serestudado e compreendido por outros textosque falem mais claramente.

Este parágrafo estabelece o princípio reformado fundamentalde interpretação bíblica, segundo o qual a única regra infalível de

interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Ela se auto-interpreta, elucidando, assim, suas passagens mais difíceis. Oque estas confissões querem dizer com essa afirmativa é que osentido de uma passagem obscura não pode serautoritativamente determinado nem por tradição, nem pordecisão eclesiástica, nem por argumento filosófico, nem porintuição espiritual, mas sim, unicamente, por outras partes dasEscrituras que expliquem e esclareçam o seu sentido.

b. Repúdio à Interpretação Alegórica Medieval  

O parágrafo acima, citado da Confissão de Fé, tambémrepresenta o repúdio dos reformadores ao método deinterpretação quádrupla medieval. Em lugar dele, osreformadores ensinavam que cada passagem das Escrituras temum só sentido, que é literal —  a não ser que o próprio contexto ououtro texto das Escrituras requeiram claramente uma

interpretação figurada ou metafórica.

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 John Colet (c. 1467-1519) foi um dos primeirosreformadores a romper com o método alegórico medieval, ao exporem 1496, em Oxford, as cartas do apóstolo Paulo em seu sentido

literal e no seu contexto histórico.28

  Três anos depois, em 1499,ele já sustentava o princípio de que as Escrituras não podem tersenão um único significado: o mais simples.29 

Lutero também rejeitou a interpretação alegórica. Defendeuque „„nós devemos nos ater ao sentido simples, puro e natural das

 palavras, como requerido pela gramática e pelo uso do idiomacriado por Deus entre os homens.‟‟  30 

Quanto a Calvino, sua aversão à interpretação alegórica erade tal ordem que ele chegou a afirmar ser satânica, por desviar ohomem da verdade das Escrituras. „„É uma audácia próxima   dosacrilégio‟‟ , escreveu ele, „„usar as Escrituras ao nosso bel -prazer ebrincar com elas como com uma bola de tênis, como muitos antesde nós o fizeram.‟‟  31 

c. Necessidade de Iluminação Espiritual  

Os reformadores reconheceram a natureza divino-humanadas Escrituras, e enfatizaram o papel do Espírito Santo noprocesso de interpretação da sua mensagem. Para eles, oimpedimento maior estava na cegueira espiritual do homem, emfunção da queda, e não nas Escrituras.

 Tanto para Lutero, como para Calvino,32  nenhuma pessoapoderia interpretar corretamente as Escrituras sem a açãoiluminadora do Espírito Santo através da própria Palavra. Eis aspalavras de Lutero sobre o assunto:

28 Bruce, "The History of New Testament Study," 29.29  Marvin W. Anderson, ‘‘La Reforma y la Interpretacion," em Diccionario de la TeologíaPráctica; Hermeneutica , ed. Rodolf G. Turnbull (Grand Rapids: Subcomisión LiteraturaCristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1976) 52.30 Em sua obra Sobre a Escravidão da Vontade  (citada por F. F. Bruce, The History of New

Testament Study , 31). Este livro de Lutero, publicado inicialmente em 1525, foi condensadopor Clifford Pond e publicado em inglês em 1984 com o título Born Slaves , e em portugês em1992 pela Editora Fiel, com o título Nascido Escravo .31 Ramm, Protestant Biblical Interpretation , 58.32 Lamberto Floor enfatiza com muita propriedade este aspecto da interpretação bíblica deCalvino no artigo "The Hermeneutics of Calvin," em Calvinus Reformatur: His Contribution toTheology, Church and Society  (Potchefstroom, South Africa: Potchefstroom University forChristian Higrer Education, 1982) 181-191. 

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...a verdade é que ninguém que não possui oEspírito de Deus vê um til sequer do que estána Escritura. Todos os homens têm seus

corações obscurecidos, de modo que, mesmoquando discutem e citam tudo o que está naEscritura, não compreendem ou conhecemrealmente qualquer assunto dela... O Espíritoé necessário para a compreensão de toda aEscritura e cada uma de suas partes.33  

d. Interpretação Gramatical e Histórica  

Por outro lado, reconhecendo a natureza histórica dasEscrituras, os reformadores defendiam a sua interpretação literal,enfatizando também a importância da gramática e da história nacompreensão da sua mensagem.

Melanchton foi um dos responsáveis pela ênfase reformadana exegese gramatical. Em um discurso proferido em 1518 emWittenberg, ele exortou seus ouvintes a recorrerem às Escriturasnas línguas originais, onde encontrariam Cristo, livre dasdiscordâncias dos teólogos latinos. Lutero ficou tãoimpressionado com o que ouviu, que passou a assistir às aulas degrego de Melanchton, dedicando-se com afinco ao estudo dogrego.34 

Mas foi Calvino, sem dúvida, quem melhor praticou aexegese gramatical e histórica. Ele tem sido considerado pormuitos o maior intérprete da Reforma e um dos maiores de todasas épocas. A profundidade, lucidez e erudição dos seus

comentários, que abrangem praticamente todos os livros daBíblia,35  continuam a ser admirados e considerados atuais eraramente igualados.36 

E não se pense que essa é a opinião apenas dos calvinistas(um compreensível exagero presbiteriano deste autor). Mesmo Jacobus Arminius (1560-1609), um dos mais conhecidos

33  Citado por Ralph A. Bohlmann, Princípios de Interpretação Bíblica nas ConfissõesLuteranas  (Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1970) 29.34 Anderson, "La Reforma y la Interpretación," 54-55.35 Com exceção de 2 e 3 João e Apocalipse (no Novo Testamento).36  Ver Ramm, Protestant Biblical Interpretation  57; e Louis Berkhof, Principios deInterpretación Biblica  (Grand Rapids: Subcomisión Literatura Cristiana, 1976) 52.

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opositores das doutrinas de Calvino, reconhecia a excelência doscomentários dele, e chegou a recomendá-los como incomparáveis.Eis suas palavras:

Depois da leitura das Escrituras..., e mais doque qualquer outra coisa,... eu recomendo aleitura dos Comentários de Calvino... Poisafirmo que na interpretação das EscriturasCalvino é incomparável, e queseus Comentários são mais valiosos do quequalquer coisa que nos tenha sido legada nosescritos dos pais —  tanto assim que atribuo aele um certo espírito de profecia no qual ele seencontra em uma posição distinta acima deoutros, acima da maioria, na verdade, acimade todos.37  

e. Desenvolvimento do Método Gramático Histórico  

Estes e outros princípios de interpretação praticados pelosreformadores (Lutero, Calvino e demais reformadores alemães,suíços, franceses e ingleses) viriam a ser desenvolvidos eadotados pelo protestantismo ortodoxo em geral desde então,38  ese tornaram conhecidos pelo nome de método gramático-históricode interpretação bíblica.

Foi este o método empregado pelos puritanos no séc. XVII;39 pelos líderes evangélicos do século XVIII na Europa e América doNorte (tais como George Whitefield e Jonathan Edwards); pelo

anglicano J. C. Ryle, pelo batista Charles Spurgeon na Inglaterrae pelos presbiterianos Charles e Alexander Hodge no Semináriode Princeton nos EUA, no século passado; e pelos intérpretes e

37  Carta escrita a Sebastian Egbertsz, publicada em P. van Limborch e C.Hartsoeker, Praestantium ac Eruditorum Virorum Epistolae Ecclesiasticae etTheologicae (Amsterdam, 1704), nº 101 (citado por Bruce, "The History of New Testament

Study," 33).38 Cf. Virkler, Hermenêutica , 49.39 Breves exposições em português dos princípios de interpretação puritana das Escrituraspodem ser encontradas no capítulo ‘‘Os Puritanos como Intérpretes da Bíblia’’ em J. I.

Pacher, Entre os Gigantes de Deus: Uma Visão Puritana da Vida Cristã (São José dosCampos, São Paulo: Editora Fiel, 1996) 105-114; e em Leland Ryken,Santos no Mundo: OsPuritanos como Realmente Eram  (São José dos Campos, São Paulo: Editora Fiel, 1992) 155-159.

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pregadores protestantes (luteranos, anglicanos, presbiterianos ebatistas) ortodoxos deste século.

Os manuais de hermenêutica de Davidson, Patrick, Imer,

 Terry, Berkhof, Berkeley, Mickelsen e Ramm pertencem todos aessa escola de interpretação bíblica, bem como os comentáriosbíblicos de Keil e Delitzsch, Meyer, Matthew Henry, Lange, Alford,Ellicot, Lightfoot, Hodge, Broadus e muitos outros.

O método gramático-histórico de interpretação bíblicadesenvolvido pela corrente reformada é, de fato, a hermenêuticahonrada pelo tempo. É um método coerente com a natureza dasEscrituras; fundamenta-se em pressuposições teológicas bíblicas;e emprega princípios gerais adequados e métodos lingüísticos ehistóricos extremamente frutíferos.

CONCLUSÃO

A teologia e a praxis  eclesiástica deformadas doevangelicalismo moderno clamam por reforma; clamam por umnovo retorno às Escrituras. A corrente espiritualista de

interpretação bíblica já foi colocada na balança e achada em falta:as hermenêuticas alegórica, intuitiva e existencialista, por nãodarem a devida consideração ao caráter humano das Escrituras,abrem espaço para todo tipo de eisegese . O caráter fantasiosodestas hermenêuticas acaba desviando a atenção do leitor ououvinte do verdadeiro sentido do texto bíblico (aquele que oEspírito Santo intentou transmitir).

A corrente humanista de interpretação bíblica também já foicolocada na balança e achada em falta: a hermenêutica dos

saduceus, dos humanistas renascentistas e da escola crítica, pornão darem a devida atenção ao caráter divino das Escrituras,tendem a atribuir à razão a autoridade que pertence à revelação.Este caráter racionalista da hermenêutica humanista induz aoliberalismo teológico que acaba negando a legítima fé reformada.

A corrente reformada de interpretação bíblica também já foicolocada na balança da história, mas foi aprovada com louvor: ométodo gramático-histórico fundamentado no próprio ensinobíblico sobre as Escrituras e desenvolvido e aplicado pelosreformadores e seus legítimos herdeiros, por dar a devida atençãotanto ao caráter divino como ao caráter histórico das Escrituras,

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promoveu as reformas teológicas e eclesiásticas mais profundas já experimentadas pela igreja cristã.

Durante a Reforma Protestante do século XVI e a reforma

puritana do século XVII, por exemplo, muito entulho religioso teveque ser rejeitado. Muitas doutrinas e práticas eclesiásticasacumuladas no decurso dos séculos tiveram que ser abolidas,quando reformadores e puritanos dedicaram-se com labor eoração a perscrutar as Escrituras para ver se as coisas eram defato assim. A hermenêutica reformada das Escrituras jádemonstrou ter a capacidade de revelar a falácia de doutrinas epráticas eclesiásticas ‘‘fundamentadas’’ em interpretaçõesalegóricas, intuitivas, existencialistas e racionalistas.

Na convicção deste autor, o evangelicalismo brasileiro temacumulado nos últimos cem anos  —   especialmente nas últimasdécadas  —   considerável entulho religioso. Não é possível entrarem detalhes aqui. Mas a proliferação de teologias estranhíssimas,práticas litúrgicas inusitadas e condutas eclesiásticas no mínimoexcêntricas, já descaracterizaram a fé e o culto reformados.Mesmo denominações historicamente reformadas têm absorvidodoutrinas e práticas de culto inconsistentes com o ensino bíblicoe com seus símbolos de fé. Esta descaracterização se explica, pelomenos em parte, pelo emprego das hermenêuticas deficientes queestivemos considerando.

Não é tempo, portanto, de reconsiderarmos os rumos queestamos tomando? De nos desvencilharmos das hermenêuticasalegóricas, intuitivas, existencialistas e racionalistas, e deretornarmos à hermenêutica reformada aprovada pela história?Não é tempo de fazermos da oração uma prática hermenêutica,suplicando pela iluminação do Espírito Santo; e de labutarmos no

estudo diligente das Escrituras, dando a devida atenção à línguae às circunstâncias históricas em que foram escritas?

Orare e labutare   é o caminho. Não é um caminho fácil nemmágico. Requer sinceridade e diligência. Talvez não forneçainterpretações esplêndidas nem realce a criatividade, imaginaçãoe genialidade do pregador. Mas é o antigo e bom caminhoaprovado com louvor pela história. Ele deixa que a verdade deDeus opere e que as Escrituras falem com poder e graça,promovendo profundas reformas teológicas e eclesiásticas.