A Hipotese de Lacan

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    A hiptese de Lacan

    Jairo Gerbase

    No campo que nos concerne, o do sintoma dito mental, h pelo menos trs

    orientaes bem definidas: a da psicologia, que supe que a condio da formao do sintoma

    seja o ambiente (a famlia, a sociedade, o capitalismo), a da biologia, que supe que a condio

    da formao do sintoma seja a gentica (a hereditariedade, a neurotransmisso) e a da

    psicanlise, que supe que a condio da formao do sintoma seja o real.

    Dito de outra maneira, em termos empricos, quando um sintoma mental se

    desencadeia, a psicologia tende a responsabilizar uma me que se separou deixando o filho

    aos cuidados do pai. Diz que se trata de uma m me, que o menino no amado, no

    desejado e que isto justifica o desencadeamento de um sintoma.

    Por seu turno, a tendncia da psiquiatria biolgica dizer que se trata de uma

    condio gentica; recomenda procurar na hereditariedade o comparecimento de casos

    semelhantes. Tal como no se responsabilizaria uma mame por um filho ter desenvolvido um

    sintoma somtico a posio biolgica no responsabiliza o ambiente pelo desenvolvimento de

    um sintoma mental.

    A contribuio da psicanlise dizer que no h nenhuma participao da realidade na

    formao do sintoma, que o desencadeamento de um sintoma do real, que houve a

    encontro do real, que o sujeito encontrou algo impossvel de ser dito, encontrou algo inefvel

    e que vai ser necessrio tagarelar para poder diz-lo, para poder tocar o real.

    A hiptese de Lacan: o corpo afetado pelo inconsciente o prprio sujeito de um

    significante, se sustenta na idia que o inconsciente seja o real. De acordo com esta hiptese,

    o corpo e o sujeito so colocados em posio de equivalncia, se no de homologia, o que tem

    a vantagem de deixar de lado a diviso corpo e mente.

    Um corpo afetado pelo inconsciente no sentido em que um significante tem

    ressonncia nele, em que um dizer faz eco nesse corpo, o que s possvel acontecer em um

    corpo sensvel ao significante. Esse eco o que chamamos de pulso. Por isso, o objeto voz

    ganha prevalncia entre os objetos pulsionais, embora o objeto olhar continue a lhe fazer

    concorrncia.

    H corpo sensvel ao latido, ao miado, ao mugido, ao berro, ao gorjeio, etc., e h corpo

    sensvel ao dizer.

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    Que um corpo seja afetado pelo inconsciente significa que o inconsciente atinge um

    corpo, exclusivamente um corpo que costumamos chamar de corpo humano, mas que bem

    poderamos chamar de sujeito de um significante.

    A hiptese de que o corpo afetado pelo inconsciente o prprio sujeito de um

    significante, comprova a tese de que um significante representa um sujeito para um outro

    significante e no que o significante representa alguma coisa para algum, comprova que o

    corpo de sada afetado pelo significante, que no h, em primeiro lugar, o corpo vivo e,

    depois, o corpo falante.

    Uma criana pequena antes dos dezoito meses de idade vive esse drama de receber

    significantes dos adultos que lhe rodeiam dos quais no sabe o sentido. Isso mostra bem em

    que sentido o significante real, quer dizer, impossvel de ser entendido, mostra tambm em

    que sentido o inconsciente real, ou seja, mal-entendido.

    Dizemos que o desamparo em que se encontra uma criana nestes primeiros meses de

    vida faz com que ela crie uma dependncia absoluta do dom do amor do outro, o que no

    deixa de ser verdade, mas no tem nenhuma importncia na formao do sintoma mental. O

    dom do amor da me tem certamente importncia fundamental na sobrevivncia, na

    preservao da vida de uma criana. H, todavia outro desamparo que nascer sem o acesso

    ao sentido do significante, nascer por assim dizer inteiramente no real e isso que tem tudo a

    ver com a formao do sintoma.

    No creio que uma criana tenha idia da morte e que se sinta por isso desamparada,

    mas creio que se sente desamparada por no poder se comunicar imediata e precisamente

    fazendo uso das palavras; e esta, de acordo com a hiptese lacaniana, a condio da

    formao do sintoma.

    Para afetar um corpo, o inconsciente necessita de um instrumento que o significante

    extrado da alngua, que por ser transmitida simultaneamente com a lngua chamada materna,

    d lugar aparncia de que a famlia, especialmente a me, tem um papel na formao do

    sintoma.

    O que alngua? H a lngua e alngua. H a lngua materna e alngua do inconsciente.

    Alngua uma linguagem formada dos mal-entendidos da lngua. Alngua formada a partir

    dos equvocos da lngua. Alngua constituda das interpretaes equivocadas do sentido das

    palavras. Com ela se constroem o sonho, o lapso, a piada, a poesia e o sintoma. Constroem-se

    as chamadas formaes do inconsciente que so formaes do significante.

    Alngua correlata da contingncia do ouvir que tem a vantagem de no deixar o

    sujeito passivo, de faz-lo ator e autor do que se ouve, e a partir da seja o que for que se diga

    fica esquecido atrs do que se diz, a partir da cada enunciado deixa supor uma enunciao.

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    A contingncia do ouvir nos remete ao discernimento entre realidade e fantasia, por

    exemplo, entre a realidade e a fantasia de seduo, coerente com essa afirmao que h

    pouco usamos que nada da realidade participa da formao do sintoma, idia que se encontra

    nos escritos freudianos sobre a etiologia do sintoma.

    Sustentar que o abuso sexual infantil (ASI) participa da formao do sintoma implica

    colocar o sujeito em posio passiva enquanto que Freud quer que o sujeito seja ator, autor da

    formao do sintoma, e por isso que ele faz essa distino entre histeria e obsesso, em

    relao ao tipo de gozo, prazer ou averso, experimentado pelo sujeito numa suposta cena

    traumtica de seduo ou abuso sexual infantil.

    A expresso contingncia do ouvir tambm quer indicar, se entendemos por

    contingncia o que parou de no se escrever, o que passou a se escrever, porque um

    significante fez tal sentido para um sujeito e no para outro em um mesmo ambiente. Por

    contingncia do ouvir devamos entender o fato de que o sujeito quem decide o sentido

    daquele significante ou o sujeito quem decide o sentido traumtico de determinado

    significante o que quer, em suma, dizer que um significante representa um sujeito para um

    outro significante e no que representa alguma coisa para algum.

    Um sujeito descreve como uma experincia traumtica (uma espcie de epifania, uma

    percepo do significado essencial de uma expresso, uma espcie de dj vu) o dia em que se

    encontrou com o significante LONELY HEARTS, quando, ento, percebeu que a realidade lhe

    era hostil e se inscreveu no CLUBE DOS CORAES SOLITRIOS.

    Que isso tenha tido uma ressonncia em si, mesmo o que quer dizer contingncia do

    ouvir e que tem um sentido equivalente, se no homlogo, expresso encontro do real. Este

    encontro algo parecido com o que ocorreu a Sinclair em seu encontro com Kromer no

    Demian de Hesse. Tambm parecido com as experincias estticas e literrias, as epifanias

    em Stephen o Heri, de Joyce.

    Por isso evocamos esta frase do Ltourdit que se diga fica esquecido atrs do que se

    diz no que se ouve. H a muitas variveis, uma verdadeira varidadede coisas a explorar.

    Alngua tambm correlata do inconsciente real, do ICSR, sugerido em 1977, no

    Prefcio edio inglesa do seminrio 11, de Lacan. O ICSR consiste em opor a estrutura de

    linguagem aos efeitos de alngua.

    No campo que nos concerne o discurso cientfico se sustenta na hiptese da

    serotonina, mas o discurso analtico deve se sustentar da hiptese do significante. O discurso

    cientfico sustenta que h comunicao, o discurso analtico que h mal-entendido. O discurso

    cientfico sustenta que h linguagem, o discurso analtico que h alngua. O inconsciente

    feito de alngua e nisso que ele real.

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    Nesse sentido no h dilogo. Os autores da teoria da comunicao chamaram a

    ateno para o tipo de dilogo de duplo vnculo entre pais e filhos chegando a postular o

    conceito de metlogo1, porm no se deram conta que na comunicao trata-se de fazer o

    interlocutor dizer a resposta que o locutor espera, que o emissor recebe do receptor sua

    prpria mensagem de uma forma invertida.

    H seres que falam e sempre se tentou saber o que sabem os seres que no falam. Isso

    deu motivo s fabulas dos animais falantes no que Andersen foi um dos mais eminentes. Deu

    motivo tambm a se colocar o rato no labirinto, se promover pesquisas para saber se o rato

    aprende.

    O ser que fala um corpo que fala. Corpo falante e ser falante so equivalentes, se no

    homlogos. O saber repousa na alngua, no inconsciente, por isso real. O corpo o saber do

    um. Esse saber no vem do corpo, mas do significante um, S 1. H um. H o elemento, a

    unidade que faz a relao do sujeito S com o saber S2. No h ser, mas saber que se articula.

    1Metlogo ou metadilogo um dilogo sobre o prprio dilogo, uma metalinguagem. Um dilogo

    fictcio entre um pai e uma filha escrito por Gregory Bateson em seu livro Steps to an Ecology of Mind

    (1972) e reproduzido por Heinz von Foerster em seu artigo Viso e conhecimento: disfunes desegunda ordem no livro Novos paradigmas cultura e subjetividade organizado por DoraFried Schnitman.

    O que um instinto?

    Filha: Papai, que um instinto?

    Pai: Um princpio, querida, um princpio explicativo.

    F: Mas o que explica?P: Tudo quase absolutamente tudo. Qualquer coisa que queiras explicar. (note -se que, algo que explicatudo, provavelmente no explica nada).

    F: No sejas bobo: no explica a gravidade.

    P:No, mas isso porque ningum quer que o instinto explique a gravidade. Se o quiserem, explicaria.Poderamos dizer que a lua tem um instinto cuja fora varia inversamente ao quadrado da distnciaF: Mas isso no faz sentido, papai.

    P: Creio que no, mas foste tu quem mencionou o instinto, no eu.F: Est bem mas o que que explica a gravidade?P: Nada, querida, porque a gravidade um princpio explicativo.

    F: Oh! Breve pausa.

    P: Humm quase nunca. o queNewton queria dizer quando disse:Hypothesis non fingo.F: E o que significa isso, por favor?

    P: Bem, tu j sabes o que so hipteses. Qualquer afirmao que conecta, entre si, duas afirmaesdescritivas uma hiptese. Se tu dizes que houve lua cheia em 1 de fevereiro e novamente em 1 de

    maro e logo conectas essas duas observaes, de certa maneira essa afirmao uma hiptese.

    F: Sim, e tambm sei que quer dizer non, mas e fingo?

    P: Bem, fingo uma palavra que, em latim antigo, significa fao. Forma um substantivo verbal fictio, do

    qual procede nossa palavra fico.F: Papai, queres dizer que Sir Isaac Newton pensava que todas as hipteses se compe como se fossem

    contos?

    P: Sim, precisamente.

    F: Mas no descobriu a gravidade? Com a ma?

    P: No, querida, a inventou.

    Moral da histria: Se Newton inventa a gravidade a linguagem quem inventa o mundo. Se ele adescobre, ento a linguagem representa o mundo.

    http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://www.newtonia.freeserve.co.uk/http://www.newtonia.freeserve.co.uk/http://www.newtonia.freeserve.co.uk/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/http://ditosdeumgatocego.wordpress.com/2008/09/09/metalogo-um-dialogo-ficticio-entre-um-pai-e-uma-filha-escrito-por-gregory-bateson-em-seu-livro-steps-to-an-ecology-of-mind-1972-e-reproduzido-por-heinz-von-foerster-em-seu-artido-visao-e-conh/
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    H saber que no se sabe, que se baseia no significante, o sonho, por exemplo. O real o

    mistrio do corpo falante, do inconsciente real.

    Por conta da averso funo da fala e ao campo da linguagem impulsionada pelo

    interesse crescente pelas estruturas pr-verbais, a peste de Freud, segundo Lacan, tornou-se

    andina. Supomos que podemos dizer que hoje a peste de Lacan tambm vem se tornando

    andina, devido resistncia cada vez maior em aceitar que o inconsciente seja o real, por no

    poder aceitar que estamos no inconsciente quando o sentido j no tem nenhum impacto

    como se pode notar na interpretao do lapso.

    Hoje se verifica que nessa direo terica que a prtica de psicanlise com crianas

    continua progredindo, procurando investigar o desenvolvimento da libido, as estruturas pr-

    verbais, a relao de objeto, o que acaba fazendo essa prtica supor que h alguma coisa que

    se passa antes mesmo que a criana fale. Basicamente, se parte da idia de que h antes do

    corpo falante o corpo vivo.

    Creio que por isso que Lacan prope que a linguagem uma elucubrao de saber

    sobre alngua, e essa evocao do pr-verbal de fato se justifica se colocarmos a origem do

    simblico, essa que se conhece como Fort-Da, na linguagem. Por isso Lacan introduz seu termo

    alngua, que estrutura o pr-verbal, ela mesma anterior, primria, antecedente lgico da lngua

    materna e ela mesma n.

    Outra influncia marcante averso da funo da fala e do campo da linguagem vem

    da psicologia social que tem destacado essa relao terica entre sade e trabalho, que leva os

    pesquisadores da epidemiologia psiquitrica a afirmarem que o trabalho precrio, informal, a

    falta de seguridade social geram problemas de sade como estresse, ansiedade e depresso e

    que h relao entre raa, gnero, classe social e sintoma mental.

    A psicologia social prope que, desde a descoberta do inconsciente freudiano, as

    transformaes sociais na constituio da subjetividade tm levado a psicanlise a refletir

    sobre o seu lugar na cultura. Diz que os textos freudianos sobre a sociedade e a cultura

    possibilitaram aos psicanalistas instrumentos efetivos de anlise social e poltica, em suas

    dimenses individuais e coletivas, que os analistas, marcados pelo ensino de Lacan,

    exploraram as relaes do sujeito com o poder, a alienao, o desamparo e a crueldade

    presentes em diversos fenmenos sociais.

    Supe que possvel fornecer subsdios tericos que contribuam para pensar a

    subjetividade no campo do social, de acordo com um dos seus princpios que diz respeito

    possibilidade de modelar sistemas de produo de sentidos subjetivos que escapam s

    evidncias e que expressam a maneira como uma sociedade afeta as pessoas que a integram,

    assim como os diferentes espaos particulares de subjetividade social.

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    Quer-se, desse modo, saber o que faz funo de real no saber. Mas o que faz funo

    de real no saber o impossvel. So os impasses da formalizao. O impasse como encontrar

    o impossvel em uma prtica da fala. A resposta recorrendo ao escrito, formalizao

    matemtica. Essa formalizao se faz ao contrrio do sentido. Faz funo de real o que no

    pode se escrever.

    Esta averso funo da fala e ao campo da linguagem em psicanlise, averso, na

    verdade, hiptese de Lacan, tem implicado trazer para o campo que nos concerne uma srie

    de termos imprprios.

    O primeiro deles auto-estima, um termo definido como a avaliao subjetiva que

    uma pessoa faz de si mesma. Minha idia que a psicanlise devia contestar este termo. Devia

    opor ao termo auto-estima um termo nascido da sua experincia, o narcisismo, que esta

    avaliao subjetiva, que Freud ao introduzir inclusive discerne o que se passa no nvel da

    neurose e da psicose.

    Tudo que diz respeito imagem corporal, ao ego, que devemos chamar de imaginrio,

    essa avaliao de si enquanto corpo, tem essa tradio na mitologia de Narciso.

    Freud fez um sumrio dos caminhos que levam s escolhas de objeto narcsica e

    anacltica, escolha a partir do corpo prprio e do corpo do outro, embora Lacan no acredite

    que se possa fazer escolha anacltica, isto , baseada no objeto, porque no h relao objetal.

    O objeto no complemento, mas causa e, sendo assim, no pode ser objeto de uma escolha

    sempre narcsica.

    Outro termo, avesso funo da fala e ao campo da linguagem, que se tornou senso

    comum, depresso. Este termo no imputa nenhuma responsabilidade ao sujeito pela

    formao do sintoma, de acordo com a hiptese biolgica que o suporta.

    Embora seu uso tenha comeado como uma metfora, hoje tem uma aplicao

    absolutamente literal, por exemplo, quando se fala de ciclotimia rpida de pico, e vale na

    linguagem psiquitrica corrente.

    Praticamente, toda a taxonomia psiquitrica gira em torno da depresso e de sua

    explicao biolgica, a tal ponto que o Manualdiz que detrs de todo sintoma psiquitrico

    existe um sintoma depressivo.

    Freud parte de outra hiptese ao fazer esta dupla homologia: o sonho est para a

    parania assim como o luto est para a melancolia. Por sua vez, Lacan prefere tratar do afeto

    da tristeza a fim de criticar a hiptese dos estados da alma que reedita a dualidade cartesiana

    de mente e corpo j criticada acima em sua hiptese.

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    Outro termo avesso hiptese lacaniana estresse. O estresse definido como

    qualquer agente, ou estmulo, nocivo ou benfico, capaz de desencadear no organismo

    mecanismos neuroendcrinos de adaptao.

    Transposto ao campo que nos concerne o termo estresse utilizado para explicar o

    que no se sabe, o que impossvel de explicar, logo, o real. Minha proposta que se conceba

    no lugar desse agente o significante um, S1. Desse modo, o termo estresse encontraria seu

    limite e sua aplicao conveniente.

    Lacan indica, em Televiso, que o inconsciente estruturado como uma linguagem

    explica melhor o que se passa no nvel neuroendcrino do que essa idia de acomodao.

    Retorna ao assunto em Mais, ainda ao se perguntar: o corpo, o que isso? Por que ele

    produz secrees, excrees, concrees cada vez que afetado pelo significante? O

    significante afeta o corpo ou o corpo afetado pelo inconsciente o prprio sujeito de um

    significante.

    Outro termo avesso hiptese de Lacan limite. Cada vez mais se tem falado em

    declnio da famlia, em desordem da famlia, em declnio da funo paterna. A suposio de

    que o limite deve ser exercido pelo pai, pela famlia vem da Bblia, do Eclesiastes: educa o

    menino no caminho que ele deve andar e, at quando envelhecer, no se desviar dele.

    Se no ao pai, atribui-se ao guarda a funo de dar limites. Se no for funo da famlia

    ser da polcia. Em uma carta a Pfeifer, que Lacan retomou em Radiofonia, Freud apresentou

    sua hiptese: educar impossvel.

    Obviamente, no que diz respeito ao sujeito do inconsciente, ao sujeito de um

    significante, que o prprio corpo afetado pelo inconsciente, a funo de dar limites do real.

    O real d mais limites que o genitor. Assim entendo porque Lacan afirma que a ordem familiar

    apenas traduz que o Pai no o genitor e que a Me contamina a mulher para o filho do

    homem; tudo sendo conseqncia disto.

    O limite do Outro que o impossvel encarna melhor que o genitor. O limite da Outra

    cena, lugar do significante. O limite deve ser a introduo de um significante que valha como

    tico, como imperativo do supereu. Acreditvamos que isso era possvel atravs da

    identificao: tal pai, tal filho, pai tico, filho tico, mas isto no se tem verificado verdadeiro.

    O que se tem verificado, de fato, que o Outro no d a garantia que o sujeito espera,

    no h garantia do Outro. De maneira que o sujeito vive (olha a outro uso do termo) num

    certo desamparo do Outro e tem por isso de se identificar.

    Mais um termo avesso hiptese de Lacan prematurao. No se faz, quanto a este

    termo, o necessrio discernimento entre o que se passa no nvel biolgico e na dimenso do

    real. No se distingue, no campo que nos concerne, o que acontece no nvel neurolgico, a

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    prematurao da bainha de mielina, e na dimenso da alngua, o fato do falassernascer mal-

    entendido no meio de dois outros falasserestambm mal-entendidos e que se conjugam para

    a reproduo de corpos.

    Dito de outra maneira: no o fato de que no nascemos com a capacidade de

    deambular, mas o fato de que no nascemos com a capacidade de falar que a condio

    necessria da formao do sintoma mental.

    Ainda um termo que resiste hiptese de Lacan, a hiptese do inconsciente real, a

    represso. Que se diga que gozamos mal porque h represso sexual sendo a culpa da famlia,

    da sociedade e inclusive do capitalismo, no se discerne muito bem o recalque e a represso,

    visto que se supe que o recalque seja parental e a represso social. No se trata disso. A

    represso, seja parental ou social, no um conceito psicanaltico. O recalque o , e deve se

    entendido como uma operao exclusivamente do significante.

    Quando Freud fala da represso, por exemplo, em A interpretao dos sonhos,

    quando usa o termo Verdrngung, que preferimos traduzir por recalque, ilustra este

    mecanismo com a alegoria da ditadura: um jornalista quer escrever algo, mas teme ser

    censurado, ento escreve por metforas, recorre s figuras de linguagem, tal como o sujeito

    do inconsciente procede na elaborao onrica.

    Lacan ainda mais explicito, em Televiso, quando afirma que o recalque no

    provm da represso, ao contrrio, o recalque primrio. Que a famlia e a sociedade podem

    ser concebidas como condicionadas a partir do recalque. Que mesmo que as lembranas da

    infncia, as recordaes da represso sexual no fossem verdadeiras inventaramos fantasias

    como as da criana espancada: levei uma surra danada s porque roubei uma bolacha, mas me

    pareceu que ele sabia que eu olhava titia tomar banho pelo buraco da fechadura.

    O mito isso, a tentativa de dar forma pica ao que se opera da estrutura. O impasse

    sexual esse, inventar fices, racionalizaes sobre o real, o impossvel de onde elas provm.

    Finalmente, mais um termo avesso hiptese lacaniana: o complexo de dipo. Vale a

    pena discernir quanto a este termo menos a questo do incesto e do parricdio, inclusive o

    infanticdio, do que a diviso do sujeito em relao mulher, a santa e a puta, o insuportvel

    da diviso do objeto, da diviso do Outro. Freud verifica que habitual esta tendncia

    depreciao da mulher.

    Lacan atualiza este termo no conceito de sintoma: o complexo de dipo como tal um

    sintoma. No complexo de dipo trata-se, sobretudo em Sfocles, na tragdia, da

    inevitabilidade do destino. Lacan o atualiza recorrendo impossibilidade do desejo. O

    destaque est no fato de que ele no sabia.

  • 7/24/2019 A Hipotese de Lacan

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    Que dipo tenha como prmio, por ter decifrado o enigma da esfinge, Jocasta, uma

    mulher que sua me, isso contingente. , como disse h pouco, porque a me contamina a

    mulher para o filho do homem.

    Em Hamlet j se pode notar esta contaminao, pois o que o intriga a luxria de

    Gertrudes, mas esta contaminao mais explcita em Karamzovi, onde pai e filho disputam

    uma mulher, Grchenhka.

    Tal como Lacan desenvolveu em asexo(ualidade), a relao incestuosa no a

    relao impossvel, a relao que no pode haver a relao sexual na mesma gerao, e no

    a relao sexual entre geraes. Eu proponho substituir o termo complexo de dipo pelo

    termo RSI, Relao Sexual Impossvel.