A História da Baleia

19
Um conto de António Sérgio

Transcript of A História da Baleia

Page 1: A História da Baleia

Um conto de António Sérgio

Page 2: A História da Baleia

Há muito, muito, muito tempo, vivia no mar a baleia, que comia peixes. Ainda ela, nesse

tempo, podia comer peixes. Comia sardinhas e tainhas, gorazes e roazes, bugios e safios,

pescadas e douradas, bacalhaus e carapaus. Todos os peixes que ia encontrando deitava-

lhes a boca, - ão!

Page 3: A História da Baleia

Por fim, só havia no mar um salmonete vermelhete, que nadava sempre atrás da orelha

esquerda da baleia, para ela lhe não fazer mal.

Page 4: A História da Baleia

Um dia, a baleia pôs-se a pensar muito séria, e disse assim :

- Tenho fome !

E o salmonete vermelhete, com a sua voz muito agudita, disse à baleia :

- Nobre e generoso cetáceo : já experimentou comer homens?

- Não - respondeu a baleia. - A que sabe? como é?

- Bom, mas traquinas - respondeu o salmonete vermelhete.

- Então, vai-me buscar três dúzias deles - ordenou a baleia.

Page 5: A História da Baleia

Basta um de cada vez - disse o salmonete vermelhete. - Se for à latitude 60 graus norte e

longitude 40 graus oeste (isto, amigos, são umas palavras mágicas que o salmonete lá

sabia) encontrará uma jangada feita de tábuas, e sobre a jangada um marinheiro náufrago

de calças de ganga azul, uma faca de ponta aguda, e suspensórios encarnados (não se

esqueçam dos suspensórios!). O marinheiro, devo dizer-lhe, é arguto, astuto, e resoluto.

Page 6: A História da Baleia

A baleia, então, foi aonde lhe disse o salmonete vermelhete, e encontrou a jangada e o

marinheiro. Aproximou-se, abriu a bocarra imensa, e engoliu a jangada e o marinheiro, com as

calças de ganga azul, com a faca de ponta aguda e com os suspensórios encarnados (nunca se

esqueçam dos suspensórios!).

Page 7: A História da Baleia

E assim a baleia arrecadou tudo na despensa escura, quentinha e fofazinha, que tinha lá dentro

do seu corpanzão. E como gostou, deu três estalos com a língua e três voltas sobre a cauda,

levantando muita espuma.

Page 8: A História da Baleia

O marinheiro (que era arguto, astuto, e resoluto) mal se viu dentro da baleia, na despensa

escura, quentinha e fofazinha, pulou, saltou, rebolou, cambaleou, espinoteou, dançou,

sapateou, fandangueou, esperneou, gritou, berrou, cantou, estrondeou tanto, tanto, tanto,

que a baleia se sentiu com enjoos, engulhos e soluços (já se esqueceram dos suspensórios?)

Page 9: A História da Baleia

E disse a baleia ao salmonete vermelhete :

- O teu homem é muito traquinas, e dá-me engulhos. Que hei-de eu fazer?

- Diga-lhe que saia cá para fora - respondeu o salmonete vermelhete.

Page 10: A História da Baleia

E a baleia gritou pela garganta abaixo:

- Saia cá para fora, homenzinho, e veja se tem juízo!

- Isso é que eu não saio- respondeu o homem. - Leve-me primeiro para a minha terra, e depois

veremos o que se poderá fazer.

E pôs-se outra vez a saltar, a pular, a espinotear e a rebolar.

Page 11: A História da Baleia

- O melhor é levá-lo para casa- aconselhou o salmonete vermelhete. - Eu já tinha prevenido a

senhora baleia de que o marinheiro era arguto, astuto e resoluto.

E a baleia nadou, nadou, nadou, dando à cauda e às barbatanas, mas sempre com soluços e muito

enjoada. Quando avistou a terra do marinheiro, nadou para a praia, pôs a boca sobre a areia,

abriu-a muito, e disse:

- Cá chegámos à sua terra!

Page 12: A História da Baleia

O marinheiro, que era na verdade arguto, astuto e resoluto, tinha durante a viagem puxado

da sua faca de ponta aguda, e cortado as tábuas da jangada em fasquiazinhas muito

estreitas, que ligou muito bem com tiras dos suspensórios (bem lhes dizia eu que não se

esquecessem dos suspensórios!) e fez com elas uma grade que empurrou, ao sair, contra a

garganta da baleia.

Page 13: A História da Baleia

E, deixando a grade bem presa na garganta da baleia, saltou para terra…

Page 14: A História da Baleia

…e foi ter com a mãe, com a qual viveu muito contente.

Page 15: A História da Baleia

A baleia foi-se embora também muito contente, assim como o salmonete vermelhete; mas a

grade é que nunca mais saiu da garganta da baleia.

Page 16: A História da Baleia

E por isso é que a baleia nunca mais pôde comer homens, nem meninos, nem peixes - nem

sardinhas nem tainhas, nem gorazes nem roazes, nem bugios nem safios, nem pescadas

nem douradas -, porque os peixes não podem passar pelas grades da garganta, mas só

bichinhos pequeninos, como, por exemplo, as pulgas-do-mar.

Page 17: A História da Baleia

Pouco depois, o marinheiro casou e viveu muito feliz; tinha em casa as calças de ganga azul e a

navalha de ponta aguda; mas não tinha os suspensórios, porque esses ficaram a atar a grade,

muito apertada que só deixa passar bichinhos pequeninos - como as pulguinhas-do-mar - na

garganta da baleia.

Page 18: A História da Baleia

FIM

Page 19: A História da Baleia

Ano Letivo 2012/2013