A História Da Filosofia Do Brasil Colônia - Paulo Margutti

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    Sntese - Rev. de Filosofia

    . 42 . 132 (2015): 97-109

    debates

    A HISTRIA DA FILOSOFIA DO BRASIL COLNIA,

    O LIVRO DE PAULO MARGUTTI

    The History of Brazilian Philosophy in the Colonial Period, by Paulo Margui

    Jos Maurcio de Carvalho *

    Resumo:O livro de Paulo Margui traz uma leitura da histria da filosofia pra -

    ticada no Brasil Colnia guiada pela referncia ideolgica de Walter Mignolo,alm da unidade temtica encontrada entre os autores. Ele confere relevncia viso de mundo dos negros e indgenas entendendo que ela contribui para aformao da filosofia brasileira e estabelece, finalmente, dilogo com alguns denossos mais conhecidos historiadores da filosofia brasileira.

    Palavras-chave:Tradio filosfica, metodologia, filosofia, histria, contrarreforma.

    Abstract:Paulo Marguis book offers a reading of how philosophy was under-taken in Colonial Brazil. Ideologically, the work is guided by the ideas of WalterMignolo with whom the author has a thematic unity. Margui gives relevanceto the worldview both of Africans and indigenous people, and show how theirvision contributes to the formation of Brazilian philosophy. Finally, he establishesa dialogue with some of the most renowned historians of Brazilian philosophy.

    Keywords: Philisophical tradition, methodology, philosophy, history, counter--reformation.

    * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de So Joo del Rei. Artigo

    recebido no dia 06/12/2013 e aprovado para publicao no dia 06/04/2014.

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    I. Consideraes iniciais

    P

    aulo Margui publicou o primeiro volume de suaHistoria da Filosofiado Brasildedicado ao perodo colonial (1500-1822). O interesse que o

    lanamento suscitou sugere ser bom momento para comentar o livroe considerar o assunto, uma vez que a comunidade acadmica nacionaltem dado pouca ateno tradio filosfica brasileira, menos que, porexemplo, os portugueses do.

    Ele espera que o livro melhore o conhecimento da atividade filosfica noBrasil, comeando seu projeto pela anlise do perodo colonial. E qual aimportncia do assunto? Ele assim a justifica: esse estudo imprescindvelpara que tenhamos uma imagem mais clara a respeito de ns mesmos esaibamos o que precisa ser feito, seja para remediar essa situao, sejapara avanar (p. 14). Isso, de fato, parece essencial preciso conhecero que deixaram nossos filsofos para entender melhor nossa realidade.

    Alm do propsito acadmico, clarear o assunto, o lanamento da obraparece-lhe boa oportunidade para estabelecer o dilogo entre dois gruposde investigadores presentes na comunidade acadmica brasileira. O primei-ro avalia de maneira negativa o pensamento brasileiro, considerando-oinexistente ou irrelevante (p. 10). Esse grupo, acrescenta logo adiante,no acredita que os brasileiros possuam capacidade filosfica suficientepara produzir alguma elaborao original (p. 10) e dedica seus esforos acomentar autores estrangeiros.1 O segundo grupo v de maneira positiva

    o pensamento filosfico brasileiro, considerando que ele existe, relevantee merece ser estudado (p. 10). Margui reconhece ainda a existncia deum terceiro grupo, que denomina independente, mas que integra o que eledenomina segundo grupo. Esses pensadores elaboram reflexes filosfi-cas pessoais voltadas para os problemas especficos da cultura brasileira(p. 12). Esses autores, listados como independentes, tm como singularseguirem carreira diplomtica, enquanto os identificados no segundogrupo so professores universitrios ou esto ligados vida acadmica.Alm dos diplomatas que menciona no se pode esquecer a contribuio

    1 A hiptese de Margutti que tal atitude encontra raiz na disputa entre fonsequistas e sanchistaspresente na histria da filosofia portuguesa. O fato que uma explicao mais simples e prxima paraa diviso entre os que valorizam e os que no valorizam um pensar em lngua portuguesa, com ampla

    prevalncia nos meios acadmicos nacionais do segundo grupo o modo como foi profissionalizadoo ensino da Filosofia na universidade brasileira. O modelo acadmico de inspirao estruturalistavalorizava o comentrio fechado da obra o que direcionava os olhares para os autores consideradosclssicos. Parece que o fenmeno que emerge aqui e acol no mundo ibrico possui relativa tradio.Luis Villoro, por exemplo, explica a pouca importncia dada ao pensamento de Jos Ortega y Gassetnos pases de lngua espanhola, como resultado da permanente atitude espanhola de desdenhar a

    prpria filosofia, se est escrita em castelhano, e a valorizar em excesso a alheia, contanto que seorigine em alguma metrpole cultural (p.43) e indica especificamente quais so elas: as filosofias

    alem e francesa primeiro, e a inglesa depois (idem,p. 43).

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    de Jos Oswaldo de Meira Penna, que se movimentava entre diplomatase professores com igual desenvoltura. Vindo do primeiro grupo e comcarreira acadmica impecvel, Margui teve que vencer preconceitos parase dedicar ao tema e se tornar pesquisador na rea.

    Como estratgia investigativa, Margui dialoga com dois clssicos histo-riadores da filosofia brasileira: Cruz Costa e Antnio Paim. Toma-os comoexemplo das duas atitudes marcantes sobre o tema, o primeiro difundindoo preconceito que acabou ajudando grande parte da comunidade acadmica

    brasileira radicalizar a crena na incapacidade do homem brasileiro filo-sofar, enquanto o segundo o mais notvel representante vivo da atitudecontrria. Outros nomes lembrados so os de: Leonel Franca, Jorge Jaime,Luis Washington Vita, Silvio Romero e Lima Vaz, mas as anlises de Mar-gui se concentram nas posies dos dois primeiros. O dilogo com essesautores no significa que ele procure sntese entre as duas interpretaes

    ou que adote uma delas, de fato ele faz leitura prpria do assunto emborareconhea, como Paim, o valor de estudar a filosofia brasileira. Para cons-truir sua interpretao adota a hermenutica pluritpica de Tlostanova eW. Mignolo que toma (em nossos dias) a alteridade como o ponto focalda Filosofia (p. 37). O que ele espera que a especificidade da filosofia

    brasileira seja reconhecida em toda sua alteridade, sem a contaminao daavaliao negativa baseada em critrios exclusivamente europeus (p. 38).

    II. Elementos orientadores da obra de Margutti

    Margui considera que o estudo da poca colonial revela uma cosmovisobem definida, ao contrrio do que avaliou Silvio Romero e outros que sedebruaram sobre o tema. Ele encontra uma viso de mundo bastanteunitria, estabelecendo os fundamentos para a evoluo posterior em di-rees bem definidas (p. 41). Para desenvolver sua exposio adotou osseguintes elementos de referncia, que listamos e comentamos:

    1. Aproximar as ideias filosficas da colnia e as da metrpole, o que

    exigiu mergulhar na filosofia portuguesa efetivada entre os sculos XVI eXVIII. O estudo da filosofia portuguesa no perodo imprescindvel parase entender o que se passa no Brasil at porque o Brasil, na ocasio, parte de Portugal.

    2. Descreveu as ideias indgenas e africanas, porque esses povos contribu-ram para a formao cultural do Brasil e o que pensavam teve reflexos nasnossas concepes filosficas (p. 39). Esse ponto problemtico, no porqueas ideias de indgenas e negros no possam ter infludo na cosmovisonacional, mas porque no h nenhuma demonstrao efetiva de como elas

    influenciaram na discusso filosfica do perodo. Alm disso, em que pese

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    o fato de convivermos na tradio europeia com diferentes concepes deFilosofia, nenhuma, como lembra Karl Jaspers na Iniciao Filosfica(1987):esgota seu sentido e a nica vlida (p. 14). Parece claro que Filosofia uma atividade da razo, um esforo paciente e incansvel, de construirexplicaes racionais para o mundo e para a vida. Ora, o que Marguimostra que h uma cosmoviso indgena e negra, comprovando-o comestudos antropolgicos, mas no identifica em nenhum desses grupos ainvestigao racional e explicaes lgicas dos problemas humanos o quecaracteriza a meditao filosfica.

    3. Como na colnia no foram criadas universidades e as publicaes fi-losficas eram poucas ele procurou captar a viso de mundo do perodo,para o que incluiu o exame de literatos como Gregrio de Matos Guerrae Claudio Manuel da Costa (4). Esse procedimento comum, mas ondeisso feito o esforo filosfico realizado por quem procede a releitura

    dos literatos, isto , o fato de darem origem a releituras filosficas no ostransforma, sem mais, em filsofos.

    5.Utilizou o nome Histria da Filosofia do Brasil que lhe parece mais adequa-do ao problema. Esse assunto que mereceria ser melhor aprofundado umavez que sobre ele j se publicaram dezenas de livros nas ltimas dcadas.O essencial parece ser o que se menciona em Contribuio contempornea Histria da Filosofia Brasileira, isto , as explicaes filosficas, ainda queno percam o propsito da universalidade (do discurso ou explicaes),nascem em tradies especficas que lhe do singularidade (p. 383). Essas

    tradies dificultam o dilogo entre os filsofos como ficou claro do Col-quio dedicado Filosofia Analtica e a Histria da Filosofia, cujas atas forampublicadas em 1997, contendo divergncias muito agressivas. E isso apesardo conhecimento e at amizade entre os grandes pensadores, as divergn-cias, parece, exprimiam o problema suscitado por diferentes tradies. Noincio de seu livro Filosofias nacionais e a questo da universalidade da filosofia,Leonardo Prota recorda algo semelhante do seguinte modo (2000):

    Alfred Adler, independente do fato de que alardeava o contato estreito queteria com Wahl, Camus ou Merleau-Ponty, no livro autobiogrfico Part ofmy life (1977), expressa francamente a convico de que as preocupaes

    fenomenolgicas, alm de desprovidas de sentido, carecem de importncia(p. XIII).

    Portanto, quando se fala em Histria da Filosofia no Brasil ou do Brasilimporta mostrar, essencialmente, o que singulariza essa tradio, queproblemas privilegia, como eles so discutidos, com quem dialogam ospensadores, em que pese o fato das tradies nacionais fazerem parte dagrande tradio ocidental da Filosofia. Fazer parte da tradio ocidental,isto , dialogar com autores clssicos mesmo de outras tradies, no tiraa originalidade da meditao, como explica Spaventa emLa filosofia italiana

    nelle sue relazioni con la filosofia europea (1908): Pode-se perfeitamente ser

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    original mantendo-se a relao com a histria, desde que no se cometao erro de ser o simples repetidor (p. 311).

    6. Espera o autor que o livro sirva para iniciar novo momento de dilogona comunidade filosfica brasileira cindida pelo que denomina de diviso

    esquizofrnica entre os que reconhecem o valor de uma tradio filosficanacional e os que no acreditam. Esse o maior mrito da obra. Se favo-recer esse dilogo ter favorecido uma nova era nos estudos de Filosofia.

    7. Esclarece que os autores examinados no constituem lista exaustiva epor isso os resultados propostos lhe parecem insatisfatrios. Melhor se-ria dizer incompletos. Esse no um problema exclusivo da obra, tantoporque toda seleo sempre deixa alguns nomes fora, quanto porque ospensadores mais representativos parecem ter sido contemplados.

    Alm dessas referncias, Margui se vale do livro de Richard Morse de-nominadoO espelho de prspero, cultura e ideia nas Amricasem que o autordividiu a civilizao europeia em duas matrizes, uma mais ao norte queaderiu modernidade possuindo uma qualidade fustica e evolutiva(p. 43) e outra representada pela Pennsula Ibrica tipificada pelo retor-no enftico espiritualidade medieval e possuindo uma qualidade maisentrpica do que evolutiva (p. 43). Essa diferena entre as matrizes considerada relevante e necessria para interpretar a histria da filosofiaibrica, a includa a portuguesa. A referncia a Morse verdadeiramentesugestiva e j havia sido reconhecida como importante por vrios estu-

    diosos da filosofia brasileira.Outras referncias consideradas por Margui so a noo de homemcordial de Sergio Buarque de Holanda que destaca do carter brasileiroseu aspecto emocional mais intuitivo que racional (p. 48). Ele tambmmenciona o espanhol Miguel de Unamuno para quem a Ibria conservaa alma medieval apesar de ter vivido experincias modernas como o Re-nascimento, a Reforma catlica, a protestante e a Revoluo. Essas duasltimas referncias so assumidas para complementar s indicaes deRichard Morse. Das duas a particularmente relevante a de Miguel deUnamuno por antecipar, a partir da anlise da tradio filosfica espa-nhola, os mesmos aspectos que reaparecem no trabalho de Morse sobrea matriz cultural ibrica.

    III. A Filosofia Portuguesa do sculo XVI ao XVIII

    Margui inicia destacando certos problemas recorrentes no pensamentolusitano como saudade e messianismo poltico. Essa uma boa forma

    de estudar uma tradio: realar seus problemas nucleares. O primeiro

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    conceito foi usado inicialmente para traduzir a experincia vivida pornavegadores e suas famlias e que significa simultaneamente melancoliapela distncia e esperana de retorno condio anterior. 2 O outro pro-

    blema o messianismo poltico elaborado volta do desejo de retorno deD. Sebastio, o rei morto na frica na ltima cruzada feita em Portugal.Seu retorno, acreditava-se, reconduziria o pas a um novo ciclo virtuosode glrias e conquistas.3

    Quanto evoluo do pensamento lusitano no perodo, o autor o divideem dois momentos: o primeiro denominadoSegunda Escolstica(1500-1750),com um perodo barroco que se estende at 1640 e um perodo de transi-o (1640-1750) e um outro momento nomeado de Iluminista(1750-1822).

    Ele recorda que o nome Segunda Escolsticadado ao primeiro momento foisugerido por Carlo Giacon a Joaquim de Carvalho, o grande historiador

    da cultura e da filosofia portuguesa. Afirma que esse momento, apesarde traduzir o esprito da Reforma Catlica iniciada no Conclio de Trento,est vinculado Filosofia Moderna porque sofreu sua influncia e porquea influenciou (p. 63). Observa que apesar da fecundidade das ideias de-

    batidas na ocasio elas tiveram aproveitamento parcial na Ibria, ficandoa nfase atribuda aos contedos teolgicos. O segundo perodo traduz atransio entre o esprito escolstico, predominante na poca do catoli-cismo barroco, e o esprito da reforma iluminista do pensamento catlicolusitano, predominante no perodo seguinte (p. 132). Considera que osibricos contriburam para abrir os caminhos do moderno cartesianismo,

    mas se recusaram a trilh-lo, permanecendo fiis sua viso catlica demundo (p. 133). O perodo iluminista portugus caracteriza-se por umaatitude ecltica onde se procura combinar as ideias que chegavam doestrangeiro com a tradio nacional. Os eclticos, esclarece, valorizam: ainvestigao da natureza, considerando-a nova via de aproximao como Criador, o saber experimental e a razo. Alm disto, propem a moder-

    2 Saudade mais que uma palavra, , para o lusitano categoria com a qual se pensa o homem notempo. Em 1996, realizou-se em Portugal um Colquio Luso-galaico sobre a saudade, onde o problemafoi tratado de forma muito detalhada. Nele Dalila da Costa afirmou (1996) que saudade fora denatureza bface, vivendo dinamicamente todo o sentido da histria, como o poder de, simultanea-mente abolindo e assumindo o tempo, unir num s presente o passado e o futuro, levando assimo tempo sua verdadeira natureza, sublimada como eternidade (p. 21). No mesmo evento AfonsoBotelho elaborou a seguinte sntese do assunto: A saudade, mais do que uma contingncia cultural,diz respeito, seja qual for a interpretao que dela faamos, a um modo de ser, de viver e de falar,isto , uma substncia potica, da filosofia e da teologia, emergentes em nossa onticidade (p. 153).Em texto indito por muito tempo, escrito em 1943, Ortega y Gasset escreveu (2005): A saudadeno um tema portugus, mas o tema portugus por excelncia. Se outro qualquer pode situar-se nasua periferia, , porventura, a descoberta. Ambos polarizam a realidade histrica que Portugal. Eresulta que so uma contraposio: a descoberta nsia de partir, a saudade a nsia de voltar (p. 21).3 Em razo dessa crena do retorno de Dom Sebastio (1554-1578) morto na frica, este messianismodesigna quem espera o retorno de uma situao poltica, quando o fato parece impossvel. O assunto

    ocupou diversos autores portugueses.

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    nizao das prticas educativas, elaboram nova epistemologia afastada dalgica escolstica e combatem a metafsica aristotlica.

    A diviso proposta por Margui a mesma de Joaquim de Carvalho etem os mesmos limites apontados no livro Caminhos da moral moderna, a

    experincialuso-brasileira. Consiste, inicialmente, em no entender a singula-ridade e reduzir a importncia do que ele denomina perodo de transio,cuja marca foi o acirramento do debate filosfico por uma interpretaosingular do cartesianismo, como dito em Meditao sobre os caminhosda moral na Gnese do tradicionalismo luso-brasileiro. A reflexo filosficaconcentrou-se, no perodo, em questes de metafsica e moral e medidaque o racionalismo cartesiano se sobreps ao jusnaturalismo tomista doprimeiro ciclo do contrareformismo, a meditao (1995): voltou-se quaseexclusivamente para o projeto restrito, o controle de qualquer efeito nointencional da conduta, ou melhor, a se concentrar nas virtudes que leva-

    riam a paz interior aps a morte (p. 83). A reflexo moral no perodo foiconstruda sobre a crena cartesiana de que a alma forte deve vencer aspaixes e ela ser tanto maior quanto melhor realizar tal objetivo. Comocomenta Federico Sciacca, ao referir-se ao cartesianismo na sua Histriada Filosofia(1968): O homem deve libertar-se da escravido das prpriaspaixes (p. 75). Essa ser a tnica dos moralistas do segundo ciclo decontra-reformistas que Margui denomina perodo de transio.

    essa reduo da meditao filosfica ao controle das paixes que marcaa filosofia brasileira at o impacto produzido pela gerao pombalina. Eo que se encontra no Brasil nesse perodo no se distingue do tipo de

    pensamento encontrado em Portugal no que ele denomina perodo detransio. em torno da salvao da alma de negros e ndios que sediscute o problema da escravido.

    A diviso do perodo em dois ciclos e no em trs no esclarece bem oprocesso evolutivo do contra-reformismo ibrico como mostramos emCaminhos da moral moderna e em A persistncia da meditao tica portuguesana tradio cultural brasileira, comunicao feita noI Congresso InternacionalLuso-Galaico-Brasileiro. Ali se disse (2009): O terceiro ciclo, que no apa-rece nas referncias de Joaquim de Carvalho marcado pelo esforo dedemonstrar que a existncia humana tinha um sentido mais amplo quea salvao, ainda que a discusso fosse diversa da realizada em outraspartes da Europa (p. 484). Esse perodo coincide, em parte com a geraopombalina, mas na verdade comea no reinado de D. Joo V.

    Tambm no se pode identificar, sem mais, pombalismo com iluminismo,embora isso seja feito por alguns historiadores. Isso porque pombalismotem elementos de filosofia poltica que o aproximam mais do pensamen-to romntico de Fichte e o perodo descrito por Margui inclui, ainda, achamada viradeira de D. Maria I, de carter claramente tradicionalista.E o tradicionalismo , conforme sntese de Tiago Lara (1988): o rebento

    amadurecido do romantismo. (...). Ele precisar em categorias histricas,

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    aqueles elementos novos a integrar na razo iluminista, que, na especulaofilosfica do romantismo, ainda ficavam por demais presos a categoriasmetafsicas (p. 36). E adiante completa: A essncia dessa linha de pensa-mento pode-se formular assim: preciso uma revelao, para que o homempossa chegar a conhecer as verdades fundamentais de ordem metafsica,moral e social (idem, p. 43). Quem acompanha de perto a evoluo dopensamento filosfico lusitano observa que o movimento tradicionalistano perodo da viradeira com Melo Freire adversrio do pombalismo,apesar de pontos em comuns com ele.

    Uma diviso do perodo que no contemple os trs ciclos e mais que nodistinga na gerao pombalina os movimentos em direo monarquiaconstitucional de Pinheiro Ferreira das tentativas de manuteno do ab-solutismo monrquico dos tradicionalistas no revela os meandros dopensamento lusitano.

    IV. A Filosofia Brasileira no perodo colonial

    Margui comea sua anlise lembrando que a adaptao do homem ib-rico aos trpicos e a prevalncia de seu projeto civilizatrio sobre o dosndios e negros significou, do ponto de vista moral, o predomnio dointeresse pessoal e da cobia entre os brasileiros da poca. Isso contribuiupara o relaxamento e a degradao dos costumes (p. 170). O resultado

    foi que africanos, indgenas e mesmo os portugueses todos perderam suasidentidades originais na formao do cadinho racial e cultural brasileiro(p. 172). Essa circunstncia produziu na colnia uma leitura filosfica domundo ao mesmo tempo ctica e pessimista, porque o drama existen-cial vivido no parece ter uma soluo vista (p. 172). As contradiesexperimentadas na sociedade colonial favorecem a constatao da inuti-lidade e transitoriedade deste mundo para obter um contato mais ntimoe duradouro com a transcendncia (p. 173).

    O autor do livro identifica dois momentos do pensamento colonial, umdenominado pr-colonial em que rene as interpretaes csmicas de in-dgenas e negros e o perodo propriamente colonial onde se volta para oestudo dos autores ligados a Portugal. Esse ltimo se divide em catolicismo

    barroco e iluminismo catlico, que designa o momento em que a famliareal esteve no Brasil (1808-1822). Apresentemos cada um.

    IV. 1. O perodo pr-colonial

    Na leitura interpretativa que faz da cosmoviso indgena, Margui se vale

    de estudos de antropologia. Ele explica o ritual antropofgico dos indgenas

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    como articulador de uma viso de tempo e de alteridade, j que ele tinhao propsito de incorporar o outro e assumir sua alteridade (p. 185). Esseritual pressupunha uma viso de vida e mundo diferente da europeia. Porexemplo, para os indgenas, os animais so seres humanos que perderamalguma coisa (...). Tudo humano. Nessa perspectiva, todas as coisas etodos os animais possuem alma, so pessoas (p. 185). Para os europeus o contrrio, a animalidade o fundo comum que aproxima homens eanimais. Outra diferena apontada que enquanto os europeus discutiamse os indgenas possuam alma, eles imergiam na gua os cadveres doseuropeus mortos em batalha para verificar se apodreciam ou no: queriamsaber se eram fantasmas (p. 187). O processo de colonizao significoua sobreposio da viso ocidental sobre a indgena que se viu negadacomo se no tivesse valor algum (p. 190).

    A cosmoviso dos negros tambm foi examinada e vem igualmente

    impregnada pela leitura estruturalista da antropologia que aproxima ele-mentos de culturas distintas no lhes atribuindo diferena relevante. oque o autor faz ao se apropriar de E. B. Tylor e tratar o animismo comoo fundamento da filosofia da religio, desde a dos selvagens at a doshomens civilizados (p. 193). Essa equivalncia afirmada mesmo diantedo reconhecimento, por exemplo, de elementos que claramente diferenciamas culturas menos elaboradas das outras como a ausncia de elementomoral na religio das culturas menos elaboradas. Afirma: desde meadosdo sculo XX os antroplogos passaram a encarar todas as culturas e re-ligies contemporneas como comparveis, no sentido de refletirem uma

    inteligncia humana plenamente desenvolvida (p. 216).

    Margui refere-se, em seguida, s categorias fundamentais da culturanegra como a magia, o fetiche, onde o culto devido a Deus deslocadopara uma multido de agentes espirituais (p. 197), o totemismodefinidocomo crena em que os seres humanos so vistos como possuindo umarelao mstica de parentesco com alguma entidade espiritualizada, quepode ser um animal ou planta (p. 198), ou ainda possesso, forma pelaqual se diz que o orix se manifesta em uma pessoa (p. 210).

    A cultura indgena foi equiparada ocidental, tendo por apoio os estudosde Viveiros de Castro que deixam clara a complexidade e sofisticao daviso de mundo dos ndios brasileiros (p. 232). Com base nisto refere-seao fenmeno da colonizao como invaso, ainda que disfarada graass cerimnias da primeira missa e da implantao do marco de pedra(p. 235).

    Embora no conteste a mundiviso de mundo de ndios e negros apre-sentada por Margui com base nos estudos de antropologia, parece queela no constitui propriamente uma atividade filosfica, se a entendemoscomo reflexo de carter racional sobre a realidade. Como lembra Eduar-

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    do Soveral em trabalho sobre a diversidade cultural preciso distinguiraquilo que o Esprito dispe para se expressar no plano intersubjetivo dacultura da atividade filosfica que (1992): exegese, interpretao, buscado sentido do verdadeiro e desdobramento do que foi originariamentedito, das palavras que se apresentam como revelao do Esprito (p. 6).

    IV. 2. O perodo colonial

    O autor divide o perodo em duas etapas, a primeira denominada de cato-licismo barroco e a outra de perodo iluminista. O primeiro se caracterizapela aproximao com as ideias predominantes no perodo (em Portugal),e que essa poca teve maiores ligaes com a postura sanchista do quecom o fonsequismo portugus que teve pouco importncia para ns (p.

    237). O fato decorre, sobretudo, da ausncia de instituies universitriasno Brasil, diversamente do que ocorreu na Amrica espanhola.

    O autor defende que os principais problemas que preocupam nossospensadores nessa poca, diferentemente do que pensa Paim, tem a vercom a converso dos ndios e dos escravos, a legitimidade da escravidoe a atitude diante da vida na sociedade colonial (p. 312). Aqui h umaincompreenso das posies de Paim. Ao se referir ao homem, entendidocomo liberdade e como conscincia na parte inicial de sua clssicaHistriadas ideais filosficas no Brasil, Paim se refere Filosofia estruturada a partir

    dos movimentos que levam independncia, quando propriamente fazsentido se falar de Filosofia Brasileira. claro que o problema do homemcomo liberdade social e poltica inicia-se, em Portugal, com Silvestre Pi-nheiro Ferreira. Diz Paim (1997):

    Dessa forma, embora corresponda a um momento destacado do processode incorporao do pensamento moderno pela conscincia luso-brasileira,as Prelees Filosficasde Silvestre Pinheiro Ferreira conseguem pouco maisque exaltar a pessoa humana, deixando em aberto a questo de fundarmetafisicamente sua liberdade (p. 59).

    Com Pinheiro Ferreira comea propriamente a discusso que Marguileva, ao nosso ver inadequadamente, aos momentos iniciais do perodocolonial. Entre os sistemas encontrados no perodo colonial h peso igualno aristotelismo e platonismo, observa Margui. No lhe parece claro edireto o vnculo temtico desse aristotelismo e platonismo com o debatefilosfico realizado em Portugal, mas o que ocorre.

    Alm das consideraes sobre a escravido h uma atitude diante da vidarecriada pelo carter estico-ctico e salvacionista. Essa atitude apontapara a realizao pessoal pela ao, em detrimento de explicaes tericas.

    Exemplo a obra de Gregrio de Matos que explica de maneira contun-

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    dente o drama existencial e moral do homem ibrico tropical, dilacerado ojulgamento rigoroso da comunidade e de si prprio e a convivncia com ocomportamento permissivo da sociedade colonial (p. 319). O autor aventaa hiptese de uma influencia do pensamento de Sneca sobre os filsofos

    brasileiros, pois Sneca ficou conhecido como quem transportava para aexperincia prtica as teorias. E alm disso, Sneca ensinava que o serhumano deve contar apenas com o que tem mo, desprezando os bensmateriais e conhecimentos que no contribuem para essa paz (p. 322).A proximidade com o filsofo romano parece-lhe no difcil de estabe-lecer com as teses de Bartolomeu de Gusmo, Pe. Vieira, Nuno MarquesPereira, Matias Aires e Souza Nunes. Mesmo que isso seja possvel, isto, encontrar influncia de Sneca, a reflexo desses autores correspondeao acirramento da problemtica contrarreformista ocorrida no que eledenomina perodo de transio.

    As obras dos sculos XVII e XVIII revelam quase exclusivamente o car-ter devocional e de doutrina religiosa, avalia Margui. Elas possuem, daperspectiva ideolgica, uma lgica que ainda hoje vigora entre os europeuse que consiste em falar de colonialidade como o processo de civilizargrupos humanos que viviam fora da lgica europeia. O autor adota de W.Mignolo a tese fundamental que defende: a modernidade constitui umanarrativa completa cujo ponto de origem foi a Europa, uma narrativa queconstri a civilizao europeia ocidental, celebrando as suas realizaes esimultaneamente escondendo o seu lado mais obscuro, a colonialidade (p.325). Essa narrativa est presente na viso de histria de Hegel para quem

    a Europa vive o presente e o restante da humanidade vive no passadodo Esprito. Hegel toma a Alemanha como o centro desse processo. Essaforma de pensar acabou construindo uma avaliao negativa de nossaautoimagem no contexto da modernidade e da colonizao europeia (p.327). A nfase da anlise de fundo ideolgico mais amplo, nela a jus-tificao da matriz colonial de poder desempenhou papel predominante.

    Quanto ao perodo iluminista, o autor destacando o papel de SilvestrePinheiro Ferreira diz tratar-se de uma transio da matriz ecltica decarter ctico-estico-salvacionista do catolicismo barroco para as primeiras

    manifestaes de filosofias mais sistemticas no Imprio (p. 361). De fatoPinheiro Ferreira nome fundamental, parece ser propriamente o iniciadordo que se pode entender em sentido estrito por filosofia brasileira.

    Na crtica com as quais conclui o livro considera necessrio vencer a nossaautoimagem negativa criada especialmente partir do legado de CruzCosta. Sobre Paim diz que no h como inserir a viso ctico-estico--salvacionista nas duas grandes perspectivas em que ele divide a evoluoda tradio filosfica. No lhe parece que o debate na colnia atenda aosproblemas do homem como conscincia e liberdade propostos por Paim.Quanto ltima crtica estamos de acordo, quando primeira no. A viso

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    que denomina de ctico-estica-salvacionista uma leitura do pensamentoneotomista claramente inserido na perspectiva transcendente. Quanto aosproblemas que marcam a filosofia brasileira: o homem como liberdade econscincia trata-se, para Paim, de questo que se aplica ao que se passa

    nos momentos que preparam nossa independncia poltica e depois dela.Finalmente, observa Margui que possvel identificar uma unidade te-mtica no perodo colonial, pois os pensadores examinados tanto revelamuma razovel convergncia quanto uma seriao de ideias em todos oscasos considerados (p. 364).

    V. Consideraes finais

    O livro de Margui, apesar das dificuldades enumeradas, representa gran-de esforo no sentido de construir uma Histria da Filosofia no perodocolonial. Seu mrito maior consiste no reconhecimento do valor dessescontedos para se entender a mentalidade atual e os rumos da discussofilosfica realizada no Brasil contemporneo.

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    Endereo do Autor:

    Rua Resende Costa, 154Largo da Cruz Centro Histrico36300-118So Joo del-Rei MG

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