A HISTÓRIA DAS “DE BAIXO”: O SILÊNCIO DO TRABALHO DA ... · para expansão da produção na...

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A HISTÓRIA DAS “DE BAIXO”: O SILÊNCIO DO TRABALHO DA MULHER NAS USINAS DE PAU-ROSA MIRIAN BITENCOURT 1 IRAILDES CALDAS TORRES 2 RESUMO: Este paper tem como objetivo discutir o trabalho da mulher no extrativismo do óleo essencial de pau-rosa, tendo como locus as usinas da região do município de Nhamundá Amazonas. São histórias silenciadas pela literatura dos ciclos de atividades extrativas da Amazônia, aqui registradas sob a perspectiva da História Vista de Baixo, do historiador inglês E. P. Thompson (1987). PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Pau-rosa; História; Gênero. Amazônia. 1. Introdução Este paper versa sobre a participação da mulher nas atividades extrativistas da Amazônia, tendo como objeto de pesquisa as trabalhadoras que atuaram nas usinas de beneficiamento do pau-rosa (Aniba rosaeodora Ducke), instaladas na região do Rio Paratucu, do município de Nhamundá Amazonas. São histórias silenciadas de mulheres que saiam de suas casas endividadas pelos “donos do poder local” para quitar as dívidas nas corrutelas 3 das usinas de destilação do óleo essencial da Aniba, usado como componente de um dos perfumes mais cobiçado pela elite mundial, o Chanel nº 5. Não é do conhecimento de todos que, por um longo período, era da nossa Amazônia que saía essa essência para outros países, usada pelas indústrias de cosméticos como fixador de perfumes, assim como essa classe nunca ouviu falar em “Chanel Nº 5”, muito menos que esse produto era uma mercadoria cara e que nunca possuíram e nem teriam como, pois o alto valor de custo não permitiria. Neste contexto, a mercadoria (perfume) é um objeto concreto, resultado do trabalho de homens e mulheres para a satisfação de uma necessidade humana. Na visão de Karl Marx (2012), mercadoria “é antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” (MARX, 2012:165). Esta 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia PPGSCA/UFAM. Graduada em Comunicação pela Universidade Federal do Amazonas UFAM. E-mail: [email protected] 2 Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia - PPGSCA/UFAM. 3 Denominação dada às casas fabricadas pelos próprios trabalhadores que ficavam lado a lado ao redor da usina.

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A HISTÓRIA DAS “DE BAIXO”: O SILÊNCIO DO TRABALHO DA MULHER NAS

USINAS DE PAU-ROSA

MIRIAN BITENCOURT1

IRAILDES CALDAS TORRES2

RESUMO: Este paper tem como objetivo discutir o trabalho da mulher no extrativismo do

óleo essencial de pau-rosa, tendo como locus as usinas da região do município de Nhamundá –

Amazonas. São histórias silenciadas pela literatura dos ciclos de atividades extrativas da

Amazônia, aqui registradas sob a perspectiva da História Vista de Baixo, do historiador inglês

E. P. Thompson (1987).

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Pau-rosa; História; Gênero. Amazônia.

1. Introdução

Este paper versa sobre a participação da mulher nas atividades extrativistas da

Amazônia, tendo como objeto de pesquisa as trabalhadoras que atuaram nas usinas de

beneficiamento do pau-rosa (Aniba rosaeodora Ducke), instaladas na região do Rio Paratucu,

do município de Nhamundá – Amazonas. São histórias silenciadas de mulheres que saiam de

suas casas endividadas pelos “donos do poder local” para quitar as dívidas nas corrutelas3 das

usinas de destilação do óleo essencial da Aniba, usado como componente de um dos perfumes

mais cobiçado pela elite mundial, o Chanel nº 5.

Não é do conhecimento de todos que, por um longo período, era da nossa Amazônia que

saía essa essência para outros países, usada pelas indústrias de cosméticos como fixador de

perfumes, assim como essa classe nunca ouviu falar em “Chanel Nº 5”, muito menos que esse

produto era uma mercadoria cara e que nunca possuíram e nem teriam como, pois o alto valor

de custo não permitiria. Neste contexto, a mercadoria (perfume) é um objeto concreto, resultado

do trabalho de homens e mulheres para a satisfação de uma necessidade humana. Na visão de

Karl Marx (2012), mercadoria “é antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas

propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” (MARX, 2012:165). Esta

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA/UFAM. Graduada

em Comunicação pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. E-mail: [email protected] 2 Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia - PPGSCA/UFAM. 3 Denominação dada às casas fabricadas pelos próprios trabalhadores que ficavam lado a lado ao redor da usina.

necessidade é influenciada pelo valor de uso atribuído a ela advindo da sua utilidade. Sobre

esse aspecto, Marx (2012), em sua obra O capital assinala que:

A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Essa utilidade, porém, não paira

no ar. Determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, ela não existe sem

o mesmo. O corpo da mercadoria mesmo, como ferro, trigo, diamante etc., é portanto,

um valor de uso ou bem. Esse seu caráter não depende de se a apropriação de suas

propriedades úteis custa ao homem muito ou pouco trabalho. O valor de uso realiza-

se somente no uso ou no consumo. Os valores de uso constituem o conteúdo material

da riqueza, qualquer que seja a forma social desta (MARX, 2012:165)

A intenção aqui não é trazer questões de cunho econômico, mas tentar resgatar o quanto

for possível a experiência do trabalho destas mulheres nesta atividade extrativista. E em certa

medida compreender o porquê do não reconhecimento do trabalho das mulheres como agentes

que compõem a história do extrativismo na Amazônia. Esse ocultamento da participação das

mulheres no sistema de produção da região têm raízes históricas que atravessaram o tempo e

ainda permeia no imaginário contemporâneo. Por esta razão, nosso interesse constituiu em dar

voz e vez às “de baixo”, registrar a histórias das sobreviventes desse período que carregam em

suas lembranças marcas de um passado tenebroso do ponto de vista social. São trabalhadoras

que exerciam funções dentro das usinas, mas que seu trabalho não era reconhecido por seus

pares, ao contrário, eram marginalizadas dentro do ambiente de trabalho e pela própria

sociedade que as condenavam como “mulheres solteiras” por não terem maridos. Mulheres que

tinham as relações sexuais e as mãos como força de trabalho para sobreviver, condicionadas

aos sistema de aviamento desta atividade.

A proposta de investigação da problemática deste trabalho partiu das experiências

vividas, sob a perspectiva da História Vista de Baixo, como ficou conhecida, do historiador

britânico Edward P. Thompson. O autor subverte a ordem hegemônica ao valorizar os

excluídos, marginalizados pela historiografia oficial, os “de baixo”, como denominou na

publicação do artigo The History from Below, em 1966. Além dessa perspectiva do fazer

história, de ter como preocupação reconstruir as experiências de pessoas comuns, Thompson

introduz um novo olhar às concepções marxistas que norteiam este trabalho, principalmente

sobre a classe trabalhadora e materialismo histórico.

2. O pau-rosa na Amazônia: de árvore à Chanel Nº 5

A Amazônia, desde o período da conquista, tornou-se alvo de exploração dos recursos

naturais, sem muita intervenção ou controle do Estado, como é evidenciado na obra de Djalma

Batista (2007), O complexo da Amazônia. A região carregou no colo várias atividades extrativas

que deixaram marcas negativas tanto do ponto de vista econômico quanto social. O extrativismo

na Amazônia, na visão do historiador Roberto Santos (1980), está enraizada na mentalidade do

povo simples, que sempre buscou na natureza formas de sobrevivência e que, historicamente,

tem o povoamento do período colonial relacionado ao extrativismo, de início, com a coleta das

drogas do sertão e com o surto da borracha.

A associação entre o extrativismo e a borracha é quase automática na historiografia

amazônica devido à importância da economia do látex para esta região, porém, outros produtos

foram e são extraídos conservando inclusive características econômicas e relações sociais de

produção semelhantes àquelas do período áureo da borracha. Dentre estes outros produtos

temos a árvore de pau-rosa, elemento de nossas pesquisa através do estudo da participação da

mulher no beneficiamento do óleo essencial, e cujo processo de extração revela que a região

amazônica ainda mantém características remanescentes da fase da borracha, nos permitindo

concluir a existência de estruturas econômico-sociais que perpassam o tempo, enraizando-se na

mentalidade do homem amazônico. Neste tópico é apresentado o histórico do pau-rosa

enquanto matéria prima da Amazônia que se transformou em mercadorias como o óleo

essencial, sabonete Phebo e o perfume Chanel Nº 5.

2.1 História do pau-rosa

O Brasil foi um importante país produtor de óleo essencial de pau-rosa, sendo que a

economia gerada pela extração da essência foi por um determinado período fonte de renda na

Amazônia. A exploração começou em 1920 e o produto chegou a ser o terceiro colocado na

pauta de exportações amazônicas, atrás somente da borracha e da castanha.

Esse capital se concentrava nas mãos de grandes empresários da época e boa parte do

dinheiro gerado na comercialização do óleo ficava no exterior, principalmente na Europa.

Desde o início da exploração até 1960, o óleo essencial extraído da Aniba foi componente para

a formulação de sabonetes e perfumes. Com a escassez da espécie, após período de retirada

desordenada, limitou-se à perfumaria clássica de alto custo de mercado, como o Channel Nº5,

criado em 1920, pela estilista Grabrielle Channel, que se consolidou no mercado após a atriz

Marilyn Monroe declarar que dormia com apenas duas gotas do perfume no corpo. Assim,

tornou-se o mais vendido no mundo.

A exploração do pau-rosa na Amazônia teve início em 1875 na porção amazônica da

Guiana Francesa. A primeira exportação aconteceu em 1883, da Guiana para a França. No

Brasil, a extração do óleo essencial de pau-rosa iniciou em 1926. A Guiana Francesa dominou

o mercado mundial com três destilarias artesanais de grande porte (considerando-se a época)

até a década de 1940. A despeito da amplitude da produção no país vizinho, abriu-se espaço

para expansão da produção na Amazônia brasileira na década de 1930 e cerca de 20 anos mais

tarde a exploração do pau-rosa já era o terceiro item mais cobiçado na pauta das

comercializações dentro do bioma, atrás de borracha e castanha.

A exploração do pau-rosa na Amazônia brasileira concentrou-se na fronteira dos

Estados de Amazonas e Pará. A valorização da essência fez com que o comércio se estendesse

um tanto mais para o território amazonense, especificamente em Itacoatiara e Maués,

municípios localizados na porção central do Amazonas (HOMMA, 2003). A Sudam registrou

que em 1969 foram contabilizadas 53 usinas de destilação em funcionamento, sendo três no

Pará e 50 no Amazonas (TEREZO apud HOMMA, 2003).

Dados do Ibama, Embrapa e Sudam não dão conta da existência de usinas instaladas nos

município de Parintins e Nhamundá. Mas Saunier (2003) desconstrói a afirmativa ao entrevistar

os principais empresários do mercado de comercialização da essência do pau-rosa dessas áreas.

A indústria de óleo essencial da madeira pau-rosa iniciou em 1930. As primeiras

usinas de destilação de óleos vegetais foram instaladas na localidade do Varre-vento,

rio Uaicurapá. No Varre-Vento foi uma companhia industrial do Rio de Janeiro,

Barros &Cia., e no Ramos o Dr Hauradour, francês, que viveu muitos anos em

Parintins. Depois, uma grande empresa comercial e industrial instalou-se aqui com

a usina de pau-rosa no Andirá e casas comerciais na cidade, pertencente ao

empresário português Homero da Fonseca. Com a guerra, os negócios diminuíram e

a essência de pau-rosa quase desapareceu. Na década de 60, algumas usinas

voltaram a funcionar no Amazonas e em Parintins, no Varre-Vento. A localidade do

Varre-Vento teve como proprietários: Abel Barros, Vivi Abreu, J.G de Araújo,

Salomão Mendes, que desenvolveiram a industrialização da essência de pau-rosa. O

linalol, fixador de perfumes, encontrado em várias madeiras, principalmente no pau-

rosa, foi descoberto quimicamente, e as árvores de pau-rosa madeira ficaram cada

vez mais difíceis, diminuindo, consideravelmente, a produção (SAUNIER,

2003:175-176).

Sobre usinas da região do município de Nhamundá, não se pode identificar documentos

oficiais que comprovassem usinas na localidade, mas há narrativas gravadas com trabalhadoras

e trabalhadores da época, ainda vivos, que atestam a existência de ao menos cinco usinas

localizadas às margens dos rios Paratucu e Nhamundá (ou Nhamundá-Grande). Essas usinas

eram de propriedade de Wladimir Rossy (ex-prefeito do município de Faro/Pará e influente

empresário), Mário Rossy e Chico Iannuzzi4.

3. Maria da Glória: memória viva do pau-rosa

Ao deslocar-se para o município de Faro –Pará, onde ocorreu a pesquisa de campo,

constatou-se que a maioria das mulheres que vivenciaram esse período já morreram, mas estas

mulheres estão vivas na memória dos moradores deste município, principalmente dos

pauroseiros. Ao final da pesquisa, tomou-se conhecimento de uma sobrevivente desta atividade

no município vizinho, Nhamundá –Amazonas, Maria da Glória Ribeiro Martins, 74 anos,

conhecida por Glória. Atualmente, Glória trabalha como costureira, são de suas mãos que saem

lindos tapetes. Apesar de carregar nas lembranças histórias tristes, vive com um sorriso no rosto.

Pare este trabalho, queremos registar essa memória viva de uma mulher que foi tomada pela

elite do poder local, pois Glória era jovem quando foi levada a trabalhar em usinas. Nessa

trajetória, desemprenhou diferentes funções, dentre elas a de exploradora de pau-rosa,

cozinheira, lavadeira e mulher de vida pública. Esta última deixa subentendido, mas seu nome

fora citado por todos os entrevistados homens com uma das mulheres formavam o grupo das

“mulheres solteiras5”. Sua história começa assim:

Foi que o seu Wladimir me convidou, eu morava em Faro e nesse tempo que não tinha

trabalho pra nós mulher solteira, nós era muita mulher que ia pra lá (usina), era Sabá

Pão, Ercira, a Domingas (in memoriam) eu nem me lembro mais o nome das outras,

a mamãe também foi pra trabalhar lá, a Izaura Ribeiro Martins, ela foi também.

Quando foi um dia ele topou comigo: “oi Glória” e eu disse “oi”, bora pra usina?

respondi “o que que eu vou já fazer pra usina? vou precisar de uma mulher pra

ajudarem os homens e fazerem comida pro pessoal, aí eu disse “não sei”. – “olha, a

gente abona!”, que naquele tempo a gente se abonava de quanto a gente quisesse,

era pouco ganho nessa época pra nós, não tinha ganho porção como agora tem.

Quando foi num dia eu precisei e fui com eles, aí me arrumei tudo. “Olha tu não vai

faltar”, ele falou mesmo assim, aí eu disse “tá bom”. Aí eu fui me embora, fui lá no

barco falei com eles tudinho, com seu Vladimir e aí ele disse: “ah minha filha eu

estou querendo mesmo uma mulher pra lá por que é só homem, tem que fazer comida,

lavar roupa e tem seu Hugo (gerente) lá pra lavar roupa. “Tá bom”, eu como era

animada desde nova pra trabalhar, não negava”. Aí eu tava sem dinheiro, aí eu disse

“olha tô sem dinheiro porque eu trabalhava pra todo lado né mas acabava o dinheiro.

Aí eu disse o senhor abona? “abono”, ele disse, “quanto tu vai querer?” me dê logo

200 cruzeiro aí. Com esse dinheiro eu comprei coisa pra lá né porque a gente ia

demorar né, comprei sandália, roupa, comprei tudo o que era preciso. Ele disse:

4 Informações obtidas em conversas informais com os ex-funcionários de usinas desta localidade. 5 Referência às mulheres que se prostituíam nas usinas.

“olha nós vamos viajar domingo”, aí eu disse “tá bom”. Me arrumei tudo e quando

foi domingo cheguei lá, era animada mesmo tava nova ainda, não tava nem aí pra

desgraça, foi também dessa vez a Sabá, a Ercira, e mais uma lá, nós era muita mulher

dessa turma, só que eu já esqueço do nome delas, aí quando foi sábado fui numa festa

que nós fizemos em Faro, uma festona, era foguete pra todo lado, mas tiramos licença,

naquele tempo era o Pico de Jaca que era delegado, aí tiramos a licença até seis

horas da manhã por que nós ia subir pro Alto (Rio Paratucu). Quando nós chegamos

lá fomos trabalhar, eu fui pra trabalhar, as outras mulheres foram solteira mesmo

(prostitutas), cada qual tinha sua casa, quem fazia as barracas eram os homens, seu

Vladimir que mandava fazer quando a gente chegava lá já estavam fazendo a casa,

os homens faziam cama pra nós, sabe como a vida de mulher solteira, eles afincava

pau, tiravam aquelas tábuas e forravam com pano. O pagamento era lá mesmo, elas

pegavam vale lá mesmo, quando a gente queria baixar de lá a gente ia levar o vale

lá na cantina e seu Hugo descontava a dívida e dava o saldo, eu voltei quatro vezes

lá, foi o tempo que ele saiu de lá e eu estava pra Maués, na outra usina, depois de

nove anos com seu Wladimir eu voltei lá em Faro (sic) (Entrevista, 2015)

Maria da Glória viveu sob estas condições de trabalho por 20 anos, sendo 11 anos com

o empresário Mario Rossy, irmão do ex prefeito Wladimir Rossy, com quem trabalhou por 9

anos. Ambos irmãos tinham embarcações de grande porte e exploravam o pau-rosa em várias

regiões do Amazonas. Depois de Nhamundá, seguiram para Parintins, Maués e Rio Tapajós. E

Glória trabalhava dentro das embarcações. Nesse período engravidou dez vezes, sete filhos

estão vivos, dois abortos e o filho mais velho faleceu há dois anos. Devido à rotina do trabalho,

não chegou a criar nenhum dos filhos, quando alcançavam certa idade eram doados pelos

patrões às outras famílias. Ao ser questionada sobre os motivos que a levaram a deixar seus

filhos, baixou a cabeça e as lágrimas caíram:

Meus filhos eram bonitinhos, loirinhos de olhos claros, quando certa idade eles se

agradavam deles e levavam, dois a mamãe criou, outros estão espalhados. Naquele

tempo a gente tinha que dar porque o juiz tomava porque a gente bebia. Tenho duas

filhas em Belém que seu Wladimir levou, não sei onde elas vive lá, nunca mais vi. Eu

sentia, mas não tinha condições de criar, não tinha paradeiro certo, pra onde eles me

levavam eu ia (sic) (Entrevista, 2015).

Esses depoimentos deixam claro o sistema que regia a vida das mulheres paraenses, essa

história não é exclusividade, em outras entrevistas os trabalhadores citaram histórias parecidas

de outras mulheres. Ao viverem em um contexto em que a discriminação e a opressão têm se

imposto por décadas no âmbito das condições e relações de trabalho, como assinala Saffiotti

(1978), estas mulheres se sentiam desestimuladas quanto a possibilidade de exercerem outras

funções dentro das usinas, as quais não viam como perspectivas de futuro. Pelas narrativas

coletadas, essas mulheres participaram do processo de destilação do pau-rosa como

exploradoras, atividade que exigia o reconhecimento das árvores na flores, auxiliares dos

homens nas operações dentro do quadro da usina, serviços domésticos e como prostitutas no

horários em que deveriam descansar o corpo, à noite. Mills (1981) lembra que o poder é dos

domínios econômico, político e militar, e no caso particular da Amazônia, substitui-se o militar

pelo social. Para este autor, a estrutura da sociedade moderna (americana) “limita-os a projetos

que não são seus, e de todos os lados aquelas mudanças pressionam de tal modo os homens e

mulheres da sociedade de massas que estes se sentem sem objetivo numa época em que estão

sem poder” (MILLS, 1981:11)

4. As configurações do trabalho nas usinas

O beneficiamento do pau-rosa sempre dependeu de mão de obra humana, desde a

retirada da madeira na floresta até a destilação nas caldeiras, onde se extraía o óleo essencial da

matéria prima. Artesanalmente, o produto era transportado por batelões – pequenas

embarcações tipicamente amazônicas – em tambores com capacidade de 180 kg à capital do

Amazonas, Manaus, e à capital do Pará, Belém. Destes locais, o pau-rosa era exportado para

França, Estados Unidos e Japão, tendo em vista o abastecimento de indústrias de perfumes

(HOMMA, 2003). Abaixo segue a ilustração da estrutura de uma usina baseada em informações

verbais e desenhos feitos pelos próprios entrevistados:

Figura 01: Processo produtivo do óleo essencial de pau-rosa (Mirian Bitencourt)

Fonte: Pesquisa de campo, 2015.

A imagem acima mostra como se configurava o formato de uma usina beneficiadora do

óleo essencial de pau-rosa, é pertinente ressaltar que existiram outras estruturas, mas com os

mesmos elementos. Nesta ilustração é visível a divisão de gênero e classe, as mulheres tinham

suas casas separadas das dos homens e do lado oposto dos barracos das “famílias”, como afirma

os trabalhadores:

Essas mulheres iam daqui (Faro – Pará) abonadas, elas pegavam o dinheiro aqui e

levavam pra lá elas, e lá tinha uns barraquinhos (casas), tinha uma no quadro lá onde

eu trabalhava (usina), era limpo, era barraquinhos igual as barracas da festa de

Junho (São João), tinha as casas dos homens de famílias e tinha a casa das mulher

solteira, aí eles (homens) iam lá na cantina pegar o bilhetinho (vale autorização) e ir

embora pra lá pra casa delas (sic) (Entrevista, 2015)

Olha nessa época era 2,50 cruzeiros o programa com elas, aí tirava um bilhetinho na

cantina e levava no bolso, chegava lá chamava a mulher e ela vinha com a gente

dizia: “olha está aqui teu pagamento aí elas traziam esse vale quando chegava aqui

em Faro elas iam justar a conta com o Wladimir (sic) (Entrevista, 2015)

Na visão dos trabalhadores, não era de bom grado misturar mulheres casadas com

solteiras, as viam como inferiores e más influências às esposas. A inserção da família dos

pauroseiros foi introduzida no final da extração, início de 19906. Nos anos iniciais de

exploração, os trabalhadores chegavam desacompanhados. Situação similar ao período da

borracha, como expõe Reis (1977:237) nos seguintes termos:

A paisagem social dos seringais, em certos aspectos, lembra os mesmos aspectos do

começo da vida brasileira no século XVI, quando se lançavam os mandamentos da

sociedade que deveria realizar a conquista da terra nova, vencendo a natureza e nela

criando os seres sociais que fossem também as resultantes e suas peculiaridades. É

que, naqueles idos distantes, os colonos, os soldados, os funcionários que vieram para

as jornadas pioneiras, estavam desacompanhados da esposa, da família. O lar, em

consequência, foi sendo organizado com a mulher indígena, fora dos textos

estabelecidos pela lei. A mulher portuguesa só mais tarde, quando a ventura do

domínio político estava sendo assegurado, assegurado, começaria a estar presente.

No início desta atividade só existiam casas de homens e mulheres, em lados opostos.

Nas palavras de Maria de Glória, o cenário se constituía da seguinte forma:

Naquela época nós íamos abonados, todos iam abonados, naquele tempo não existia

motor como hoje, eles vinham no motor do dono da usina, era só eles que eram ricão

né, os pobres só iam com ele, ele abonava os pobres por aqui tudo, como até o pai

dessa minha filha que era meu marido ele foi abonado pra lá, levou um ano pra pagar

a dívida. Na usina era muito animado, era aqueles homens carregando aqueles rolos

de pau-rosa no jamanxim, cortavam tudo em rolo, a gente trabalhava e os homens na

serra, serrando o pau-rosa pra tirar a essência (sic) (Entrevista, 2015)

4.1 Os donos do poder

Como exposto no início deste trabalho, estas usinas foram implantadas na região do Rio

Paratucu, do município de Nhamundá - AM, mas a família Rossy, proprietária das usinas residia

no município de Faro – Pará, que faz limites com o Amazonas. Em Faro, a família Rossy

6 Informação baseada nos dados do Ibama sobre o declínio da comercialização do pau-rosa que ocorreu no início

dos anos 90, esses dados foram confrontados com as entrevistas realizadas com os trabalhadores desse período.

“comandava” o município, dentre as propriedades estavam um supermercado de nome fantasia

“Casa Grande”, drogaria, olaria, serralherias, bordel e fazendas de gado. Além de terem fortes

influências na política local, pois o filho do patriarca da família, Wladimir Rossy, dono de usina,

exerceu o cargo de prefeito por dois mandatos. Nesse sentido, podemos introduzir aqui a leitura

de Mills (1981), ao descrever a Elite do Poder, na América:

Em toda cidade média ou pequena da América um grupo superior de famílias paira

acima da classe média e sobre a massa da população de funcionários de escritório e

operários assalariados. Os membros desse grupo possuem a maior parte do que existe

localmente para ser possuído. Seus nomes e retratos são impressos com frequência

no jornal local, e, na realidade, o jornal é deles, como deles é a estação de rádio.

Também são donos das três fábricas locais mais importantes, e da maioria das casas

comerciais ao longo da rua principal; dirigem, ainda, os bancos. Associando-se uns

aos outros intimamente, têm consciência do fato de pertencerem à classe liderante

das famílias das famílias liderantes (MILLS, 1981:41)

Convém notar, também, que essas mulheres se auto endividavam antes de serem

levadas às usinas, por não terem maridos, a sociedade as puniam, e ficavam, indiretamente, sob

o controle da família Rossy, dona do poder local. Os Rossys definiam onde cada mulher

“solteira” iria exercer alguma atividade. No tocante ao poder elitista deste cenário,

acrescentemos a definição de Mills (1981), o qual assinala que:

A elite do poder é composta de homens cuja posição lhes permite transcender o

ambiente comum dos homens comuns, e tomar decisões de grandes consequências.

Se tomam ou não tais decisões é menos importante do que o fato de ocuparem postos

tão fundamentais: se deixam agir, de decidir, isso em si constitui frequentemente um

ato de maiores consequências do que as decisões que tomam. Pois comandam as

principais hierarquias e organizações da sociedade moderna. Comandam as grandes

companhias. Governam a máquina do Estado e reivindicam suas prerrogativas.

Dirigem a organização militar. Ocupam os postos de comando estratégico da

estrutura social, no qual se centralizam atualmente os meios afetivos do poder e a

riqueza e celebridade que usufruem (MILLS, 1981:12)

Umas ficavam na cidade como domésticas e outras seguiam para as usinas e lá o quadro

se dividiam em cozinheiras, lavadeiras, auxiliares de foguistas7, exploradoras de pau-rosa, e à

noite, todas elas faziam programas sexuais. Ambas exerciam dupla função, sendo que a segunda

era a que as levavam para trabalhar, pois para o patrão as mulheres não rendiam tanto quanto

os homens, sendo limitadas pela força física, como argumenta Reis (1997) sobre a negação da

mulher nos seringais, “não interessava aos “aviadores” e seringalistas senão o seringueiro, como

braço, como energia, para a tarefa pesada” (REIS, 1997:239). Por esta razão, eram usadas como

7 Nome dado aos responsáveis pelo fogo que mantinha a caldeira em funcionamento. Dentro da caldeira era

depositado o pau-rosa em pequenos pedaços chamados de cavacos. A caldeira era movida a vapor.

uma das estratégias para manter os trabalhadores por mais tempo dentro das usinas, haja vista

que cada programa equivalia 50% de uma diária de trabalho. Sobre esse ponto os próprios

trabalhadores admitem:

Teve época que ele (patrão) levava mulheres de programa, por exemplo, chegava a

época de festa o patrão usavam da sua influência e faziam elas se endividarem,

pegava um dinheirinho e levavam elas pra lá (usina) pra fazer programas. Lá o

caboclo pagava com o trabalho, era uma forma de prender também as pessoas lá, na

época era metade de uma diária cada programa. Eles faziam assim, passava um vale,

assim o caboclo vai com uma mulher e pedia um vale, ela recebia esse vale, quando

ela prestava a conta dela era com esses vales que ela pagava a conta dela lá, por que

ela se alimentava por conta dela também, e o que ela tirasse de lucro ele pagar aqui

(Faro – PA) (sic) (Entrevista, 2015)

4.2 Mulher “mercadoria” e o aviamento

Sobre a quitação das dívidas, os patrões colocavam em prática todas as estratégias

possíveis para mantê-las por um longo período na usina. Nesse sistema, o saldo devedor só

aumentava, tanto para as mulheres que precisavam de alimentos diários e os adquiriam na

cantina por um alto valor, quanto para os homens que além dos alimentos, bebidas alcoólicas,

usavam os serviços domésticos e sexuais das mulheres, acrescendo mais ainda o débito. Essas

mulheres só desciam das usinas, há milhares de quilómetros de distância de suas casas, depois

de saldar as dívidas. Nesse processo, existia mais um elemento que, em determinadas situações,

prolongava sua estadia, os filhos que ficavam na cidade e que recebiam assistência de crédito

junto aos comércios e drogaria da família Rossy, ou seja, a alimentação e remédios de suas crias

eram financiados pela casa aviadora. Quando sinalizavam interesse em regressar, o gerente

fazia contato com os gerentes da cidade via aparelho de radiofonia, ferramenta de comunicação

da época, uma espécie de telefone, para listar as despesas concebidas às famílias e somar com

a dívida da cantina. Era comum, em época festiva no município de Faro, as mulheres desejarem

participar, mas nem sempre conseguiam pagar as dívidas, às vezes restava uma mulher, mas

não permitiam sua descida junto com as outras e ocorria o seguinte:

Uma vez uma mulher não conseguiu pagar a dívida e ficou só, o nome dela é

Trindade, não sei se ela ainda existe, no mesmo dia que chegou aprontaram a

barraquinha dela, aí a gente morava naqueles barracos que a gente chamava de

tapiri né, tinha um lá, ela tinha um conhecido que era vizinho dela que ela morava

pra cá nessa época, e nesta noite lá os caboclo não tiveram regulamento e fizeram

uma besteira com ela, rasgaram a rede dela e foram lá na cantina pegar outra, ela

não tava aguentando mais aí ela chorou e veio pedir socorro e foi direito lá com nós,

porque ela tinha um conhecido, aí caboclo ainda queria ir lá aí eu disse: “olha se

meter a cara aqui vocês vão levar porrada daqui, aí eles se acalmaram pra lá.

Quando foi no outro dia foram chamados pra conversar porque ela ia ficar lá por

mais tempo e ela ter que dizer quantos ela ia atender por noite e repassar a

quantidade ao chefe da cantina aí ele ia controlar os vales porque caboclo não ia

entrar sem vale, só se ela quisesse mesmo aceitar eles de graça. Porque lá

trabalhavam assim: o pessoal que trabalhavam no quadro da usina ficava lá todo

tempo, mas tinha aqueles que se deslocavam pra trabalho lá no centrão da mata, que

só baixavam dia de sábado, aí ele fez um controle pra dia de sábado e domingo der

dessa turma vinha da mata, pra aqueles que vinham de lá por que eles iam passar a

semana fora, e o resto da semana esses que estavam no quadro da usina era a vez

deles, e aí ela era valente por que ainda dizia que dez por noite ela garantia, e assim

foi feito a base pra ela (sic) (ENTREVISTA, 2015)

É evidente que os patrões não têm nenhuma preocupação com o bem estar das

trabalhadoras, o que confirma as concepções de Marx (2004) ao afirmar em Manuscritos

econômico-filosófico que o “único motivo que determina o possuidor de um capital a emprega-

lo, seja na agricultura, seja na manufatura, ou num ramo particular do comércio por atacado ou

varejista, é o ponto de vista do seu próprio lucro” (MARX, 2004, p.165).

Nas usinas, as mulheres eram tidas como mercadoria, cobiçadas pelos homens que

passavam anos sem contato com as esposas. Neste caso, há grande semelhança com as mulheres

que eram levadas pelos aviadores aos seringais. Reis (1997) destaca que:

Essa situação, como era natural, fez que a mulher fosse objeto cobiçado, sonho

permanente do seringueiro isolado na floresta. E a presença de mulher nos seringais,

no sistema de exploração sem freios que envolvia todo negócio da produção da

borracha, passou a constituir mais uma página do sistema. Os seringueiros, no

sentido infortúnio, encomendavam aos “patrões” e estes às “casas aviadoras”,

mulheres, como encomendavam gêneros alimentícios, utensílios, roupas, etc.

Verdadeiras mercadorias, entravam nas contas, escrituradas pelo guarda-livros

como quaisquer outros objetos de uso diário. Foram, assim, chegando aos seringais,

em meio aos abastecimentos, as partidas de mulheres, trazidas de toda parte, mesmo

dos bordéis de Belém e de Manaus (REIS, 1997:241).

O argumento acima, na interpretação de Simonian (1987), se insere na base da ideologia

que justifica os abusos praticados contra as mulheres nas áreas de seringais da Amazônia

ocidental. A escassez de mulheres constitui-se num destes discursos, tendo, recorrentemente,

servido de base principalmente para a exploração sexual.

Percebe-se que o sistema de aviamento que mantinha as mulheres atreladas às usinas,

era pensado nos mínimos detalhes para manter o controle da produção e, assim, atender as

demandas do comércio. O aviamento implicava o endividamento, pois, sem dinheiro incluído

na transação, o aviador, dono da usina, fornecia aos pauroseiros, extrator da essência, certa

quantidade de bens de consumo e, em pagamento, recebia produção extrativa, sendo que os

preços das mercadorias eram fixados pelo aviador, acrescidos de juros tão altos, até mais de

cem por cento, que o aviado não conseguia saldar sua dívida e era impedido de sair das usinas,

tornando-se cativo do aviador, que dispunha de um exército de capatazes para assegurar o

pagamento . Neste contexto, o endividamento seria o “crime” das mulheres e homens

prisioneiros das usinas. A prova do crime eram as anotações contábeis mais ou menos grosseiras

escrituradas pelo aviador que, sem serem fiscalizadas ou questionadas por quem quer que seja,

dava ao aviador a “possibilidade de fazer os números dançarem ao compasso de seus interesses”

(SANTOS, 1980:168), portanto, não havia contratos formais, só as contas escritas que

mantinham o seringueiro em perpétuo endividamento, garantindo assim, a estabilidade do

sistema produtivo (SANTOS, 1980).

O depoimento de Glória contrapõe a afirmação dos homens ao negarem a participação

do trabalho da mulher no processo de extração da matéria prima. Segue o testemunho:

Eu explorei o pau-rosa em uma das viagens, eu e a Maria, a gente queria ganhar

dinheiro para voltar logo, aí ele (gerente) comprava da gente aquela madeironas de 12

palmos, quando a gente achava a gente marcava e media e botava o X e a letra do

nome da gente, aí eles iam pra lá e achavam não precisava a gente mostrar pra eles

(Entrevista, 2015)

A única participação que os trabalhadores reconhecem é em relação à prostituição das

mulheres e serviços domésticos, como argumentam os usineiros:

Essas mulheres iam daqui abonadas, elas pegavam o dinheiro aqui e levavam pra lá

elas, e lá tinha uns barraquinhos, tinha um no quadro lá onde eu trabalhava era limpo

era barraquinho é mesmo que ser tempo da festa de Junho aqui as barraquinhas ao

redor das famílias, tinha as famílias e tinha a casa das mulher solteira, aí eles iam lá

na cantina elas iam lá os homens pegar o bilhetinho e ir embora pra lá (sic)

(Entrevista, 2015)

Olha na usina chegava muita mulher vinha solteira muita muita mulher, elas vinham

atrás de homem solteiro homem casado também né, mais iam pra pegar o dinheiro

tinha a casa delas, ajudei a fazer a casa delas dia de domingo era o que nós fazia,

são as barraquinhas de tapiri, não cheguei a ficar com nenhuma delas não por que

eu tinha mãe né naquela época minha mãe me aconselhava mais Deus o livre.(sic)

(Entrevista, 2015)

5. As “de baixo” na historiografia dos ciclos extrativistas

A historiografia sobre o ciclo do pau-rosa é quase inexiste na academia, e mesmo que

fosse rica, a participação das mulheres se resumiria a alguns parágrafos, como é evidente na

história da borracha, do ouro, e entre outras atividades extrativas desenvolvidas na Amazônia.

Tentaremos aqui, registrar a experiência dessas mulheres amazônidas que exercem diferentes

funções no processo de produção que não são só marginalizadas pelos seus pares, os homens,

mas pelo próprio fazer-se história. Parte dos trabalhos acadêmicos que tratam a história dos

ciclos ignoram a experiência da mulher e, quando mencionadas, sempre como coadjuvante

dos trabalhadores.

Os próprios operários, agricultores, extrativistas, concebem o trabalho da mulher como

uma simples ajuda, como é constatado pela pesquisadora Iraildes Caldas Torres (2012), no livro

O ethos da floresta. Nesta obra, a autora faz uma reflexão sobre o trabalho leve e pesado da

mulher, a introdução desta discussão é pertinente para a interpretação do trabalho da mulher na

Amazônia. O trabalho pesado, para os operários das usinas, é “compreendido somente como

dispêndio de força física” (TORRES, 2012). Ao serem questionados sobre as atividades

desenvolvidas pelas mulheres dentro do quadro das usinas, os entrevistados negam sua

participação, mas admitem que elas “apenas ajudavam”. Na leitura de Torres (2012):

Essa práxis criadora e de singularidade do ethos humano torna as mulheres

construtoras da história, momento-síntese de sua objetivação e hominização. Elas

transformam a natureza num processo imaginativo de criação e recriação de si

mesmas, exteriorizando-se para o mundo. As mulheres falam ao mundo, comunicam

suas existências por meio do seu trabalho. Não é o aspecto da reprodução humana

que funda a condição de ser histórico e social das mulheres, são as suas práticas

sociais decorrentes do seu trabalho. Cabe às ciências reconhecerem o aspecto

produtivo do trabalho das mulheres (TORRES, 2012:208)

Essa classe de mulheres trabalhadoras se diferem das demais pela posição social que

lhes são atribuídas, se os operários, no entender de Thompson (1987) em A formação da classe

operárias inglesa, são marginalizados pelas história, no caso particular das mulheres

amazônidâs, aparecem num degrau “abaixo”, elas são vista pela sociedade como as “de baixo”

no sentindo moral e social. Nesse sentido, é conveniente inserir a visão de Mills (1981) no

tocante à linha demarcatória das classes:

[...] Há muita confusão e imprecisão nas linhas demarcatórias, no valor de posição

social atribuído às roupas e casas, às formas de ganhar e gastar dinheiro. As pessoas

da classes inferior e média, se distinguem, naturalmente, pelos valores, coisas e

experiências a que são levados pelas diferenças de renda, mas frequentemente não

têm consciência desses valores nem de suas bases de classe (MILLS, 1981:42)

Aqui, a classe trabalhadora é concebida na visão do historiador marxista, Thompson

(1987), que entende a classe como “um fenômeno histórico, que unifica uma série de

acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência

como na consciência” (THOMPSON, 1987:11). Esse fenômeno histórico, que o historiador faz

questão de frisar duas vezes no prefácio do livro, é visível na história da mulher enquanto uma

classe. Torres (2012), afirma que “as mulheres são parte integrantes do sistema produtivo, são

sujeitos vivos do sistema simbólico do trabalho, o qual é tido como um fator de maturação,

status e desenvolvimento social para elas” (TORRES, 2012, p.199). São raras exceções de

trabalhos que reconhecem essa classe como parte integrante do sistema de produção, a história

dos ciclos é vista a partir dos homens, como trabalho exclusivamente masculino. Como

exceções temos o trabalho de Simonian (1986), Torres (2012), Saffiotti (1978), Araújo e Araújo

(1981) e, entre outros trabalhos mais recentes sobre o papel das mulheres enquanto

trabalhadoras no contexto amazônico. Na extração do óleo de pau-rosa, ocorreu o mesmo no

processo produtivo da borracha, como destaca Simonian (1986):

Homens e mulheres dos seringais da Amazônia ocidental têm, de todo modo,

persistido com o silêncio e a tentativa de esconder, tornar invisível o envolvimento

das mulheres na produção da borracha, isto para não falar da discriminação e

opressão que sustentam tais processos. (SIMONIAN, 1986:99)

Voltemos ao Thompson (1987), este teórico não vê a classe como uma “estrutura”, nem

mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente nas relações humanas,

a noção de classe, no entendimento dele, “traz consigo a noção de relação histórica. Como

qualquer outra relação, é algo fluído que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-lo num dado

e dissecar sua estrutura” (THOMPSON, 1987:12). E acrescenta que a classe acontece quando

“alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e

articulem a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujo interesses diferem

(e geralmente se opõem) dos seus” (IB., op. cit.). A experiência de classe é determinada, em

grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram

involuntariamente. Por esse prisma a consciência de classe é:

A forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em

tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência

aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe.

Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem

experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de

classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente

da mesma forma (THOMPSON, 1987:13)

As experiências das mulheres na produção extrativa têm sido mascaradas pelo

ocultamento, tentativa de silenciar os fatos, nestes casos, tanto pelas populações locais e das

próprias mulheres, quanto por parte de estudiosos desse campo do conhecimento. Para

Simonian (1997), em algumas poucas atividades extrativas, a "invisibilidade" e as tentativas de

silêncio e negação não se colocam como problemas para as mulheres. Entretanto, pelo baixo

valor econômico de tais atividades, as mesmas são igualmente discriminadas e oprimidas

(SIMONIAN, 1997).

6. Considerações finais

Com a pesquisa de campo e levantamento bibliográfico sobre a produção científica desta

atividade, a qual nos propomos a estudar, podemos considerar que a história da participação da

mulher na produção do óleo essencial extraído do pau-rosa, no Amazonas e no Pará, ainda está

por construir, e este trabalho tem por objetivo contribuir no sentido de chamar atenção da

academia para tomar esta atividade como objeto de pesquisa, haja vista que esse período é parte

integrante da história econômica e social da Amazônia, ainda que silenciada. Talvez seja uma

peça do quebra-cabeça que falta para compreender novas questões no que concerne ao trabalho

na região. A documentação sobre a dimensão mais ampla da vida das mulheres das usinas, ou

seja, sobre o seu cotidiano é, igualmente, quase inexistente quanto às dos homens. Mas alguns

informes, confirmam que participação da mulher no processo de produção da essência, não só

antiga, como persistente em muitas outras áreas. A discussões aqui apresentadas considera que

as mulheres internalizam a ideologia que trata as atividades extrativistas como masculinas, em

detrimento de seus próprios interesses e potencial enquanto força de trabalho ativa e produtiva.

7. Referências bibliográficas

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