A HISTÓRIA DAS “DE BAIXO”: O SILÊNCIO DO TRABALHO DA ... · para expansão da produção na...
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A HISTÓRIA DAS “DE BAIXO”: O SILÊNCIO DO TRABALHO DA MULHER NAS
USINAS DE PAU-ROSA
MIRIAN BITENCOURT1
IRAILDES CALDAS TORRES2
RESUMO: Este paper tem como objetivo discutir o trabalho da mulher no extrativismo do
óleo essencial de pau-rosa, tendo como locus as usinas da região do município de Nhamundá –
Amazonas. São histórias silenciadas pela literatura dos ciclos de atividades extrativas da
Amazônia, aqui registradas sob a perspectiva da História Vista de Baixo, do historiador inglês
E. P. Thompson (1987).
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Pau-rosa; História; Gênero. Amazônia.
1. Introdução
Este paper versa sobre a participação da mulher nas atividades extrativistas da
Amazônia, tendo como objeto de pesquisa as trabalhadoras que atuaram nas usinas de
beneficiamento do pau-rosa (Aniba rosaeodora Ducke), instaladas na região do Rio Paratucu,
do município de Nhamundá – Amazonas. São histórias silenciadas de mulheres que saiam de
suas casas endividadas pelos “donos do poder local” para quitar as dívidas nas corrutelas3 das
usinas de destilação do óleo essencial da Aniba, usado como componente de um dos perfumes
mais cobiçado pela elite mundial, o Chanel nº 5.
Não é do conhecimento de todos que, por um longo período, era da nossa Amazônia que
saía essa essência para outros países, usada pelas indústrias de cosméticos como fixador de
perfumes, assim como essa classe nunca ouviu falar em “Chanel Nº 5”, muito menos que esse
produto era uma mercadoria cara e que nunca possuíram e nem teriam como, pois o alto valor
de custo não permitiria. Neste contexto, a mercadoria (perfume) é um objeto concreto, resultado
do trabalho de homens e mulheres para a satisfação de uma necessidade humana. Na visão de
Karl Marx (2012), mercadoria “é antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas
propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” (MARX, 2012:165). Esta
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA/UFAM. Graduada
em Comunicação pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. E-mail: [email protected] 2 Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia - PPGSCA/UFAM. 3 Denominação dada às casas fabricadas pelos próprios trabalhadores que ficavam lado a lado ao redor da usina.
necessidade é influenciada pelo valor de uso atribuído a ela advindo da sua utilidade. Sobre
esse aspecto, Marx (2012), em sua obra O capital assinala que:
A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Essa utilidade, porém, não paira
no ar. Determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, ela não existe sem
o mesmo. O corpo da mercadoria mesmo, como ferro, trigo, diamante etc., é portanto,
um valor de uso ou bem. Esse seu caráter não depende de se a apropriação de suas
propriedades úteis custa ao homem muito ou pouco trabalho. O valor de uso realiza-
se somente no uso ou no consumo. Os valores de uso constituem o conteúdo material
da riqueza, qualquer que seja a forma social desta (MARX, 2012:165)
A intenção aqui não é trazer questões de cunho econômico, mas tentar resgatar o quanto
for possível a experiência do trabalho destas mulheres nesta atividade extrativista. E em certa
medida compreender o porquê do não reconhecimento do trabalho das mulheres como agentes
que compõem a história do extrativismo na Amazônia. Esse ocultamento da participação das
mulheres no sistema de produção da região têm raízes históricas que atravessaram o tempo e
ainda permeia no imaginário contemporâneo. Por esta razão, nosso interesse constituiu em dar
voz e vez às “de baixo”, registrar a histórias das sobreviventes desse período que carregam em
suas lembranças marcas de um passado tenebroso do ponto de vista social. São trabalhadoras
que exerciam funções dentro das usinas, mas que seu trabalho não era reconhecido por seus
pares, ao contrário, eram marginalizadas dentro do ambiente de trabalho e pela própria
sociedade que as condenavam como “mulheres solteiras” por não terem maridos. Mulheres que
tinham as relações sexuais e as mãos como força de trabalho para sobreviver, condicionadas
aos sistema de aviamento desta atividade.
A proposta de investigação da problemática deste trabalho partiu das experiências
vividas, sob a perspectiva da História Vista de Baixo, como ficou conhecida, do historiador
britânico Edward P. Thompson. O autor subverte a ordem hegemônica ao valorizar os
excluídos, marginalizados pela historiografia oficial, os “de baixo”, como denominou na
publicação do artigo The History from Below, em 1966. Além dessa perspectiva do fazer
história, de ter como preocupação reconstruir as experiências de pessoas comuns, Thompson
introduz um novo olhar às concepções marxistas que norteiam este trabalho, principalmente
sobre a classe trabalhadora e materialismo histórico.
2. O pau-rosa na Amazônia: de árvore à Chanel Nº 5
A Amazônia, desde o período da conquista, tornou-se alvo de exploração dos recursos
naturais, sem muita intervenção ou controle do Estado, como é evidenciado na obra de Djalma
Batista (2007), O complexo da Amazônia. A região carregou no colo várias atividades extrativas
que deixaram marcas negativas tanto do ponto de vista econômico quanto social. O extrativismo
na Amazônia, na visão do historiador Roberto Santos (1980), está enraizada na mentalidade do
povo simples, que sempre buscou na natureza formas de sobrevivência e que, historicamente,
tem o povoamento do período colonial relacionado ao extrativismo, de início, com a coleta das
drogas do sertão e com o surto da borracha.
A associação entre o extrativismo e a borracha é quase automática na historiografia
amazônica devido à importância da economia do látex para esta região, porém, outros produtos
foram e são extraídos conservando inclusive características econômicas e relações sociais de
produção semelhantes àquelas do período áureo da borracha. Dentre estes outros produtos
temos a árvore de pau-rosa, elemento de nossas pesquisa através do estudo da participação da
mulher no beneficiamento do óleo essencial, e cujo processo de extração revela que a região
amazônica ainda mantém características remanescentes da fase da borracha, nos permitindo
concluir a existência de estruturas econômico-sociais que perpassam o tempo, enraizando-se na
mentalidade do homem amazônico. Neste tópico é apresentado o histórico do pau-rosa
enquanto matéria prima da Amazônia que se transformou em mercadorias como o óleo
essencial, sabonete Phebo e o perfume Chanel Nº 5.
2.1 História do pau-rosa
O Brasil foi um importante país produtor de óleo essencial de pau-rosa, sendo que a
economia gerada pela extração da essência foi por um determinado período fonte de renda na
Amazônia. A exploração começou em 1920 e o produto chegou a ser o terceiro colocado na
pauta de exportações amazônicas, atrás somente da borracha e da castanha.
Esse capital se concentrava nas mãos de grandes empresários da época e boa parte do
dinheiro gerado na comercialização do óleo ficava no exterior, principalmente na Europa.
Desde o início da exploração até 1960, o óleo essencial extraído da Aniba foi componente para
a formulação de sabonetes e perfumes. Com a escassez da espécie, após período de retirada
desordenada, limitou-se à perfumaria clássica de alto custo de mercado, como o Channel Nº5,
criado em 1920, pela estilista Grabrielle Channel, que se consolidou no mercado após a atriz
Marilyn Monroe declarar que dormia com apenas duas gotas do perfume no corpo. Assim,
tornou-se o mais vendido no mundo.
A exploração do pau-rosa na Amazônia teve início em 1875 na porção amazônica da
Guiana Francesa. A primeira exportação aconteceu em 1883, da Guiana para a França. No
Brasil, a extração do óleo essencial de pau-rosa iniciou em 1926. A Guiana Francesa dominou
o mercado mundial com três destilarias artesanais de grande porte (considerando-se a época)
até a década de 1940. A despeito da amplitude da produção no país vizinho, abriu-se espaço
para expansão da produção na Amazônia brasileira na década de 1930 e cerca de 20 anos mais
tarde a exploração do pau-rosa já era o terceiro item mais cobiçado na pauta das
comercializações dentro do bioma, atrás de borracha e castanha.
A exploração do pau-rosa na Amazônia brasileira concentrou-se na fronteira dos
Estados de Amazonas e Pará. A valorização da essência fez com que o comércio se estendesse
um tanto mais para o território amazonense, especificamente em Itacoatiara e Maués,
municípios localizados na porção central do Amazonas (HOMMA, 2003). A Sudam registrou
que em 1969 foram contabilizadas 53 usinas de destilação em funcionamento, sendo três no
Pará e 50 no Amazonas (TEREZO apud HOMMA, 2003).
Dados do Ibama, Embrapa e Sudam não dão conta da existência de usinas instaladas nos
município de Parintins e Nhamundá. Mas Saunier (2003) desconstrói a afirmativa ao entrevistar
os principais empresários do mercado de comercialização da essência do pau-rosa dessas áreas.
A indústria de óleo essencial da madeira pau-rosa iniciou em 1930. As primeiras
usinas de destilação de óleos vegetais foram instaladas na localidade do Varre-vento,
rio Uaicurapá. No Varre-Vento foi uma companhia industrial do Rio de Janeiro,
Barros &Cia., e no Ramos o Dr Hauradour, francês, que viveu muitos anos em
Parintins. Depois, uma grande empresa comercial e industrial instalou-se aqui com
a usina de pau-rosa no Andirá e casas comerciais na cidade, pertencente ao
empresário português Homero da Fonseca. Com a guerra, os negócios diminuíram e
a essência de pau-rosa quase desapareceu. Na década de 60, algumas usinas
voltaram a funcionar no Amazonas e em Parintins, no Varre-Vento. A localidade do
Varre-Vento teve como proprietários: Abel Barros, Vivi Abreu, J.G de Araújo,
Salomão Mendes, que desenvolveiram a industrialização da essência de pau-rosa. O
linalol, fixador de perfumes, encontrado em várias madeiras, principalmente no pau-
rosa, foi descoberto quimicamente, e as árvores de pau-rosa madeira ficaram cada
vez mais difíceis, diminuindo, consideravelmente, a produção (SAUNIER,
2003:175-176).
Sobre usinas da região do município de Nhamundá, não se pode identificar documentos
oficiais que comprovassem usinas na localidade, mas há narrativas gravadas com trabalhadoras
e trabalhadores da época, ainda vivos, que atestam a existência de ao menos cinco usinas
localizadas às margens dos rios Paratucu e Nhamundá (ou Nhamundá-Grande). Essas usinas
eram de propriedade de Wladimir Rossy (ex-prefeito do município de Faro/Pará e influente
empresário), Mário Rossy e Chico Iannuzzi4.
3. Maria da Glória: memória viva do pau-rosa
Ao deslocar-se para o município de Faro –Pará, onde ocorreu a pesquisa de campo,
constatou-se que a maioria das mulheres que vivenciaram esse período já morreram, mas estas
mulheres estão vivas na memória dos moradores deste município, principalmente dos
pauroseiros. Ao final da pesquisa, tomou-se conhecimento de uma sobrevivente desta atividade
no município vizinho, Nhamundá –Amazonas, Maria da Glória Ribeiro Martins, 74 anos,
conhecida por Glória. Atualmente, Glória trabalha como costureira, são de suas mãos que saem
lindos tapetes. Apesar de carregar nas lembranças histórias tristes, vive com um sorriso no rosto.
Pare este trabalho, queremos registar essa memória viva de uma mulher que foi tomada pela
elite do poder local, pois Glória era jovem quando foi levada a trabalhar em usinas. Nessa
trajetória, desemprenhou diferentes funções, dentre elas a de exploradora de pau-rosa,
cozinheira, lavadeira e mulher de vida pública. Esta última deixa subentendido, mas seu nome
fora citado por todos os entrevistados homens com uma das mulheres formavam o grupo das
“mulheres solteiras5”. Sua história começa assim:
Foi que o seu Wladimir me convidou, eu morava em Faro e nesse tempo que não tinha
trabalho pra nós mulher solteira, nós era muita mulher que ia pra lá (usina), era Sabá
Pão, Ercira, a Domingas (in memoriam) eu nem me lembro mais o nome das outras,
a mamãe também foi pra trabalhar lá, a Izaura Ribeiro Martins, ela foi também.
Quando foi um dia ele topou comigo: “oi Glória” e eu disse “oi”, bora pra usina?
respondi “o que que eu vou já fazer pra usina? vou precisar de uma mulher pra
ajudarem os homens e fazerem comida pro pessoal, aí eu disse “não sei”. – “olha, a
gente abona!”, que naquele tempo a gente se abonava de quanto a gente quisesse,
era pouco ganho nessa época pra nós, não tinha ganho porção como agora tem.
Quando foi num dia eu precisei e fui com eles, aí me arrumei tudo. “Olha tu não vai
faltar”, ele falou mesmo assim, aí eu disse “tá bom”. Aí eu fui me embora, fui lá no
barco falei com eles tudinho, com seu Vladimir e aí ele disse: “ah minha filha eu
estou querendo mesmo uma mulher pra lá por que é só homem, tem que fazer comida,
lavar roupa e tem seu Hugo (gerente) lá pra lavar roupa. “Tá bom”, eu como era
animada desde nova pra trabalhar, não negava”. Aí eu tava sem dinheiro, aí eu disse
“olha tô sem dinheiro porque eu trabalhava pra todo lado né mas acabava o dinheiro.
Aí eu disse o senhor abona? “abono”, ele disse, “quanto tu vai querer?” me dê logo
200 cruzeiro aí. Com esse dinheiro eu comprei coisa pra lá né porque a gente ia
demorar né, comprei sandália, roupa, comprei tudo o que era preciso. Ele disse:
4 Informações obtidas em conversas informais com os ex-funcionários de usinas desta localidade. 5 Referência às mulheres que se prostituíam nas usinas.
“olha nós vamos viajar domingo”, aí eu disse “tá bom”. Me arrumei tudo e quando
foi domingo cheguei lá, era animada mesmo tava nova ainda, não tava nem aí pra
desgraça, foi também dessa vez a Sabá, a Ercira, e mais uma lá, nós era muita mulher
dessa turma, só que eu já esqueço do nome delas, aí quando foi sábado fui numa festa
que nós fizemos em Faro, uma festona, era foguete pra todo lado, mas tiramos licença,
naquele tempo era o Pico de Jaca que era delegado, aí tiramos a licença até seis
horas da manhã por que nós ia subir pro Alto (Rio Paratucu). Quando nós chegamos
lá fomos trabalhar, eu fui pra trabalhar, as outras mulheres foram solteira mesmo
(prostitutas), cada qual tinha sua casa, quem fazia as barracas eram os homens, seu
Vladimir que mandava fazer quando a gente chegava lá já estavam fazendo a casa,
os homens faziam cama pra nós, sabe como a vida de mulher solteira, eles afincava
pau, tiravam aquelas tábuas e forravam com pano. O pagamento era lá mesmo, elas
pegavam vale lá mesmo, quando a gente queria baixar de lá a gente ia levar o vale
lá na cantina e seu Hugo descontava a dívida e dava o saldo, eu voltei quatro vezes
lá, foi o tempo que ele saiu de lá e eu estava pra Maués, na outra usina, depois de
nove anos com seu Wladimir eu voltei lá em Faro (sic) (Entrevista, 2015)
Maria da Glória viveu sob estas condições de trabalho por 20 anos, sendo 11 anos com
o empresário Mario Rossy, irmão do ex prefeito Wladimir Rossy, com quem trabalhou por 9
anos. Ambos irmãos tinham embarcações de grande porte e exploravam o pau-rosa em várias
regiões do Amazonas. Depois de Nhamundá, seguiram para Parintins, Maués e Rio Tapajós. E
Glória trabalhava dentro das embarcações. Nesse período engravidou dez vezes, sete filhos
estão vivos, dois abortos e o filho mais velho faleceu há dois anos. Devido à rotina do trabalho,
não chegou a criar nenhum dos filhos, quando alcançavam certa idade eram doados pelos
patrões às outras famílias. Ao ser questionada sobre os motivos que a levaram a deixar seus
filhos, baixou a cabeça e as lágrimas caíram:
Meus filhos eram bonitinhos, loirinhos de olhos claros, quando certa idade eles se
agradavam deles e levavam, dois a mamãe criou, outros estão espalhados. Naquele
tempo a gente tinha que dar porque o juiz tomava porque a gente bebia. Tenho duas
filhas em Belém que seu Wladimir levou, não sei onde elas vive lá, nunca mais vi. Eu
sentia, mas não tinha condições de criar, não tinha paradeiro certo, pra onde eles me
levavam eu ia (sic) (Entrevista, 2015).
Esses depoimentos deixam claro o sistema que regia a vida das mulheres paraenses, essa
história não é exclusividade, em outras entrevistas os trabalhadores citaram histórias parecidas
de outras mulheres. Ao viverem em um contexto em que a discriminação e a opressão têm se
imposto por décadas no âmbito das condições e relações de trabalho, como assinala Saffiotti
(1978), estas mulheres se sentiam desestimuladas quanto a possibilidade de exercerem outras
funções dentro das usinas, as quais não viam como perspectivas de futuro. Pelas narrativas
coletadas, essas mulheres participaram do processo de destilação do pau-rosa como
exploradoras, atividade que exigia o reconhecimento das árvores na flores, auxiliares dos
homens nas operações dentro do quadro da usina, serviços domésticos e como prostitutas no
horários em que deveriam descansar o corpo, à noite. Mills (1981) lembra que o poder é dos
domínios econômico, político e militar, e no caso particular da Amazônia, substitui-se o militar
pelo social. Para este autor, a estrutura da sociedade moderna (americana) “limita-os a projetos
que não são seus, e de todos os lados aquelas mudanças pressionam de tal modo os homens e
mulheres da sociedade de massas que estes se sentem sem objetivo numa época em que estão
sem poder” (MILLS, 1981:11)
4. As configurações do trabalho nas usinas
O beneficiamento do pau-rosa sempre dependeu de mão de obra humana, desde a
retirada da madeira na floresta até a destilação nas caldeiras, onde se extraía o óleo essencial da
matéria prima. Artesanalmente, o produto era transportado por batelões – pequenas
embarcações tipicamente amazônicas – em tambores com capacidade de 180 kg à capital do
Amazonas, Manaus, e à capital do Pará, Belém. Destes locais, o pau-rosa era exportado para
França, Estados Unidos e Japão, tendo em vista o abastecimento de indústrias de perfumes
(HOMMA, 2003). Abaixo segue a ilustração da estrutura de uma usina baseada em informações
verbais e desenhos feitos pelos próprios entrevistados:
Figura 01: Processo produtivo do óleo essencial de pau-rosa (Mirian Bitencourt)
Fonte: Pesquisa de campo, 2015.
A imagem acima mostra como se configurava o formato de uma usina beneficiadora do
óleo essencial de pau-rosa, é pertinente ressaltar que existiram outras estruturas, mas com os
mesmos elementos. Nesta ilustração é visível a divisão de gênero e classe, as mulheres tinham
suas casas separadas das dos homens e do lado oposto dos barracos das “famílias”, como afirma
os trabalhadores:
Essas mulheres iam daqui (Faro – Pará) abonadas, elas pegavam o dinheiro aqui e
levavam pra lá elas, e lá tinha uns barraquinhos (casas), tinha uma no quadro lá onde
eu trabalhava (usina), era limpo, era barraquinhos igual as barracas da festa de
Junho (São João), tinha as casas dos homens de famílias e tinha a casa das mulher
solteira, aí eles (homens) iam lá na cantina pegar o bilhetinho (vale autorização) e ir
embora pra lá pra casa delas (sic) (Entrevista, 2015)
Olha nessa época era 2,50 cruzeiros o programa com elas, aí tirava um bilhetinho na
cantina e levava no bolso, chegava lá chamava a mulher e ela vinha com a gente
dizia: “olha está aqui teu pagamento aí elas traziam esse vale quando chegava aqui
em Faro elas iam justar a conta com o Wladimir (sic) (Entrevista, 2015)
Na visão dos trabalhadores, não era de bom grado misturar mulheres casadas com
solteiras, as viam como inferiores e más influências às esposas. A inserção da família dos
pauroseiros foi introduzida no final da extração, início de 19906. Nos anos iniciais de
exploração, os trabalhadores chegavam desacompanhados. Situação similar ao período da
borracha, como expõe Reis (1977:237) nos seguintes termos:
A paisagem social dos seringais, em certos aspectos, lembra os mesmos aspectos do
começo da vida brasileira no século XVI, quando se lançavam os mandamentos da
sociedade que deveria realizar a conquista da terra nova, vencendo a natureza e nela
criando os seres sociais que fossem também as resultantes e suas peculiaridades. É
que, naqueles idos distantes, os colonos, os soldados, os funcionários que vieram para
as jornadas pioneiras, estavam desacompanhados da esposa, da família. O lar, em
consequência, foi sendo organizado com a mulher indígena, fora dos textos
estabelecidos pela lei. A mulher portuguesa só mais tarde, quando a ventura do
domínio político estava sendo assegurado, assegurado, começaria a estar presente.
No início desta atividade só existiam casas de homens e mulheres, em lados opostos.
Nas palavras de Maria de Glória, o cenário se constituía da seguinte forma:
Naquela época nós íamos abonados, todos iam abonados, naquele tempo não existia
motor como hoje, eles vinham no motor do dono da usina, era só eles que eram ricão
né, os pobres só iam com ele, ele abonava os pobres por aqui tudo, como até o pai
dessa minha filha que era meu marido ele foi abonado pra lá, levou um ano pra pagar
a dívida. Na usina era muito animado, era aqueles homens carregando aqueles rolos
de pau-rosa no jamanxim, cortavam tudo em rolo, a gente trabalhava e os homens na
serra, serrando o pau-rosa pra tirar a essência (sic) (Entrevista, 2015)
4.1 Os donos do poder
Como exposto no início deste trabalho, estas usinas foram implantadas na região do Rio
Paratucu, do município de Nhamundá - AM, mas a família Rossy, proprietária das usinas residia
no município de Faro – Pará, que faz limites com o Amazonas. Em Faro, a família Rossy
6 Informação baseada nos dados do Ibama sobre o declínio da comercialização do pau-rosa que ocorreu no início
dos anos 90, esses dados foram confrontados com as entrevistas realizadas com os trabalhadores desse período.
“comandava” o município, dentre as propriedades estavam um supermercado de nome fantasia
“Casa Grande”, drogaria, olaria, serralherias, bordel e fazendas de gado. Além de terem fortes
influências na política local, pois o filho do patriarca da família, Wladimir Rossy, dono de usina,
exerceu o cargo de prefeito por dois mandatos. Nesse sentido, podemos introduzir aqui a leitura
de Mills (1981), ao descrever a Elite do Poder, na América:
Em toda cidade média ou pequena da América um grupo superior de famílias paira
acima da classe média e sobre a massa da população de funcionários de escritório e
operários assalariados. Os membros desse grupo possuem a maior parte do que existe
localmente para ser possuído. Seus nomes e retratos são impressos com frequência
no jornal local, e, na realidade, o jornal é deles, como deles é a estação de rádio.
Também são donos das três fábricas locais mais importantes, e da maioria das casas
comerciais ao longo da rua principal; dirigem, ainda, os bancos. Associando-se uns
aos outros intimamente, têm consciência do fato de pertencerem à classe liderante
das famílias das famílias liderantes (MILLS, 1981:41)
Convém notar, também, que essas mulheres se auto endividavam antes de serem
levadas às usinas, por não terem maridos, a sociedade as puniam, e ficavam, indiretamente, sob
o controle da família Rossy, dona do poder local. Os Rossys definiam onde cada mulher
“solteira” iria exercer alguma atividade. No tocante ao poder elitista deste cenário,
acrescentemos a definição de Mills (1981), o qual assinala que:
A elite do poder é composta de homens cuja posição lhes permite transcender o
ambiente comum dos homens comuns, e tomar decisões de grandes consequências.
Se tomam ou não tais decisões é menos importante do que o fato de ocuparem postos
tão fundamentais: se deixam agir, de decidir, isso em si constitui frequentemente um
ato de maiores consequências do que as decisões que tomam. Pois comandam as
principais hierarquias e organizações da sociedade moderna. Comandam as grandes
companhias. Governam a máquina do Estado e reivindicam suas prerrogativas.
Dirigem a organização militar. Ocupam os postos de comando estratégico da
estrutura social, no qual se centralizam atualmente os meios afetivos do poder e a
riqueza e celebridade que usufruem (MILLS, 1981:12)
Umas ficavam na cidade como domésticas e outras seguiam para as usinas e lá o quadro
se dividiam em cozinheiras, lavadeiras, auxiliares de foguistas7, exploradoras de pau-rosa, e à
noite, todas elas faziam programas sexuais. Ambas exerciam dupla função, sendo que a segunda
era a que as levavam para trabalhar, pois para o patrão as mulheres não rendiam tanto quanto
os homens, sendo limitadas pela força física, como argumenta Reis (1997) sobre a negação da
mulher nos seringais, “não interessava aos “aviadores” e seringalistas senão o seringueiro, como
braço, como energia, para a tarefa pesada” (REIS, 1997:239). Por esta razão, eram usadas como
7 Nome dado aos responsáveis pelo fogo que mantinha a caldeira em funcionamento. Dentro da caldeira era
depositado o pau-rosa em pequenos pedaços chamados de cavacos. A caldeira era movida a vapor.
uma das estratégias para manter os trabalhadores por mais tempo dentro das usinas, haja vista
que cada programa equivalia 50% de uma diária de trabalho. Sobre esse ponto os próprios
trabalhadores admitem:
Teve época que ele (patrão) levava mulheres de programa, por exemplo, chegava a
época de festa o patrão usavam da sua influência e faziam elas se endividarem,
pegava um dinheirinho e levavam elas pra lá (usina) pra fazer programas. Lá o
caboclo pagava com o trabalho, era uma forma de prender também as pessoas lá, na
época era metade de uma diária cada programa. Eles faziam assim, passava um vale,
assim o caboclo vai com uma mulher e pedia um vale, ela recebia esse vale, quando
ela prestava a conta dela era com esses vales que ela pagava a conta dela lá, por que
ela se alimentava por conta dela também, e o que ela tirasse de lucro ele pagar aqui
(Faro – PA) (sic) (Entrevista, 2015)
4.2 Mulher “mercadoria” e o aviamento
Sobre a quitação das dívidas, os patrões colocavam em prática todas as estratégias
possíveis para mantê-las por um longo período na usina. Nesse sistema, o saldo devedor só
aumentava, tanto para as mulheres que precisavam de alimentos diários e os adquiriam na
cantina por um alto valor, quanto para os homens que além dos alimentos, bebidas alcoólicas,
usavam os serviços domésticos e sexuais das mulheres, acrescendo mais ainda o débito. Essas
mulheres só desciam das usinas, há milhares de quilómetros de distância de suas casas, depois
de saldar as dívidas. Nesse processo, existia mais um elemento que, em determinadas situações,
prolongava sua estadia, os filhos que ficavam na cidade e que recebiam assistência de crédito
junto aos comércios e drogaria da família Rossy, ou seja, a alimentação e remédios de suas crias
eram financiados pela casa aviadora. Quando sinalizavam interesse em regressar, o gerente
fazia contato com os gerentes da cidade via aparelho de radiofonia, ferramenta de comunicação
da época, uma espécie de telefone, para listar as despesas concebidas às famílias e somar com
a dívida da cantina. Era comum, em época festiva no município de Faro, as mulheres desejarem
participar, mas nem sempre conseguiam pagar as dívidas, às vezes restava uma mulher, mas
não permitiam sua descida junto com as outras e ocorria o seguinte:
Uma vez uma mulher não conseguiu pagar a dívida e ficou só, o nome dela é
Trindade, não sei se ela ainda existe, no mesmo dia que chegou aprontaram a
barraquinha dela, aí a gente morava naqueles barracos que a gente chamava de
tapiri né, tinha um lá, ela tinha um conhecido que era vizinho dela que ela morava
pra cá nessa época, e nesta noite lá os caboclo não tiveram regulamento e fizeram
uma besteira com ela, rasgaram a rede dela e foram lá na cantina pegar outra, ela
não tava aguentando mais aí ela chorou e veio pedir socorro e foi direito lá com nós,
porque ela tinha um conhecido, aí caboclo ainda queria ir lá aí eu disse: “olha se
meter a cara aqui vocês vão levar porrada daqui, aí eles se acalmaram pra lá.
Quando foi no outro dia foram chamados pra conversar porque ela ia ficar lá por
mais tempo e ela ter que dizer quantos ela ia atender por noite e repassar a
quantidade ao chefe da cantina aí ele ia controlar os vales porque caboclo não ia
entrar sem vale, só se ela quisesse mesmo aceitar eles de graça. Porque lá
trabalhavam assim: o pessoal que trabalhavam no quadro da usina ficava lá todo
tempo, mas tinha aqueles que se deslocavam pra trabalho lá no centrão da mata, que
só baixavam dia de sábado, aí ele fez um controle pra dia de sábado e domingo der
dessa turma vinha da mata, pra aqueles que vinham de lá por que eles iam passar a
semana fora, e o resto da semana esses que estavam no quadro da usina era a vez
deles, e aí ela era valente por que ainda dizia que dez por noite ela garantia, e assim
foi feito a base pra ela (sic) (ENTREVISTA, 2015)
É evidente que os patrões não têm nenhuma preocupação com o bem estar das
trabalhadoras, o que confirma as concepções de Marx (2004) ao afirmar em Manuscritos
econômico-filosófico que o “único motivo que determina o possuidor de um capital a emprega-
lo, seja na agricultura, seja na manufatura, ou num ramo particular do comércio por atacado ou
varejista, é o ponto de vista do seu próprio lucro” (MARX, 2004, p.165).
Nas usinas, as mulheres eram tidas como mercadoria, cobiçadas pelos homens que
passavam anos sem contato com as esposas. Neste caso, há grande semelhança com as mulheres
que eram levadas pelos aviadores aos seringais. Reis (1997) destaca que:
Essa situação, como era natural, fez que a mulher fosse objeto cobiçado, sonho
permanente do seringueiro isolado na floresta. E a presença de mulher nos seringais,
no sistema de exploração sem freios que envolvia todo negócio da produção da
borracha, passou a constituir mais uma página do sistema. Os seringueiros, no
sentido infortúnio, encomendavam aos “patrões” e estes às “casas aviadoras”,
mulheres, como encomendavam gêneros alimentícios, utensílios, roupas, etc.
Verdadeiras mercadorias, entravam nas contas, escrituradas pelo guarda-livros
como quaisquer outros objetos de uso diário. Foram, assim, chegando aos seringais,
em meio aos abastecimentos, as partidas de mulheres, trazidas de toda parte, mesmo
dos bordéis de Belém e de Manaus (REIS, 1997:241).
O argumento acima, na interpretação de Simonian (1987), se insere na base da ideologia
que justifica os abusos praticados contra as mulheres nas áreas de seringais da Amazônia
ocidental. A escassez de mulheres constitui-se num destes discursos, tendo, recorrentemente,
servido de base principalmente para a exploração sexual.
Percebe-se que o sistema de aviamento que mantinha as mulheres atreladas às usinas,
era pensado nos mínimos detalhes para manter o controle da produção e, assim, atender as
demandas do comércio. O aviamento implicava o endividamento, pois, sem dinheiro incluído
na transação, o aviador, dono da usina, fornecia aos pauroseiros, extrator da essência, certa
quantidade de bens de consumo e, em pagamento, recebia produção extrativa, sendo que os
preços das mercadorias eram fixados pelo aviador, acrescidos de juros tão altos, até mais de
cem por cento, que o aviado não conseguia saldar sua dívida e era impedido de sair das usinas,
tornando-se cativo do aviador, que dispunha de um exército de capatazes para assegurar o
pagamento . Neste contexto, o endividamento seria o “crime” das mulheres e homens
prisioneiros das usinas. A prova do crime eram as anotações contábeis mais ou menos grosseiras
escrituradas pelo aviador que, sem serem fiscalizadas ou questionadas por quem quer que seja,
dava ao aviador a “possibilidade de fazer os números dançarem ao compasso de seus interesses”
(SANTOS, 1980:168), portanto, não havia contratos formais, só as contas escritas que
mantinham o seringueiro em perpétuo endividamento, garantindo assim, a estabilidade do
sistema produtivo (SANTOS, 1980).
O depoimento de Glória contrapõe a afirmação dos homens ao negarem a participação
do trabalho da mulher no processo de extração da matéria prima. Segue o testemunho:
Eu explorei o pau-rosa em uma das viagens, eu e a Maria, a gente queria ganhar
dinheiro para voltar logo, aí ele (gerente) comprava da gente aquela madeironas de 12
palmos, quando a gente achava a gente marcava e media e botava o X e a letra do
nome da gente, aí eles iam pra lá e achavam não precisava a gente mostrar pra eles
(Entrevista, 2015)
A única participação que os trabalhadores reconhecem é em relação à prostituição das
mulheres e serviços domésticos, como argumentam os usineiros:
Essas mulheres iam daqui abonadas, elas pegavam o dinheiro aqui e levavam pra lá
elas, e lá tinha uns barraquinhos, tinha um no quadro lá onde eu trabalhava era limpo
era barraquinho é mesmo que ser tempo da festa de Junho aqui as barraquinhas ao
redor das famílias, tinha as famílias e tinha a casa das mulher solteira, aí eles iam lá
na cantina elas iam lá os homens pegar o bilhetinho e ir embora pra lá (sic)
(Entrevista, 2015)
Olha na usina chegava muita mulher vinha solteira muita muita mulher, elas vinham
atrás de homem solteiro homem casado também né, mais iam pra pegar o dinheiro
tinha a casa delas, ajudei a fazer a casa delas dia de domingo era o que nós fazia,
são as barraquinhas de tapiri, não cheguei a ficar com nenhuma delas não por que
eu tinha mãe né naquela época minha mãe me aconselhava mais Deus o livre.(sic)
(Entrevista, 2015)
5. As “de baixo” na historiografia dos ciclos extrativistas
A historiografia sobre o ciclo do pau-rosa é quase inexiste na academia, e mesmo que
fosse rica, a participação das mulheres se resumiria a alguns parágrafos, como é evidente na
história da borracha, do ouro, e entre outras atividades extrativas desenvolvidas na Amazônia.
Tentaremos aqui, registrar a experiência dessas mulheres amazônidas que exercem diferentes
funções no processo de produção que não são só marginalizadas pelos seus pares, os homens,
mas pelo próprio fazer-se história. Parte dos trabalhos acadêmicos que tratam a história dos
ciclos ignoram a experiência da mulher e, quando mencionadas, sempre como coadjuvante
dos trabalhadores.
Os próprios operários, agricultores, extrativistas, concebem o trabalho da mulher como
uma simples ajuda, como é constatado pela pesquisadora Iraildes Caldas Torres (2012), no livro
O ethos da floresta. Nesta obra, a autora faz uma reflexão sobre o trabalho leve e pesado da
mulher, a introdução desta discussão é pertinente para a interpretação do trabalho da mulher na
Amazônia. O trabalho pesado, para os operários das usinas, é “compreendido somente como
dispêndio de força física” (TORRES, 2012). Ao serem questionados sobre as atividades
desenvolvidas pelas mulheres dentro do quadro das usinas, os entrevistados negam sua
participação, mas admitem que elas “apenas ajudavam”. Na leitura de Torres (2012):
Essa práxis criadora e de singularidade do ethos humano torna as mulheres
construtoras da história, momento-síntese de sua objetivação e hominização. Elas
transformam a natureza num processo imaginativo de criação e recriação de si
mesmas, exteriorizando-se para o mundo. As mulheres falam ao mundo, comunicam
suas existências por meio do seu trabalho. Não é o aspecto da reprodução humana
que funda a condição de ser histórico e social das mulheres, são as suas práticas
sociais decorrentes do seu trabalho. Cabe às ciências reconhecerem o aspecto
produtivo do trabalho das mulheres (TORRES, 2012:208)
Essa classe de mulheres trabalhadoras se diferem das demais pela posição social que
lhes são atribuídas, se os operários, no entender de Thompson (1987) em A formação da classe
operárias inglesa, são marginalizados pelas história, no caso particular das mulheres
amazônidâs, aparecem num degrau “abaixo”, elas são vista pela sociedade como as “de baixo”
no sentindo moral e social. Nesse sentido, é conveniente inserir a visão de Mills (1981) no
tocante à linha demarcatória das classes:
[...] Há muita confusão e imprecisão nas linhas demarcatórias, no valor de posição
social atribuído às roupas e casas, às formas de ganhar e gastar dinheiro. As pessoas
da classes inferior e média, se distinguem, naturalmente, pelos valores, coisas e
experiências a que são levados pelas diferenças de renda, mas frequentemente não
têm consciência desses valores nem de suas bases de classe (MILLS, 1981:42)
Aqui, a classe trabalhadora é concebida na visão do historiador marxista, Thompson
(1987), que entende a classe como “um fenômeno histórico, que unifica uma série de
acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência
como na consciência” (THOMPSON, 1987:11). Esse fenômeno histórico, que o historiador faz
questão de frisar duas vezes no prefácio do livro, é visível na história da mulher enquanto uma
classe. Torres (2012), afirma que “as mulheres são parte integrantes do sistema produtivo, são
sujeitos vivos do sistema simbólico do trabalho, o qual é tido como um fator de maturação,
status e desenvolvimento social para elas” (TORRES, 2012, p.199). São raras exceções de
trabalhos que reconhecem essa classe como parte integrante do sistema de produção, a história
dos ciclos é vista a partir dos homens, como trabalho exclusivamente masculino. Como
exceções temos o trabalho de Simonian (1986), Torres (2012), Saffiotti (1978), Araújo e Araújo
(1981) e, entre outros trabalhos mais recentes sobre o papel das mulheres enquanto
trabalhadoras no contexto amazônico. Na extração do óleo de pau-rosa, ocorreu o mesmo no
processo produtivo da borracha, como destaca Simonian (1986):
Homens e mulheres dos seringais da Amazônia ocidental têm, de todo modo,
persistido com o silêncio e a tentativa de esconder, tornar invisível o envolvimento
das mulheres na produção da borracha, isto para não falar da discriminação e
opressão que sustentam tais processos. (SIMONIAN, 1986:99)
Voltemos ao Thompson (1987), este teórico não vê a classe como uma “estrutura”, nem
mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente nas relações humanas,
a noção de classe, no entendimento dele, “traz consigo a noção de relação histórica. Como
qualquer outra relação, é algo fluído que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-lo num dado
e dissecar sua estrutura” (THOMPSON, 1987:12). E acrescenta que a classe acontece quando
“alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e
articulem a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujo interesses diferem
(e geralmente se opõem) dos seus” (IB., op. cit.). A experiência de classe é determinada, em
grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram
involuntariamente. Por esse prisma a consciência de classe é:
A forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em
tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência
aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe.
Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem
experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de
classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente
da mesma forma (THOMPSON, 1987:13)
As experiências das mulheres na produção extrativa têm sido mascaradas pelo
ocultamento, tentativa de silenciar os fatos, nestes casos, tanto pelas populações locais e das
próprias mulheres, quanto por parte de estudiosos desse campo do conhecimento. Para
Simonian (1997), em algumas poucas atividades extrativas, a "invisibilidade" e as tentativas de
silêncio e negação não se colocam como problemas para as mulheres. Entretanto, pelo baixo
valor econômico de tais atividades, as mesmas são igualmente discriminadas e oprimidas
(SIMONIAN, 1997).
6. Considerações finais
Com a pesquisa de campo e levantamento bibliográfico sobre a produção científica desta
atividade, a qual nos propomos a estudar, podemos considerar que a história da participação da
mulher na produção do óleo essencial extraído do pau-rosa, no Amazonas e no Pará, ainda está
por construir, e este trabalho tem por objetivo contribuir no sentido de chamar atenção da
academia para tomar esta atividade como objeto de pesquisa, haja vista que esse período é parte
integrante da história econômica e social da Amazônia, ainda que silenciada. Talvez seja uma
peça do quebra-cabeça que falta para compreender novas questões no que concerne ao trabalho
na região. A documentação sobre a dimensão mais ampla da vida das mulheres das usinas, ou
seja, sobre o seu cotidiano é, igualmente, quase inexistente quanto às dos homens. Mas alguns
informes, confirmam que participação da mulher no processo de produção da essência, não só
antiga, como persistente em muitas outras áreas. A discussões aqui apresentadas considera que
as mulheres internalizam a ideologia que trata as atividades extrativistas como masculinas, em
detrimento de seus próprios interesses e potencial enquanto força de trabalho ativa e produtiva.
7. Referências bibliográficas
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