A HISTÓRIA OPERÁRIA EM PROCESSO : APONTAMENTOS … · arrolar o maior número possível de provas...
Transcript of A HISTÓRIA OPERÁRIA EM PROCESSO : APONTAMENTOS … · arrolar o maior número possível de provas...
A HISTÓRIA OPERÁRIA EM PROCESSO: APONTAMENTOS SOBRE O
USO DE PROCESSOS CRIMINAIS NO ESTUDO DA HISTÓRIA DO TRABALHO
CÉSAR AUGUSTO B. QUEIRÓS*
Um dos problemas enfrentados pelos estudiosos que se dispões a pesquisar as classes
populares é, justamente, a escassez de registros escritos deixados por estes agentes.
Geralmente, os registros escritos que nos chegam são produzidos pelas lideranças operárias,
envolvidos em uma atividade militante, que deixam-nos amplamente registradas suas opiniões
e angústias através dos jornais e panfletos que eram distribuídos pelas diversas associações
operárias. A grande maioria dos trabalhadores, portanto, não produzem (ou o fazem muito
raramente) registros escritos de modo que o historiador que busca se aproximar dos
trabalhadores que não participam dos sindicatos e associações precisa servir-se de fontes
produzidas pelos operários militantes e, mais do que isso, por suas lideranças. Para Ginzburg,
um dos motivos desta escassez é, possivelmente, o fato de que a cultura das classes
subalternas é profundamente marcada pela oralidade, de modo que os historiadores precisem
“servir-se de fontes escritas e, em geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos,
abertamente ligados à cultura dominante. Isso significa que os pensamentos, crenças,
esperanças dos camponeses e artesãos [e operários, acrescento] do passado chegam até nós
através de filtros e intermediários que os deformam” (GINZBURG, 1987, p. 18). Thompson
já salientara que “as maiorias sem linguagem articulada, por definição, deixam pouco registro
de seus pensamentos” (1987, p.57). A escassez de registros que possibilitem ao historiador o
acesso direto ao “trabalhador comum” torna a pesquisa muito árdua e desafiadora. Chegar até
esse “operário comum” é uma tarefa que se assemelha à do mineiro que adentra no
subterrâneo das minas em busca de materiais que não estão disponíveis na superfície.
* César Augusto Bubolz Queirós, Doutor em História pelo PPGH/UFRGS, Professor da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
2
Deste modo, o historiador tem que se servir das minorias com linguagem articulada,
dos intermediários dos quais fala Ginzburg, a fim de alcançar este universo representado por
estes trabalhadores e trabalhadoras. No caso da classe operária, tornam-se mais acessíveis ao
pesquisador as fontes produzidas pelos operários que – de uma forma ou de outra – tem
alguma ligação com os diferentes movimentos associativos. Tal recurso pode induzir ao
equívoco de identificar a história da classe operária “[...] com a história dos movimentos
operários, se não até com a história da ideologia desses movimentos” (HOBSBAWM, 1988,
p. 18). Todavia, deve-se considerar que, se “o mundo dos militantes e dos líderes e ideólogos
nacionais não era o mesmo mundo da maioria” (HOBSBAWM, 1988, p. 253), em grande
medida, ambos compartilham de um mesmo universo de representações e práticas cotidianas
construído a partir de sua experiência no campo do trabalho, ou seja, de sua vivência de
classe. Obviamente, não se quer pressupor uma homogeneidade entre todos os trabalhadores e
sim compreender que a sua inserção no campo social lhes possibilita uma série de
experiências em comum. Assim, “as fontes produzidas pelo movimento operário organizado,
e qualquer estudo sobre a militância operária, trazem informações sobre as classes
trabalhadoras, ou seja, se a parte não pode ser tomada pelo todo, há na parte elementos do
todo” (BATALHA, 1997, p. 94).
Mas a penumbra persiste. Mesmo que o estudo da militância operária contribua para a
compreensão de diversos elementos que são compartilhados pelo conjunto da classe, alguns
aspectos permanecem escondidos, invisíveis. Ainda mais se considerarmos que, mesmo entre
as pessoas envolvidas no movimento operário e em suas instituições, não se pode pressupor
uma homogeneidade e sim buscar a diversidade e as particularidades uma vez que “pretender
que exista uma militância operária homogênea é um grave equívoco” (BATALHA, 1997,
p.93). Como chegar, portanto, às vozes dos trabalhadores quer não se envolvem nos
sindicatos, não aderem às greves e não escrevem nos jornais? Estas vozes operárias, roucas e,
por vezes emudecidas, se mostram presentes em situações como a dos processos-crime, em
que são chamadas a testemunhar ou responder perante a justiça sobre determinado
acontecimento. Nestas ocasiões, estas vozes mostram-se audíveis a nós pesquisadores.
Este trabalho tem, portanto, o objetivo de indicar possibilidades de pesquisa sobre a
história operária a partir da utilização de documentação processual encontrada no Arquivo
3
Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Procurei apontar algumas possibilidades
de análise em processos-crime nos quais as greves extrapolaram os limites do diálogo e
levaram seus agentes ao conflito físico. Do ponto de vista metodológico, tendo em vista a já
mencionada escassez de registros que permitam que o pesquisador se aproxime do chamado
“trabalhador comum”, a possibilidade de utilizar processos criminais para alcançar, ao menos,
uma “ponta” da vida dessas pessoas surge como uma alternativa extremamente enriquecedora
e surpreendente, sobretudo se soubermos interpretar essas informações. Deve-se considerar
que, uma vez chamados pela justiça, esses testemunhos e depoimentos são produzidos de
modo intencional e em uma situação em que o depoente ou réu está coagido e oprimido pelos
ritos legais e formais da justiça, perdendo muito de sua naturalidade e espontaneidade.
Contudo, se o historiador souber filtrar essas declarações – cruzando-as com outras fontes –
perceberá que esses depoimentos são verdadeiros registros de um mundo que raramente se
deixa fotografar.
Mesmo que as versões constantes nos processos muitas vezes se contradigam, é
possível construir uma narrativa satisfatória a partir do cruzamento dessas versões conflitantes
com outros registros históricos, valorizando as repetições pois “o que temos num texto são
vozes contraditórias e não realidades contraditórias” (GUINZBURG, 1989, p. 210). Assim,
cabe ao pesquisador buscar inspiração em Carlo Ginzburg – que afirmava espreitar por sobre
o ombro dos inquisidores na esperança de que os réus confessassem suas crenças e assim
abrissem uma janela em direção a seu mundo (1989, p. 206). A despeito de não ser possível
buscar nos processos criminais o que “realmente se passou” – como não é possível encontrar
em nenhuma outra fonte – a objeção ao uso deste tipo de documentação não é aceitável pois
tais registros podem nos dar uma noção bastante rica das práticas e representações dos
personagens envolvidos e da sociedade em que eles vivem. Chalhoub ressalta que:
ler processos criminais não significa partir em busca ´do que realmente se passou` porque esta seria uma expectativa inocente – da mesma forma como é pura inocência objetar à utilização dos processos criminais porque eles ´mentem`. O importante é estar atento às ´coisas` que se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem muita vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que aparecem com frequência (1986, p.53).
4
A natureza peculiar deste tipo de documento e a necessidade que a justiça tem de
arrolar o maior número possível de provas e testemunhos para se chegar a uma sentença
definitiva tornam os processos criminais fontes ainda mais ricas e diversificadas uma vez que,
além dos testemunhos, depoimentos, interrogatórios e toda a parte formal que encontramos
em qualquer processo, podemos encontrar também em alguns deles uma ampla variedade de
anexos tais como exemplares de diversos jornais operários, folhetos impressos e distribuídos
por vários sindicatos e associações operárias de diversas cidades, conclamações às greves,
boletins informativos, cartões postais, manifestos anarquistas e sindicalistas, poesias, letras de
hinos, estatutos de partidos e sindicatos, programas de partidos políticos, enfim, uma grande
quantidade de registros que enriquecem muito este tipo de documentação. Deve-se salientar
que, entre os processos pesquisados durante esta pesquisa, encontra-se uma grande quantidade
de anexos, entre os quais os primeiros números do periódico O Syndicalista – órgão oficial da
Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS) – que até então eram inacessíveis aos
pesquisadores e que foram encontrados durante as pesquisas para a minha Dissertação de
Mestrado.
Assim, apontarei algumas fontes documentais que podem oferecer importantes
contribuições acerca da história do trabalho e, mais especificamente, sobre o movimento
operário. Em função dos limites deste artigo, não me proponho a fazer análises mais
pormenorizadas dos casos em tela, mas indicar alguns documentos que possam oferecer
subsídios a outros historiadores. Indicarei, ainda, trabalhos nos quais eu tenha aprofundado as
análises sempre que considerar conveniente.
No ano de 1917, durante uma greve na Viação Férrea, as rivalidades entre carneiros e
paredistas levaram à instauração de um conflito entre um grevista, um colega de trabalho e o
contramestre da empresa. O conflito iniciou quando o grevista Juvenal Vasquez encontrou
com seu colega, Honorato Souza, em um boteco próximo à estação férrea de Gravatahy. A
discussão iniciada em função da posição divergente de ambos em relação à greve levou a um
conflito físico que teve como consequência o assassinato de Vasquez pelo seu contramestre,
João Guimarães. O processo instaurado a fim de apurar o ocorrido – e que resultou na
absolvição do réu – oferece uma grande quantidade de depoimentos e testemunhos que
5
possibilitam ao pesquisador uma incursão a um importante espaço de sociabilidade operária: o
boteco. Além de dar visibilidade às disputas entre grevistas e não grevistas e mostrar que tais
rivalidades extrapolavam o ambiente laboral, podendo resultar em conflitos físicos, o processo
mostra que o boteco era um importante espaço de lazer e sociabilidade entre os operários
daquela estação, uma vez que muitos dos depoentes eram funcionários da mesma e estavam
presentes no bar de Pedro Zíngaro no momento do incidente (ESTADO do Rio Grande do
Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 833. Porto Alegre: 1917). A análise dos
depoimentos do processo evidencia o antagonismo entre os trabalhadores que não aderiram
àquela greve e os operários grevistas, tornando visível a rivalidade que se estabelece a partir
da decisão de aderir ou não ao movimento.
Ainda em 1917, outro conflito envolvendo grevistas e não grevistas acabou resultando
na instauração de um processo contra diversos membros do sindicato dos calceteiros. O
conflito teria ocorrido após os membros do sindicato da categoria terem se reunido em
assembleia e, “fortemente trabalhados por correntes perniciosas de anarquismo, [...]
resolveram em sessão do predito sindicato que se evitasse por qualquer forma, e até mesmo
por meios extremos, que os operários que não haviam prestado sua adesão ao movimento
continuassem na labuta diária” (ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado.
Processo-Crime n.º 856, Porto Alegre: 1917). Em sua dissertação de mestrado, Silva Jr.
(1994) faz uma análise deste processo.
Todavia, o processo mais rico em informações que tive a satisfação de encontrar
durante minhas pesquisas no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul foi no decorrer
da greve generalizada de 1919, em Porto Alegre. Esta greve assumiu as características de uma
greve eruptiva (PERROT, 1992, 95), na qual as categorias profissionais, uma após a outra,
iam deflagrando seus movimentos. E, justamente no dia em que se comemora a independência
do Brasil, foi marcado um meeting na praça Montevidéu. A polícia dispersou a manifestação
com violência, o que acabou resultando em uma troca de tiros entre os policiais e os
operários. Nesta ocasião, foi preso o operário da Companhia Força e Luz José Cândido da
Silva, gerando um processo fartamente documentado com os mais diversos folhetos, jornais
operários e impressos com o objetivo de comprovar os “fins tendenciosos” e o “caráter
6
sedicioso e revolucionário” do movimento grevista em questão (ESTADO do Rio Grande do
Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 1.016. Porto Alegre: 1919).
Além da grande quantidade de depoimentos e testemunhas de pessoas que
participavam da manifestação ou que, simplesmente, presenciaram o ocorrido, pude encontrar
anexos a este processo panfletos produzidos pela Federação Operária do Rio Grande do Sul –
FORGS (a Voz da Razão: aos soldados e operários; A Postos Operários), por sindicatos de
diversas categorias profissionais (Sindicato dos Operários da Força e Luz, Aos Pedreiros e
Ajudantes, Sindicato dos Metalúrgicos, Sindicato dos Canteiros, Sindicato dos Marceneiros,
Carpinteiros e Classes Anexas); pela recém fundada União Maximalista (Ao Povo Sedento de
Liberdade, Do Canhão à Peste, Boletim Protesto, ); panfletos produzidos por associações
operárias de outras cidades (Aos Trabalhadores, Ao Povo e A Sociedade produzidos pela
União Geral dos Trabalhadores, de Bagé), periódicos de outros países (La Barricada, de
Buenos Aires); uma moção de repúdio às intervenções na Rússia, Hungria e Tchecoslováquia,
aprovada por unanimidade em comício da FORGS; um cartão postal cuja importância
recolhida com sua venda seria destinada à União Maximalista e que apresentava a imagem da
revolução social em marcha sobre a Rússia e sobre a Hungria, tendo como inimigos o
capitalismo, as oligarquias, a diplomacia, e a Igreja; um panfleto produzido pela Aliança
Anarquista de Porto Alegre; panfletos contrários à intervenção na Rússia; com o hino da
Internacional dos Trabalhadores; cartas-manifesto assinadas por um “Delegado da República
dos Soviets Russos junto aos trabalhadores da República Burguesa dos Estados Unidos do
Brasil”; as Bases de Acordo do Partido Comunista do Brasil; uma circular, datada de março
de 1919, na qual os libertários do Rio de Janeiro conclamavam à formação de núcleos
estaduais para a criação do Partido Comunista do Brasil; o Programa do Partido Comunista
do Brasil e o programa maximalista russo de 1904. No entanto, a descoberta dos sete
primeiros números do jornal O Syndicalista, órgão da Federação Operária do Rio Grande do
Sul (FORGS), em excelente estado, preservados no interior deste processo ma surpresa
notável. De abril a setembro, pode-se observar todo o processo de organização das greves no
estado e no país e um panorama do cenário político e social internacional, com notícias e
editoriais sobre a situação da Rússia, da Hungria, sobre as greves na Argentina e sobre o
movimento dos sindicatos de diversas categorias profissionais. A Federação Operária do Rio
7
Grande do Sul – a FORGS – foi, sem dúvida alguma, a associação que mais influência
exerceu sobre o movimento operário gaúcho nas primeiras décadas do século XX.
Fundada em 1906, no decorrer da primeira greve geral do Rio Grande do Sul – a
“greve dos braços cruzados” ou “dos 21 dias” –, esta associação se manteve durante os quinze
anos subsequentes, pelo menos, como a mais relevante organização operária do estado. Criada
sob a égide dos socialistas – entre os quais destacamos Francisco Xavier da Costa –, após uma
série de disputas, passou a ter uma orientação predominantemente sindicalista, sobretudo após
1918, quando um grupo de militantes anarquistas conseguiu ocupar os cargos de liderança da
associação. Segundo Schmidt, seus criadores tinham o intuito de “aproveitar o momento de
efervescência dos trabalhadores a fim de organizar uma instituição unificadora de suas lutas e
interesses” (SCHMIDT, 2005, p. 49). É importante observar que, tanto esses jornais quanto os
demais panfletos e materiais inclusos no processo estariam perdidos se não fosse esta
acidental preservação e, hoje, estão disponíveis para serem incorporados às pesquisas.
Em maio de 1919, durante uma greve dos padeiros, um incidente entre um trabalhador
que continuava a desempenhar a sua função e um grevista que havia sido designado para
vigiar os trabalhadores que não tinham aderido à greve, acabou resultando na instauração de
um processo-crime no qual o padeiro Leopoldo Silva era acusado do assassinato de Antônio
Rodriguez Lopes. Em diversas ocasiões, para impedir a continuidade do trabalho, os padeiros
em greve fizeram uso das mais variadas estratégias, algumas delas caracterizadas por uma
violência extremada, sendo esses trabalhadores “famosos por ataques a fura-greves,
espancamentos de homens e animais, tiroteios, incêndios de carroça, explosões de fornos,
envenenamento de farinha etc.” (SILVA Jr., 2002, p. 95). Enfim, os padeiros pertenciam a um
grupo de categorias profissionais no qual “as violências grupais tinham o seu papel
claramente discriminado nos conflitos” (SILVA Jr., 1994, p. 305). Neste processo, Silva foi
denunciado por “ter assassinado bárbara e friamente o mísero operário padeiro Antônio
Rodriguez Lopes” (Processo-Crime n.º 1016. Porto Alegre: 1917). Consta no processo que
O denunciado tomara parte ativa da greve dos padeiros, declarada nesta capital e foi esse
míster de grevista destacado para vigiar os companheiros que não haviam aderido à
parada que ele foi postar-se, às primeiras horas da manhã do dia 16 do corrente [maio de
124 1919], à esquina das ruas Voluntários da Pátria com a Vigário José Ignácio, nas
proximidades da padaria “Piccini”. Antônio Rodriguez Lopes, que trabalha nessa padaria,
não tendo aderido à greve, ao passar pelo local em que se achava Leopoldo Silva foi por
este interpelado sobre a greve. De súbito, sem mais nem menos, Leopoldo Silva arrancou o
8
revólver e detonou-o duas vezes, de surpresa, contra sua infeliz vítima, prostrando-a sem
vida.
O réu confessou ter disparado contra Lopes, tendo justificado sua atitude afirmando
que, ao interpelar seu colega a fim de saber por que ele continuava trabalhando e por que não
aderia à greve, este alterou-se com ele e, como era maior e mais forte, disparou sua arma
contra o mesmo. O jornal O Independente, porém, dá outra versão ao fato, afirmando que, ao
regressar para casa às 8 horas da manhã após uma noite de serviço, o fornecedor Antônio
Rodrigues Lopes foi “alvejado pelas costas pelo padeiro Leopoldo Silva” tendo morte
imediata (09/09/1919). Neste sentido, ressaltamos a importância do entrecruzamento das
fontes a fim de poder comparar e discutir essas vozes contraditórias que emergem nos
diferentes discursos sobre o real. Chama a atenção neste processo o número de depoimentos
de imigrantes espanhóis e portugueses – o próprio Antônio Rodrigues Lopes, de 42 anos, era
português – e a relação de alguns padeiros grevistas com as meretrizes Maria Madalena
Rodrigues, Alice e Edelmira. Em outro texto (QUEIRÓS, 2013), analisei as práticas e
estratégias do Sindicato Padeiral de Porto Alegre durante essas greves, como as sabotagens e
as agressões aos fura-greves, bem como a força deste sindicato e a legitimidade que ele
conquistara junto ao governo do estado. Embora Silva tenha recebido auxílio do Syndicato
Padeiral, que criou uma Comissão Pró-Presos para providenciar que nada lhe faltasse (O
Syndicalista, 01/05/1919, p. 2), acabou recebendo uma condenação de dez anos e seis meses
de prisão celular, tendo cumprido pena até o dia 20 de dezembro de 1927.
Em setembro de 1895, um conflito envolvendo italianos membros da Sociedade
Beneficente Vitório Emanuelle II e um grupo de alemães ligados ao Centro Cathólico resultou
na abertura de outro processo-crime em virtude do empastelamento de uma tipografia
responsável pela impressão do jornal Deutsche Wolksblatt. Tal incidente teria ocorrido em
virtude de um artigo publicado no referido jornal, na edição do dia 20 de setembro, “[...]
protestando sobre o fato histórico da Tomada de Roma e que teria sido considerado ofensivo
pelos italianos. [...]” (ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-
Crime nº1834. Juri-Sumários. Porto Alegre. Maço 75. Estante 33. 1895. p. 68). Os italianos,
então, formaram uma comissão e dirigiram-se ao redator do jornal, Hugo Metzler, a fim de
exigir do mesmo uma retratação a respeito do artigo que julgavam insultuoso. No entanto, o
9
redator do jornal negou-se a atender o exigido pelos italianos, “alegando que seu feitio não
fora injuriar os a nacionalidades, pois que o que para os italianos parecia injúria, para ele eram
verdades”. Desta feita, alguns italianos redigiram uma mensagem em italiano direcionada aos
seus compatriotas e levaram-na à Agência Literária, onde “imprimiram-se algumas centenas
de cópias do dito original que foram entregues” com o intuito de convocar seus compatriotas
para uma reunião na Sociedade Vitório Emanuelle II a ser realizada no dia 29 de setembro às
8 horas da manhã a fim de “tomar as necessárias deliberações a respeito”. Este panfleto,
intitulado ITALIANI, encontra-se anexo ao referido processo.
É interessante perceber que, antes disto, o cônsul da Itália no Brasil procurara o então
chefe de polícia, Borges de Medeiros a fim de obter uma retratação do referido editor. Borges
de Medeiros, por sua vez, entrou em contato com o mesmo, “obtendo do redator da folha
alemã compromisso de dar explicação satisfatória ao melindre da colônia italiana; e que
seguro do critério do cônsul esperava tão somente o uso de meios legais para a desafronta que
reclamavam os italianos” (A Federação. Porto Alegre, 30/09/1895).
A despeito de o cônsul italiano conhecer as intenções do redator do periódico alemão
de retratar-se publicamente com os italianos, após a reunião do dia 29 de setembro, “um grupo
numeroso de italianos dirigiu-se ao palácio às 9 horas da manhã desse dia e destacou uma
comissão para falar ao Presidente do Estado” (A Federação. Porto Alegre, 30/09/1895). Júlio
de Castilhos, no entanto não pôde recebê-los naquele momento, marcando uma reunião com
os italianos insatisfeitos às duas horas da tarde. Os italianos, porém, dirigiram-se à referida
tipografia efetuando o empastelamento, que as autoridades afirmam que não poderiam prever
pois “sua causa já estava dirimida conforme desde a véspera sabia o Sr. cônsul d’Itália”. No
entanto, apesar das autoridades afirmarem que “jamais puderam prever que se consumasse o
atentado”, Hugo Metzler, o redator do Volksblatt, narrou o episódio no número seguinte de
seu jornal, afirmando que a polícia era uma “polícia de gatos” que nada pudera fazer.
Justificando esta sua afirmação, disse, em seu depoimento, que, “quando usou no seu jornal a
expressão polícia de gatos, usou de uma locução alemã que tem a sua correspondência em
português e que queria dizer que a polícia era para inglês ver pois a cidade inteira já sabia de
véspera que o atentado podia dar-se e que entretanto não foi evitado”. O processo relata o
ocorrido da seguinte forma:
10
“A atitude assumida por esse grupo de italianos prende-se diretamente ao fato de ter o
jornal alemão ‘Wolksblatt’ no dia 20 de setembro, aniversário de um dos mais gloriosos
cometimentos políticos da Itália, publicado um artigo ofensivo aos brios dos cidadãos
desse país, e no qual se procurava desvirtuar o elevado alcance do grandioso
acontecimento quer figura brilhantemente nas páginas da bela história italiana”.
Conforme a mesma fonte, o fato ocorrera no dia 29 de setembro, pela manhã, quando
“um numeroso grupo de italianos, saíram [sic] do prédio 199 à rua dos Andradas onde
funciona a Sociedade Vitório Emanuelle II e percorreram as ruas desta cidade em atitude de
amotinadores, notando-se o fato de estarem muitos deles armados de alavancas que traziam
habilmente disfarçadas”. Este numeroso grupo dirigiu-se, pelas ruas da cidade “dando vivas à
sua nação e morras aos jesuítas, assaltando e empastelando, depois, a tipografia do Centro
Cathólico, onde se imprimia o jornal Deutsche Volksblatt”.
Através deste processo, podemos dispor de uma variedade muito grande de
informações sobre a Sociedade Beneficente Vitório Emanuelle II e seus membros bem como
sobre os alemães do Centro Cathólico: dados como idade, profissão, naturalidade, estado
civil, residência podem ser encontrados em quase todos os depoimentos e interrogatórios.
Ademais, encontramos diversos depoimentos caracterizando o grupo de italianos como
composto de trabalhadores e gente pobre. No depoimento de Amélia Augusta Machado, ela
afirma que “na frente [do grupo de italianos] vinham uns oito ou dez italianos bem vestidos,
mas que o resto do grupo era constituído de trabalhadores, o que se via pelas mãos e trajar”.
Do mesmo modo, outro depoente, Manoel Joaquim Esteves relata que“[...] na frente [vinham]
uns indivíduos mais bem vestidos [...] e o restante do grupo [era] gente do trabalho mal
vestidos”. Em outro depoimento, afirma-se que “parecia um grupo revolucionário pois era uns
descalços, outros maltrapilhos, era gente de toda a laia” e que o grupo se compunha de “[...]
meia dúzia de homens limpos e que o mais eram operários e trabalhadores”.
O número de pessoas que participou do empastelamento varia de acordo com os
depoimentos de várias testemunhas: no depoimento de Clemente Wallan ele afirma que “um
grupo de duzentos italianos dirigiram pela rua dos Andradas e que ali chegando começaram a
quebrar as portas de vidro da casa onde se acha a tipografia, tratando depois de arrombar as
portas”. Já no depoimento de Carlos Walmer (ou Walbrumer) ele afirma que “viu um grupo
de seiscentas pessoas virem pela rua dos Andradas”. O grupo era composto, em quase sua
totalidade, por trabalhadores, pois se observa nos depoimentos constantes no processo que “na
11
frente vinham uns oito ou dez italianos bem vestidos, mas que o resto do grupo era
constituído de trabalhadores, o que se via pelas mãos e pelo trajar”. Esta caracterização pode
ser encontrada em vários outros depoimentos, como o de Manoel Joaquim Esteves que
salienta haver visto “um grupo em altos gritos e algazarra infernal pois alguns estavam
embriagados com as bandeiras nacional e italiana na frente desfraldada, e na frente deles uns
indivíduos mais bem vestidos e o restante do grupo gente do trabalho mal vestidos”,
destacando ainda que “parecia um grupo revolucionário tal era a sanha com que estavam”. No
depoimento de Lucas José da Veiga, ele observa também que parecia um grupo de
“revolucionários” pois “era [sic] uns descalços, outros maltrapilhos, era gente de toda a laia”,
sendo que o grupo se compunha de “meia dúzia de homens limpos e que o mais eram
operários e trabalhadores”. Análises deste conflito podem ser encontradas em QUEIRÓS
(2000 e 2007) e em SILVA Jr. (2007).
Neste artigo, procurei indicar algumas possibilidades no que se refere à utilização de
processos criminais nos estudos sobre história do trabalho, levantando algumas questões a fim
de suscitar um debate em torno desta rica documentação. Neste sentido, apontei que as
possibilidades de abordagens oferecidas por esta documentação são praticamente inesgotáveis
uma vez que nos oferece informações sobre sexo, profissão, idade, estado civil, grau de
instrução, cor e residência dos depoentes e réus; em seus testemunhos podemos nos aproximar
de aspectos da vida cotidiana que, em outras fontes, são praticamente invisíveis; observar os
conflitos que ocorrem fora do âmbito laboral, como aqueles que envolveram carneiros e
grevistas; analisar elementos relacionados à etnicidade; alguns processos nos permitem,
inclusive, observar descrições dos hábitos e vestuário dos envolvidos; sem contar com a
grande variedade de anexos que são preservados nesses processos e que, muitas vezes, são os
únicos exemplares disponíveis. Enfim, com a qualificação dos acervos e das instituições de
pesquisa, esta documentação torna-se cada vez mais acessível ao pesquisador disposto a
realizar aquele trabalho de exploração dos arquivos, garimpando processos é possível que
encontremos, ainda, valiosa documentação.
Referências:
Periódicos: O INDEPENDENTE
12
A FEDERAÇÃO O SYNDICALISTA Processos: ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 833. Porto
Alegre: 1917. ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 1.016. Porto
Alegre: 1919 ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 856, Porto
Alegre: 1917. ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime nº1834. Juri-
Sumários. Porto Alegre. Maço 75. Estante 33. 1895. Bibliografia: BATALHA, Cláudio. Cultura Associativa no Rio de Janeiro da Primeira República. In:
BATALHA, Cláudio; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (Orgs.). Culturas de Classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Unicamp, 2004.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo: uma analogia e as suas implicações. In: A Micro-História e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, Coleção Memória e Sociedade, 1989.
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1987. HOBSBAWM, Eric. Os Destruidores de Máquinas. In: Pessoas Extraordinárias: resistência,
rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1988. PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed., São
Paulo: Paz & Terra, 1992. QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. “Não há pão, não há padeiro: não se abriu a padaria”:
greves e manifestações do sindicato padeiral em Porto Alegre. In: História, imagens e narrativas. Nº. 17, outubro/2013.
QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. O Governo do Partido Republicano Rio-Grandense e a Questão Social (1895-1919). Porto Alegre: UFRGS, 2000 (dissertação de mestrado).
QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. O Posivismo e a Questão Social na Primeira República (1895-1919). Guarapari: Ex Libris, 2007.
SCHMIDT, Benito Bisso. De Mármore e de Flores: a primeira greve geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005. Coleção Síntese Rio-Grandense.
SILVA Jr., Adhemar Lourenço da. “Povo! Trabalhadores!”: tumultos e movimento operário. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em História/UFRGS, 1994.
SILVA Jr., Adhemar Lourenço da. Os sindicatos na idade da pedra. Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, jan./jun. 2002.
SILVA Jr., Adhemar Lourenço. Definindo e indicando. In: Métis: história & cultura. Vol. 6. Nº. 11, p. 121-140, jan./jul. 2007.
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. III, 1987.