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ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO
MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO
& IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA
2010
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A HISTORICIDADE DOS HERÓIS DE HOMERO
Renata Cardoso de Sousa1
INTRODUÇÃO
Teriam os heróis de Homero realmente existido? O melhor dos aqueus, o domador
de cavalos, o de muitos ardis de fato participaram de uma guerra que assolou Troia no
século XIII a.C.? É lícito para o historiador se debruçar sobre a Ilíada e a Odisseia para
estudar essa época? Homero realmente existiu? Essas e outras questões foram (e algumas
ainda são) frequentemente colocadas para aqueles que estudam as epopeias homéricas.
Para além de pretender solucionar tais questões, esse trabalho visa uma discussão
acerca da historicidade dos heróis de Homero: procuramos mostrar que eles têm uma
existência histórica e como isso pode ser possível. Ademais, nossos objetivos aqui também
são: apresentar uma maneira de analisar as obras homéricas, a qual usamos para nossa
pesquisa2, e verificar como o estudo dos heróis pode fornecer informações importantes
acerca dos valores passados aos kaloì kagathoí (belos e bons), a aristocracia políade.
COMO ANALISAR AS OBRAS HOMÉRICAS?
1 Cursando o sexto período da graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA) desde outubro de 2009 e bolsista de Iniciação Científica
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/PIBIC) desde dezembro de
2009. Orientada pelo Professor Doutor Fábio de Souza Lessa e desenvolvendo pesquisa em Homero. E-mail:
2 Atualmente, estamos desenvolvendo uma pesquisa que visa mostrar como Homero constrói seus heróis,
tomando como ponto de partida a representação de Páris, o príncipe troiano que causou miticamente a guerra
de Troia, o qual, a princípio, parece ser um herói controverso. Isso se dá porque ele não possui uma grande
areté (virtude) guerreira. Além disso, analisamos de que maneira se dá a alteridade entre os gregos do
Peloponeso e os troianos, bem como o caráter paidêutico das obras homéricas.
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Desde a Antiguidade as epopeias de Homero são objeto de estudo; Robert
Aubreton, em seu livro Introdução a Homero (DIFEL/EDUSP, 1968) nos mostra várias
escolas de análise e pensamento, as quais algumas, inclusive, divergiam entre si, como era
o caso das escolas de Alexandria e Pérgamo3 (AUBRETON, 1968: 17-19). Platão, mesmo
crendo que os poetas deveriam ficar à parte do seu “Estado ideal”, reconhecia Homero
como o “educador da Grécia”, e Estrabão, contradizendo o que Eratóstenes havia afirmado,
defende que os lugares relatados por esse aedo possuem uma descrição geográfica precisa
(GABBA, 1986: 38-39).
Homero também foi objeto de estudo: a partir do século XVIII, a crítica filológica
dedicava-se a especular a sua existência, a sua condição de cego, a sua origem regional
(SERGENT, 2003: 390). E as descobertas arqueológicas dos séculos XIX e XX só vieram
a fomentar a “questão homérica”. Tudo começou quando Heinrich Schliemann (1822-
1890), um comerciante alemão, embevecido pelos poemas homéricos, decidiu investir na
descoberta da famosa região. Dirigiu-se à Turquia e começou as escavações, contudo sem
a mesma perícia e cuidado dos arqueólogos profissionais. Cada artefato encontrado
pertencia a um personagem da guerra para Schliemann: a máscara funerária de
Agamêmnon, a taça de Nestor, as joias de Hécuba. A perfeição das descrições de Homero
e a clareza com que estas se encaixavam naqueles objetos os quais estavam sendo
descobertos eram espantosas: Schliemann tinha razão de ficar extasiado.
Algumas décadas depois, arqueólogos recomeçaram as escavações no local e
acabaram descobrindo onze “Troias”, sobrepostas umas às outras. Os especialistas
classificam como sendo a Troia de Homero a de número VIIa, que teria existido entre
1300-1260 a.C. (CARLIER, 2008: 230-231). Entretanto, conforme os estudos das
tabuinhas de Linear B – escrita que foi decifrada por Michel Ventris e John Chadwick – e
as descobertas arqueológicas foram avançando, algumas contradições entre o poema e a
cultura material começaram a surgir.
3 A escola de Alexandria possuía uma postura atetética (do verbo athetéo, “pôr de lado”), isto é, o que seus
pensadores criam não pertencer à Ilíada original era suprimido; já a escola de Pérgamo tinha uma postura
exegética, ou seja, primava pela interpretação da obra (AUBRETON: 1968, p. 17-19).
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Isso acontece porque Homero compõe suas obras entre os séculos IX e VII a.C.4
Como observou Pierre Vidal-Naquet,
o fato de Homero ter desejado evocar a Grécia micênica não
significa que ele a tenha efetivamente descrito. Para começar está
faltando, entre outras coisas, a escrita dos escribas e toda a
sociedade que ela implica: sociedade dominada pelo palácio do rei
(VIDAL-NAQUET, 2002: 29).
O cruzamento de informações provindas da cultura material com as epopeias de
Homero mostram que duas épocas distintas se imiscuem: a Palaciana (XVII-XII a.C.), que
diz respeito à guerra de Troia, e a Políade Arcaica (VIII-VII a.C.), em que foram escritas
as obras homéricas. Além da questão da inumação e da incineração5, que denotam essa
constatação, também há a menção tanto ao bronze (utilizado na Época Palaciana, também
conhecida como Idade do Bronze) quanto ao ferro (cuja utilização se disseminou na Época
Políade) e a presença de reuniões em assembleias na agorá (algo caro a este período de
pólis).
A questão é que “é impossível fazer coincidir uma epopeia com uma escavação”
(VIDAL-NAQUET, 2002: 25). As escavações em Hissarlik não estão sendo feitas para
comprovar a Ilíada ou a Odisseia; do mesmo modo, não é a função do historiador que se
debruça sobre as obras homéricas tentar provar que a guerra de Troia, ou o “rapto”6 de
4 “É possível que o período descrito na obra [de Homero] abarque um milênio completo, do ano 1600 ao 600
a.C. Os especialistas situam a composição da dita descrição [da guerra de Troia] em uma época entre fins do
século IX e começos do século VII, quando se constitui e se consolida na Grécia europeia, insular e asiática
essa forma extraordinária de vida social, cultural, econômica e política que foi a pólis” (COLOMBANI,
2005: 8).
5 A prática da incineração não era algo recorrente no período em que teria ocorrido a guerra de Troia. Nessa
época, era comum a inumação, como se pôde observar com a descoberta dos thóloi, túmulos com cúpula.
6 A palavra rapto se encontra entre aspas porque esse é o modo mais conhecido de se designar a partida de
Helena de Esparta para Tróia. O verbo utilizado na Ilíada para defini-lo, ágo, também tem a acepção de
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Helena, ou as viagens de Odisseu de fato aconteceram. Não é nossa função provar que
Páris, Heitor, Príamo, Aquiles, Ájax ou Agamêmnon existiram realmente. Emilio Gabba
atentou para essa postura ao escrever que:
Em qualquer caso, e contemplando separadamente a investigação
sobre os poemas e a análise da realidade histórica dos feitos
descritos, o aproveitamento histórico da obra homérica será seguro
e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos como
família, vida social e política, instituições e normas, princípios
éticos, comportamento religioso, cultura material, ou fatores
econômicos. Os símiles entre os poemas são, em suma,
particularmente reveladores (GABBA, 1986: 45).
Desse modo, é muito mais profícuo nos debruçarmos sobre as obras homéricas a
fim de ver o funcionamento da sociedade políade arcaica, do que tentar comprovar a
existência factual de personagens e feitos heróicos. É adotando essa postura que
pretendemos, em nosso estudo, compreender o código de conduta dessa sociedade
guerreira.
O que Homero traz em suas obras transcende o simples relato do que aconteceu ou
uma análise da Estrutura Palaciana (XVII-XII a.C.); afinal, ele não é historiador (VIDAL-
NAQUET, 2002: 32). Defendemos aqui que tanto a Ilíada quanto a Odisseia possuem uma
função paidêutica (educacional) muito forte; elas relatam mitos e estes têm justamente a
função de “revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas
significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte
ou a sabedoria” (ELIADE, 1972: 13 – grifos nossos). O mito “possui o espantoso poder de
engendrar as noções fundamentais da ciência e as principais formas da cultura”
“condução por mar”, não necessariamente se referindo a uma retirada violenta. Logo, afirmar que Páris de
fato raptou Helena seria uma imprudência, visto que a tradução do verbo nos deixa essa ambiguidade.
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(DETIENNE, 2008: 34) e por isso a sua difusão constitui uma prática de paideía
(educação, formação helênica)7.
Homero, através da representação de situações e personagens provindas do material
mítico do qual ele dispõe8, mostra ao seu público um modo de agir, pensar e sentir que
dará à cultura grega uma unidade a qual fará com que os helenos se identifiquem como tais
pelas práticas que compartilham. As obras homéricas são as primeiras da literatura
ocidental a trazerem a questão da identidade/alteridade, tão cara a nós hoje em dia9.
POR QUE ESTUDAR OS HERÓIS?
Justamente pelo fato da Ilíada e da Odisseia desempenharem esse papel paidêutico,
é que a análise da construção dos heróis representados nelas constitui uma fonte importante
7 O termo paideía não possui uma tradução certa, visto que designa uma série de práticas que transcendem a
educação pura e simples. Essa palavra foi usada, primeiramente, em Ésquilo, no século V a.C. (JAEGER,
2010: 335). Entretanto, aplicar esse termo para se debruçar sobre os valores passados pelas epopeias
homéricas não se constitui em um anacronismo, pois essas obras foram utilizadas para educar várias
gerações, inclusive a de Ésquilo. Para mais informações sobre o assunto, consultar a obra Paideía: a
formação do homem grego, de Werner Jaeger (ver Bibliografia).
8 Homero não “inventou” os mitos: ele os compilou. Os mitos já existiam muito antes de Homero, sendo
passados através da oralidade, assim como faz o próprio aedo. Entretanto, isso não quer dizer que Homero
não tenha uma grande parcela criativa nas suas obras, pois “sobre o tema dado pela tradição, o aedo enfeita e
combina de acordo com o seu talento” (ROMILLY, s/d: 14).
9 Defendemos aqui que se dá uma alteridade entre os gregos do Peloponeso e os troianos. Entretanto, o
troiano não é o não-grego, visto que ele pertence à Hélade (como veremos mais à frente), mas sim o inimigo.
Desse modo, a alteridade que se dá entre eles diz respeito a essa inimizade, pois “(...) a identidade helênica
conhece tensões, fissuras e oposições de alteridades internas no seu seio – o Outro pode, também, ser o
Grego, como rival, inimigo, invasor, infrator de códigos de comportamento” (FIALHO, 2010: 114 – grifos
nossos).
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para compreender os códigos de conduta que se pretendiam passar para os ouvintes dessas
epopeias. Segundo Jean-Pierre Vernant,
Mas, para que a honra heroica permaneça viva no seio de uma
civilização, para que todo o sistema de valores permaneça marcado
pelo seu selo [o do herói], é preciso que a função poética, mais do
que objeto de divertimento, tenha conservado um papel de
educação e formação, que por ela e nela se transmita, se ensine, se
atualize na alma de cada um este conjunto de saberes, crenças,
atitudes, valores de que é feita uma cultura. (...) a epopeia
desempenha o papel de paideía, exaltando os heróis exemplares,
assim como os gêneros literários „puros‟ como o romance, a
autobiografia, o diário íntimo o fazem hoje (VERNANT, 1978:
42).
O herói é um personagem fundamental na vida dos gregos; eles são exemplos a
serem seguidos. São potências sobre-humanas a serem reverenciadas, visto que se ligam
aos deuses seja por parentesco (como Aquiles, bisneto de Zeus) ou por afeição (como
Páris, protegido de Afrodite e Apolo). Karl Kerényi afirma que não podemos negar
existência factual, historicidade, aos heróis, pois estes se
(...) mostram, alguns mais e outros menos, entrelaçados com a
história, com os acontecimentos, não de um tempo primevo que
está fora do tempo, mas do tempo histórico, e que lhe toca as
fronteiras tão intimamente como se já fossem história
propriamente dita e não mitologia (KERÉNYI, 1998: 17).
Para o público de Homero, os heróis existiram; afinal “sem a crença na realidade do
seu objeto, o mito perderia sua razão de ser” (FINLEY, 1988: 20). Eles eram cultuados e
algumas cidades prestavam homenagens a heróis específicos, ligados à sua fundação. Ele
era como um mediador entre os homens e os deuses, do mesmo modo que o aedo, nesse
sentido, visto que as Musas não revelavam seus conhecimentos para qualquer um senão um
poeta inspirado. O culto a esses heróis é fundamental à sua imortalidade – visto que a
verdadeira morte para eles era o esquecimento, léthe – e à manutenção desse vínculo com
os deuses.
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Os heróis são homens exemplares e estar ligado a eles implica numa areté (virtude)
considerável; por isso muitos deles foram reivindicados como antepassados pelas famílias
aristocráticas, às quais conferiam um passado glorioso (LÉVÈQUE, 1996: 175; GUAL,
2006: 170), como foi o caso, por exemplo, de Alexandre, O Grande. Ele estava bem
servido de antepassados gloriosos, à medida que a família de seu pai, Felipe II, dizia ser
descendente de Héracles e a de sua mãe, Olímpia, de Aquiles (PLUTARCO, II, 1).
Além disso, as epopeias homéricas vão ser utilizadas como um instrumento de
paideía, de formação, educação helênica; segundo Jaeger,
foi com os sofistas que essa palavra, que no séc. IV e durante o
helenismo e o império haveria de se ampliar cada vez mais a sua
importância e a amplitude do seu significado, pela primeira vez foi
referida à mais alta areté humana e, a partir da „criação dos
meninos‟ – em cujo simples sentido a vemos em Ésquilo, pela
primeira vez –, acaba por englobar o conjunto de todas as
exigências ideais, físicas e espirituais, que formam a kalokagathia,
no sentido de uma formação espiritual consciente (JAEGER, 2010:
335).
Os heróis, ao serem rememorados, se constituem (ou não) em exemplos a serem
seguidos.
Tomemos como exemplo o herói de nossa pesquisa, Páris: a partir da análise da sua
personalidade10
, percebemos que são evidenciadas nele as seguintes características: sua
10 Defendemos aqui que cada herói tem a sua personalidade, sua singularidade; Aubreton pretendeu afirmar
isso quando escreveu que “foi sua função [a de Homero] essencial ter dado uma vida individual aos heróis,
assim como uma vida humana aos deuses” (AUBRETON, 1968: 187). “Pretendeu afirmar” porque não
podemos nos esquecer de que o conceito de individualidade não se aplica ao estudo da Antiguidade, por ser
um termo cunhado a posteriori. Assim como Aquiles se destaca pela velocidade, Odisseu pela sua métis
(astúcia) e Heitor pela sua habilidade com cavalos, Páris destaca-se pela sua beleza, por exemplo; cada herói
é singular, cada um tem a sua característica. Ao longo do texto das epopeias, há dispositivos que nos
permitem averiguar a personalidade dos heróis, tais como: a) os seus epítetos, b) as adjetivações concernentes
a eles e c) os comentários que se faz acerca deles, seja pelos personagens mesmo ou pelo próprio aedo.
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beleza, sua habilidade musical, sua habilidade de sedução, o fato de ele ter causado a
guerra, sua falta de firmeza e coragem e sua reluta em comparecer ao campo de batalha11
.
Logo, faltam-lhe características de um herói guerreiro, características bélicas. Sendo a
Ilíada um poema que versa sobre uma guerra, a presença de um personagem assim denota
não um modo de conduta guerreira, mas um exemplo de como não agir em uma guerra.
A beleza, a habilidade musical, são valorizadas pelos kaloì kagathoí; na Ilíada,
Aquiles dedilha sua lira e isso não faz dele um herói menor, assim como a kállos, a
beleza12
, é um elemento importante no código de conduta expresso pelas obras homéricas e
o qual serve de modelo a essa aristocracia políade. Entretanto, Páris não possui tanta areté
(virtude) guerreira quanto Aquiles, Heitor, Menelau ou Odisseu, cujos epítetos mesmo13
já
revelam sua conexão inextricável com o ambiente bélico.
Lembrando que essa divisão é artificial, com fins didáticos, uma vez que os adjetivos podem estar inseridos
nos comentários, por exemplo.
11 Chegamos a essa conclusão pela seguinte caracterização dele: a) no que toca aos epítetos temos “divo”
(theoeidés, que literalmente significa “semelhante aos deuses”), (vários versos) e “marido de Helena
cacheada” (vários versos); b) como adjetivações, “Páris funesto” (Dýsparis), (III, v. 39), “fautor desta
guerra” (III, v. 87; VII, v. 374), “fautor de desgraças” (VI, v. 282), “de belas feições” (III, v. 39) e “sedutor
de mulheres” (III, v. 39) e c) no que toca os comentários, temos, por parte de Heitor, “careces de força e
coragem” (III, v. 45), “Esses cabelos, a cítara, os dons de Afrodite, a beleza, não te valeram nada ao te vires
lançado na poeira” (III, v. 54) e “Mas, voluntário, te escusas; não queres lutar” (VI, v. 523) e, por parte de
Helena, “Este, porém, nunca teve firmeza, nem nunca há de tê-la” (VI, v. 352).
12 O homem kalós, belo, é tanto o homem que tem beleza física quanto beleza “interior”, que é também
agathós (bom).
13 Como epítetos deles – os quais aparecem em vários versos da Ilíada, temos, respectivamente: “de pés
velozes”, “domador de cavalos” ou “de penacho ondulante”, “de Ares forte discípulo” e “astucioso”. A
velocidade (Aquiles) é algo essencial na guerra, bem como a lida com cavalos (Heitor); percebemos, ainda no
segundo epíteto de Heitor mencionado, uma ligação não só com a sua habilidade com cavalos, mas também
uma menção à armadura que o guerreiro usa, uma vez que o penacho, o qual se assemelha à crina do cavalo,
é uma parte da vestimenta guerreira. Quando Homero caracteriza Menelau como discípulo de Ares, sua
conexão com o ambiente bélico está denotada pela própria menção do deus da guerra. A métis de Odisseu se
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O estudo dos heróis e de sua conduta também implica na análise da sociedade em
que vivem; não podemos nos esquecer de que as pessoas, tomadas de forma singular (o que
chamaríamos de indivíduo hoje), e sociedade não se constituem num par antitético, mas
complementar: as pessoas estão imiscuídas na sociedade, fazem parte dela e através de
suas ações modificam-na. Norbert Elias chama atenção para o problema da análise da
singularidade e da coletividade:
As pessoas vivenciam o „indivíduo‟ e a „sociedade‟ como coisas
distintas e frequentemente opostas – não porque possam realmente
ser observadas como entidades distintas e opostas, mas porque as
pessoas associam essas palavras a sentimentos e valores
emocionais diferentes e, muitas vezes, contrários (...). A lente da
atenção pode ser regulada num foco mais amplo ou mais restrito;
pode concentrar-se naquilo que distingue uma pessoa de todas as
demais como uma coisa única; ou naquilo que a vincula às outras,
em suas relações com elas e sua dependência delas; e por fim pode
enfocar as mudanças e estruturas específicas da rede de relações de
que ela faz parte (ELIAS, 1994: 75-76).
Os heróis têm, sim, suas personalidades singulares; entretanto, estão ligados a uma
sociedade, a qual tem um código de conduta estabelecido. Preza-se a coragem, a honra, a
hospitalidade, a boa relação com os deuses, a prática esportiva. A análise de Páris, por
exemplo, é mais profícua se a fizermos tendo em consideração as normas das quais ele
desfruta dentro da sociedade em que está inserido.
liga à guerra à medida que esta foi ganha através de uma métis dele: o cavalo de madeira. Entretanto, essa
métis não está relacionada à trapaça, a algo “negativo”, mas sim à estratégia a qual se necessita em uma
guerra.
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Páris é um heleno; embora esteja na parte asiática da Hélade14
, ele não deixa de
compartilhar da cultura grega. Gregos e troianos não pertencem a culturas15
diferentes,
tampouco a nações diferentes: como observou Vernant,
Aquiles é inimigo de Heitor, detesta-o, não porque ele é troiano
(não há nação, não há chauvinismo, gregos e troianos se
entendem muito bem, falam a mesma língua, têm as mesmas
reações, e os troianos são descritos pelo poeta com a mesma
simpatia), mas porque Heitor matou aquele que era para ele como
um irmão, Pátroclo (VERNANT, 2009: 91 – grifos nossos).
Assim, à medida que ele transgride normas, ele constitui-se em um exemplo de
como não se deve agir. Páris, ao retirar Helena de Menelau quando estava alojado em seu
palácio, cometeu uma infração: desrespeitou a hospitalidade (xénia)16
, prática cara aos
helenos. Essa transgressão foi uma das engrenagens da áte (perdição) de Páris: visto que a
áte se dá de três momentos (princípio, estado/ato e consequência), o “rapto” de Helena é o
14 A Hélade da Antiguidade tinha uma faixa territorial muito mais extensa do que a Hélade de hoje e dividia-
se, basicamente, em três regiões: Hélade continental (onde estavam Atenas, Delfos, Áulis, Tebas, Micenas,
Esparta), Hélade insular (as ilhas Rodes, Delos, Creta, Lemnos, Melos, Paros) e Hélade asiática (no litoral
da Ásia Menor, onde ficavam Troia, Halicarnasso, Mileto).
15 Aqui, consideramos o traço marcante de uma cultura a língua; além disso, como mostra a passagem
subsequente, eles tinham, além da mesma língua, os mesmos hábitos, cultuavam os mesmos deuses.
16 A xénia, a hospitalidade, é “[...] um código de conduta, uma convenção não escrita que atravessava as
fronteiras do Mediterrâneo oriental. Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida, em que havia
troca de presentes e festivais, e sua origem estava na xenuia da Idade do Bronze tardia [...] que surge nas
tábuas de Linear B [...]. A xenuia governaria, na verdade, o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros
aos palácios do Peloponeso no século XIII a.C. [suposto século da ocorrência da guerra de Troia]”
(HUGHES, 2009: 188). É um valor tão relevante na Ilíada que, em um episódio dessa epopeia, dois
guerreiros recusam-se a travar uma luta em decorrência de os antepassados de um haverem recebido os de
outro com hospitalidade (VI, vv. 225-233).
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“estado/ato” que teve como princípio a escolha de Afrodite17
e a guerra como
consequência (MALTA, 2006: 78). Do mesmo modo, quando recua ante a fúria de
Menelau antes do episódio do combate singular entre eles (HOMERO. Ilíada III, vv. 15-
37), está indo de encontro ao ideal de guerreiro intrépido no combate.
O herói é o modelo do kaloì kagathoí, como vimos anteriormente; entretanto, como
Marcel Detienne mostra18
, os heróis também foram construídos com base em um modelo.
Homero compôs suas obras em um contexto histórico; desse modo, ele lança mão do que
está disponível para sua época, como observa Pierre Carlier:
O público que escutava A Ilíada e A Odisseia sabia que certos
costumes da „idade dos heróis‟ diferiam dos hábitos da sua época.
Também os aedos se acautelavam para não cometerem um
anacronismo flagrante. Contudo, não podiam abstrair-se
totalmente da civilização material que lhes era familiar e tinham de
referi-la para serem compreendidos (CARLIER, 2008: 239).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em virtude do apresentado, pudemos compreender que a análise da Ilíada e da
Odisseia vai além da simples tentativa de comprovação de feitos heróicos, da existência de
uma guerra ou da existência do próprio aedo: é mais profícuo buscar a compreensão das
17 Conforme o mito do Julgamento de Páris, houve uma disputa entre Hera, Athená e Afrodite pelo pomo de
Éris (Discórdia), o qual continha a inscrição “para a mais bela”. Zeus atribuiu a decisão a Páris, que escolheu
Afrodite após ela lhe ter oferecido, em troca, a mulher mais bela, Helena.
18 “Não se trata, seguramente, de um ‘passado histórico’ [aquele o qual a Musa canta]. Os heróis de
Homero se situam em um tempo original, um tempo poético (...). Entretanto, é preciso acrescentar que neste
tempo poético toda perspectiva ‘histórica’ não está ausente: M. TREU (...) insistiu sobre a importância dos
ἄνδρες πρότεροι [homens anteriores, antigos] como modelos dos heróis homéricos” (DETIENNE, 1988:
79).
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estruturas políticas, econômicas, sociais, culturais, religiosas e institucionais da época em
que os poemas foram compostos.
Além disso, a rememoração dos heróis a partir da epopeia – a qual representa suas
façanhas, personalidades e modos de agir – é importante para a configuração de todo um
código de conduta heleno, corroborando a ideia de uma função paidêutica das obras
homéricas. No tocante à historicidade desses heróis, ela está ligada, por um lado, ao papel
que suas personalidades desempenham na vida do público de Homero – que os
rememoram e os cultuam – e, por outro, à ligação inextricável entre o aedo que compôs as
obras e o seu contexto histórico, fazendo com que a trama e os heróis sejam constituídos
com base na própria sociedade na qual ele vive e conhece.
Dessa maneira, apresentamos aqui um método de análise das obras homéricas, o
qual utilizamos na nossa pesquisa e cremos ser bastante útil para a compreensão dessas
epopeias.
ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO
MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO
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