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A História da Química contada por suas descobertas Reinaldo Calixto de Campos João Augusto Gouveia Este documento tem nível de compartilhamento de acordo com a licença 3.0 do Creative Commons . http://creativecommons.org.br http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/br/legalcode

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 A História da Química contada por suas

descobertas  

Reinaldo Calixto de Campos João Augusto Gouveia

               

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Um pouco de História, de História da Química e de Química contada pela vida de

Fritz Haber, o descobridor da síntese da amônia a partir das substâncias simples que

a formam.

Biografias podem ser escritas apenas como um conjunto de datas e feitos. Podem ser também uma

novela heroica: ao fim da leitura, não queremos ser outra coisa senão aquele herói. Uma vida mágica,

uma coleção de vitórias, ou, mesmo nas derrotas, o heroísmo. As angústias, se existentes, são vencidas

ao fim. Final feliz, sempre. Ou pode ser justo o oposto (ou seja, o mesmo): a biografia de um monstro

sem coração que, de tão ruim, nos torna melhores: não somos como ele! Herói ou vilão, nenhum dos

dois humanos. Os dois confortam, ambos por (des)identificação.

Bem, a vida real é mais complexa. Herói ou vilão, sentimentos contraditórios existem dentro de cada um

de nós. Coragem e medo; certeza e dúvida. Amor e ódio. São sentimentos humanos, contradições que

não precisamos negar, e ao reconhecê-los, saberemos como (com)viver, e amar melhor.

Daí, escolhermos a vida de Fritz Haber para contar a vocês. Um herói, um anti-herói, uma pessoa

comum, uma pessoa especial, um homem do seu tempo, um homem a frente de seu tempo. Um

homem atropelado pelo seu tempo.

Vamos lá, então.

Fritz Haber nasceu em 9 de dezembro de 1869, em Breslau, na Prússia (que depois passou a fazer parte

da Alemanha), e hoje fica na Polônia. Bem, já temos que dar uma parada aqui. Que diabo de Prússia é

esta? Não é Rússia? E o que faz hoje na Polônia uma cidade que era na Alemanha?

Acontece que a Alemanha, naquele tempo, não era certamente a Alemanha de hoje: um país

desenvolvido, associado à tecnologia e à capacidade de organização. Na época, a Alemanha, tal como a

conhecemos hoje, não existia; mas mal estava terminando de se formar. Ao contrário da Rússia,

Espanha, Portugal, Inglaterra e a França, que mesmo naquela época já existiam há centenas de anos

mais ou menos como são hoje. Mas então o que havia lá, naquele lugar que hoje chamamos de

Alemanha? Havia uma série de reinos, principados, ducados maiores e menores, cidades independentes

etc., com línguas apenas parecidas (nem sempre um entendia o outro), com interesses políticos

diversos: os interesses da parte ao Norte se associavam mais ao comércio com o norte da Europa, com a

Escandinávia (ver Mapa I), via mar Báltico, com a Holanda e a própria Inglaterra. Ao Sul havia grande

influência do Império Austríaco. A parte ao longo do Rio Reno, próxima da França, tinha grande

influência deste país. Ou seja, dividida em pequenos estados, a Alemanha não era páreo para os países

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vizinhos já formados, como a Inglaterra, a França e até mesmo a Suécia. Em alguns momentos, o que

hoje chamamos de Alemanha foi o saco de pancadas do resto da Europa. A Guerra dos Trinta Anos

(1618 a 1648), travada entre católicos e protestantes (na verdade, travada entre príncipes que se

associavam a um lado ou outro, conforme seus interesses) foi especialmente destrutiva para a região,

contribuindo para perda de colheitas, fome, empobrecimento etc. Depois disso, lá pelo tempo do

nascimento do nosso Haber, ou seja, no século XIX, definiu-se entre os diversos estados mais ou menos

independentes que formavam a Alemanha (mapa II) um deles bem mais forte: a Prússia! Não confunda

com Rússia, embora a Prússia seja a parte da Alemanha mais próxima da Rússia. Ali está Berlim, uma

grande cidade da Europa Central. Em torno da Prússia deu-se a unificação da Alemanha, por bem e por

mal. Alguns daqueles estados independentes se associaram à Prússia, após conversas políticas. Outros

foram associados à força. E assim, lá por aquela época do nascimento do Haber, surgia mais uma grande

nação europeia: a Alemanha. Houve um grande motor para isso: a revolução industrial. Ela não se deu

só na Inglaterra, como às vezes parece. A industrialização da Alemanha foi um fenômeno tão incrível

naquela época, como é o da China hoje. E, mais ou menos, pelos mesmos motivos: mão de obra barata,

bom nível de instrução da população e razoável infraestrutura. As taxas de crescimento da Alemanha se

tornaram as maiores da Europa, certamente do mundo. Note também que houve uma revolução

educacional, pois ficava claro que, naquele mundo que se industrializava, o conhecimento técnico e

científico era essencial: fundaram-se escolas, centros de pesquisas, cresceram as universidades. E cada

um daqueles estados, antes separados, não era, antes da unificação, um zero à esquerda. Afinal, nomes

como Beethoven e Goethe vem bem de antes da unificação. Eles já tinham suas instituições,

universidades, escolas, institutos de pesquisas, etc. O resultado é que, em uma Alemanha que crescia

rapidamente, com forte industrialização, começaram a surgir os nomes que conhecemos dos livros de

Física e Química: Planck (o da constante de Planck), Liebig (estudioso da Química orgânica e agrícola),

Bunsen (ele mesmo, o que inventou o famoso bico de Bunsen e fundou a espectrometria), Kekulé (o do

anel benzênico) etc. Se fizéssemos uma curva “grandes nomes da ciência x ano” certamente no caso dos

alemães essa curva começaria a subir fortemente nesta época. Bem, foi neste momento que nasceu

Haber. Neste momento, começou também outro fenômeno: o nacionalismo. Para nós, brasileiros, é

difícil entender como este fenômeno, na Europa, vai terminar desaguando em tragédia. Nacionalismo

para nós tem até um sentido positivo: significa lutar pelos interesses legítimos do nosso país, lutar para

que se desenvolva, supere seus dramas sociais, seja respeitado no mundo, etc. Não importa se religioso

ou não, ou em quem se vote, aqui todos se declaram nacionalistas. Daí a surpresa de muitos brasileiros

quando, na Alemanha, declaram-se nacionalistas. Nossa, lá o significado não é bom! Leva um tempo

para entender, mas vamos chegar lá.

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A Alemanha se tornava, então, um grande país, unificado, industrializado, com altas taxas de

desenvolvimento. Mas será que havia no mundo espaço para outro grande país? Olhe agora o Mapa III -

o mapa do mundo, no século XIX - mostrando os domínios europeus. Apesar de os países da América já

serem independentes, o resto do mundo estava sendo fatiado entre as potências europeias e a

Alemanha, tendo se unificado tardiamente, não participava da festa... ou, mais exatamente, participava

muito pouco. E que festa era essa? Certamente não era apenas poder viajar para terras exóticas, fazer

safáris ou ser tratado com reverência pelos nativos. Na verdade, havia enormes vantagens comerciais, e

daí econômicas, em ter colônias ou áreas de influência (na América Latina não tinha quase mais

colônias, mas era uma área de influência da Inglaterra). Só para ficar no barato: eram mercados cativos,

obrigados a comprar os produtos da metrópole e a vender suas matérias primas a preço de banana. Um

exemplo, que parece inacreditável: havia um “tratado” entre a Índia (colônia) e a Inglaterra (metrópole)

que proibia a Índia de produzir sal (é isso aí, sal de cozinha), obrigando o sal a ser importado da

Inglaterra (no filme “Gandhi” há uma bela passagem sobre isso). Pois é, e a Inglaterra era a pátria do livre

comércio... Mas, livre para quem? Assim, logo, logo, o crescimento da Alemanha esbarrou em limites: ela

não tinha colônias, e não havia como competir com as outras potências nessas condições. O mundo

vivia mais ou menos em paz (ou pelo menos a Europa, dona do mundo na época) e, mesmo sem

colônias, a Alemanha havia encontrado algum espaço para crescer, pelo crescimento de seu mercado

interno, políticas protecionistas, pelo tamanho relativamente grande de sua população, por apresentar

condições vantajosas para a industrialização, e assim foi indo. Mas, quanto mais se cresce, mais

apertado fica o figurino. E aí começam as guerras. Então, a Alemanha (ainda na forma de Prússia e no

processo de unificação) guerreia com a Dinamarca, com a França, obtendo vitórias que aumentam a

força do movimento de unificação. E, para levar uma população a um esforço de guerra, é necessário

convencê-la, contar uma história em que todos acreditem e se identifiquem. Esta história, na Alemanha,

foi o nacionalismo. Era importante convencer a todos que era admirável ser alemão, tinha-se que se ter

orgulho de ser alemão… “alemão”, um termo que até poucos anos antes sequer existia... A coisa colou,

pois junto com o desenvolvimento industrial vieram vitórias militares, melhoria no padrão de vida, a

sensação de identidade e orgulho nacional. A Alemanha, que era o cachorro morto da Europa (todo

mundo chutava) havia, enfim, tornado-se uma grande nação. Bem, foi nesse ambiente que nasceu o

nosso Haber... Depois contamos porque Breslau, que era na Prússia e depois Alemanha, terminou na

Polônia..

Para tornar as coisas ainda mais interessantes, nosso Haber era... judeu! Naquela época, os judeus na

Europa, por uma série de razões, formavam minorias que não gozavam dos mesmos direitos do que os

outros. No que hoje conhecemos por Alemanha, a maioria da população era dividida entre católicos e

protestantes, e inclusive essa divisão havia contribuído para impedir que o país se unificasse. Assim, no

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projeto de unificação, ser alemão deveria estar acima de qualquer coisa. Portanto, com a unificação veio

um certo (eu disse “um certo”) esfriamento das divisões religiosas, o que permitiu, inclusive, uma boa

integração da população judaica. No caso de Haber, embora judeu, ele era integrado. Toda essa história

para a gente soa estranha, no Brasil. Aqui, desde que nascemos, estamos acostumados a que pessoas de

diferentes religiões tenham os mesmos direitos políticos. Não importa se você é católico, evangélico,

umbandista ou judeu, você pode votar, ser votado, comprar propriedades, terras, ser presidente. Basta,

para tudo isso, ser brasileiro. Mas não era assim na Europa em relação aos judeus. Por exemplo, foi só

depois da Revolução Francesa (1789) que, na França, os direitos das pessoas passaram a independer da

religião. Só então os judeus (e outras minorias) puderam se tornar cidadãos completos, representarem-

se politicamente, comprarem terras, etc. Até então isso era proibido na França e no resto da Europa. Nos

outros países europeus, essa igualdade de direitos demorou ainda mais a acontecer, porém, ao longo

do século XIX, terminou também acontecendo, como uma consequência da divisão entre Estado e

Religião: o cidadão era livre para ter a religião que quisesse e o Estado era laico, ou seja, não havia

qualquer religião oficial. Na Alemanha recém unificada, os judeus também passaram a ter os mesmos

direitos de cidadania, com o recuo da influência da religião na vida política e a ascensão do

nacionalismo. Assim, Haber, nascido em uma família judaica, foi chamado de Fritz Jacob, mas depois

mudou seu nome para Fritz, não um indicativo de uma negação de suas origens, mas de sua

autoidentificação como alemão. Seu pai era um rico comerciante e seus negócios envolviam a

importação de corantes naturais e produtos farmacêuticos. Sua mãe morreu dois dias após o seu

nascimento (o que era comum naquela época), e seu pai casou-se uma segunda vez, nove anos depois,

com uma mulher bem mais jovem, e ele ganhou três irmãs deste casamento. Uma figura importante na

vida de Haber foi seu tio Hermann, um tipo liberal, que o incentivou nos seus primeiros experimentos

de Química, permitindo, inclusive, que Haber realizasse algumas experiências de Química em sua casa.

Este interesse por Química teve certamente alguma influência dos negócios do pai, que também

entendia um pouco do assunto. Sua educação deu-se primeiramente no que seria aqui uma escola

pública e depois no St Elizabeth Gymnasium, uma escola de Breslau, com ênfase em Literatura e

Filosofia, e onde metade dos alunos era de confissão cristã e a outra metade, judaica. Apesar das

pressões da família para assumir os negócios, e com apoio do Tio Hermann, Haber entrou para a

Universidade com 18 anos, em Berlim, capital da Prússia (e depois, da Alemanha), para estudar Química

e Física. O sistema alemão de educação, na época, permitia aos alunos fazerem matérias em diferentes

Universidades. Depois de um semestre em Berlim, ele passou um ano e meio em Heidelberg, onde

frequentou as aulas de Robert Bunsen (o do bico de Bunsen e muito mais...). Voltou a Breslau para o

serviço militar e, depois, em 1889, voltou a Berlim, e realizou seu Doutorado em Química Orgânica, em

1891. Interessante notar que seus examinadores anotaram seu desconhecimento em alguns aspectos

da físico-química, sem saber que esta seria a área na qual, Haber brilharia futuramente. Ele voltou para

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Breslau, meio perdido, empregando-se como estagiário em várias indústrias: seu primeiro emprego foi

em uma destilaria, em Budapeste; depois em uma fábrica de fertilizantes, perto de Auschwitz

(exatamente, o lugar onde mais tarde, haveria o infame campo de concentração), e em uma indústria

têxtil, na Áustria. Estas experiências foram, para Haber, um banho de água fria, pois ele percebeu o

quanto era ainda deficiente sua formação, especialmente em tecnologia química. Não que a teoria na

prática fosse outra, como se costuma dizer aqui, mas simplesmente que há um espaço entre a teoria e a

prática bem feita, que deve ser preenchido. Este espaço se chama “tecnologia” e preenchê-lo é

exatamente uma das nossas grandes dificuldades aqui no Brasil. Só para dar um exemplo: os

conhecimentos básicos de física necessários para lançar um foguete ao espaço são conhecidos de todos

os países que possuam bons físicos. O Brasil tem muitos e bons físicos, mas não consegue lançar seu

foguete VLS (Veículo Lançador de Satélites) no espaço. Por quê? Porque entre a física básica de lançar o

foguete ao espaço e lançar o foguete realmente há uma grande quantidade de conhecimentos, de

diferentes áreas (materiais, eletrônica, informática e computação, química, etc.) que não estão

disponíveis e que teremos que ir descobrindo por nós mesmos, pois ninguém vai dar de graça, para não

perder mercado. Ou seja, não dominamos a tecnologia de lançamento de foguetes, embora

conheçamos a sua física básica. Não se trata, portanto, de dizer que, na prática, a teoria é outra, mas

apenas que a teoria básica é necessária, mas não suficiente... Bem, e o que ocorre se não conseguirmos

lançar nossos foguetes? Nada, ou tudo. Os nossos satélites de comunicação, indispensáveis para a

sociedade moderna, inclusive a nossa, serão sempre lançados de foguetes de outros países, a um bom

preço que teremos que pagar. E é meio desconfortável sabermos que, para uma coisa tão essencial (ter

satélites de comunicação no espaço) dependemos dos interesses de outras sociedades. Porém, há

quem diga que não há problema, pois podemos trocar foguetes por soja... Mas isso é outra discussão.

Seja como for, na Alemanha que se unificava e se tornava um país poderoso, dominar e desenvolver a

tecnologia era visto como essencial, e foi nesse rio que Haber viria a nadar na sua vida profissional...

Assim, Haber, apesar de bem formado em ciências básicas, viu que seus conhecimentos técnicos eram

fracos. Para superar essa lacuna, foi para a Escola de Politécnica de Zurich (ETH), estudar tecnologia

química. Essa escola era um dos centros mais avançados do mundo em tecnologia química e por lá

Haber ficou um semestre. Voltou então para Breslau e aceitou trabalhar com seu pai nos negócios da

família. Não era bem o que queria, mas ele era o único filho homem, havia estudado Química e

tecnologia química, o que também o aproximava dos negócios do pai. Acontece que esses negócios já

não eram promissores: envolviam a importação de tinturas naturais, que já estavam sendo substituídas

por tinturas sinteticamente fabricadas, e Haber sabia disso. Aliás, este foi um dos grandes ganhos que a

tecnologia trouxe para a Alemanha: sua indústria química em geral e, em especial, a de corantes. Ao

sintetizar as mesmas tinturas que até então eram obtidas de produtos naturais, essas se tornaram mais

baratas, e as empresas alemãs conquistaram uma fatia importante do mercado. Até hoje a Alemanha

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tem na sua indústria química um dos principais motores de sua economia. Bem, Haber e seu pai

também não se entediam quanto à condução dos negócios e, de fato, Haber não gostava muito

daquela vida de empresário-administrador (embora viesse a se tornar um grande empreendedor). Um

grande problema se deu quando uma epidemia de cólera grassou em Hamburgo, e já se sabia, então,

que a água deveria ser tratada, no caso com hipoclorito de cálcio, um produto comercializado pela

firma do pai (só para nos localizarmos, a água sanitária é uma solução de hipoclorito de sódio). Haber

convenceu o pai a comprar grandes quantidades do produto, prevendo um grande consumo, mas a

epidemia foi isolada e o produto encalhou; a firma teve um grande prejuízo. Assim, ficou claro para

ambos que o melhor era nosso Fritz se voltar para a vida acadêmica. Graças a um amigo influente,

Haber foi para a Universidade de Jena, em 1892. Essa Universidade havia sido fundada em 1548, como

um centro teológico luterano, uma linha do protestantismo. Dois grandes nomes da cultura alemã,

filósofos e poetas, Goethe e Schiller, foram ativos ali, na passagem do século XVIII para XIX.

Posteriormente, ali se fundou a firma Zeiss, que se tornaria uma referência em equipamentos óticos. O

Departamento de Química da Universidade recebia uma generosa ajuda dessa empresa, por meio da

Fundação Carl Zeiss. Apesar disso tudo, a Universidade de Jena não era das mais importantes na

Alemanha, e o que Haber realmente desejava era trabalhar em uma grande Universidade. Ele tentou ser

aceito para trabalhar com o grande físico-químico Ostwald (o da lei da diluição de Ostwald, entre outras

coisas), em Leipzig (não muito distante dali). Para isso, começou a assistir às aulas de Físico-Química (as

suas primeiras na vida), em Jena. Ele até conseguiu um encontro com Ostwald, no ano seguinte, para

discutir um assunto de interesse comum, mas desse encontro não resultou a esperada oportunidade.

Assim, ele teve que ir ficando em Jena. Uma coisa marcante aconteceu neste período: ele batizou-se,

tornando-se cristão, aos 25 anos de idade, na esperança de que a carreira acadêmica lhe fosse, com isso,

facilitada. Isso porque, apesar de oficialmente não haver nada estatutariamente contra judeus como

professores nas Universidades, o fato era que havia pouquíssimos, resultado das evidentes dificuldades

dos colegiados universitários em aceitarem professores com essa origem. Por outro lado, Haber não

mostrava interesses religiosos, certamente se sentindo muito mais um homem do mundo, de sua

sociedade, do que ligado a esse aspecto de suas origens. Seu pai também não tinha sido um judeu

praticante. Este era um movimento de integração em pleno curso, que haveria de ser seguido por vários

judeus na Europa Ocidental. Marx, Einstein e Freud, por exemplo, estão entre os mais famosos. Bem,

Jena não era mesmo o local que Haber buscava e, em 1895, ele se foi para Karlsruhe. Não se sabe ao

certo a origem dessa decisão, até porque tudo que ele parecia ter era uma carta de apresentação. Mas

terminou ficando por lá 17 anos, e foi ali que se firmou como um dos maiores físico-químicos de sua

época, aprendendo quase tudo sozinho.

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Karlsruhe havia sido a capital do Grão Ducado de Baden, hoje o estado alemão de Baden-Wurtenberg.

Sempre foi uma cidade liberal, com conhecidas escolas de arte e de comércio. Como já vimos, havia

forte vida cultural e científica na Alemanha antes da unificação. Os príncipes, grão duques ou duques

das diferentes regiões esmeravam-se em atrair artistas, arquitetos e pesquisadores. Não surpreende,

portanto, que já em 1825, tenha sido fundado o Instituto de Tecnologia de Baden, pelo Grão-Duque

Ludwig. Seguindo uma tendência em curso na Europa, nele se juntaram as ciências básicas e as

tecnologias, com as pesquisas em Química acontecendo a partir de 1851. Em 1860, foi fundada a BASF

(Badische Anilin und Soda Fabrik – Fábrica de Baden de Anilina e Soda), em Mannhein, perto de

Karlsruhe que, como sabemos, existe até hoje, sendo uma das maiores empresas químicas alemãs e do

mundo. Imediatamente, houve a aproximação da empresa com a Universidade, em um relacionamento

que dura até hoje. Para Haber, a ida para Karlsruhe não foi fácil. A ele couberam trabalhos em campos

com os quais não estava familiarizado e, para quem conhece as universidades alemãs, naquele tempo,

como até hoje, não havia moleza: independente das dificuldades particulares, todos esperam o melhor.

É a partir daí também que Haber começa a mostrar suas grandes qualidades: enorme capacidade de

trabalho, tenacidade, rigor exaustivo, grande conhecimento teórico e capacidade associativa, isto é,

obter e juntar conhecimentos de vários campos para resolver problemas específicos. Ele estudou

inicialmente o cracking de hidrocarbonetos (de onde resultou uma regra de Química orgânica,

conhecida até hoje como regra de Haber), mas depois mudou para eletroquímica: estudou a redução

eletroquímica do nitrobenzeno, a eletrólise do HCl, células combustíveis, desenvolveu um eletrodo para

medida de oxigênio, estudou o sistema quinina/hidroquinona, que depois foi usado para a medida de

pH. Mais tarde, os estudos de Haber sobre potenciais de interface levaram-no ao desenvolvimento,

junto com Max Cremer, do eletrodo de vidro para a medida da acidez de uma solução. Esses trabalhos

foram publicados em dois livros, que resultaram na sua promoção a professor associado, em 1898. Até

então ele era um Privatdozent, um tipo de cargo que existe até hoje na Alemanha, no qual pessoas de

reconhecido saber podem dar aulas na Universidade, mas não recebem senão uma taxa paga pelos

alunos que frequentam seus cursos. Nessa mudança para a físico-química (lembrando que o doutorado

dele havia sido feito em Química Orgânica), Haber teve uma ajuda importante de seu amigo, Hans

Lugin, que havia trabalhado com Arrhenius (aquele mesmo de uma das teorias ácido-base, lembra?),

em Estocolmo. Lugin ajudou e estimulou Haber com discussões constantes e, certamente, teria sido

dele a cadeira de Físico-Química do Instituto de Tecnologia de Baden, se não tivesse morrido em 1899.

Haber acompanhou o amigo no leito de morte, e sempre reconheceu a importância dele em sua

formação, explicitando isso, inclusive, no prefácio de seu livro sobre eletroquímica, publicado em 1898.

Essa é outra característica de Haber que vamos ter exemplos: sua capacidade de fazer e conservar

alguns bons amigos por toda a vida. Ele também lecionava assuntos diversos, como química dos gases,

corantes, eletroquímica técnica. Uma vez focado o assunto, atacava-o com grande energia e

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tenacidade. Era também um workhaolic, ou seja, um viciado em trabalho. Como resultado de sua

competência e energia, foi convidado, em 1902, para visitar os Estados Unidos por três meses, a fim de

observar e relatar o progresso técnico daquele país. Lá, participou de um congresso de eletroquímica

(onde tentou falar em inglês “aprendido” durante a viagem de navio - mas não conseguiu...) e visitou

várias indústrias eletroquímicas. Essa viagem impressionou-o bastante, pois era a época em que os

Estados Unidos também se desenvolviam velozmente, com grande investimento de capitais e espírito

empreendedor. As impressões transcritas de Haber são uma excelente fonte de informação do que

eram os EUA naquela época, em especial quanto ao seu sistema educacional. Após sua volta, Haber se

dedicou a uma variedade de projetos: prensas de ferro para impressão de notas, corrosão dos dutos

subterrâneos de gás e água em função de fugas de corrente dos bondes de rua, e patente de um

processo de alisar fibras de algodão e outras com cromo. Em 1905, publicou um novo

livro,“Termodinâmica de Reações Gasosas Técnicas” e, em 1906, passou a professor titular e diretor do

Instituto de Eletroquímica.

Síntese da amônia Mas o grande feito de Haber, pelo qual ele definitivamente ficaria conhecido, foi a síntese da amônia

(NH3) a partir do nitrogênio (N2) e do hidrogênio (H2). A princípio, essa reação parece a coisa mais fácil

do mundo: N2(g) + H2(g) � NH3(g). Equilibrá-la é também simples: N2(g) + 3H2(g) � 2NH3(g). Acontece que a

coisa não é tão simples assim. Quer dizer que a teoria na prática é outra? Bem, se você considerar

apenas uma teoria incompleta, sim. Mas, se você considerar toda a teoria, não. Veja agora: N2(g) + 3H2(g) �

2NH3(g) + 92,4 kJ. Ou seja, trata-se de uma reação exotérmica. Porém, sua energia de ativação é

extremamente alta, já que não é fácil quebrar a ligação tripla do N2. Daí que, para ela ocorrer,

temperaturas altas são necessárias. Por outro lado, veja que temos 4 moles de gases do lado esquerdo

da equação e apenas 2 do lado direito. Ou seja, é uma reação que ocorre com contração de volume, e

como o volume é inversamente proporcional à pressão (Lei de Boyle, lembra?), se realizarmos a reação a

alta pressão, ela tenderá para a direita. Lei de Le Chatelier...você deve conhecer dos seus estudos de

equilíbrio químico. Por isso, para termos um bom rendimento, precisamos de alta temperatura (energia

de ativação) e alta pressão. Simples, não? Não, não é simples. Não é fácil produzir industrialmente

milhares, milhões de toneladas de um produto, trabalhando com pressões muito altas e temperaturas

idem. Mas, por que precisamos de milhares, milhões de toneladas de amônia? Aí é que vem o contexto

da nossa história, e por que a síntese da amônia era tão importante! Para entendermos isso, vamos

voltar a nossa química básica, relembrando o que é um reagente limitante. Você sabe que quando duas

substâncias são capazes de reagir completamente entre si, para que não haja sobra de nenhum dos

reagentes, esses têm que estar nas proporções certas, ou seja, nas chamadas proporções

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estequiométricas. E você também sabe que, se quiser aumentar a quantidade de produtos formados,

não adianta aumentar só a quantidade de um dos reagentes, tem que aumentar as quantidades de

todos os reagentes. Se você dispõe de grandes quantidades de um dos reagentes, mas muito pouco do

outro, este em menor quantidade vai determinar o quanto de produto você vai conseguir. Ou seja, ele

vai ser o reagente limitante. Por exemplo, digamos que para fazer cerca de um quilo de certa massa,

você precise de 700g de farinha de trigo, 6 ovos, um litro de leite e 100 gramas de manteiga. Se você

tiver todo o resto, mas apenas meio litro de leite, o máximo que vai conseguir em termos de uma

farinha da mesma qualidade será meio quilo, certo? Ou seja, o leite será o “reagente” limitante. Na

natureza, na formação das plantas, normalmente os elementos limitantes são o nitrogênio (N), o fósforo

(P) ou o potássio (K). As plantas são formadas principalmente por carbono (C), hidrogênio (H) e oxigênio

(O), além de pequenas quantidades de outros elementos, entre eles o N, P e K. A disponibilidade de C, H

e O na natureza é bem grande, já que, ao fazer fotossíntese, a planta aproveita o carbono do gás

carbônico (CO2), presente no ar, e retira tanto o hidrogênio quanto o oxigênio da água, que em

plantações deve existir em abundância. Por outro lado, o N, o P e o K, além de outros minerais, a planta

retira do solo. Se o solo for pobre nestes elementos, a quantidade de vegetal que poderá ser obtido em

uma dada área de terreno será menor do que no caso de um solo rico, isto é, com maiores

concentrações destes e outros elementos. É a este tipo de solo que chamamos de fértil... E, como há

muito mais disponibilidade de C, H e O na natureza para a fotossíntese das plantas, os elementos

limitantes terminam sendo o N, P e o K. Portanto, se quisermos produzir mais alimentos por hectare de

solo, temos que enriquecê-lo com estes (e outros) elementos. Daí que os adubos, produtos utilizados

para enriquecer o solo, são ricos nestes elementos. Além disso, estes elementos devem estar em uma

forma em que possam ser absorvidos pelas plantas, isto é, biodisponíveis. No caso do nitrogênio, como

nitratos; no caso do fósforo, como fosfatos; e no caso do potássio, na forma de um sal solúvel. Por isso,

um adubo é, grosso modo, formado por uma mistura de nitrato de potássio (que contém tanto o nitrato

como o potássio) e fosfato de cálcio, contendo tanto o fósforo como o cálcio, que também é

importante, além de outros elementos. Mistura-se o adubo ao solo e a planta trata de absorver e utilizar

estes sais no seu crescimento, já que, como dito anteriormente, C, H e O tem de sobra. Tudo isso já havia

sido notado há muito tempo e - uma vez que junto com a revolução industrial, na Europa - veio um

grande aumento de população, a questão da produção de alimentos se tornava crítica. Tinha que se

produzir mais alimentos por hectare, até porque não havia novas terras a conquistar para a agricultura,

como acontecia nos Estados Unidos e acontece no Brasil até hoje. Os países europeus resolveram essa

questão, em parte fabricando fertilizantes, pela mistura de rochas fosfáticas que havia em grande

quantidade na Europa, com o salitre do Chile (um mineral rico em nitrato de potássio). Foi também

importado o guano, da América do Sul (litoral do Peru), literalmente cocô de aves acumulado ao longo

de milhares de anos em ilhas nas costas do Peru. O guano é composto de cloreto de amônio, ácido

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úrico, ácido fosfórico, ácido oxálico, entre outros, e foi, no século XIX e início do século XX, o principal

produto de exportação do Peru. Já o salitre era encontrado no sul do Peru. Mas, como essa era uma

região despovoada, a exploração de salitre levou muitos chilenos para lá. Uma desavença entre os

governos e as empresas envolvidas, girando em torno de impostos, terminou causando uma guerra do

Chile contra o Peru e a Bolívia (1879-1881). O Chile terminou vencendo e ficando com as províncias, até

então peruanas e bolivianas, ricas em salitre, enquanto o Peru perdeu suas terras ao sul e a Bolívia, sua

saída para o mar. Assim, o que era o sul do Peru, hoje é o norte do Chile. Curiosamente, a exploração do

salitre do Chile foi repassada a capitais britânicos, que praticamente mantiveram o monopólio da venda

de salitre na Europa. Nesse cenário de aumento de população na Europa, dependência de um produto

importado e monopolizado, além de seu provável esgotamento em poucos anos, era normal que se

procurasse um substituto para o salitre na produção de fertilizantes. E não apenas de fertilizantes: os

nitratos são componentes de explosivos, e daí terem também importância militar. A síntese da amônia

a partir do nitrogênio e do hidrogênio surgia então como uma alternativa natural, pois ambas as

matérias-primas eram disponíveis: o hidrogênio (H2) produzido a partir do gás d’água; e o nitrogênio

(N2) extraído do ar, por liquefação. Uma vez obtida a amônia, essa deveria ser transformada em nitrato;

mas este já era um processo conhecido. Fácil de imaginar, difícil de fazer, pelos motivos anteriormente

mostrados. No caso da Alemanha de Haber, a questão era mais sensível, pois o monopólio do salitre era

inglês e a taxa de crescimento populacional da Alemanha era uma das maiores da Europa. A Alemanha

consumia 1/3 da produção de guano chileno, ou cerca de 500.000 toneladas de nitrogênio por ano. Em

setembro de 1898, William Crookes (sim, o da experiência das ampolas, que terminaram levando à

descoberta do elétron...), já previa que iriam faltar fertilizantes... Previsão do esgotamento de um

produto natural essencial... essa situação não lembra alguma coisa atual?

E sem fertilizantes, como a coisa fica? Bem, na natureza existe certa quantidade de nitrogênio já fixo,

disponível para as plantas. Isso se deve ao fato de que algumas plantas conseguem realizar a chamada

fixação do nitrogênio, ou seja, a transformação do nitrogênio (N2) do ar em alguma forma de nitrogênio

possa ser assimilada (nitratos ou amônia, por exemplo). Na verdade, não são bem as plantas, mas as

bactérias que vivem em suas raízes e que, para isso, contam com enzimas, que facilitam o processo,

agindo como catalisadores*. Porém, a quantidade de nitrogênio disponibilizada pelos processos

naturais não é suficiente para alimentar a população. Calcula-se que, mesmo com todo o cuidado no

manejo, este nitrogênio naturalmente disponibilizado, seria suficiente para produzir alimentos para a

metade da população atual, apenas. Daí, a necessidade de se fazer essa transformação industrialmente

ou então se impor um controle populacional extremamente restritivo. Mas, como já vimos, transformar

o nitrogênio do ar em amônia, por exemplo (N2(g) + 3H2(g) � 2NH3(g)), não é simples. Implica na quebra da

ligação entre os dois átomos de nitrogênio. Essa é uma ligação tripla, muito forte. Por isso que

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catalisadores são necessários, pois eles ajudam essa quebra, ou seja, diminuem a energia de ativação da

reação. Tal como na natureza, a síntese industrial da amônia também precisaria, além de alta pressão e

temperatura, da presença de catalisadores. Com isso, a temperatura da reação não precisaria ser tão

alta, pois justamente o catalisador abaixa a energia de ativação.

Mas, quais eram então as possibilidades da Alemanha “escapar” dos fertilizantes naturais salitre do Chile

e guano? No início do século XX, além do salitre do Chile e do guano, já havia alguns processos

industriais para a produção de óxidos de nitrogênio utilizando a passagem de descargas elétricas em

altas voltagens pelo ar (mistura, principalmente, de N2 e O2, como sabemos). Essas descargas geravam

óxidos de nitrogênio e, a partir destes, produzia-se o ácido nítrico, e daí os fertilizantes e os explosivos.

Entretanto, este processo só era viável onde havia energia elétrica barata (cataratas do Niágara, nos

Estados Unidos, ou na Noruega, por exemplo), pois o rendimento era muito baixo. Outra forma

utilizável de nitrogênio, a amônia, também era obtida como um produto secundário da obtenção do

coque por “destilação” do carvão mineral. Havia, ainda, a obtenção de amônia a partir da cianamida de

cálcio: CaC2(s) + N2(g) → CaCN2(s) + 72 Kcal; CaCN2(s) + 3 H2O(g) → CaCO3(s) + 2 NH3(g). Todos esses

processos, entretanto, não eram suficientes para garantir um fornecimento estável e barato de amônia

para a produção de fertilizantes, que continuava a depender do salitre chileno. Portanto, a possibilidade

da síntese da amônia a partir do N2 e H2 continuava uma meta do mais alto interesse, que atraía a

atenção de grandes pesquisadores da época, como até mesmo Ostwald e Walther Nernst, os maiores

físico-químicos de sua época, e que inclusive viriam a ganhar o prêmio Nobel de Química. Ou seja, ao se

meter na questão da síntese da amônia, Haber se meteu em briga de cachorro grande, como se diz por

aí...

Haber não foi o primeiro a tentar a síntese da amônia a partir do nitrogênio e do hidrogênio. Ostwald,

em 1900, tentou e chegou a encaminhar uma patente nesta direção. Entretanto, os seus resultados não

se mostraram reprodutivos. Na verdade, tratava-se de um artefato (em poucas palavras, um erro): era o

nitrogênio contido como impureza nos catalisadores utilizados que era levado à amônia. Já havia

contratos assinados com a BASF para a produção de amônia baseada no método de Ostwald, mas tanto

estes contratos como a patente tiveram que ser declinados quando se descobriu o engano. Outro que

tentou a síntese foi o conhecido Le Chatelier (sim, ele mesmo!). Nada mais natural, pois em função de

seu próprio princípio, ele sabia que altas pressões seriam necessárias. Entretanto, uma explosão que

levou a morte de um de seus colaboradores o fez desistir da ideia. Ou seja, não bastava saber que altas

pressões seriam necessárias, era necessário conseguir trabalhar em altas pressões (isto é, dispor de

reatores suficientemente resistentes, o que significava um aço resistente, soldas e rebites resistentes,

válvulas adequadas, etc.).

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Além disso, havia que se conhecer bem o equilíbrio da reação. Aqui, vale recordarmos um pouco de

equilíbrio químico: a uma dada pressão e temperatura, em um sistema fechado, uma transformação

química alcança um estado de equilíbrio, em que as concentrações de reagentes e produtos não

mudam. Este estado de equilíbrio pode ser descrito por uma constante. No caso da síntese da amônia

teríamos:

N2(g) + 3H2(g) ↔ 2NH3(g) K= [NH3(g)]2/ [N2(g)] . [H2(g)]3

Trata-se de um equilíbrio chamado de dinâmico, porque, uma vez alcançado o equilíbrio, moléculas de

amônia ainda se formam a partir dos reagentes, mas em igual número que aquelas que se decompõem

de volta em moléculas de nitrogênio e hidrogênio. Le Chatelier mostrou que a posição deste equilíbrio

e, por conseguinte, sua constante, depende da temperatura e, em alguns casos, da pressão. No caso da

síntese da amônia, tal como ela está equacionada acima, uma vez que temos 4 moles de reagentes, para

cada 2 moles de produtos formados, e sendo todos gasosos, se realizarmos a reação em alta pressão, o

equilíbrio vai deslocar-se para a direita, favorecendo a formação do produto. Por outro lado, a reação é

fortemente exotérmica, implicando que temperaturas muito altas desfavorecem a reação. O fato de a

molécula de nitrogênio ser muito estável (ligação tripla entre os dois átomos de nitrogênio) faz também

com que haja uma grande dificuldade em quebrá-la, e daí ser necessária uma grande energia para

vencer essa barreira (de potencial), o que implica que temperaturas altas ajudam a vencer essa barreira.

Por isso, catalisadores devem ser utilizados. Esses, como sabemos, não alteram a posição do equilíbrio,

mas fazem com que o equilíbrio seja alcançado mais rapidamente. Ou seja, para uma síntese da amônia

com sucesso, eram necessários alta pressão, uso de catalisadores e temperaturas altas. Mas não altas

demais. Mas por que não tão altas? Bem, ele precisava de pressões altas porque a reação era de

contração de volume e pressões altas favorecem essa contração (lei de Boyle), pois deslocam o

equilíbrio para o produto NH3. Uma das formas de aumentar a pressão é aumentar a temperatura, pois a

pressão é diretamente proporcional à temperatura. Aumentar a temperatura era então uma boa, pois

além de aumentar a pressão quebrava as moléculas do N2. Só tinha um probleminha: a reação era

exotérmica e o aumento excessivo de temperatura favoreceria o deslocamento do equilíbrio na direção

dos reagentes (o que não se queria, pois queria-se o produto, a amônia). Além disso, o volume é

diretamente proporcional à temperatura, ou seja, aumento da temperatura ocasiona o aumento do

volume, e como a reação é de contração, isso também favoreceria o deslocamento do equilíbrio para os

reagentes. Ou seja, Haber tinha que encontrar a pressão certa (e quanto menor a pressão, melhor, por

tornar o processo industrial mais fácil), a temperatura certa e o catalisador certo.

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Mas, de qualquer modo, a primeira coisa a se medir eram os valores das constantes de equilíbrio a

diferentes pressões e temperaturas. Estes valores iriam determinar se a síntese era viável ou não. O

primeiro encontro de Haber com a questão da síntese se deu quando ele foi procurado por uma firma

austríaca, em 1903, sobre um projeto nesta direção. Haber entrou em contato com Ostwald, sugerindo

que a firma o procurasse, sem saber do que acontecera com a tentativa de Ostwald. Ele não sabia que o

esforço de Ostwald não tinha dado certo. De qualquer modo, Haber se interessou pela físico-química do

problema e resolveu estudar o equilíbrio da formação da amônia, com o suporte da forma austríaca

(aparentemente, Ostwald não se interessou em voltar a estudar o problema). Ele iniciou estudando o

equilíbrio à pressão ambiente, o que era mais simples, utilizando ferro como catalisador, e temperatura

de 1020 oC! Sua conclusão naquele momento foi a de que a síntese direta não iria funcionar

industrialmente, e informou essa conclusão aos industriais austríacos, voltando-se para o estudo da

síntese da amônia a partir do NO gerado em arcos voltaicos. As coisas provavelmente teriam ficado por

aí, mas no outono de 1906, Haber recebeu uma carta de Walther Nernst (o da equação de Nernst, ele

mesmo), que havia lido as publicações de Haber. Nernst apontava que os resultados de Haber não se

ajustavam ao seu teorema do calor (teorema este que lhe daria o prêmio Nobel de 1920). Haber

imediatamente repetiu seus experimentos, agora com a ajuda de um químico muito experiente no

trabalho com gases (Le Rossignol) e, embora os resultados diferissem um pouco dos originais, ainda

estavam muito distantes dos esperados pelo teorema de Nernst. Os dois grupos se encontraram em um

congresso, e deu-se a discussão. Acontece que Nernst já era uma espécie de sucessor de Ostwald como

o maior físico-químico da Alemanha, o que dava a ele uma posição de superioridade na discussão. Vale

reproduzir as palavras de Nernst:

“É lamentável que o equilíbrio tenda muito menos à formação da amônia do que o que foi assumido até

agora, em função dos dados altamente incorretos de Haber....”

Essas palavras colocavam uma pá de cal na possibilidade de síntese industrial da amônia a partir do

nitrogênio e hidrogênio, além de colocarem em dúvida a reputação de Haber como bom cientista.

Cientistas não são diferentes dos outros seres humanos. Haber se sentiu ofendido com a observação de

Nernst e sua resposta à situação, além de somatizar sua ansiedade como dor de estômago e problemas

de pele (o que lhe era comum), foi voltar imediatamente ao laboratório e repetir seus experimentos.

Dessa vez, trabalhou a 30 atm, e confirmou que seus dados estavam corretos. Mais tarde, descobriu-se

que os dados experimentais de Nersnt também estavam corretos, mas como ele usava o valor na época

tabelado para a capacidade calorífica da amônia, e esse valor estava errado, vinha daí a diferença. De

qualquer modo, o rendimento ainda seria muito pequeno, a não ser que se empregassem pressões

muito altas, nunca antes tentadas em uma síntese industrial. Era necessário construir um vaso de reação

suficientemente resistente, juntas adequadas, válvulas, ou seja, toda a tecnologia de alta pressão. Mas

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Haber tinha escolha, porque possuía uma equipe qualificada, pois, além de Le Rossignol, ele pôde

contar com a ajuda de Friedrich Kirchenbauer, um excelente mecânico que, entre outras coisas,

desenvolveu as válvulas cônicas, que depois se tornaram de uso geral em sistemas de alta pressão. Na

verdade, Haber montou todo um departamento de desenvolvimento de tecnologia de alta pressão! A

primeira patente de Haber (1908) descrevia um equipamento em que os gases recirculavam, o calor

desenvolvido pela reação era transferido aos reagentes e a amônia era retirada sem perda de pressão. O

compressor foi comprado com suporte da BASF. Em 1909, Haber descobriu que o ósmio era um

excelente catalisador, permitindo um rendimento de 8% a uma pressão de 175 atm e a 550 oC. Um

resfriador foi adicionado ao sistema, permitindo a obtenção de amônia líquida, obtendo então um fio

de amônia líquida saindo do seu reator. Ao mesmo tempo em que desenvolvia seu projeto, Haber

negociava com a BASF no sentido de um suporte maior e da futura síntese industrial. Não foram

negociações fáceis, pois havia muito ceticismo quanto à viabilidade industrial do projeto; também não

foi fácil chegar a um acordo em termos do quanto o próprio Haber receberia. Foi essencial, na

discussão, se o processo seria viável ou não, a opinião de um jovem químico industrial da BASF, Carl

Bosch, que encorajou seus chefes pela aceitação do risco. Bosch viria, ele mesmo, depois, a levar o

processo de Haber à escala industrial, tendo, por isso mesmo, recebido o prêmio Nobel de Química de

1931. Por isso, o processo industrial é hoje chamado de “Haber-Bosch”. Bem, voltando à nossa história,

graças a Bosch a BASF enfim concordou em dar uma chance a Haber, e a mandar seus técnicos a

Karlsruhe a fim de presenciar uma demonstração da síntese. Como era de se esperar, justo no dia da

demonstração, uma junta do equipamento de Haber se rompeu, o que causou um atraso de horas

(imagine o estômago do Haber...) mas, no segundo experimento, a coisa funcionou, e a amônia líquida

escorreu do reator. Isso foi em 2 de julho de 1909 e, a partir daí, a BASF passou a financiar fortemente o

trabalho de Haber, autorizando-o a construir uma planta piloto em Ludwigshafen, onde era a fábrica da

BASF, em colaboração com o grupo de Bosch. A questão ainda era o preço do catalisador. Por via das

dúvidas, a BASF havia comprado todo o raro ósmio existente no mercado, mesmo sendo ele muito caro.

O problema foi resolvido em janeiro de 1910, pelo grupo de Bosch, usando o ferro reduzido sobre

alumina, após terem sido tentadas centenas de formulações. O próprio Haber, em uma carta a Bosch,

comentou o fato de que o ferro havia sido tentado por Ostwald, e em várias outras oportunidades, mas

no estado puro, só tendo funcionado quando impuro... No caso, as impurezas vinham do hidrogênio,

obtido do gás d’água. Finalmente, em março de 1910, Haber anunciou a realidade da síntese da amônia

a partir dos seus elementos, e virou a sensação do ano. Imaginem a cara do Nernst... De qualquer modo,

Nernst teria a possibilidade de se reabilitar frente a Haber, como vamos ver.

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Se o mundo dos cientistas tem cenas de ciúme, inveja, amor, ódio e atitudes nem sempre

recomendáveis, no mundo dos negócios o jogo é ainda mais pesado. Em primeiro lugar, Haber teve que

esperar até 1914 para que o Departamento de Patentes da BASF permitisse que ele publicasse seus

artigos sobre a síntese, criando uma série de restrições às informações que poderiam ser passadas.

Depois, várias objeções a sua patente foram feitas, com base em que ele não havia descoberto nada de

novo, em função de estudos anteriores, inclusive os artigos publicados por Nernst em 1907. A mais

formidável objeção veio de outra gigante industrial alemã, a Hoescht (que existe até hoje); objeção essa

que se baseava, entre outras coisas, na opinião de Ostwald. Entretanto, no processo, a BASF recorreu à

opinião de Nernst que, surpreendentemente, deu um parecer favorável a Haber. Desse modo, em 4 de

março de 1912, a objeção à patente foi rejeitada. No acordo com a BASF, Haber receberia 1.5 pfennings

(centavos de marco) por tonelada de amônia vendida, o que lhe valeu vários milhões de marcos ao

longo da vida. A primeira fábrica de amônia pelo método de Haber começou a operar em 1913. Desde

então, apesar de inúmeros avanços, envolvendo principalmente a eficiência dos catalisadores, o

método de Haber, basicamente o mesmo, é o responsável por 99% do nitrogênio usado em fertilizantes

no mundo. Em 1914 eclodiu a Primeira Guerra Mundial e, se não fosse a capacidade da Alemanha de

produzir sua própria amônia, o bloqueio imposto pela Inglaterra, que dominava os mares, teria causado

sua derrota já no primeiro ano de guerra. Vale lembrar, de novo, que a amônia também servia para

fabricar nitratos, utilizados em explosivos. O impacto da produção da amônia pelo método de Haber-

Bosch foi de tal ordem que há quem considere essa “invenção” a mais importante do século XX. Ao

mesmo tempo, este pode ser considerado o primeiro grande sucesso da colaboração entre uma

universidade e a indústria, realizado por um grupo interdisciplinar, com uma estratégia de risco e

grande investimento de capital. Foi o que hoje se chama “pesquisa e desenvolvimento”. A BASF se

tornou o maior produtor do mundo de insumos químicos básicos (não entramos em detalhes aqui, mas

ainda havia que produzir o hidrogênio), e Ludwigshafen, um dos pólos mundiais de Química, uma vez

que a produção de amônia implicava em uma grande integração de diferentes indústrias. E, uma vez

que a amônia é difícil de ser transportada, fábricas de seus derivados – como explosivos, devem ser

montadas na proximidade da usina de síntese.

Depois da síntese da amônia...

Bem, nossa história poderia parar por aqui, pois, afinal, o feito do nosso herói já teria sido

suficientemente grande. Mas ainda não terminamos e pedimos ao honorável público paciência para a

segunda parte.

É claro que Haber recebeu inúmeras condecorações e reconhecimento pelo seu feito. Ele passa a ser um

dos grandes cientistas da Alemanha, o que lá não é pouca coisa. É convidado para organizar uma nova

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entidade de pesquisa em Berlim: o Kaiser Wilhelm Institute, uma instituição de pesquisa básica, em

diferentes áreas, onde funda e passa a dirigir o Instituto de Físico-Química e Eletroquímica.

Em 1914, estourou a guerra. Não cabe aqui examinar as causas da guerra, mas sim apresentar alguns

pontos que contribuíram para o ambiente de então. O nacionalismo grassava solto na Europa

(discussões sobre o nacionalismo podem ser encontradas em livros de História; quem quiser saber mais,

pode consultar Hobsbawn e Elias, ver literatura ao fim do texto). Elias chama a atenção para que, em

uma Europa com classes médias ascendentes, em que a nobreza estava em decadência, assim como a

igreja, o nacionalismo passa a ocupar o espaço que essas instituições ocupavam no ideário das pessoas.

Ou então que o nacionalismo era um antídoto para as ideias socialistas também em voga. Bem, seja

como for, o nacionalismo era uma realidade vivida pelas pessoas, como é até hoje, e a Primeira Guerra

Mundial é a primeira guerra entre nações como um todo, pois as outras, até então, eram guerras entre

exércitos (embora, é claro, esses exércitos fossem formados por convocados das classes populares).

Nunca o número de mobilizados foi tão grande. O nacionalismo era especialmente popular na

Alemanha, pois ascendeu junto com a melhoria econômica experimentada após a unificação do país e

se confundiu com ela. O militarismo também se misturava nessa “sopa”, pois a unificação alemã havia

sido conseguida a custas de vitórias militares. Guerras contra a Dinamarca (que dominava um pedaço

ao norte da Alemanha), e contra a França (a Guerra Franco-Prussiana), para dizer dois eventos. Ou seja,

unificação, ascensão econômica, nacionalismo, militarismo. Junto com isso, chegava ao fim a

predominância econômica da Inglaterra. Desde o fim das Guerras Napoleônicas, com a derrota de

Napoleão e a vitória inglesa, e o consequente tratado de Viena (1815), o mundo se organizara à feição

inglesa. As colônias espanholas e portuguesas nas Américas haviam se tornado independentes, mas

eram uma área de grande influência inglesa. Além de áreas de influência, onde os ingleses despejavam

seus produtos, a Inglaterra tinha as colônias propriamente ditas nas Américas (pequenas ilhas do

Caribe), na África e na Ásia, sem dúvida a mais importante sendo a Índia. Só para ter uma ideia da

importância do mercado latino-americano para a Inglaterra, 1/3 da produção têxtil de Manchester (a

cidade de maior produção têxtil da Inglaterra) vinha para a América Latina. As relações econômicas

eram sempre favoráveis aos ingleses, que trocavam matéria prima dos países periféricos ou das colônias

por produtos industrializados, de maior valor agregado. Junto com isso, os ingleses controlavam os

fluxos de capitais e Londres, com sua bolsa de valores, era o coração financeiro do mundo, e a libra, a

moeda franca, tal como o dólar é hoje. Como política, a Inglaterra procurava evitar o surgimento de

qualquer potência hegemônica no continente europeu, que pudesse vir a competir pelo seu evidente

primeiro lugar. Nesse caminho para o topo, a Inglaterra havia guerreado, desde o século XVI, com a

Espanha, Holanda e, finalmente, com a França de Napoleão. Em 1815, com a derrota de Napoleão, havia

se tornado líder inconteste. Mas líder não quer dizer única, e a Inglaterra era inteligente o suficiente

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para perceber que haveria de ter lugar para outros, que, como sociedades já bem desenvolvidas, não

podiam ter um papel excessivamente secundário. Daí, que, no mundo “inglês”, França, Holanda, e

mesmo Espanha e Portugal, mantinham seus interesses, ou melhor dizendo, as classes dominantes se

entendiam. Isso contribuía para o equilíbrio do mundo, e a Europa conheceu 100 anos sem guerras, ou

quase sem guerras. Uma exceção foi a Guerra da Crimeia, travada pela Inglaterra e França contra o

Império Russo, para frear a expansão deste para o sul (ver mapa III), o que ameaçaria os interesses

anglo-franceses no Oriente Médio e na Índia. Uma poderosa marinha, tanto de guerra como mercante,

garantia esse mundo inglês e a Inglaterra era a senhora dos mares. Os produtos do mundo eram

transportados principalmente pelos navios ingleses. Veja também que interessante: a Inglaterra havia

sido aliada de Portugal durante a invasão daquele país por Napoleão, e foi por navios ingleses que a

família real portuguesa veio escoltada para o Brasil. Isso não impediu que essa mesma marinha inglesa,

não mais que 14 anos depois, assegurasse a independência do Brasil, apoiando o nosso movimento de

independência contra Portugal. Não havia estado de guerra entre Inglaterra e Portugal, ao contrário, os

dois países mantinham intenso comércio e relações diplomáticas e, ainda assim, Portugal teve que

engolir a interferência inglesa. O tratado de aceitação de nossa independência por Portugal foi

intermediado pela Inglaterra. Toda cidade grande do Brasil tem uma rua com o nome de Almirante

Cochrane, comandante da esquadra inglesa que garantiu que a esquadra portuguesa não impedisse o

nosso movimento de independência. E assim agia a Inglaterra, intervindo em todo o mundo, mexendo

os pauzinhos de modo a que seus interesses prevalecessem. Mas, o mundo é dinâmico, a história não

para, e esses mesmos interesses geram situações que vão terminar se voltando contra eles mesmos. E o

aparecimento na Europa de uma Alemanha unificada, industrializada, em franco desenvolvimento,

colocava em risco o equilíbrio europeu, ou seja, a política que assegurava à Inglaterra que nenhuma

potência europeia estivesse em condições de desafiar sua hegemonia. Quando se tornou claro que era

impossível parar o desenvolvimento industrial da Alemanha, e que em vários setores da economia a

Alemanha ultrapassava a Inglaterra (inclusive no setor químico), iniciou-se uma corrida armamentista.

Ou seja, o barril de pólvora aumentou. Daí, que a crise dos Bálcãs, simbolizada pelo assassinato do

Arquiduque Ferdinando, herdeiro do trono austríaco, por um nacionalista sérvio (olha o nacionalismo aí

de novo) foi apenas o estopim da guerra mais sangrenta que o mundo conheceu até então, a Primeira

Guerra Mundial (1914-1918). Quase cinco anos de guerra, com um número total de mortos de cerca de

15 milhões – números que só seriam superados na Segunda Guerra Mundial, ainda assim porque nessa

segunda versão da catástrofe o número de civis mortos foi maior. A Alemanha, em função de seus

sucessos militares anteriores, acreditava em uma guerra rápida e que a vitória era certa. O clima

nacionalista era de tal ordem que multidões foram para a rua saudar o início da guerra (mas logo iriam

se arrepender...). Esse clima não foi característico apenas da Alemanha, mas da França e Inglaterra,

também. E, claro que a Inglaterra, nesse caso, alia-se à França, pois o poder que ameaçava o predomínio

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inglês era a Alemanha. Os cientistas, em ambos os lados, não estavam alheios a esse clima. Às vezes,

pensa-se que os cientistas são mais sábios que o comum dos mortais em todos os assuntos, mas não é

verdade. Os cientistas são sábios naquilo em que estudaram (e, às vezes, nem tanto quanto pensam...).

Portanto, cientistas de ambos os lados estavam imbuídos do mesmo clima nacionalista. Haber, muito

menos, escapava disso. E, como cientista-nacionalista, jogou-se de corpo e alma na guerra. Não no

campo de batalha, mas...de um modo muito especial. Haber, pode-se dizer, foi defensor, lobista,

idealizador e gerente geral do esforço de guerra química alemã. Você certamente deve já deve ter visto

fotos dos soldados vestindo máscara de gases, parecendo extraterrestres. Bem, ao contrário do que

esperavam todos, a guerra não foi rápida como as outras. A Alemanha começou, digamos, ganhando,

inclusive invadindo a Bélgica, um país neutro, de modo a se esquivar das fortificações na fronteira com a

França. Foi um escândalo, mas cientistas do porte de Max Planck, Ostwald e Nernst assinaram um

manifesto que defendia a quebra da neutralidade da Bélgica, entre outras coisas, em nome das ameaças

que cercavam, a seu ver, a Alemanha. Só Einstein e alguns poucos se posicionaram contra a guerra, e

lançaram um contra-manifesto, pela paz. Os franceses, ingleses e belgas conseguiram frear o avanço

alemão, e a guerra se transformou em uma desgastante guerra de trincheiras, com cada um dos lados

sem conseguir derrotar o outro. Foi nessa situação que Haber, e outros, imaginaram que o uso de armas

químicas poderia definir a situação em favor da Alemanha. Assim, Haber colocou toda sua energia

primeiramente em convencer os militares alemães e, depois, na pesquisa de gases tóxicos e na melhor

forma de usá-los. Mesmo a pesquisa da morte requer método, e isso implicava em estudar as

propriedades tóxicas dos gases, como eles se dispersavam, os efeitos da umidade, a melhor forma de

acondicioná-los, de liberá-los, etc. Havia, também, que se saber da meteorologia, direção dos ventos,

etc. Isso era, mais uma vez, uma junção de problemas de ciência básica, aplicada e de tecnologias, tais

como os que Haber havia enfrentado na questão da síntese da amônia, e ele era mesmo muito bom

nessa organização de esforços. Esses estudos foram realizados no seu Instituto, em Berlim. Haber se

ocupou também dos problemas relacionados com a produção industrial dos gases tóxicos, e

supervisionou, pessoalmente, na linha de frente, o primeiro lançamento de gases contra as tropas

inimigas. Foi em Ypres, cidade belga, contra tropas francesas e (sintomaticamente) argelinas (a Argélia

era uma colônia da França), em 22 de abril de 1915, o primeiro emprego moderno, em larga escala, de

um agente químico como arma letal direta. Este agente foi o gás cloro, lançado a partir de 5.730

cilindros de metal, cada um pesando 100 quilos, com cloro líquido, ao longo de 10 km de frente. O uso

de armas químicas, por acordos anteriores, era proibido, e este ataque reforçou a imagem dos alemães

como agressores e bárbaros. Haber defendia-se, dizendo que o uso de armas químicas não era diferente

do de qualquer outra arma, e que a guerra química iria, na verdade, ao precipitar a vitória alemã,

diminuir a mortalidade da guerra. Nisso, não ficou sozinho, e devemos lembrar que este argumento

viria a ser utilizado na defesa do uso da bomba atômica pelos Estados Unidos contra o Japão, ao fim da

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Segunda Guerra Mundial. Bem, o primeiro ataque foi um sucesso, com uma nuvem de gás verde, de

cerca de 1 m e meio de altura, avançando empurrada pelo vento, abrindo uma larga brecha nas linhas

inimigas, uma vez que os que não sufocaram, debandaram, com os alemães avançando pela terra de

ninguém e tomando as trincheiras aliadas, devidamente protegidos. Mas, imediatamente, os aliados

contra-atacaram, fecharam a brecha, e a guerra voltou ao impasse. Com a diferença, agora, que aos

aliados passaram a usar também gases químicos contra os alemães. Bem, aí a loucura humana não tem

fim. Tratou-se de produzir mais gases, mais letais, lançados de forma mais eficiente, e máscaras

protetoras capazes de neutralizá-los, e gases contra as máscaras protetoras, ou seja, o círculo absurdo

que nos caracteriza. E era no instituto de Haber que a maioria dessas pesquisas era feita. Ele não estava

sozinho nessa empreitada, e outros futuros prêmios Nobel, como Otto Hahn (Prêmio Nobel de Química,

1944, pela descoberta da fissão do urânio), James Franck e Gustav Hertz (ambos Prêmio Nobel de Física,

1925, pelo estudo do impacto de elétrons sobre os átomos) faziam parte do grupo de Haber. Não se

pode dizer que foi a primeira vez que a ciência serviu aos senhores da guerra, pois desde os tempos de

Arquimedes, passando por Leonardo da Vinci, os cientistas emprestaram seu saber aos poderosos de

então. Mas, tal como a síntese da amônia simbolizou o primeiro esforço bem sucedido de íntima

colaboração Universidade–Indústria, talvez o esforço de guerra química da Alemanha tenha sido a

primeira vez, no âmbito da ciência moderna, em que se forma um “complexo industrial-militar”

envolvendo indústria (que fabricava os gases em grandes quantidades), militares (por motivos óbvios) e

pesquisadores. Apesar do sucesso, embora parcial, da arma química, Haber não estava satisfeito. Ele

defendia um ataque maciço, com uma quantidade muito maior de gás, de modo a definir a vitória

alemã logo no primeiro ataque. Ele temia, como realmente aconteceu, que o uso apenas limitado

levaria à retaliação dos aliados, e os alemães perderiam a vantagem da surpresa. Já outros eram contra

o uso das armas químicas, não por motivos humanitários, mas porque a frequência com que os ventos

sopravam contra as tropas alemãs era muito maior do que no sentido inverso...Por força da

impossibilidade de retaliar com as mesmas armas imediatamente, os soldados aliados responderam

matando os prisioneiros alemães que estavam nas suas mãos, e a guerra só fez crescer em sua escalada

de violência. Até o fim da guerra, 22 diferentes agentes químicos foram testados, lançados de canhões,

morteiros, granadas de mão e bombas aéreas. O fato de o primeiro ataque não ter dado certo do modo

pretendido não fez Haber recuar. As pesquisas em seu Instituto continuaram (como parar, depois de

começar?). Para se ter ideia, um tipo de gás foi desenvolvido, que envolvia uma mistura de fosfogênio

(COCl2 - sufocante) com um irritante que penetrava nas máscaras: os atacados eram obrigados a tirar as

máscaras e ficavam envolvidos pelo gás venenoso...

Quando a guerra enfim terminou, com a derrota da Alemanha, Haber foi procurado como criminoso de

guerra e teve que se esconder na Suíça. Mas logo essa acusação foi retirada, e Haber pode voltar para a

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Alemanha. Haber continuou, ainda, durante muito tempo, com pesquisas sobre o uso militar de gases, e

sugeriu a criação de um Instituto de Guerra Química... Como a Alemanha foi proibida pelo tratado de

Versailles de realizar tais pesquisas, elas eram conduzidas secretamente em outros países, inclusive

mesmo na União Soviética, sob supervisão alemã. Essas relações secretas continuaram até a subida de

Hitler ao poder, em 1933. Assim são os países... Mas Haber não cuidou só de gases letais, mas continuou

sua trajetória científica a frente do seu Instituto de Físico Química, em Berlim. Além das pesquisas

secretas com gases, vale citar as discussões que levaram a formulação do ciclo de Born-Haber, e a

pesquisa sobre a possibilidade de retirar ouro da água do mar. Haber fez essa pesquisa com a intenção

de tentar conseguir um modo de permitir à Alemanha pagar suas dívidas de guerra, resultantes do

tratado de Versailles. Os dados até então existentes sobre a concentração de ouro na água do mar (30 a

65 mg por tonelada) indicavam essa possibilidade, e Haber montou um projeto secreto nessa direção.

Desenvolveu um método para determinar ouro na água do mar, o que não é trivial, dado os níveis de

concentração muito baixos. O método consistia na co-precipitação dos íons ouro com sulfeto de

chumbo, produzido pela mistura de acetato de chumbo com sulfeto de amônio. Veja que aqui,

também, tal como na síntese da amônia, fatores econômicos tem que ser levados em consideração,

uma vez que se tratava de um processo que visava se tornar industrial. Preço e disponibilidade dos

materiais a serem empregados eram essenciais. Haber embarcou com sua equipe em alguns cruzeiros

marítimos, montando um laboratório de bordo, coletando amostras e tomando o cuidado de não

deixar ninguém fora de sua equipe perceber do que se tratava. Foram feitas análises de inúmeras

amostras, ao longo de 1925-7, mas, infelizmente, os valores de concentração reais, que Haber

demonstrou serem menores do que 0,001 mg/tonelada, estavam muito abaixo dos estimados até

então, e tornavam inviável economicamente a extração de ouro da água do mar. Pelas contas de Haber,

se as concentrações inicialmente estimadas estivessem certas, “apenas” o ouro contido no Mar do Norte

seria suficiente para pagar a dívida. Você pode imaginar o impacto ambiental que isso teria? Bem,

naquela época ninguém pensava em meio ambiente...

Epílogo

Com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra, Haber nunca voltou a ser o mesmo homem. Apesar dos

feitos alcançados, apesar de ter recebido o prêmio Nobel em 1920 (relativo ao ano de 1918), ele nunca

se recuperou por completo. De qualquer modo, Haber continuava no seu sonho nacionalista de uma

Alemanha desenvolvida, potência, cultuando sua cultura e história. Continuou um obstinado, mas já

não tinha a mesma energia. Lutou para ver a ciência da Alemanha reaceita nos círculos científicos

mundiais, fazendo viagens e palestras nos espaços internacionais que lhe eram abertos. Continuava

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politicamente um “autoritário”, um monarquista, apesar da abdicação do Imperador e da proclamação

da república (a chamada República de Weimar, pois havia sido proclamada na cidade de Weimar, em

1919, levando o Imperador alemão, o Kaiser, ao exílio na Holanda). Certamente, Haber nunca se

entendeu bem com a democracia representativa e não estava entre aqueles que a apoiavam. Seu viés

era francamente autoritário, como de tantos outros importantes professores alemães. Apesar de todas

as dificuldades, a Alemanha começava a se recuperar da derrota na primeira guerra, havia uma

significativa reação ao militarismo prussiano, mas, sobreveio a crise de 1929. O desemprego abateu-se

sobre a Alemanha, a recuperação econômica cessou. A inflação tornou-se galopante, corroendo salários

e poupanças. Isso, junto com a frustração da derrota e o medo das elites de uma convulsão social,

levaram ao crescimento popular do nazismo (nacional-socialismo, veja aí o nacionalismo de novo), e de

sua aceitação pelas classes dominantes como uma espécie de antídoto malcheiroso, porém eficiente, ao

socialismo de inspiração soviética. A esquerda, por sua vez, via na fraqueza política da República de

Weimar a possibilidade da tomada de poder, e não fez muito, ou quase nada, para apoiá-la. O impasse

político se forma e Hitler, em janeiro de 1933, presidente do partido nacional-socialista (nazista), o

partido mais votado (mas não obteve maioria, mas cerca de 34% dos votos; aliás, essa foi a sua maior

votação sob um regime ainda democrático), foi chamado pelo Marechal Hindemburg, presidente da

Alemanha, a formar um governo. O regime era parlamentarista, e Hitler seria o primeiro ministro

(Chanceler). Inicialmente, era um governo de coalizão, com ministros nazistas e não nazistas, dos

partidos de direita. Social-democratas e comunistas, naturalmente, estavam fora do governo, e eram

oposição. Tudo muito bonitinho e democrático. Acontece que, fora das linhas políticas, o partido

nazista tinha uma “torcida” muito poderosa e violenta. Organizado de modo militaresco (tinham até

uniforme), seus membros faziam manifestações de massa, marchas, discursos, comícios e

demonstrações, e não se furtavam nem um pouco a usar de violência contra seus opositores. Ou seja,

Hitler trazia uma face institucional (era o Chanceler legalmente indicado), mas na outra mão, um

porrete, pronto para usá-lo. E o fez com eficiência e precisão: aproveitando o incêndio criminoso do

Reichstag, ocorrido pouco depois de sua indicação a chanceler, Hitler fez passar, imediatamente, uma

lei de exceção que lhe dava amplos poderes. Essa lei foi aprovada pelo congresso, ou seja, Hitler

conseguiu poderes discricionários legalmente! Bem, aí, ele mostrou o porrete de vez, cassando

deputados social-democratas, comunistas e independentes, perseguindo opositores em todos os níveis

da sociedade alemã e, quando legalmente (isto é, dentro da lei de exceção) ele não conseguia o que

queria, os assassinos de seu partido tratavam de fazê-lo. E a Alemanha lançou-se na aventura mais

destrutiva de sua história. Naturalmente, Hitler apelava para os sentimentos nacionalistas, tão presentes

no povo alemão, e magoados pela derrota na primeira guerra e pela crise financeira. Mas, neste

nacionalismo, não havia lugar para Haber, pois Haber era judeu. O antissemitismo não era novo na

Europa. Na unificação da Espanha, antes da descoberta da América, Fernão de Aragão e Isabel de

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Castela tinham colocado a comunidade judaica da península ibérica contra a parede: ou se convertiam,

ou iam embora. Muitos se converteram (os chamados cristãos novos) e outros foram embora, justo para

a Europa central. Bem, de qualquer maneira, havia a possibilidade de conversão, ou seja, na visão

católica da época, os judeus eram “recuperáveis”, podiam ser convertidos , se tornarem bons cristãos, e

serem aceitos. Mas a visão antissemita de Hitler e seus asseclas trazia algo de novo e radical: era

baseada em teorias pseudocientíficas de raça, muito em voga no fim do século XIX e início do século XX.

Até no Brasil essas teorias tiveram adeptos. Havia “cientistas” que diziam, por exemplo, ser possível

identificar criminosos por suas características anatômicas (procure, na Internet, por Lombroso). Outros

procuravam explicar a situação dos povos por teorias de raça que, implícita ou explicitamente, diziam

que os brancos eram superiores e os outros povos (asiáticos, negros), inferiores (uma maneira de

justificar o colonialismo). Nessas condições, surgiram programas eugênicos, quer dizer, programas

governamentais, ou “paragovernamentais”, de proteção da “pureza” ou “saúde” da “raça”, que

impediam ou dificultavam a imigração de populações “inferiores” ou, ao contrário, incentivavam a

imigração de populações brancas, para “branquear” os países mestiços (nosso caso). A base disso tudo

era acreditar na existência de raças, ou seja, que existiam diferenças genéticas, ou de estrutura

biológica, entre as raças branca, negra, amarelo, índios, ciganos, judeus, irlandeses. Bem, cada povo

elegia o “seu” inferior, conforme suas conveniências. Para piorar, os racistas invocavam uma

interpretação distorcida da seleção natural (proposta por Darwin, que nada tinha a ver com a distorção

de suas ideias), proclamando que a riqueza do mundo dividia-se entre os povos em função de sua

capacidade de competir, ou seja, de ser mais “forte” (ou “capaz”). Chegava-se a provar que o tamanho

médio do cérebro dos brancos era maior que o dos amarelos e o desses maior que o dos negros. É claro

que os que promoviam essa falsa ciência nunca eram os que estavam entre os inferiores, e é claro

também que ela servia muito bem a determinados interesses. Todos os argumentos pretensamente

científicos dessas ideias foram devidamente desmascarados, desde as medidas comparativas de

tamanho de crânios até pretensos estudos com gêmeos. No caso dos crânios, mostrou-se, entre outras

coisas, que entre os crânios das “raças inferiores” tomados para estudo, a proporção de crânios

femininos era maior do que a mesma proporção entre crânios “brancos”. Como o crânio masculino é

maior que o feminino, em média, é lógico que a média de tamanho dos crânios “brancos” ficava maior.

Além disso, tamanho de crânio nada tem a ver com inteligência. Quanto ao estudo com gêmeos,

provou-se, simplesmente, que os gêmeos nunca existiram. O objetivo desse “estudo” era provar que a

influência da genética era mais forte do que o da educação, e para isso estudava-se a ascensão social de

gêmeos separados entre si na primeira infância, de diferentes “raças”. Claro que o estudo concluía que,

em média, gêmeos de “raça” branca conseguiam se sair melhor, independentemente de terem sido

criados em famílias diferentes, com níveis de educação distintos, etc. Veja que só na década de 1970 é

que se descobre a falsificação dos dados. Apesar do desmascaramento desses e de outros “estudos” (ver

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“A Falsa Medida do Homem”, um livro de Stephan Jay Gould), volta e meia alguém surge de volta com

essas tolices. No início dos anos 2000, por exemplo, aproveitando a onda conservadora que se seguiu à

subida de George Bush à presidência dos EUA, (re)surgiu um livro, pseudoestatístico, chamado “The Bell

Curve - A Curva do Sino”, que procurava mostrar que os negros americanos tinham pior desempenho

escolar, mesmo descontadas as questões sociais. Nos anos 90, até o fim do projeto genoma, houve uma

nova deformação ideológica das ciências, surgida com a explosão da genética: havia gene de tudo,

alegria, tristeza, sexualidade, etc. Cada dia um jornal anunciava a descoberta de um gene relativo a um

comportamento particular. A intenção era clara: não há o que fazer, somos o que somos e a sociedade

em que vivemos é fruto do que somos, não vai mudar. Bem, todas essas mensagens, no fundo, pregam

o conformismo com a situação vigente e dão a dominados e dominantes motivos para aceitarem seus

respectivos papéis no mundo, tal como está posto. Infelizmente, para os espertos de ocasião, a

(verdadeira) ciência genética mostrou que as coisas são muitíssimo mais complicadas do que o simples

“um gene, uma proteína”, que as interações com o ambiente têm um inequívoco papel no

desenvolvimento humano e que somos um resultado da interação da nossa genética com o nosso

meio. Além disso, nosso genoma é muito mais pobre em genes do que queríamos supor, e a carga

genética, pura e simplesmente, não pode ser responsável por explicar, por si só, a infinita variabilidade

das características humanas. Finalmente, o conceito de “raça” foi mais uma vez desmascarado,

provando-se que a variabilidade genética intra-grupos “raciais” é maior do que entre diferentes grupos.

As diferenças anatômicas entre os povos são resultados de variações irrisórias, pequenas adaptações

para situações ambientais diferentes, mas que em nada nos fazem diferir enquanto raças diferentes.

Teorias de raças, pseudocientíficas voltam de quando em quando e continuarão a voltar, não na

esperança de convencer os informados, mas pegar os desprevenidos, que são muitos, ou a maioria.

Infelizmente, ao longo de toda a história humana, sentir-se superior aos outros parece confortar-nos de

nossas próprias misérias e, naquele momento de crise da Alemanha, foi isso do que Hitler,

espertamente, se aproveitou. Na oratória que o levou ao poder, Hitler sempre vociferava contra os

judeus, percebendo o antissemitismo latente na sociedade alemã. Nada como jogar as pessoas contra

um bode expiatório para expiar as frustrações acumuladas e desviar os olhos dos reais problemas. Esse

bode expiatório, na Alemanha daquele tempo, foram os judeus. E, uma vez liberada a violência, não se

sabe onde vai parar. No caso da Alemanha, em relação aos judeus, alcançou um ponto até então

inimaginável. Hitler não mandou os judeus de imediato para as câmaras de gás, mas foi retirando-lhes

os direitos pouco a pouco. Assim, uma vez aprovada a lei de exceção que lhe deu plenos poderes, Hitler

fez passar outra lei que limitava os direitos dos judeus, retirando-lhes parte dos direitos civis, fazendo a

história recuar 50 anos, ao tempo anterior à unificação da Alemanha. Uma das coisas que voltava a ser

proibido aos judeus era ocupar cargos públicos, caso de Haber. Mas Haber não tinha se cristianizado?

Bem, como vimos, para Hitler e seus asseclas, ser judeu não era uma questão de opção religiosa ou

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cultural, mas era uma questão de raça. Na cabeça doentia dos líderes nazistas, havia uma “raça judia”,

que devia ser isolada (e depois, de acordo com seu pensamento, eliminada – a solução final). Haber não

foi atingido pela lei que demitia os judeus do serviço público, porque ela, nessa primeira versão,

poupava da demissão os heróis da Primeira Guerra, também caso de Haber. Mas ele teria que demitir

vários trabalhadores de seu Instituto, que eram judeus. Nessas condições, Haber trabalhou de março a

setembro de 1933, tempo em que procurou posições para seus subordinados judeus. Depois, pediu, ele

mesmo, por sua aposentadoria. Ninguém sabe ao certo porque Haber quis ficar ainda esses meses.

Talvez esperasse uma reviravolta política e a queda dos nazistas. Talvez quisesse mesmo defender, na

medida do possível, seus subordinados. Talvez os dois. O fato é que Haber viu que a Alemanha, a pátria

à qual dedicou toda sua energia, o rejeitava, ou melhor, o enxotava. Haber partiu então para o exílio,

primeiro para a Inglaterra, onde trabalhou por algum tempo, partindo daí para a Suíça, onde morreu, de

ataque cardíaco, em um quarto de hotel, em janeiro de 1934. E esse foi o fim de Fritz Haber, o homem

que ajudou a transformar nitrogênio do ar em pão.

Considerações finais

A história de Fritz Haber é incrivelmente rica pelos seus contrastes, ou melhor, pelos contrastes de suas

realizações, e pelas questões éticas que suscita. Seria Haber realmente um criminoso de guerra? Ou um

herói nacional, que de tudo fez para que seu país saísse vitorioso de um conflito? E se a Alemanha

vencesse a guerra, especialmente por causa de Haber? Isso teria feito com que a história esquecesse seu

papel na guerra química? É válida a máxima “na paz, a ciência serve à humanidade; na guerra, à pátria”?

Ou não caberia a Haber a decisão de usar ou não uma dada arma, mas a generais e políticos? O fato de

ele ter dedicado toda a sua energia ao país o perdoa? O que diz a decisão de Haber de seguir

imediatamente para a frente da batalha, poucas horas depois do suicídio de sua mulher, que deixava

um filho ainda criança? Um homem insensível ou alguém que colocava o dever acima de tudo? Ele era

um workaholic; mas quantos não são? Se não houvesse a guerra, teríamos conhecido essa faceta de

Haber ou ele estaria sendo festejado, tão somente, como o químico genial que foi? E o que dizer das

centenas ou milhares de cientistas que ainda hoje trabalham no desenvolvimento de armas químicas,

biológicas e atômicas?

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Caixa 1 Apenas cerca de 200 espécies de bactérias são capazes de fixar nitrogênio, utilizando a enzima

nitrogenase. O processo é lento, a uma taxa de uma transformação por segundo, em comparação com

as taxas usuais de milhões por segundo verificadas em outros processos enzimáticos. São requeridos 12

a 18 moles de ATP por mol de nitrogênio (N2) reduzido. Assim, praticamente toda a energia da bactéria

é consumida nesse processo e a bactéria tem que receber a glicose que ela precisa de outros

organismos. Ou seja, ela tem que ser um simbionte: recebe energia e fornece nitrogênio “fixo”. Vivendo

nas raízes dos legumes, essas bactérias fazem com que eles sejam a única planta capaz de obter, por

esse processo simbiótico, seu suprimento de nitrogênio. Outros vegetais dependem da disponibilidade

de nitratos no solo. É interessante notar que toda a nitrogenase existente na natureza caberia em um

barril... Tudo isso mostra que o processo natural de fixação de nitrogênio foi super lento. Hoje, ele

ocorre a uma velocidade espantosa, graças ao processo Haber-Bosch. Como a natureza vai conseguir se

adaptar a tanto nitrogênio fixo que está sendo disponibilizado?

Caixa 2 O processo de Haber-Bosch responde por 99% do nitrogênio inorgânico produzido no mundo, o

equivalente a cerca de 130 milhões de toneladas de amônia por ano; 4/5 disso vão para os fertilizantes.

Cerca de 40% da produção mundial de hidrogênio é usada nesse processo. Na Europa e nos Estados

Unidos, cerca de 40% dos átomos de nitrogênio de seus habitantes conheceram as entranhas do

processo Haber-Bosch, e praticamente todo o nitrogênio fixo dos campos da China, Egito e Java vêm

daí. Mesmo com o máximo de rendimento no uso e reciclagem do nitrogênio orgânico (“natural”) não

mais que 3,6 bilhões de pessoas no mundo poderiam se alimentar, das 6,6 bilhões hoje (2007)

existentes.

Caixa 3: O caso Clara Assim que ganhou uma posição estável, em Karlsruhe, Haber casou-se com Clara Immerwahr. Ela

também pertencia à comunidade judaica de Breslau, e conheceu Haber nos seus tempos de estudante.

Clara foi, provavelmente, a primeira mulher a doutorar-se em Química na Universidade de Breslau e, tal

como Haber, adotou o Cristianismo. Imediatamente após o casamento, nasceu o filho Hermann, com

quem Haber viria a ter forte relação posteriormente. No início, o casal era feliz. Clara esperava para si

uma carreira acadêmica que não houve. Ela terminou soterrada pelos afazeres domésticos, à sombra de

Haber, e amargurada com isso. Logo após o ataque com gases em Ypres, Haber voltou a Berlim e, na

noite de sua volta, deu uma festa para seus amigos, a fim de comemorar sua promoção ao posto de

capitão. Nessa mesma noite, Clara suicidou-se no jardim da casa, com o revólver militar do próprio

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Haber, dando um primeiro tiro para o alto e depois um em seu próprio peito. Ela morreu duas horas

depois, nos braços do filho. Muita gente especula que esse foi um desesperado ato de protesto contra o

profundo envolvimento de Haber na guerra química. Mas não há registro. Há, claramente, o

componente de sua insatisfação com o casamento e a direção que sua própria vida tomou. Haber partiu

para o front russo na manhã seguinte à morte de Clara. Anos depois, no seu testamento, Haber solicitou

que suas cinzas fossem depositadas ao lado das de Clara... Nas diversas biografias de Haber, não há

referências de ódio de Hermann (o filho de Haber) pelo pai, apesar do ocorrido. Eles foram bons amigos

e Hermann, depois, tornou-se um profissional de sucesso nos Estados Unidos, onde, inclusive, viria

também a suicidar-se, em 1945, logo ao final da Segunda Guerra Mundial. Um livro sobre as armas

químicas empregadas na primeira guerra foi escrito pelo filho mais novo de Haber, de seu segundo

casamento, Ludwig Fritz Haber.

Caixa 4: O prêmio Nobel Fritz Haber recebeu o prêmio Nobel relativo ao ano de 1918. Por causa da guerra, o prêmio só foi dado

em 1920. O prêmio se deveu à síntese da amônia a partir do hidrogênio e do nitrogênio, e a premiação

dá idéia da importância do tema. Quando a lista de ganhadores foi divulgada, houve um grande mal

estar, principalmente nos meios científicos ingleses e franceses. Afinal, Haber havia estado à frente da

guerra química, e isso causava o descontentamento de seus antigos inimigos. Por isso, outros

ganhadores dessas nacionalidades (exceto um inglês) não foram receber o prêmio: por não quererem

dividir o palco da premiação com alguém que eles acreditavam ser um criminoso de guerra.

Caixa 5: O Ciclo Born-Haber O Ciclo de Born-Haber é um modo de calcular a energia reticular (da rede iônica) de um composto

iônico, analisando o processo de sua formação passo a passo. A contribuição de Haber deu-se em uma

conversa com Max Born, no seu Instituto de Físico-Química, em Berlim. Por exemplo, para o cloreto de

sódio, parte-se do Na(s) e do Cl2(g) para chegar ao NaCl(s): Na(s) + 1/2 Cl2(g) � NaCl(s); essa transformação

pode ser analisada passo a passo, da seguinte forma:

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Processo Símbolo Significado

1) Na(s) → Na(g) ΔHvap Na Entalpia de vaporização do sódio

2) Na(g) → Na(g)+ + e- ΔHion Na Potencial de ionização do sódio

3) 1/2 Cl2(g) → Cl(g) ΔHdiss Cl2 Energia de ligação Cl-Cl

4) Cl(g) + e- → Cl(g)- ΔHafin Cl2 Afinidade eletrônica do Cl

5) Na(g)+ + Cl(g)

- → NaCl(s) ΔHret NaCl Energia da rede do NaCl

1+2+3+4+5

Na(s) + 1/2 Cl2(g) → NaCl(s) ΔHform NaCl Calor de formação do NaCl(s)

Veja que esses cinco processos, se somados, equivalem ao processo global, Na(s) + 1/2 Cl2(g) � NaCl(s). Pela

lei de Hess, então, a soma das energias dos cinco processos acima é igual à entalpia de formação do

NaCl(s), ΔHfNaCl. Todas essas “energias” são mensuráveis experimentalmente, exceto a energia da rede.

Mas como o ΔHfNaCl também é conhecido, fica possível calcular a energia da rede.

Caixa 6: Haber e Einstein A amizade entre Einstein e Haber foi sincera e respeitosa. Pode-se dizer que foi uma daquelas amizades

improváveis, pois, nos assuntos políticos, eram opostos extremos. Na fundação do Instituto Kaiser

Wilhelm, em Berlim, Haber fez de tudo para que Einstein viesse a fazer parte dele e foi graças aos seus

esforços que Einstein, apesar de suas restrições à política e do modo de vida prussianos, resolveu ir.

Haber tornou-se seu amigo e conselheiro, inclusive em situações delicadas, como no processo de

separação de Einstein de sua primeira esposa. As diferenças são evidentes na reação de cada um deles à

entrada da Alemanha na guerra. Einstein era um pacifista militante e ousado, e não só assinou um

manifesto de cientistas alemães dando razão à entrada da Alemanha na guerra como organizou um

contramanifesto a favor da paz. Haber foi um fervoroso nacionalista, altamente comprometido com o

esforço militar alemão e defensor da guerra química. Isso não impediu que, mesmo depois da guerra,

eles continuassem respeitando-se. Quando Haber partiu para o exílio, Einstein, já auto-exilado,

escreveu-lhe: “posso imaginar seu conflito. É como ter que desistir de uma teoria pela qual se trabalhou

a vida inteira. Não é a mesma coisa para mim, pois jamais acreditei minimamente nisso”. Einstein

referia-se ao nacionalismo de Haber...

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Caixa 7: Zyklon B Há de se ter cuidado com a Internet. Lá, há ótimas informações, mas também muita coisa distorcida,

mudada, ou, às vezes, errada mesmo. Parece aquela história de telefone sem fio, que cada um muda um

pouco do que ouviu e a história no final é completamente diferente da do início. Isso para não ficar nos

mal intencionados, que veiculam informações erradas de propósito, como quando se busca por Zyklon

B. Frequentemente, você vai ser informado que o Zyklon B era um gás. Se você associar o nome de Fritz

Haber ao Zyklon B, às vezes, encontrará que foi ele quem “inventou” esse gás e que depois, numa ironia

do destino, foi usado para matar judeus, judeus como ele, nos campos de concentração. É verdade que

o Zyklon B foi usado nas câmaras de gás nos campos de concentração para matar milhões de pessoas,

principalmente, no campo de Auschwitz, na Polônia. Mas ele não era exatamente um gás. Era um

produto técnico, inicialmente usado como pesticida. Seu componente principal, esse sim, era o ácido

cianídrico, HCN, cujo ponto de ebulição é de 25.6 oC. Logo, em ambientes acima dessa temperatura ele

se encontra na forma gasosa e, mesmo abaixo, é extremamente volátil. O ácido cianídrico é muito

tóxico para os seres vivos e acima de certas concentrações no ar, mortal também para os humanos (300

mg/L no ar mata em poucos minutos). Ele é conhecido há muito tempo e certamente você já ouviu falar

em quão venenosos são os cianetos – sais derivados do ácido cianídrico. O ácido cianídrico age ligando-

se aos citocromos, responsáveis pela respiração celular, impedindo seu metabolismo. O HCN puro é

extremamente perigoso de manipular, transportar e guardar. É explosivo ao ar. Isso dificulta seu uso.

Por isso, pesticidas à base de HCN devem ser estabilizados; essa estabilização é feita ligando-o a um

suporte sólido, no qual o gás fica “preso”. Esse suporte sólido podem ser “pedrinhas” porosas, com

grande superfície específica, sendo que as forças que ligam a molécula do gás à superfície do suporte

são forças intermoleculares, as forças de Van der Waals. Desse modo, uma grande quantidade de gás é

fixada no suporte sólido e pode ser manipulada e transportada com mais segurança. As “pedrinhas” de

suporte sólido contendo o gás podem ser estocas em latas, ali mantidas até o uso. Como a maioria do

gás está ligada ao sólido, pode-se ter uma grande quantidade de gás, em um volume relativamente

pequeno, sem alta pressão. No caso do Zyklon B, então, o gás era o HCN e vários suportes sólidos foram

usados (discos de fibra de madeira, diatomitos, gesso poroso, entre outros). A princípio, o Zyklon B,

entre outros produtos, foi empregado como pesticida, por fumigação. Para evitar que as pessoas se

envenenassem durante a aplicação, um terceiro produto era adicionado, um irritante, de modo que

servisse de alerta para a presença do HCN. O HCN é praticamente inodoro (narizes bem treinados

relatam um leve cheiro de amêndoas...) e as pessoas poderiam se intoxicar sem perceber nada. O papel

do irritante era então “avisar” da presença do gás tóxico, afastando as pessoas. Ou seja, o Zyklon B não

era um gás, mas um produto contendo HCN em um suporte sólido, mais gases irritantes. Um deles

liberava-se do suporte sólido mais rapidamente do que o HCN, sendo o “alarme”, e o outro depois, para

avisar que o HCN já havia ido embora.

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E o que tem Haber a ver com isso? Como vimos, mesmo após a derrota da Alemanha na Primeira

Guerra, Haber continuou suas experiências com gases. Essas experiências incluem, por exemplo, a

pesquisa de suportes apropriados ou como os gases se liberam desses suportes, efeitos fisiológicos, etc.

Tudo isso é de interesse tanto para uso bélico (na guerra) quanto para seu uso como pesticida. E fica

difícil saber se a pesquisa visa a desenvolver uma arma química ou um pesticida. Haber certamente

sabia disso e, muito possivelmente, os resultados das pesquisas realizadas nos seus laboratórios deram

também base à produção do Zyklon B. Mas não foi ele o inventor...

Mas agora você já sabe que, ao contrário do que erroneamente se pode encontrar na Internet, o Zyklon

B não era bem um gás, nem Haber foi seu inventor. Vamos dar um passo adiante, entrando no campo

das más intenções. Na Internet você poderá se deparar com artigos que, de uma forma ou de outra,

insinuam ou tentam mesmo “provar” que não houve câmaras de gás, o morticínio de milhões de judeus

e milhares de ciganos e outros, pelo regime nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Cuidado! Às

vezes até se torna atraente ir contra a corrente, por um motivo ou por outro. Alguns cultivam um

antissemitismo difuso, posando de desconfiado dos números. Outros, inclusive, considerando-se

progressistas, sentem-se tentados a ir nessa direção, como uma espécie de protesto contra as políticas

atuais do Estado de Israel. Cuidado! Não confunda alhos com bugalhos. Uma política deliberada de

extermínio de milhões de judeus empreendida pelo Estado Alemão sob o domínio nazista é um FATO

histórico. As provas são inúmeras. Uma história acessível desse fato pode ser encontrada em

http://super.abril.com.br/superarquivo/2005/conteudo_391737.shtml ou em http://www.holocaust-

history.org/auschwitz/chemistry/. Nesse último, infelizmente em inglês, o autor (Richard Green) diz em

suas conclusões que é muito mais fácil dizer uma mentira do que contestá-la. Não se iluda! Os que

buscam desacreditar do morticínio dos milhões de judeus nos campos de extermínio desejam, muito

mais, reabilitar o nazismo, uma ideologia do ódio.

Caixa 8: Por que Breslau hoje se chama Wroclaw e fica na Polônia? A grande consequência da subida de Hitler ao poder foi a Segunda Guerra Mundial. Com sua derrota

nesse outro conflito, após seis anos de guerra, a Alemanha perdeu sua parte mais à leste para a Polônia,

onde estava Breslau. A Polônia, por sua vez, “cedeu” sua parte mais à leste para a antiga União Soviética.

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