A idéia de a causa da risada estar associada aos defeitos ... · Web viewArtigo na revista Boca...
-
Upload
nguyenkhue -
Category
Documents
-
view
215 -
download
0
Transcript of A idéia de a causa da risada estar associada aos defeitos ... · Web viewArtigo na revista Boca...
Monstros, bufões e freaks : riso, medo e a exclusão dos anormais
Artigo na revista Boca Larga - Caderno dos Doutores da Alegria. , Nº 2, 2006
MONSTROS, BUFÕES E FREAKS: RISO, MEDO E A
EXCLUSÃO DOS “ANORMAIS”
Chamo monstro toda beleza de origem inesgotável.
(Alfred Jarry apud Moraes, 2002: 123)
A idéia de a causa da risada estar associada aos defeitos humanos,
desqualificando-os e tornando-os “ridículos” não é recente, aparecendo já em
Platão. Vemos no livro X de A República que a poesia, em especial o teatro,
por ser a imitação da imitação (uma cópia do mundo material, que é o das
aparências, que por sua vez é a cópia inferior do mundo “ideal”), nos afasta da
Verdade. Desta forma, há certos gracejos que teríamos vergonha de dizer e, no
entanto, quando os ouvimos numa cena de comédia, ou mesmo em particular,
nos regozijamos e não sentimos nenhuma revolta diante de sua
inconveniência. (...) pois damos soltas aquele prurido de rir que contínhamos
em nós com a razão, temendo passar por chocarreiros, e não nos
apercebemos de que ao fortalecê-lo assim, nos deixamos arrastar
freqüentemente por ele no tato ordinário, até nos convertermos em farsantes.
(...) E assim no que toca à luxúria, à cólera (Platão, 1996: 226). Na república
platônica, o riso é um elemento de desordem e transgressão, pois afasta as
pessoas da Verdade ao incentivar a identificação com este mundo - o falso -
através do humor.
O tema é retomado por Aristóteles, que afirma na Ética a Nicômaco: O
gracejo é uma espécie de insulto, e há coisas que os legisladores nos proíbem
de insultar, e talvez devessem também proibir-nos de gracejar em torno delas
(Aristóteles (b), 1973: 316). A problemática do risível também é tratada em sua
Arte Poética, influenciando desde então muito da crença na superioridade da
tragédia sobre a comédia, da “profundidade” da dor trágica frente à “leveza” da
alegria cômica. Para este filósofo, apesar de a comédia ser um gênero tão
legítimo quanto a tragédia, pois ambas nascem da necessidade humana de
imitar a vida e se deleitar no imitado, a primeira originou-se da índole de poetas
de baixas inclinações, que voltaram-se para as ações ignóbeis, compondo,
estes, vitupérios. Desta maneira, a comédia é então a imitação de homens
inferiores; não todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela
parte do torpe que é ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina
e inocente (Aristóteles (a), 1973: 445; 447). Temos aqui a concepção do
ridículo como um “defeito”, embora este seja leve e “inocente”.
Com o surgimento da religião cristã no final da Antiguidade nasce
também uma nova maneira de compreender o ser humano e o mundo que o
rodeia. Duas doutrinas filosóficas que foram fundamentais na organização
desta religião estão diretamente ligadas à questão do corpo e seus prazeres. O
platonismo com a crença em outro mundo ideal e perfeito, afastado da matéria
– o qual Nietzche vai afirmar mais tarde ser o cristianismo um “platonismo para
as massas” – e o estoicismo, através do ideal austero de autocontrole. Para
esta segunda linha filosófica, as paixões não eram apenas movimentos
exacerbados e incontroláveis dos sentimentos humanos, mas uma fonte de
sofrimento injustificável, uma “doença” da alma. Daí a associação do termo
grego pathos com paixão, sofrimento e doença (Lebrun, 1987). O cristianismo
então, através do ponto culminante de seu mito máximo, a “paixão” de Cristo,
une indissociavelmente as idéias de Amor, Verdade, Beleza e Espiritualidade
ao sofrimento humano.
A relação entre a risada, a diversão, o descontrole (a paixão, pathos) e a
figura do diabo, cada vez mais central nesta religião, pode ser claramente
demonstrada no teatro medieval. Dentro do processo de constante
“catequização” da cultura popular nos mistérios da fé cristã, a Igreja passou a
dramatizar passagens bíblicas e trechos da vida dos santos como forma de
educação religiosa. Desta maneira, desde o século IX, pode-se falar de um
teatro sacro medieval dentro das igrejas (Arêas,1990: 41). A partir do final do
XIV, estas encenações litúrgicas foram expulsas para a rua juntando-se às
festas populares, já repletas de saltimbancos, malabaristas, magos e outros
viajantes que vendiam suas façanhas sob a fórmula do espetáculo (Tinhorão,
2000: 63).
Nestes eventos, que muitas vezes duravam dias, eram encenados os
Mistérios, os Milagres e as Moralidades do teatro medieval. Nos dois primeiros,
representava-se a vida dos santos, os milagres cristãos e passagens da Bíblia
e, no último, personagens alegóricas como O Vício, A Virtude, Todo-Mundo ou
Ninguém ensinavam, como o próprio nome diz, as virtudes da moral cristã.
Ora, não podemos nos esquecer que os heróis bíblicos, como os
apóstolos, ou os patriarcas hebreus, assim como os santos, nunca poderiam
ser objeto de riso ou bazófia. Eles representavam o ideal de espiritualidade e
seriedade a serem alcançados. Desta forma, as personagens ridículas, que
falavam errado, caíam, exaltavam o corpo e suas secreções, provocando
gargalhadas com seus gestos desmedidos e sons altíssimos, eram os diabos.
Inclusive, ao contrário dos santos, estes usavam máscaras para alterar o rosto,
reforçando a ligação deformidade/ ridículo/ malignidade.
Na representação dos Mistérios, vários pequenos palcos eram dispostos
um ao lado do outro, mostrando através de diferentes cenários um caminho
que ia do inferno ao céu. E se no céu apresentava-se a bem-aventurança dos
eleitos de Deus, repleta de paz e tranqüilidade, no inferno estavam todos os
elementos de um espetáculo que visava o encantamento dos sentidos: muito
barulho, música alta, gritos, gestos largos, pantomimas, acrobacias,
contorcionismos, risadas estridentes, tombos, fogos, fumaças, odores,
participação do público, diversão, bagunça. A imagem demoníaca porém, nada
tinha de antipática. As figuras que representavam o mal estavam mais para os
clowns do que para os espíritos aterradores da doutrina oficial (Macedo, 2000:
216). Estes demônios cômicos com suas algazarras unindo caos, transgressão,
prazeres físicos – especialmente os sexuais - e deformidades do corpo ou da
alma, formaram muito da base cultural de onde surgirão os futuros clowns,
bufões, arlequinos, palhaços de circo e personagens cômicas da cultura
ocidental.
Também é neste período, junto ao teatro medieval, que surge o que
conhecemos como “farsa”. Esta forma teatral é indissociável do cômico, do
espetáculo e do foco no corpo e suas expressões. Elemento fundamental da
interpretação e estética “demoníacas” de então, a farsa exagera o ridículo e o
grotesco, explicitando o caráter de “dissimulação” da representação. Desta
forma, reforça a associação entre riso, corpo e “falsidade”, pois o diabo é o “pai
da mentira” (Pavis, 2001: 164). Festa, teatro, riso, sexo e perdição apresentam
então uma íntima e profunda relação.
A partir do Renascimento, mais especificamente no século XVI, surge na
Itália um teatro de rua de caráter popular e burlesco, que se caracteriza pelo
alto grau de improvisação, a importância do gestual e da máscara e a criação
de personagens específicos que representavam, antes de tudo, grupos sociais:
a Commedia Dell’Arte. Os servos preguiçosos, atrapalhados e voltados
essencialmente para os prazeres do mundo concreto (Arlequino,
Franchesquina) ou ambiciosos (Briguella); os recentes burgueses avarentos
(Pantalone ou Pantaleão); os nobres arrogantes e covardes (Capitão); os
intelectuais preguiçosos e glutões (Doutor); os sinistros médicos e cirurgiões
(Boticário) e os Amantes sempre em conflito, são, entre outros, personagens
que até hoje influenciam o humor tanto popular quanto erudito.
Este gênero de interpretação teatral, voltado inteiramente para o riso de
rua, foi a matriz de muitos dos elementos que irão desembocar no melodrama
e nas comédias românticas dos séculos XIX e XX, influenciando todo o teatro
cômico a partir de então. Os atores da Commedia foram os primeiros
“profissionais” do teatro moderno, pois viviam exclusivamente de sua arte, o
que os obrigava a uma qualidade técnica e criativa até então muito rara. Foi
também este tipo de teatro o primeiro a trabalhar com mulheres nos papéis
femininos. Antes disso, todas as personagens femininas eram interpretadas por
homens. Junto com este aumento de mercado de trabalho para as mulheres e
conseqüente incremento de sua autonomia frente à mentalidade herdada do
universo medieval, reforçou-se também a desconfiança para com elas. Nasceu
então a íntima associação entre a atriz, a prostituta (a única “trabalhadora
independente” da época) e o universo da falsidade, do artifício e do truque (o
teatro).
Também o gesto era um denunciador dos excessos demoníacos a que o
riso poderia levar ou manifestar. O corpo do cristão era o “templo do Espírito
Santo” e este deveria ter como objetivo o estado tranqüilo de bem-aventurança.
Nada de gritos, movimentos largos ou deformações da fisionomia (Le Goff,
1994). Justamente as características físicas das gargalhadas e dos deleites
sensuais. A introversão da serena espiritualidade não condizia com a
extroversão desregrada das convulsões carnais, fosse no ato sexual ou na
gargalhada descontrolada. E como que para lembrar as origens comuns do
cômico popular com o demoníaco e o sexual, a tradicional máscara da
personagem Arlequino, ainda hoje em dia, mostra no lado esquerdo da cabeça
um pequeno chifre, resquício e lembrança de quando a figura cômica ainda era
o diabo.
A partir do início do século XVII surge pela primeira vez a idéia de
“humor” como o conhecemos hoje em dia, ou seja, uma certa disposição alegre
e amigável (Machline, 1996: 67). Com este novo sentido, tal palavra foi
registrada pela primeira vez na Inglaterra em 1682 (Bremmer e Roodenburg,
2000: 13), embora alguns autores afirmem que a concepção moderna do termo
“humor” remonte a duas peças teatrais do autor inglês Ben Johnson: Every
Man in his Humor (1598) e Every Man out his Humor (1599), significando o
comportamento extravagante que seria motivo de rir (Alberti, 1999: 155). Já
Macedo em seu estudo Riso, cultura e sociedade na Idade Média (2000: 25)
afirma que as palavras “cômico” e “humor” só passaram e ser usadas no
sentido que lhes damos hoje, a partir do século XIV.
Até então, “humor” era usado no sentido de fluidos corporais, como
concebido por Hipócrates no Corpus Hippocratium - cerca de 400 A. C.-
(Machline, 1996: 67). Dentro da tradição médico-filosófica-ética da Antiguidade,
os humores eram quatro e dividiam-se em sangue, fleuma, bílis amarela e bílis
negra. Embora houvesse o predomínio de um destes elementos em cada
pessoa, gerando assim os temperamentos, o desequilíbrio entre eles poderia
causar as mais variadas doenças. Assim, o que vale ressaltar é a íntima
associação entre as funções orgânicas e os estados de espírito encontrada na
palavra “humor” e que mesmo perdendo seu sentido orgânico no século XVII,
manteve ainda por muito tempo a relação entre a alegria e as reações físicas.
O monstro humano combina o impossível e o interdito.
(Michel Foucault, 1997: 61)
Ora, pode-se afirmar que o corpo “grotesco” compreendido como uma
forma física na qual não apenas o riso mas também o medo e a estranheza se
unem para caracterizar o espanto é uma releitura de um outro conceito muito
mais antigo: o de “monstro”. Claude Kappler (1994) explica esta concepção no
livro Monstros, Demônios e Encantamentos no Fim da Idade Média. Estes
seres incríveis conhecidos por monstros são, por excelência, a marca explícita
de algo fora da ordem, do “natural” ou, no mínimo, do conhecido.
Constantemente, a monstruosidade é entendida como uma transgressão das
leis estabelecidas, visando através de sua presença, inspirar temores e dúvidas
ou punir contra infrações.
O termo monstro não possui uma origem muito clara, vindo
provavelmente do latim monstra que significa “mostrar, apresentar” ou
monstrum, com significado de “aquele que revela, aquele que adverte”. Mas a
maioria dos estudiosos que trabalharam com o tema (Thompson, Cohen,
Kappler, Tucherman) concorda com uma coisa: O monstro é aquele que
“mostra” algo: uma revelação divina, a ira de Deus, as infinitas e misteriosas
possibilidades da natureza ou aquilo que o homem pode vir a ser. É, portanto,
a manifestação de algo fora do comum ou esperado. Representa uma
alteração maldita ou benfazeja das regras conhecidas. Mas não é apenas o
terror que a figura monstruosa provoca. É também fascínio, encanto, dúvida,
fonte de curiosidade e desejo. Por isso, desde a antiguidade até pelo menos o
século XVI, os monstros no Ocidente também eram classificados entre as
“maravilhas” ou “prodígios” do mundo e podiam evocar tanto o medo quanto a
risada através de suas formas exageradas, assustadoras ou ridículas. Mais que
uma simples imagem da ira divina ou mesmo da insanidade sexual dos
homens, estes seres eram, antes de tudo, manifestações do poder
incogniscível do mundo sobrenatural.
Porém, o monstro de que falamos aqui não é o da subjetividade
moderna, mas o da corporeidade antiga. Como algo que “mostra”, “revela”, a
principal característica do monstro esta em sua aparência física. A deformidade
ou alteridade do corpo é a materialização da deformidade ou alteridade da
alma. Assim, o foco da diferenciação entre “monstros” e “normais” é a estrutura
orgânica e material, não o caráter destes seres. No panteão das criaturas
gregas, tanto o sábio centauro Quíron quanto a terrível Medusa pertencem à
mesma ordem de “maravilhas”. Aristóteles considerava os monstros como
piadas, brincadeiras da natureza (Ostman, 1996: 121). Eles poderiam curar,
fazer rir, causar medo ou destruir. Desta forma, sátiros, ciclopes, sereias, a
esfinge, os seres meio homem-meio animais, os deuses de vários braços
(como os da Índia), o Leviatã (animal-demônio bíblico que vivia no fundo dos
oceanos), crianças hermafroditas, entre outros, comungavam desta concepção
de “monstro”.
A partir do século XIII, inicia-se uma era de grandes viagens. Marco Pólo
chega à China, têm início as cruzadas visando a retomada de Jerusalém para
os cristãos, mercadores redescobrem antigas rotas de comércio enquanto
abrem novos caminhos e as ferozes hordas mongóis de Gêngis Khan
alcançam o leste da Europa, chegando até Viena. Ressurge o fascínio pelos
povos fantásticos e suas terras maravilhosas que estão para além do mundo
até então conhecido. A África, a China e principalmente a Índia aparecem no
imaginário ocidental como lugares aonde o extraordinário é cotidiano (Kappler,
1994).
Para Kapller, é graças à “maldade” encontrada em muitos dos entes
fantásticos importados do oriente, principalmente da China, que vai ocorrer
uma mudança fundamental na noção de monstro. O cristianismo já possuía a
tendência de associar as deformidades e a feiúra ao diabo. Mas se até o século
XIII este era visto como tendendo mais para o cômico do que para o maligno, a
partir desta data começa uma sutil mas constante e persistente idéia de que as
“maravilhas” não são tão ambíguas e engraçadas como se supunha, mas
essencialmente maléficas e perigosas. É somente na baixa Idade Média, com a
associação do conceito de monstro com a figura do demônio, que o primeiro
passa a ser entendido apenas como a encarnação de algo destrutivo por
natureza, perdendo qualquer outra face que não a do ódio ao gênero humano -
mas mantendo ainda na corporeidade a medida de sua classificação
“monstruosa” (Kappler, 1994).
Por isto, a partir deste período, com a dominação da ideologia cristã na
Europa, a estranheza do “fantástico” vai ser substituída em grande parte pelo
temor do maligno. O demônio será de agora em diante a grande fonte geradora
de abominações ainda reconhecidas não por atitudes ou intenções, mas pelo
físico. Quanto mais este período chega ao fim, maior é a associação entre o
Mal e o monstro.
No século XVI, com a Renascença e toda a mudança cultural
acontecendo no Ocidente, um novo renascimento dos monstros ocorre,
motivado pelas viagens em direção ao oeste e à conquista do Novo Mundo. Ao
mesmo tempo em que locais miraculosos são procurados, como o próprio
paraíso terreno, as fontes da juventude e mais tarde o El-Dorado, novos
animais fantásticos como um pássaro que possui o bico maior que o corpo (o
tucano) ou uma mistura de criança com urso (o bicho–preguiça) também são
revelados. Junto com estes, velhos seres fabulosos reaparecem nas Américas,
como os homens sem cabeça e com rosto no peito, as antigas guerreiras
amazonas e os intrigantes homens selvagens, uma mistura de homem com
fera, vivendo na selva junto e como os animais (Priore, 2000).
Neste período, os lendários ciclopes, sereias, lobisomens, serpentes
marinhas, plantas que emitiam sons (como a mandrágora) e os dragões
conviviam lado a lado no imaginário monstruoso com os corcundas, aleijados e
os animais com duas cabeças ou três rabos, pois todos tinham na aparência
física o sinal de sua estranheza. Em 1573, Ambroise Paré, um médico francês
autodidata escreve Des monstres et prodiges, um dos mais famosos tratados
visando à sistematização do assunto e a “naturalização” destes seres. Para o
autor, os monstros são coisas que aparecem contra o curso da natureza. No
prefácio de 1579, esta definição muda para coisas que aparecem além do
curso da natureza. Da mesma forma, prodígios são coisas totalmente
contrárias à natureza. Juntos estão os cegos, zarolhos, corcundas, coxos ou
que têm seis dedos na mão ou nos pés, ou menos de cinco, ou juntas unidas,
ou braços muito curtos, ou o nariz muito encravado como têm os golfinhos, ou
os lábios grossos e invertidos, ou fechamento da parte genital das meninas por
causa do hímem, ou carnes suplementares, ou que sejam hermafroditas, ou
que tenham manchas, ou verrugas, ou lúpias, ou outra coisa contrária à
natureza. Como analisou Eliane Robert Moraes, parece então haver uma
mistura entre o que é contra, totalmente contrário ou além da natureza,
transformando novamente as deformações em monstruosidades (Moraes,
2001: 83).
Desta forma, no século XVI o foco da atenção muda das raças fabulosas
para os indivíduos monstruosos. Não mais o monstro distante é motivo de
preocupação, mas o próximo (Silva, 2000). As anomalias fisiológicas e mentais,
que poderiam ser encontradas entre nós, representando tanto o infame estigma
do diabo quanto algum tipo de revelação divina, ganham terreno sobre os
povos maravilhosos. Os monstros que fascinam a Europa passam a ser os
deformados físicos e as anomalias orgânicas, encontradas principalmente na
figura dos chamados bufões.
À parte as criaturas mitológicas ou fantásticas, são estes os tipos de
seres que possuem existência real e encarnam a fascinação, o cômico, o medo
e, muitas vezes, o ódio das antigas “maravilhas”: as pessoas deformadas, com
alterações físicas incomuns ou capacidades corporais impressionantes que
fogem a todas as tentativas de generalização médica sobre o humanamente
“normal” ou “natural”. Como escreve Ben Johnson em seu já citado Every Man
in his Humor (1598): Vós que tantas honras fazeis aos monstros, poderíeis
amar os homens? (Priore, 2000: 53).
Os bufões são a versão ocidental dos loucos domésticos das cortes do
Oriente, hábito trazido pelos cruzados (Sodré e Paiva, 2002), embora já
existissem alguns “pré-bufões” desde a Grécia antiga (Minois, 2003). No
período medieval, além dos entes fantásticos encontrados no Oriente e na
África, surgem nos castelos dos senhores feudais, estas pessoas de carne e
osso que sofriam das mais variadas mutações físicas. O bufão possuía um
status especial. Era o famoso “bobo da corte”, em geral a pessoa mais “feia” ou
fisicamente “estranha” da região. Débil mental, o bobo é também escolhido por
sua deformidade: os reis fazem coleções de anões e de aleijões que trocam
entre si, e o rei da Escócia, Jacques IV (1473-15130), podia se vangloriar de
possuir um verdadeiro monstro composto de dois corpos incompletos unidos na
parte superior (Minois, 2003: 227).
Justamente por sua deformidade, passava a viver na corte e estava ali
para divertir o rei e os grandes senhores feudais, sendo alvo de chacotas e
suportando todo o tipo de desprezo e ofensa, pois era entendido como a
encarnação de tudo o que há de ridículo e estúpido no mundo humano. O
universo do cômico e do risível estava centrado em sua figura. Mas diferente
dos foliões das festas populares, que apenas em alguns eventos anuais davam
vazão a sua “loucura” e a uma “alegria” desmedida, o bufão vivia
rotineiramente seu papel de louco sendo, em algumas destas festas, coroado
“rei por um dia”, para ao final voltar a sua rotina de transgressor oficial via riso e
excessos (Bakhtin, 1987).
Porém era o único naquela estrutura social que podia criticar e
ridicularizar a todos indiscriminadamente, inclusive o próprio rei, rebaixando os
detentores do poder, invertendo as hierarquias e dando voz a desejos
proibidos. Segundo José Rivair Macedo, o bufão era a versão “inversa” da
realeza e seus poderes, por isso constantemente estava vestido como um rei
“pobre” ou estúpido. Como duplo grotesco do rei, todas as palavras proferidas
por alguém monstruoso e repulsivo só podia realmente fazer rir (Macedo, 2000:
135).
Pela via da risada, o bobo expunha a verdade, que mesmo sendo
agressiva, era perdoada por ser anunciada por um “louco”. Da mesma forma,
esta capacidade de ver e expressar as idéias e desejos não confessos,
conferem a estes seres desengonçados uma íntima associação com os
poderes mágicos e sobrenaturais. Sendo um monstro, tem acesso às
“verdades” ocultas dos homens. Verdadeiro anti-rei, soberano invertido, o bobo
(...) é um parapeito que indica ao rei os limites de seu poder. O riso razoável do
louco é um obstáculo ao desvio despótico (Minois, 2003: 232).
Como os bufões eram a materialização da vida fora da ordem, do caos
do espírito manifesto na desorganização do corpo, da vileza da alma
encarnada na feiúra da aparência, provavelmente quanto mais deformado,
melhor expressava o “mundo fora dos eixos”. E quando não eram encontrados
“ao natural”, poderiam ser “criados”. Desta forma, em algumas localidades
como a Boêmia, crianças tinham os lábios cortados, as cabeças comprimidas
ou eram fechadas em caixotes para que os ossos calcificassem e os músculos
atrofiassem de maneiras disformes, dolorosas e, para a época, engraçadas
(Nazário, 1998: 46). Da mesma forma, quanto maior o sentimento de
“desordem” que uma pessoa poderia encarnar, maior o sentido de “ordem” que
poderia evocar ao meio. A figura mais conhecida que chegou - em versão
suave - até nós destes homens que tinham como única chance de
sobrevivência a espetacularização da própria estranheza, seja talvez a do
anão. Mas não podemos nos esquecer que quanto mais bizarro, da mesma
forma, mais curioso e também mais cômico. Bufões são os monstros
domésticos dos senhores feudais que, por conveniência, geram riso, não
calafrios. Representam a irregularidade da vida e são um escárnio à vaidade
dos homens.
Ora, é Macedo novamente quem nos informa que a figura do demônio,
na Idade Média, provocava duas sensações: o terror e o cômico. Toda a
monstruosidade da figura do inimigo do Senhor, lembrando as desgraças e
sofrimentos que esperavam o mau cristão, também transformavam tal ser em
algo ridículo, anunciando que a perfeição das formas e das almas só
pertencem a Deus. O diabo, apesar de violento e vingativo, era um fracassado,
pois se denunciava constantemente através da deformação de suas aparências
e do ridículo destas (Macedo, 2000).
Como já visto, a partir da baixa Idade Média, a relação entre a
monstruosidade corporal e o Mal vai ficando cada vez mais forte, graças à
identificação da deformidade com o demônio. Um exemplo desta relação pode
ser encontrado na personagem do Duque de Gloster, futuro rei Ricardo III da
peça homônima de Shakespeare (1) já no fim do século XVI. Vejamos como se
apresenta: eu, que me vejo cunhado de maneira tão grosseira (...); eu, que me
acho falto de proporção, logrado em tudo por uma natureza enganadora,
deformado, incompleto; antes do tempo lançado ao mundo vivo, apenas feito
pela metade, tão monstruoso e feio que os cães me ladram se por eles
passo...eu, em suma, nesta época abatida de paz amolentada, não conheço
outra maneira de passar o tempo, a não ser contemplando minha própria
sombra, quando o sol a projeta, ou comentando minha deformidade. Se não
posso tornar-me o amante que divirta os dias eloquentes e alegres, determino
conduzir-me qual biltre rematado e odiar os vãos prazeres de nossa época. Ou
quando diz: se o Rei Eduardo for tão justo, tão veraz quanto eu sou falso e
traiçoeiro (Shakespeare, sem data: 551). Ricardo III manifesta no corpo toda a
malignidade de sua alma.
Analisando pela ótica do que o sociólogo Norbert Elias (1994) chamou
de “processo civilizador”, ou seja, o gradativo controle dos gestos e posturas
corporais como uma maneira de distinção social, os bobos da corte primeiro
tiveram suas deformidades associadas ao Mal pela Igreja ainda na Idade Média
e depois, a partir do Renascimento, estes corpos estranhos e desengonçados
exprimem a inferioridade sócio-existencial de tais pessoas. Mas como
expressar a graça da mente nos movimentos do físico, a beleza espiritual no
semblante sereno se o próprio corpo denunciava a impossibilidade de exprimir
tais ideais?
Conforme mostrou Foucault (1988), a partir do século XVII, inicia-se na
Europa uma preocupação com as populações como fonte de poder e
estabilidade dos poderes monárquicos. É quando a atenção dos governos
volta-se não mais para sua capacidade de causar a morte dos inimigos ou
dissidentes, mas para a habilidade de gerenciar, organizar e vigiar a vida dos
súditos. Com o surgimento deste “biopoder”, uma questão torna-se
fundamental: como lidar com tantos e tão variados corpos, gostos, desejos e
atenções? Inicia-se então um lento projeto de disciplinarização dos corpos e
uniformização dos desejos, visando torná-los dóceis e úteis ao Estado.
Aparecem então os treinamentos militares procurando igualizar os movimentos
de milhares de soldados, como se todos fossem um só corpo.
Se até então a diversidade, a criatividade e o jogo das formas eram a
marca registrada da natureza, a partir deste período começa a se valorizar o
constante, o que é sempre igual, uniforme e equilibrado nos domínios da vida
(Priore, 2000). Busca-se encontrar a “regra” oculta em cada forma
aparentemente distinta e as “leis” universais e imutáveis que regem a “ordem”
do universo.
Ora, o bufão está obrigatoriamente fora desta disciplinarização. Seu
físico não pode seguir os rigores das normas de postura e, conseqüentemente,
dentro deste modelo social, seu caráter não consegue expressar a dignidade
do homem “civilizado”. O gradativo controle das funções corporais, um dos
elementos mais importantes de distinção social, torna-se um dos alvos
prediletos das brincadeiras grotescas. Bufões peidam entre aqueles que
seguram seus gases, arrotam entre os que comem de boca fechada, assoam o
nariz na mão entre os que usam lenços e urinam nas calças e em público em
frente às pessoas que, cada vez mais, sentem repulsa por tais atitudes. Como
excluídos, exageram nos elementos já amaldiçoados pela cultura, como vimos,
o riso e o sexo. A gargalhada, que até então poderia ser causada pela visão da
deformidade, torna-se lentamente ela mesma uma deformidade do belo “sub-
riso”, ou seja, do sorriso. Com certeza era em cima destas pessoas que
Shakespeare (1978: 186) faz a analogia com a vida humana em seu famoso
trecho de Macbeth: A vida nada mais é do que uma sombra que passa, um
pobre histrião que se pavoneia e se agita uma hora em cena e, depois, nada
mais se ouve dele. É uma história contada por um idiota, cheia de fúria e
tumulto, nada significando.
Resta assim, como modo de sobrevivência, a espetacularização de sua
quase ofensiva diferença física, estética e moral. O trabalho destas pessoas
encontra-se então restrito às cortes que ainda os suportam, às feiras,
mercados e circos. Se na Idade Média o bufão possui um papel essencial,
deve-se à sua total inclusão dentro do sistema social da época, pois sua figura
possuía a importância inversa da realeza e da sabedoria, mas fundamental
para o sentido de mundo do período. Com a gradual aversão aos excessos
cômicos e brincadeiras sexuais, a diminuição do espaço social dos corpos
indisciplinados, a concentração do poder nas mãos dos reis, gerando o
absolutismo e o crescente predomínio ideológico do racionalismo, os bobos da
corte perdem seu sentido e função. Gradativamente, o bufão morre, dando seu
último suspiro no século XVIII. Cem anos mais tarde, tais corpos ditos
“deformados” ou “anormais” reaparecerão sob a égide do show business e da
cultura de massas com o nome norte-americano de “freaks”.
Em 1723 o primeiro museu público de Londres anunciava em um jornal:
monstros de todos os tipos são vistos aqui, coisas estranhas ao natural, como
elas acontecem (Semonin, 1996: 70). Surge neste período a espetacularização
pública das anomalias humanas como um negócio específico. Estes “shows de
aberrações” vão viajar o Ocidente inteiro, mas é nos Estados Unidos que irão
se firmar e criar toda uma cultura própria.
Paralelo a isto, em 1770 o militar inglês Philip Astley inicia um
espetáculo eqüestre em uma pequena área circular por ele cercada. Entre os
números com cavalos, resolve inserir saltimbancos e artistas de praças para
incrementar seu show. A fórmula dá certo e passa a ser imitada em vários
países. Mágicos, malabaristas, músicos, adestradores de animais exóticos e
toda a sorte de artistas até então espalhados em mercados e feiras unem-se
gradualmente a este fenômeno que, em 1860, ao ganhar a cobertura de lona,
se tornará o circo moderno (Mira, 1995: 140).
Uma das figuras primeiro contratadas foi a do bufão, junto a outros
cômicos de feiras. Dos deformados físicos que ganhavam a vida ridicularizando
a própria deficiência aos atores herdeiros da Commedia Dell’arte e dos diabos
cômicos medievais, surge então a figura do palhaço. Seu nome provavelmente
vem de “palha”, indicando a origem pobre de suas vestimentas (Dantas, 1980).
Entidade genérica, que une da monstruosidade dos bufões (como os sapatos
gigantes, indicando pés enormes e desproporcionais) à sensibilidade dos
pierrôs (estes próprios já um aburguesamento do devasso arlequim), o palhaço
de circo manterá o grotesco como uma de suas características principais, mas
diminuindo a face assustadora e reforçando a cômica.
Neste processo, dois fatos curiosos acontecem: primeiro, o caráter
agressivo do humor não é totalmente abandonado, mas incorporado por um
tipo próprio de palhaço que se não se diferencia na aparência, torna-se distinto
no caráter. Surge então os conceitos de palhaços hoje conhecidos como
“branco” e “Augusto”, ou “clown” (1) e “Tony”. O branco ou clown é aquele que
está sempre pregando peças nas pessoas, tentando se dar bem em alguma
empreitada ou fazendo os outros de bobo. Mesmo ingênuo, ele é autoritário,
gosta de ofender e ter o controle sobre as coisas. O Augusto ou Tony é o
ludibriado, trapaceado, que se mete nas enrascadas mas, graças à sua pureza
de coração e esperteza da mente, sempre sai ganhando no final. Eles formam
os cômicos de dupla, na qual o conflito gerado por suas posturas opostas
provoca as mais hilárias situações, numa das fórmulas de maior êxito na
tradição do humor de espetáculo (2).
Segundo, ao tornar-se mais engraçado do que amedrontador, a figura do
palhaço se distancia do bufão não apenas em intenção mas também em forma.
Os aleijões e todo o tipo de pessoas com corpos estranhos passam a ser
apresentados dentro dos circos em um número específico e como elementos
exóticos, iguais às feras ou às “águas que dançam”, objetivando não mais o
riso, mas o espanto da platéia. Desta forma, ao tornarem-se uma performance
única no mundo do circo, as pessoas com alterações corporais excepcionais
também são uma atração especial nos mercados, feiras e parques de
diversões que, no século XIX, vão ganhar novo fôlego como centros de lazer
no caótico meio urbano e industrializado das grandes cidades.
As apresentações de estranhezas humanas já são um grande sucesso
na Europa no século XIX, mas é na América do Norte que tais eventos vão
alcançar o auge de sua “profissionalização”. Nos Estados Unidos, P. T.
Barnum, um recente empresário do ramo do entretenimento, inaugura em 1841
o American Museum, que exibe as mais variadas curiosidades por apenas
alguns centavos. A atração principal, claro, são as anomalias físicas. Em 1865
o museu é destruído por um incêndio e Barnum resolve tornar seu espetáculo
itinerante. Este senhor pode ser considerado o pai da moderna cultura do
entretenimento e é atribuída a ele a famosa frase: “existe um otário nascendo a
cada minuto” (Trigo, 2003).
Com o sucesso causado por estes “assombrosos fenômenos”, surge
toda uma cultura de espetacularização do estranho e anormal como um
negócio extremamente lucrativo, que vai estar na raiz da nascente cultura de
massas. Nascem assim os freak shows, espetáculos em que são apresentados
para apreciação pública todo o tipo de coisa estranha, esquisita ou bizarra, indo
desde grosseiras falsificações como animais distintos empalhados e
costurados juntos formando um ser só (como um monstro metade carneiro,
metade girafa) até fetos humanos abortados e guardados em vidros com
formol, ou uma mulher com três seios, além de representantes típicos de outras
culturas, como um guerreiro zulu, esquimós ou mesmo uma senhora com
alegados 120 anos de idade. Mas o grande sucesso destes eventos se deve às
anomalias e deformidades humanas. Os mais variados e distintos físicos
expõem-se à admiração como verdadeiros monstros e prodígios da natureza, e
com isso ganham a vida, fazem carreira e alguns poucos até acumulam
fortunas. Apesar destes shows terem corrido o Ocidente inteiro, foi nos Estados
Unidos que mais se desenvolveram, criando as bases de uma cultura da
“anormalidade”. Entre 1840 e 1940, ocorre a “época de ouro” dos freak shows
que, neste país, alcançam seu ápice na virada do século e durariam nesta
forma até os anos 60 do século XX (Thomson, 1996).
Em 1832, o zoologista francês Geoffray Saint-Hilaire escreve Histoire
Générale et Particulière des anomalies de l’organisation chez l’homme et les
animaux, que tem como subtítulo Traité de teratologie. Nasce então a
“teratologia”, a ciência que estuda as deformidades do corpo (Tucherman,
1999: 126). Para se diferenciar dos tratados sobre monstros e prodígios de até
então, que misturavam as explicações orgânicas com as mágicas e espirituais,
o autor abandona a raiz latina monstrum ou monstra e deriva o nome deste
novo ramo da medicina do grego terato, significando “monstruosidade,
anomalia”, e originado de terás, “o sinal enviado pelos deuses, uma coisa
monstruosa”. Cria-se uma outra nomenclatura, mas seu significado continua o
mesmo: o deformado físico é um monstro. A medicina acaba colaborando para
a manutenção do caráter de alteridade e estranheza da pessoa de corpo
“anômalo”. Os antigos monstros e bufões tornam-se agora erros da natureza; a
maravilha corporal é entendida como doença e o medo que antes causavam
passa a inspirar pena.
Segundo Rosemarie G. Thomson, em seu estudo sobre os chamados
freaks, no século XIX o discurso oficial sobre os corpos e mentes deformados
passa definitivamente para a mão dos médicos e de uma ciência totalmente
laica. Acompanhando as mudanças de cultura e sensibilidade da época, os
antigos monstros humanos ou bufões transformam-se em doentes ou
degenerados. A “maravilha” tornou-se erro (5). Se no século XVII, o gosto por
monstros tornou-se uma doença, agora o próprio monstro revela-se não mais
que uma patologia (Semonin, 1996: 69).
O termo freak (4) já era usado na Inglaterra do século XVII para designar
algo esquisito, fantasioso. Por volta de 1847, é associado à anomalia física,
mantendo ainda o antigo caráter de estranheza (Thomson, 1996: 4). Com a
diminuição na crença da monstruosidade como sinal divino, a deformidade
corporal vai sendo cada vez mais naturalizada através da biologização de seu
discurso, e entre os monstros do folclore popular e os doentes teratológicos da
ciência erudita, surgem os freaks da cultura de massas.
Mas estas pessoas assim intituladas não manifestam apenas a diferença
corporal. Elas expressam também um modo marginal de viver e encarar o
mundo, pois pertencem a uma posição social única. Em novo contexto, tornam
a encarnar o espírito do bufão medieval, que diverte, causa medo, é humilhado,
mas em sua exclusão, reflete a face preconceituosa e tirana dos que o
degradam. Estes seres únicos representam a essência do indivíduo real na
impossibilidade de se encaixar em esquemas abstratos e a incapacidade de
reduzir o fantástico em conceitos e idealizações generalizantes, normativas e
reguladoras.
Com a amplificação do processo de “desencantamento do mundo” e de
tecnologização da existência, a concepção de monstro teve obrigatoriamente
de migrar, no século XIX, do corpo para a mente. Já que na crença científica o
mundo exterior não traz mais “maravilhas”, apenas aleijões, e muitos dos
antigos prodígios não conseguiram sustentar-se no embate contra as provas
empíricas de produção da “verdade”, restou ao homem moderno procurar os
encantos e horrores do mundo fantástico dentro de si mesmo. Desta forma, a
única via que restou como abrigo ao tema do monstro foi também a científica.
Assim, nascem então as ciências da psique, a psiquiatria, a psicologia e a
psicanálise, que, conforme mostrou Foucault (2001), vão se basear na idéia de
monstro para criar o conceito “científico” de sujeito “anormal”, de “perversão”,
“perversidade” ou mesmo de “parafilias” sexuais.
Gradativamente, as “aberrações” orgânicas vão decrescendo no gosto
contemporâneo, motivadas principalmente pelo discurso científico que as
compreende como doentes que devem ser tratados, não exibidos como
mercadorias exóticas, dando lugar aos “desvios” psíquicos. As deformidades
que passam a impressionar o público agora vêm da mente grotesca: são os
assassinos psicopatas, os masoquistas, os maníacos, e toda a enorme
variedade de estranhezas psíquicas. Não por acaso, na mesma proporção em
que os freak shows são proibidos e a sensibilidade para com estes espetáculos
se altera, considerando-os cada vez mais como apelativos, vulgares e
ofensivos, cresce o número de presídios, hospícios e asilos. O aumento da
“humanização” na maneira de encarar socialmente estas pessoas é
diretamente proporcional ao afastamento destas do universo público.
Esta alteração na sensibilidade atingiu a sociedade como um todo, por
ser ela mesma apenas mais um efeito do projeto de modernização da nossa
cultura/ existência. Assim, mesmo o campo artístico, último e por muito tempo
único refúgio para os corpos fisicamente diferentes, fechou as portas aos
“anormais” no decorrer do século XX. Stanislavski (1863 – 1938), um dos
grandes teóricos do teatro moderno já apregoava a excelência física do novo
modelo de ator. Mesmo que este fosse interpretar um bufão, seria em cima de
seu perfeito domínio físico e jamais por algum “defeito” corporal concreto. Aos
antigos “monstros”, “bufões” ou “freaks”, os asilos, os programas “inclusão
social” de base assistencialista e elitista, visando a força de trabalho destas
pessoas sem sua visibilidade pública e principalmente, sem o caráter
transgressor e questionador de suas “deformidades”.
Será que o perigoso bufão, com seu corpo estranho e riso desregrado,
fonte de medo, ódio e fascínio, tornou-se um pacato e dócil funcionário a
serviço do Estado ou das grandes empresas? Será que o humor amargurado,
cínico, desesperado e cruel dos bufões foi eclipsado pelo riso muitas vezes
compulsoriamente jovial, tiranicamente alegre e ingenuamente contente?
Quando o humor vira instrumento de auto-ajuda (ou auto-piedade?) e o
riso torna-se subserviente ao totalitário conceito de “qualidade de vida”, aonde
encontrar o sarcasmo crítico, a risada agressiva, o deboche ressentido que, em
períodos de obrigatoriedade de ser feliz, nos mostram que a dor, o sofrimento e
a mágoa não podem simplesmente serem anestesiados ininterruptamente?
Ou, como disse Grouxo Marx (apud Castro, 1991: 29): um amador pensa
que é engraçado vestir um homem como uma velhinha, sentá-lo numa cadeira
de rodas e dar um empurrão na cadeira, para que ela desça uma ladeira feito
uma bala e se esborrache contra um muro de pedra. Um profissional sabe que
isso tem de ser feito com uma velhinha de verdade.
Notas
1 - Este autor também é exemplar porquê, durante o desenvolvimento da cultura
ocidental, já foi considerado “bárbaro”, “estúpido”, “grosseiro” e “pornográfico”, sendo
hoje consagrado como um dos grandes nomes da literatura, beleza e sensibilidade
ocidentais.
2- Clown significa palhaço em inglês e vem de camponês, caipira, pessoa rústica, sem
modos; já era usado neste sentido no século XVI. Hoje em dia este termo é muito
utilizado para designar o ator cômico de teatro. Assim, uma distinção corrente no Brasil
é a de que palhaço encontra-se no circo e clown no teatro.3- No Brasil, uma dupla famosa que pode exemplificar e que, apesar de ter ficado
conhecida mais pela televisão, teve sua origem artística no circo, são Renato Aragão, o
Didi e Dedé Santana. O primeiro encarnava o augusto ou Tony, enquanto o segundo era
o branco ou clown.
4 - Neste trabalho, ao me referir a este conjunto específico de práticas e indivíduos,
manterei o termo original em inglês, pois devido a seu caráter abrangente e já carregado
culturalmente, não creio existir uma palavra equivalente em nossa língua.
5 - No original em inglês, wonder becomes error (Thomson, 1996: 3). Por não haver em
português um equivalente exato da palavra “wonder”, utilizarei o termo “maravilha”,
embora o sentido na língua original seja muito mais abrangente, como nos mostra o
Novo Michaelis (1977: 1076): wonder: milagre; prodígio, portento; maravilha;
admiração, surpresa, espanto.
BIBLIOGRAFIA
ALBERTI, Verena, O Riso e o Risível na História do Pensamento, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor/ Fundação Getúlio Vargas, 1999
ARÊAS, Vilma, Iniciação à Comédia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990
ARISTÓTELES (a), Arte Poética, São Paulo, Abril Cultural, 1973
(b) , Ética a Nicômaco, Abril Cultural, 1973
BAKHTIN, Mikhail, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, São
Paulo, Hucitec/ UNB, 1987
BREMMER, Jan e ROODENBURG, Herman (orgs), Uma História Cultural do
Humor, Rio de Janeiro, Record, 2000
CASTRO, Ruy (org.), O melhor do mau humor, São Paulo, Companhia das
Letras, 1991
COHEN, Jeffrey Jerome, A Cultura dos Monstros: Sete Teses, in SILVA,
Tomaz Tadeu da (org.), Pedagogia dos Monstros, Belo Horizonte, Autêntica,
2000
DANTAS, Arruda, Piolin, São Paulo, Pannartz, 1980
ELIAS, Norbert, O Processo Civilizador; Vol.1: Uma História dos Costumes, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994
FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 1988
, Resumo dos Cursos do Collège de France, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997
, Os Anormais, São Paulo, Martins Fontes, 2001
KAPPLER, Claude, Monstros, Demônios e Encantamentos no Fim da Idade
Média, São Paulo, Martins Fontes, 1994
LEBRUN, Gerard, O conceito de paixão in Os Sentidos da paixão, São Paulo,
Funarte/ Companhia das Letras, 1987
LE GOFF, Jacques, O Imaginário Medieval, Portugal, Editorial Estampa, 1994
MACEDO, José Rivair, Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média, Porto
Alegre/ São Paulo, Ed. Universidade UFRGS/ UNESP, 2000
MACHLINE, Vera Cecília, François Rabelais e a Fisiologia do Riso do Séc. XVI:
A Terapêutica Médico-Satírica de Gargântua e Pantagruel, São Paulo, Tese de
Doutorado pela PUC-SP, 1996
MINOIS, Georges, História do riso e do escárnio, São Paulo, Unesp, 2003
MIRA, Maria Celeste, Circo Eletrônico, São Paulo, Olho D’água, 1995
MORAES, Eliane Robert, A Esfinge em Questão, in Revista Latino Americana
de Psicopatologia Fundamental, Vol. IV, Nº 4, São Paulo, Editora Escuta,
Dezembro de 2001
, O Corpo Impossível, São Paulo, Iluminuras/ Fapesp,
2002
NAZÁRIO, Luiz, Da Natureza dos Monstros, São Paulo, Arte e Ciência, 1998
NOVO Michaelis Dicionário Ilustrado, São Paulo, Melhoramentos, 1977
OSTMAN, Ronald E., Photography and Persuasion: Farm Security
Administration Photographs of Circus and Carnival Sideshows, 1935-1942 in
THOMSON, Rosemarie Garland (org.), Freakery – Cultural Spetacles of the
Extraordinary Body, New York, New York University Press, 1996
PAVIS, Patrice, Dicionário de Teatro, São Paulo, Perspectiva, 2001
PLATÃO, A República, Rio de Janeiro, Ediouro, 1996
PRIORE, Mary Del, Esquecidos por Deus, São Paulo, Companhia das Letras,
2000
SEMONIN, Paul, Monsters in the Marketplace: The Exibition of Human Oddities
in Early Modern England, in THOMSON, Rosemarie Garland (org.), Freakery –
Cultural Spetacles of the Extraordinary Body, New York, New York University
Press, 1996
SHAKESPEARE, William, Teatro Completo, Rio de Janeiro, Ediouro, sem data
, Tragédias - Machbeth, São Paulo, Abril Cultural,
1978
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.), Pedagogia dos Monstros, Belo Horizonte,
Autêntica, 2000
SODRÉ, Muniz e PAIVA, Raquel, O Império do Grotesco, Rio de Janeiro,
Maud, 2002
TINHORÃO, José Ramos, A Imprensa Carnavalesca no Brasil – Um Panorama
da Linguagem Cômica, São Paulo, Hedra, 2000
THOMSON, Rosemarie Garland (org.), Freakery – Cultural Spetacles of the
Extraordinary Body, New York, New York University Press, 1996
TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi, Entretenimento – uma crítica aberta, São Paulo,
Senac, 2003
TUCHERMAN, Ieda, Breve História do Corpo e de seus Monstros, Lisboa,
Vega, 1999