A Idéia de Universidade No Brasil

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR Profª Sueli Mazzilli A IDÉIA DE UNIVERSIDADE NO BRASIL: ALGUNS ANTECEDENTES Neste texto serão destacados os elementos relativos ao papel social e atribuições das funções de ensino, pesquisa e extensão, nos diferentes projetos de universidade que influenciaram a definição do sistema de ensino superior no Brasil e a formulação de um possível novo paradigma para a universidade brasileira: os modelos europeus (inglês, francês e alemão) e as influências oriundas da América Latina. Tem sido comum a utilização dos termos papel e função da universidade como sinônimos. Neste estudo, a expressão papel social da universidade refere-se à posição e participação da universidade na construção de um projeto de sociedade e, por funções da universidade , as ações exercidas com vistas à realização de seu papel social, ou seja, o que visa atingir (formação e produção do conhecimento) e como se propõe a fazê-lo (ensino/pesquisa/extensão). 1. Os modelos inglês, francês e alemão Da universidade medieval, depositária e guardiã das ciências, destinada a formar a elite aristocrática, até os dias de hoje, a universidade passou por profundas modificações quanto ao seu papel social, suas funções e suas formas de organização. 1 Os debates e polêmicas que hoje ocorrem, decorrentes de diferentes concepções do papel social e das 1 Estudo sobre a história da universidade pode ser encontrado em CHARLE, C. e VERGER, J. História das Universidades; tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista (UNESP), 1996.

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Conceitos sobre o ensino superior no Brasil

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A IDIA DE UNIVERSIDADE NO BRASIL:

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE EDUCAO

DOCNCIA NO ENSINO SUPERIOR

Prof Sueli Mazzilli

A IDIA DE UNIVERSIDADE NO BRASIL: ALGUNS ANTECEDENTES

Neste texto sero destacados os elementos relativos ao papel social e atribuies das funes de ensino, pesquisa e extenso, nos diferentes projetos de universidade que influenciaram a definio do sistema de ensino superior no Brasil e a formulao de um possvel novo paradigma para a universidade brasileira: os modelos europeus (ingls, francs e alemo) e as influncias oriundas da Amrica Latina. Tem sido comum a utilizao dos termos papel e funo da universidade como sinnimos. Neste estudo, a expresso papel social da universidade refere-se posio e participao da universidade na construo de um projeto de sociedade e, por funes da universidade, as aes exercidas com vistas realizao de seu papel social, ou seja, o que visa atingir (formao e produo do conhecimento) e como se prope a faz-lo (ensino/pesquisa/extenso).

1. Os modelos ingls, francs e alemo

Da universidade medieval, depositria e guardi das cincias, destinada a formar a elite aristocrtica, at os dias de hoje, a universidade passou por profundas modificaes quanto ao seu papel social, suas funes e suas formas de organizao.

Os debates e polmicas que hoje ocorrem, decorrentes de diferentes concepes do papel social e das funes da universidade brasileira, tm antecedentes histricos que remontam mais diretamente Europa do sculo XIX.

O processo que envolveu a implantao do ensino superior no Brasil foi marcado pelos movimentos ocorridos na Europa, no sculo XVIII, que visavam redefinir o papel social e as funes das universidades, adequando-as s demandas emergentes naquelas sociedades, em decorrncia das novas formas de produo, de organizao social e de estrutura de poder que se estabeleceram com a revoluo industrial, a ascenso do capitalismo e a difuso das idias liberais. Estas mudanas no modo de conceber e organizar as universidades gerou a formulao de diferentes projetos que influenciaram no processo de implantao do ensino superior no Brasil e ainda hoje se refletem nas discusses sobre este tema.

Os modelos implantados na Inglaterra, na Frana e na Alemanha englobam as chamadas funes clssicas da universidade: de conservao e transmisso da cultura, de ensino das profisses e de ampliao e renovao do conhecimento. A funo de extenso, denominada como funo moderna da universidade incorpora-se s funes clssicas a partir do movimento de Crdoba, como veremos mais adiante.

A concepo de universidade originria do modelo ingls, das Universidades de Oxford e de Cambridge, fundamenta-se no princpio de que universidade compete a conservao e a transmisso do saber acumulado pela humanidade e tem como premissas a neutralidade da cincia e a dissociao entre o ensino e a pesquisa, tidas como atividades incompatveis entre si e, por conseqncia, com as funes da universidade.

A universidade um lugar de ensino. Se uma universidade tivesse por objetivo a descoberta cientfica e filosfica, no vejo porque ela devesse ter estudantes.

Dedicada formao de ...homens cultos e cavalheiros( gentlemen ), trata-se de um sistema super elitista porm eficiente quanto ao seu propsito fundamental.

Organizada, enquanto centros de educao, atravs do regime de internato e de tutores, o modelo da universidade inglesa

...tem seu mtodo comprovado: os diplomados de Oxford e Cambridge, indiscutivelmente, prestaram imensos servios Gr-Bretanha, em particular na arena poltica e nos servios pblicos.

Tanto a funo da pesquisa como a de preparao profissional, so retiradas das funes da universidade e atribudas a organismos constitudos fora do sistema de ensino. Para os objetivos deste estudo importante destacar que o modelo ingls traduz uma lgica interna que fundamenta os argumentos em favor da dissociao entre ensino e pesquisa cientfica. Rene, no entanto, argumentos em favor de um processo de ensino que privilegia a reflexo e no a memorizao de contedos, na medida em que valoriza a construo do conhecimento pelo prprio aluno, atravs da pesquisa bibliogrfica orientada atravs do dilogo com os mestres, na perspectiva de desenvolvimento de qualidades e interesses pessoais.

Modificaes nesse modelo ocorreram ao final do sculo XIX, atravs de reformas que permitiram universidade inglesa incorporar a formao de profissionais tecnicamente qualificados, conforme as necessidades do desenvolvimento industrial estava a exigir. So tambm criadas atividades destinadas atualizao, tanto daqueles que j haviam deixado a universidade como da parcela da populao que no tivera acesso a estudos superiores Surge, assim, pela primeira vez, a idia de extenso universitria como funo da universidade, para atender s demandas geradas pela Revoluo Industrial que se implantava.

Tambm na Frana, neste mesmo perodo, o papel da universidade era redefinido, com caractersticas diversas das que marcaram tanto o modelo alemo como o ingls. A reforma da universidade francesa levada a cabo por Napoleo em 1815, no contexto das reformas globais ocorridas na Frana naquele perodo visava, em ultima instncia,

...napoleonizar as conscincias (uma vez que) para afirmar sua autoridade de ao radical, Napoleo alimenta o projeto de ver a nao inteira voltada para o culto de sua pessoa. (...) O Imperador no se interessa pela instruo pblica seno como fonte de poder.

Embora denominada universidade, o modelo francs se caracterizou por um aglomerado de faculdades profissionais.

No se encontra, em seus escritos, nenhuma reflexo sobre a vida acadmica, a cincia, os mtodos de ensino. (...) a universidade francesa se centralizou sobre tarefas, diretamente teis ao Estado: preparao profissional (...) e a preparao para exames ou concursos, que do acesso a funes pblicas ou de carter pblico. O ensino , antes de tudo, profissional. Servio pblico do Estado, a Universidade imperial ideologicamente subjugada ao poder e se v assumir uma funo geral de conservao da ordem social pela difuso de uma doutrina comum. Ela realizar esta tarefa graas a uma corporao organizada de professores, espcie de guardas civis intelectuais a servio do Imperador, que asseguram um ensino sobretudo profissional.

O modelo francs de Napoleo instala, assim, uma nova concepo de universidade, submetida ao Estado e responsvel pela construo e legitimao da unidade do pensamento nacional.

Um novo paradigma de universidade surge na Alemanha. A universidade de Berlim, criada por HUMBOLDT, introduz a pesquisa cientfica como funo inerente universidade. Esta idia, que foi sustentada por outros filsofos como Jasper e Hegel, por exemplo, representou, enquanto movimento, um salto de qualidade na concepo de universidade, na medida em que se constitui como um dos grandes marcos da cincia moderna. A Alemanha, marcada pelos efeitos da explorao exercida pela Frana e pela Inglaterra, que se adequavam s exigncias do processo de revoluo industrial,

...teve de realizar um esforo intencional para conseguir a renovao tecnolgica que os pases precocemente industrializados tinham experimentado de modo mais ou menos espontneo. Nasceu, assim, um modelo tardio de desenvolvimento industrial, fruto de um esforo deliberado para eliminar a dependncia e estruturar-se como nao autnoma.

Apesar do carter aparentemente imediatista que gerou a criao da universidade de Berlim, foi a reflexo filosfica, orientando a pesquisa cientfica, a marca do projeto implantado, contrapondo-se ao carter meramente utilitrio do saber produzido e do trabalho realizado pela Universidade. Este modelo de universidade constitui-se na primeira experincia de integrao entre a pesquisa e o ensino.

O principio de unidade da pesquisa e do ensino, por iniciativa dos estudantes, dos professores e da instituio rico de conseqncias: somente o pesquisador pode, verdadeiramente, ensinar. Qualquer outro se limita a transmitir um pensamento inerte, mesmo se comunicar a vida do pensamento.

Este projeto tambm marcado por um carter elitista na medida em que privilegiava os melhores, os vocacionados intelectuais, que no se preocupam com os bens materiais.

A expresso idia de universidade, que at ento era usada para designar qualquer modelo, adquiriu novo significado a partir da implantao da Universidade de Berlim, que enfatiza a produo do conhecimento, atravs da pesquisa, como funo bsica da universidade, em contraposio ao modelo realizado pela universidade inglesa poca que, como vimos, atribua universidade apenas o papel de difuso do saber universal e se realizava, portanto, apenas atravs do ensino. Incorporou-se, desde ento, a compreenso de que s pode ser considerada como universidade a instituio que realiza estas duas funes. A expresso idia de universidade passa ento a identificar a concepo de universidade que realiza simultaneamente as funes de transmisso e de produo do saber. Esta expresso adotada por inmeros movimentos no Brasil, particularmente a partir da dcada de 30, para evidenciar a necessidade da incluso da pesquisa como funo da universidade brasileira.

Com este breve registro pretendeu-se demarcar alguns pontos diretamente relacionados aos objetivos deste estudo e evidenciar que muitas das questes que hoje esto em pauta nas discusses sobre a universidade brasileira no so to novas nem to modernas como podem parecer, pois,

...no Brasil, o ensino superior incorporou tanto os produtos da poltica educacional napolenica quanto os da reao alem invaso francesa, esta depois daquela.

2. Amrica Latina: o Movimento de Crdoba

A instalao de um sistema universitrio na Amrica Latina de colonizao espanhola, teve incio no sculo XVI. O modelo inicialmente adotado, que reproduzia o sistema da universidade espanhola, controlado pelo clero e voltado principalmente aos campos das artes e da literatura, foi substitudo pelo modelo francs de Napoleo, tal como ocorreu no Brasil.

Face aos marcos coloniais, que compunham o contexto social latino americano, este transplante resultou num modelo de ensino superior fragmentado que serviu, na verdade, para perpetuar os interesses do pacto oligrquico estabelecido pelo patronato empresarial e o patriciado burocrtico. Este quadro alterado por um movimento que se constitui na principal fonte de contestao acerca do papel social da universidade e de propostas renovadoras para a universidade latino americana, com repercusses que alcanaram universidades em todo o mundo.

Trata-se do movimento ocorrido na Universidade de Crdoba, na Argentina, em 1918, que marcou profundamente todo o sistema universitrio da Amrica Latina, constituindo-se no embrio de um novo paradigma de universidade, num momento em que acontecimentos polticos como a deflagrao da I Grande Guerra, a Revoluo Russa e a Revoluo Mexicana contribuam para

...acentuar o sentimento nacional e o desejo de romper com o passado europeu que marcou decisivamente o carter das elites da Amrica Latina e a nossa estrutura scio-econmica e poltica.

O movimento de Crdoba, foi deflagrado pelo movimento estudantil, no intuito de promover uma reforma universitria que conferisse universidade um grau de modernizao que a tornasse mais democrtica, mais eficaz e mais atuante quanto sociedade.

Ressalte-se que este movimento no se originou nem se circunscreveu apenas a reformas no sistema universitrio. Constituiu-se como um canal de expresso dos reclamos por reformas de base, por parte de uma sociedade que experimentava profundas mudanas na sua composio em decorrncia dos processos de urbanizao, de expanso da classe mdia e da ascenso de um incipiente proletariado industrial.

Desta forma, possvel identificar as relaes entre as teses referentes reorganizao da universidade e reorganizao da sociedade: autonomia e democratizao que brotavam eram expectativas da sociedade e que, transportadas para a universidade, extrapolavam os seus muros.

Possivelmente seja esta a relao que conferiu ao movimento de Crdoba o carter de elemento que desencadeou processos de contestao, atravs das universidades, em muitos pases da Amrica Latina.

A Reforma de Crdoba redefiniu as relaes entre a Universidade, a sociedade e o Estado. At Crdoba, a Universidade e a sociedade caminharam sem contradizer-se, pois durante os longos sculos coloniais e o primeiro sculo da Repblica, a Universidade no fez seno responder aos interesses da classe dominante e da sociedade, donas do poder poltico e, por isso mesmo, da sociedade. O movimento de Crdoba foi o primeiro confronto de uma sociedade que comeava a experimentar mudanas na sua composio interna e uma universidade paralisada em esquemas obsoletos.

O iderio deste Movimento, proclamado no Manifesto de Crdoba, apresenta pela primeira vez a idia de co-governo da universidade, com a participao dos estudantes. Embora seja a principal marca deste movimento, o Manifesto apresenta um conjunto de pleitos que se configuram como definio de uma nova identidade para a universidade ao redefinir para que e para quem deve servir a universidade e como se realiza.

Segundo Tunnermann, os objetivos fundamentais apresentados no Manifesto de Crdoba podem ser assim sintetizados:

1. Autonomia universitria, em seus aspectos polticos, docente, administrativo e econmico: autarquia financeira.

2. Eleio dos dirigentes da universidade pela comunidade universitria e participao de seus elementos constitutivos, professores, estudantes e egressos na composio de seus organismos de governo.

3. Concursos pblicos para a seleo de professores, com a fixao de prazo para os mandatos de docncia (cinco anos, em geral, s renovveis se comprovada a eficincia e competncia do professor).

4. Liberdade para o exerccio da docncia.

5. Possibilidade aos assistentes de ministrarem cursos paralelos aos dos professores catedrticos, dando aos estudantes a possibilidade de opo entre ambos.

6. Gratuidade do ensino.

7. Reorganizao acadmica. Criao de novas escolas e modernizao dos mtodos de ensino. Docncia ativa. Melhoramento da formao cultural dos profissionais.

8. Assistncia social aos estudantes. Democratizao do acesso universidade.

9. Vinculao da universidade com o sistema educacional nacional.

10. Extenso universitria. Fortalecimento da funo social da universidade. Divulgao ao povo da cultura universitria e preocupao com os problemas nacionais.

11. Unidade latino-americana, luta contra as ditaduras e o imperialismo.

Entre as propostas apresentadas neste Manifesto e dele decorrentes, destaca-se a incorporao da extenso universitria como meio que possibilita concretizar o compromisso da universidade com o povo e "fazer dela um centro por excelncia para o estudo objetivo dos grandes problemas nacionais". As atividades de extenso realizadas pela Universidade de Crdoba, tinham por objetivo criar, para os estudantes, a oportunidade de

...no s familiarizar-se com os problemas de seu meio e entrar em contato com seu povo mas tambm de devolver-lhe em servios parte do benefcio que significa pertencer a uma minoria privilegiada que tinha acesso a uma educao superior, em ultima instncia, paga pelo esforo de toda a comunidade.

Assim, sob inspirao de algumas experincias anteriormente realizadas na Blgica e na Frana e com base nesta concepo de extenso, cujos programas se realizavam no na universidade mas nas fbricas, nos escritrios e nos sindicatos, foram criadas as Universidades Populares, cujo corpo docente era composto fundamentalmente pelos estudantes e o corpo discente, pelos trabalhadores.

O Movimento de Crdoba no se circunscreveu apenas ao lanamento de um programa de reforma universitria. Constituiu-se num acontecimento de muito maior amplitude e significado pois demarcou a formulao de um novo paradigma de universidade: os princpios de autonomia, democratizao do acesso e da gesto, financiamento e qualidade do trabalho acadmico, que orientam este proposta, dos quais decorrem seus detalhamentos, constituem-se na sntese que materializa a superao do paradigma at ento vigente. Se os modelos de universidade implantados na Europa e transplantados para as colnias diferenciavam-se quanto s funes a serem desempenhadas atravs de universidade (difuso do saber/produo do conhecimento/profissionalizao) no havia, at ento, sido questionada a premissa de que a universidade, enquanto instituio social, destinava-se to somente a servir e atender aos interesses das elites dominantes.

Uma das conseqncias deste movimento reformista que a extenso, como funo da universidade, a partir dos anos 20 e 30 deste sculo, foi consagrada na legislao universitria de praticamente todos os pases do mundo.

As repercusses do Movimento de Crdoba, no entanto, no podem ser avaliadas apenas a partir das mudanas concretas que possam ou no ter ocorrido no interior das universidades e sim pelo seu significado poltico enquanto demarcao de um novo paradigma: a universidade patrimnio da sociedade como um todo e no apenas da parcela desta sociedade que a freqenta.

Esta nova concepo refletiu-se em toda a Amrica Latina e, se no resultou em uma transformao mais radical dessas universidades, o que no ocorreria sem transformaes tambm radicais na estrutura social, representou sem dvida, um marco que desencadeou algumas experincias inovadoras referenciadas na busca do estabelecimentos de novos vnculos entre universidade e sociedade.

Para os objetivos deste estudo, cumpre destacar que o mais importante desdobramento do Movimento de Crdoba a incorporao s funes da universidade da extenso universitria, entendida como instrumento que permite levar ao povo o saber que, at ento, era tambm exclusividade daqueles que freqentavam a universidade.

Em 1949, realiza-se o Primeiro Congresso de Universidades Latino-americana que procedeu a uma avaliao das repercusses da Movimento de Crdoba na Amrica Latina, na Europa e nos Estados Unidos. Este evento reafirma o papel social da universidade cunhado pelo Movimento e prope formas de vinculao das atividades de extenso estrutura de universidade.

Em decorrncia deste Congresso, realizou-se, em 1957, no Chile, a Primeira Conferncia Latino-Americana de Extenso e Difuso Cultural. As resolues deste evento reafirmam a importncia da extenso. No alteram, entretanto o carter cultural e assistencialista da extenso que j vinha sendo imprimido desde Crdoba. Este carter unilateral da extenso, posto que determinado e exercido apenas pela prpria universidade, atravs de conferncias e programas culturais, permaneceu inalterado at a realizao da Segunda Conferncia Latino Americana, em 1972, no Mxico. Naquela ocasio, feita a denncia do uso da extenso como instrumento de sustentao do sistema e, por decorrncia, de empecilho s transformaes sociais. Altera-se assim, profundamente, o carter da extenso, ao conclamar a universidade a assumir a tarefa de explicitar as contradies existentes na sociedade, atravs das atividades de extenso.

Assim, pela primeira vez formulada a idia de atribuir

...igualdade hierrquica entre ensino, pesquisa e extenso atravs de um processo de interao e reciprocidade na relao sociedade-universidade (...) e permitir a reviso crtica da prpria universidade.

Para TUNNERMANN, este salto de qualidade deve-se s idias de Paulo Freire ao denunciar o carter conservador que vinha sendo dado educao e apontar as possibilidades da educao enquanto instrumento de conscientizao e de compromisso com a transformao social.

3. Concluso

O objetivo deste texto foi o de traar um esboo das idias acerca do papel e das funes da universidade que influenciaram a constituio de um sistema de ensino superior no Brasil e, particularmente, a construo da idia de associao entre as funes de ensino, pesquisa e extenso.

Relacionando o quadro aqui levantado premissa de que o principio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extenso foi gerado pelas foras sociais que incorporam o discurso contra-ideolgico e que buscam construir o projeto de uma universidade socialmente referenciada, possvel concluir:

1. Os modelos de universidade que influenciaram diretamente na definio do sistema de ensino superior brasileiro so decorrncia das mudanas que se operaram naquelas sociedades, a partir da implantao da industrializao. Assim, a universidade, enquanto instituio social, passa a incorporar papis e funes que contribuem para consolidar o novo modelo de sociedade ento emergente. Estabelecem-se, deste modo, novas formas de relao entre universidade, sociedade e Estado.

2. Das Universidades europias, foram incorporadas as diretrizes:

a) a inscrio da pesquisa como funo da universidade.

b) o papel da universidade na formao profissional dos servidores do Estado.

c) o reconhecimento da universidade como fator de promoo e de mobilidade social, levando a presses pela sua ampliao a outros segmentos sociais e no s elite dominante.

3. No caso da Amrica Latina, a classe mdia emergente desta nova forma de organizao das sociedades industrializadas, que via na universidade um instrumento de ascenso social, incorporou-se s lutas desencadeadas pelo movimento estudantil, tornando-o canal de expresso

...da insatisfao geral da sociedade latino americana diante das oligarquias e seus projetos sociais arcaicos. A mobilizao se deu como reflexo de uma necessidade social externa. A comunidade acadmica foi apenas a vanguarda de um sentimento maior.

A reforma universitria promovida a partir de Crdoba fundava-se na luta por reformas de base que visavam a sociedade como um todo. Se considerarmos a importncia das repercusses do Movimento de Crdoba para a Amrica Latina e para o mundo, pode-se inferir que este movimento s alcanou tal repercusso por estar respaldado por foras sociais que extrapolavam os interesses restritos universidade.

4. No que tange construo da idia de associao entre ensino, pesquisa e extenso possvel concluir que:

a) no modelo ingls, pode-se identificar, por um lado, fundamentos que justificam a dissociao entre ensino e pesquisa. Por outro, argumentos que fundamentam a tese do ensino atravs da pesquisa realizada pelo prprio aluno, sob orientao do professor, acerca do conhecimento j produzido (pesquisa bibliogrfica) como forma de construo do prprio conhecimento, ou seja, de uma pedagogia do desenvolvimento intelectual. Uma das mudanas ocorridas posteriormente com este modelo foi a implantao de atividades de extenso, criadas para atender s demandas geradas em funo do processo de industrializao.

b) do modelo francs origina-se a idia da universidade voltada para a formao de profissionais que atendam s necessidades da sociedade. Uma universidade uniforme nas suas metas, programas e forma de organizao, subserviente ao Estado.

c) do modelo alemo origina-se a idia do papel da universidade na formao do pesquisador da a necessidade da associao entre ensino e pesquisa, que tem como pressuposto para sua realizao a liberdade acadmica para definir os problemas a serem abordados pela investigao cientifica e pelo ensino.

d) do Movimento de Crdoba origina-se a idia de extenso universitria como instrumento de divulgao dos conhecimentos da universidade dado para o povo. Desta primeira concepo, que implica mo nica universidade-povo, da qual decorrem atividades realizadas extra-muros dissociadas do ensino e da pesquisa, evolui-se para uma concepo de extenso como dupla via entre a universidade e a populao dela excluda. Com isso, estabelece-se um novo paradigma para a universidade: a busca de respostas aos problemas que atingem a maioria da populao.

e) do Movimento de Crdoba foram incorporadas inmeras propostas que passaram a constituir a agenda de pleitos do movimento estudantil e do movimento docente em todo o mundo. No Brasil, como veremos ao longo deste trabalho, muitas dessas concepes foram assumidas no perodo que antecedeu a Reforma Universitria de 1968.

f) a idia de associao entre ensino, pesquisa e extenso como meio de possibilitar a existncia de um modelo de universidade voltada aos interesses da maioria da populao tem origem nos congressos de universidades latino-americanas, ocorridos a partir de 1949, para avaliar as repercusses do movimento de Crdoba. O surgimento desta nova concepo ocorre por volta da dcada de 70.

Estudo sobre a histria da universidade pode ser encontrado em CHARLE, C. e VERGER, J. Histria das Universidades; traduo de Elcio Fernandes. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista (UNESP), 1996.

DREZE, Jacques e DEBELLE, Jean. Concepes da Universidade. Trad. Francisco de Assis Garcia. Fortaleza: UFC, 1983, p. 34

TUNNERMANN, C. Estudios sobre la Teoria de la Universidade. So Jos/Costa Rica: Editorial Universitria Centroamericana ,1983. p.97. Dada a importncia deste obra para este estudo e por estar publicada em espanhol, tomamos a iniciativa de traduzir para o portugus todas as citaes deste autor que aparecem neste trabalho, pois pretendemos que este nosso estudo possa servir tambm queles que no dominam a lngua espanhola.

DREZE, J. & DEBELLE, J. (1983), op. cit. p. 43.

Ver, sobre este tema, GURGEL, Roberto M. Extenso Universitria: comunicao ou domesticao ? So Paulo: Cortez, 1986.

DREZE, J. & DEBELLE, J. (1983), op. cit., p. 43.

DREZE, J. & DEBELLE, J. (1983), op. cit., p. 84-87.

DREZE, J. & DEBELLE, J. (1983), op. cit., p. 86-89.

RIBEIRO, D. A Universidade Necessria. 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 59-60.

DREZE, J. & DEBELLE,J. (1983), op. cit., p. 51-52.

BOAVENTURA, Elias. Universidade e Estado no Brasil. Piracicaba: UNIMEP, 1989, p. 35.

Exemplos deste fato na literatura nacional so as obras de PAIM, A. A UDF e a idia de universidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981; e BUARQUE, C. Uma idia de Universidade. Braslia: UnB, 1986. Tambm em obras de Florestan Fernandes e de Maria de Lourdes Albuquerque Fvero, entre outros, encontramos esta expresso com este significado.

CUNHA, L. A. A universidade reformanda.: o golpe de 1964 e a modernizao da Universidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 15. Estas aproximaes sero relacionadas mais adiante, ao analisarmos as repercusses desses modelos na constituio do sistema de ensino superior no Brasil.

Ver, sobre este tema, os estudos apresentados por RIBEIRO, D. (1982) op. cit., p. 78-120 e SCHWARTZMAN, S., Cincia, Universidade e ideologia: a poltica do conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

RIBEIRO (1982), op. cit., p.106.

WANDERLEY, L. E. W. O que universidade. So Paulo: Brasiliense, 1983, p.23.

RIBEIRO (1982), op. cit., p.122.

TUNNERMANN (1983), op. cit., p. 435.

TUNNERMANN (1983), op. cit., p. 435

TUNNERMANN (1983), op. cit., p. 391. A anlise mais acurada, inclusive com relao importncia poltica deste Movimento para a universidade latino-americana, dentre a bibliografia consultada, foi encontrada nesta obra.

Complementao extrada de RIBEIRO (1982), op. cit.., p.123.

Citao extrada de RIBEIRO (1982), op. cit., p.123.

Este pleito est relacionado garantia de condies de permanncia dos estudantes que trabalham na universidade. TUNNERMANN (1983), op. cit., p . 392.

TUNNERMANN (1983), op. cit., p. 392.

TUNNERMANN (1983), op. cit., p. 393.

TUNNERMANN (1983), op. cit., p. 393.

TUNNERMANN, que foi Ministro da Educao da Nicargua, durante o Governo Sandinista, apresenta um estudo aprofundado das repercusses desse movimento em universidades da Amrica Latina, particularmente Mxico, Peru, Venezuela, Colmbia, Chile e de Cuba. Esta anlise inclui a criao da Universidade de Braslia. (p. 253 a 324).

TUNNERMANN (1983), op. cit., p. 397.

TUNNERMANN (1983), op. cit., p. 409 -411.

FREIRE, P. Extenso ou comunicao? 6a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

BUARQUE, C. A Aventura da Universidade. So Paulo: UNESP, 1994, p.53.

DREZE, J. & DEBELLE,J. (1982), op. cit., p. 40-41.

DREZE, J. & DEBELLE,J. (1982), op. cit., p. 52.

Consideramos importante registrar nossa surpresa por constatarmos como o Movimento de Crdoba pouco considerado na literatura brasileira e que, quando tratado, praticamente se reduz critica idia de co-governo. So excees as obras que atribuem a este movimento o papel histrico que nos pareceu ter tido na definio de um projeto de universidade socialmente referenciada. Nesse sentido, destacamos o estudo de GURGEL, Roberto M. O caminho do conceito de Extenso Universitria na relao Universidade e Sociedade (Crdoba: 1918/ Brasil: final da dcada de 40, comeo dos anos 60). Documento Preliminar. Braslia: Universidade de Braslia, 1989. (mimeo)