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A Igreja. Os Apóstolos Sobre o mistério da relação entre Cristo e a Igreja 15 de março de 2006 Queridos irmãos e irmãs Depois das catequeses sobre os salmos e os cânticos das Laudes e Vésperas, quero dedicar os próximos encontros de quarta-feira ao mistério da relação entre Cristo e a Igreja, considerando-o a partir da experiência dos apóstolos, à luz da tarefa que lhes foi confiada. A Igreja foi constituída sobre o alicerce dos apóstolos como comunidade de fé, de esperança e de caridade. Através dos apóstolos, remontamos ao próprio Jesus. A Igreja começou a constituir-se quando alguns pescadores da Galiléia encontrando Jesus, se deixaram conquistar pelo seu olhar e pela sua voz, pelo seu convite cálido e forte: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens» (Marcos 1, 17; Mateus 4, 19). O meu querido predecessor, João Paulo II, propôs à Igreja, no início do terceiro milênio, a contemplação do rosto de Cristo (Cf. «Novo millennio ineunte», 16 seguintes). Seguindo nessa direção, nas catequeses que hoje começo, quero mostrar precisamente que a luz desse Rosto se reflete no rosto da Igreja (Cf. «Lumen gentium», 1), apesar dos limites e das sombras da nossa humanidade frágil e pecadora. Depois de Maria, reflexo puro da luz de Cristo, os apóstolos, com a sua palavra e testemunho, entregam-nos a verdade de Cristo. A sua missão não é isolada, insere-se no mistério de comunhão que envolve todo o Povo de Deus e se realiza por etapas, da antiga à nova Aliança. Neste sentido, há que notar que se transforma totalmente a mensagem de Jesus se ela é separada do contexto da fé e da esperança do povo eleito: como o Baptista, o seu imediato precursor, Jesus dirige-se antes de tudo a Israel (Cf. Mateus 15, 24), para «reuni-lo» no tempo

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A Igreja.

Os Apóstolos

Sobre o mistério da relação entre Cristo e a Igreja

15 de março de 2006

Queridos irmãos e irmãs

Depois das catequeses sobre os salmos e os cânticos das Laudes e Vésperas, quero dedicar os

próximos encontros de quarta-feira ao mistério da relação entre Cristo e a Igreja,

considerando-o a partir da experiência dos apóstolos, à luz da tarefa que lhes foi confiada. A

Igreja foi constituída sobre o alicerce dos apóstolos como comunidade de fé, de esperança e

de caridade. Através dos apóstolos, remontamos ao próprio Jesus. A Igreja começou a

constituir-se quando alguns pescadores da Galiléia encontrando Jesus, se deixaram conquistar

pelo seu olhar e pela sua voz, pelo seu convite cálido e forte: «Vinde comigo e farei de vós

pescadores de homens» (Marcos 1, 17; Mateus 4, 19).

O meu querido predecessor, João Paulo II, propôs à Igreja, no início do terceiro milênio, a

contemplação do rosto de Cristo (Cf. «Novo millennio ineunte», 16 seguintes). Seguindo nessa

direção, nas catequeses que hoje começo, quero mostrar precisamente que a luz desse Rosto

se reflete no rosto da Igreja (Cf. «Lumen gentium», 1), apesar dos limites e das sombras da

nossa humanidade frágil e pecadora. Depois de Maria, reflexo puro da luz de Cristo, os

apóstolos, com a sua palavra e testemunho, entregam-nos a verdade de Cristo. A sua missão

não é isolada, insere-se no mistério de comunhão que envolve todo o Povo de Deus e se

realiza por etapas, da antiga à nova Aliança.

Neste sentido, há que notar que se transforma totalmente a mensagem de Jesus se ela é

separada do contexto da fé e da esperança do povo eleito: como o Baptista, o seu imediato

precursor, Jesus dirige-se antes de tudo a Israel (Cf. Mateus 15, 24), para «reuni-lo» no tempo

escatológico que com Ele chegou. E, tal como a pregação de João, também a pregação de Jesus

é ao mesmo tempo um chamamento à graça e um sinal de contradição e de julgamento para

todo o povo de Deus. Portanto, desde o primeiro momento da sua actividade salvadora, Jesus

de Nazaré tende a reunir, a purificar o Povo de Deus. Ainda que a sua pregação seja sempre

um chamamento à conversão pessoal, na realidade tende continuamente a constituir o Povo

de Deus que Ele veio reunir e a salvar.

Por este motivo, é unilateral e carece de fundamento a interpretação individualista proposta

pela teologia liberal do anúncio do Reino feito por Cristo. Esta interpretação foi resumida, no

ano de 1900, pelo grande teólogo liberal Adolf von Harnack nas suas conferências sobre «O

que é o cristianismo?»: «O reino de Deus chega na medida em que chega a homens concretos,

encontra eco nas suas almas e estes O acolhem. O reino de Deus é o senhorio de Deus, ou seja,

o senhorio do Deus santo nos diferentes corações» (Terceira Conferência, 100s).

Este individualismo da teologia liberal é acentuado particularmente na modernidade. Na

perspectiva da tradição bíblica e no horizonte do judaísmo, no qual a obra de Jesus se situa

apesar de toda a sua novidade, fica claro que toda a missão do Filho feito carne tem uma

finalidade comunicativa: veio precisamente para unir a humanidade dispersa, veio

precisamente para reunir o Povo de Deus.

Um sinal evidente da intenção do Nazareno de reunir a comunidade da Aliança para

manifestar nela o cumprimento das promessas feitas aos Padres, que sempre falam de

convocação, de unificação, de unidade, é a “escolha” dos Doze. Escutemos o Evangelho da

“eleição” dos Doze. Volto a ler agora a passagem central: «Subiu ao monte e chamou os que

ele quis; e foram até ele. Escolheu doze, para que estivessem com ele, e para enviá-los a

pregar com poder de expulsar os demónios. Escolheu os Doze...» (Marcos 3, 13-16; Cf. Mateus

10, 1-4; Lucas 6, 12-16). No lugar da revelação, o «monte», Jesus, com uma iniciativa que

manifesta absoluta consciência e determinação, designa os Doze para que sejam com Ele

testemunhas e arautos da chegada do Reino de Deus. Sobre o caráter histórico desta chamada

não existem dúvidas, não só pela antiguidade e multiplicidade de testemunhos, mas também

pelo simples facto de que aparece o nome de Judas, o apóstolo traidor, apesar das dificuldades

que esta presença podia implicar para a comunidade nascente. O número Doze, que

evidentemente faz referência às doze tribos de Israel, revela o significado da acção profético-

simbólica implícita na nova iniciativa de voltar a fundar o povo santo. Após o ocaso do sistema

das doze tribos, Israel tinha esperança na sua reconstituição como sinal da chegada do tempo

escatológico (pode ler-se a conclusão do livro de Ezequiel: 37, 15-19; 39, 23-29; 40-48).

Elegendo os Doze, introduzindo-os numa comunhão de vida com Ele e fazendo-os partícipes da

sua própria missão de anúncio do Reino, com palavras e obras (Cf. Marcos 6, 7-13; Mateus 10,

5-8; Lucas 9, 1-6; Lucas 6, 13), Jesus quer dizer que chegou o tempo definitivo no qual

reconstituiu o povo de Deus, o povo das doze tribos, que se converte agora num povo

universal, a sua Igreja.

Com a sua própria existência, os Doze - vindos de origens diferentes - convertem-se no

chamamento de todo o Israel à conversão, a deixar-se reunir na nova Aliança, cumprimento

pleno e perfeito da antiga. Ao ter-lhes confiado a tarefa de celebrar o seu memorial na Ceia,

antes da Paixão, Jesus mostrou que queria transferir para toda a comunidade na pessoa dos

seus líderes o mandato de ser, na história, sinal e instrumento da reunião escatológica

começada por Ele. Em certo sentido, podemos dizer que precisamente a Última Ceia é o acto

de fundação da Igreja, pois Ele entrega-se a si mesmo e cria deste modo uma nova

comunidade, uma comunidade unida na comunhão com Ele mesmo. Nesta perspectiva,

compreende-se que o Ressuscitado lhes tenha conferido - com a efusão do Espírito - o poder

de perdoar os pecados (Cf. João 20, 23). Os doze apóstolos são, deste modo, o sinal mais

evidente da vontade de Jesus sobre a existência e a missão Igreja, a garantia de que entre

Cristo e a Igreja não há contradição: são inseparáveis, apesar dos pecados dos homens que

formam a Igreja. E, portanto, não pode conciliar-se com as intenções de Cristo um slogan que

há alguns anos estava na moda: «Jesus sim, Igreja não». O Jesus individualista é um Jesus

fantasia. Não podemos encontrar Jesus sem a realidade que Ele criou e na qual se comunica.

Entre o Filho de Deus feito carne e sua Igreja existe uma continuidade profunda, inseparável e

misteriosa, em virtude da qual Cristo se faz presente, hoje, no seu povo. Cristo é, sempre,

nosso contemporâneo; contemporâneo na Igreja constituída sobre o fundamento dos

apóstolos, Ele está vivo na sucessão dos apóstolos. E esta Sua presença na comunidade, na

qual Ele sempre se nos dá, é o motivo de nossa alegria. Sim, Cristo está conosco, o Reino de

Deus vem até nós.

Os apóstolos, testemunhas e enviados de Cristo

22 de março de 2006

Queridos irmãos e irmãs:

A Carta aos Efésios apresenta-nos a Igreja como uma construção edificada «sobre o alicerce

dos apóstolos e profetas, tendo como pedra angular o próprio Jesus Cristo» (2, 29). No

Apocalipse, o papel dos apóstolos, e mais especificamente dos Doze, esclarece-se na

perspectiva escatológica da Jerusalém celeste, apresentada como uma cidade cuja muralha

«assenta sobre doze pedras, que têm os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro» (21, 14). Os

Evangelhos coincidem na afirmação de que o chamamento dos apóstolos marcou os primeiros

passos do ministério de Jesus, após o baptismo recebido do Batista nas águas do Jordão.

Segundo a narração de Marcos (1, 16-20) e de Mateus (4, 18-22), o cenário da chamada dos

primeiros apóstolos é o lago da Galiléia. Jesus tinha apenas começado a pregação do Reino de

Deus, quando o seu olhar se dirigiu a dois pares de irmãos: Simão e André, Tiago e João. São

pescadores, empenhados no seu trabalho quotidiano. Lançam as redes, reparam-nas. Mas

uma outra pesca os espera. Jesus chama-os com decisão e eles seguem-no com prontidão: a

partir de agora serão «pescadores de homens» (Cf. Marcos 1, 17; Mateus 4, 19). Lucas, apesar

de seguir a mesma tradição, tem uma narração mais elaborada (5, 1-11). Mostra o caminho de

fé dos primeiros discípulos, precisando que o convite a segui-Lo lhes chega depois de terem

escutado a primeira pregação de Jesus, e depois de terem experimentado os primeiros sinais

prodigiosos realizados por Ele. Em particular, a pesca milagrosa constitui o contexto imediato e

oferece o símbolo da missão de pescadores de homens que lhes é confiado. O destino destes

«chamados», a partir de agora, ficará intimamente ligado ao de Jesus. O apóstolo é um

enviado, mas antes ainda é um «especialista» em Jesus.

Justamente este aspecto é posto em evidência pelo evangelista João depois do primeiro

encontro de Jesus com os futuros apóstolos. Aqui o cenário é diferente. O encontro acontece

nas margens do Jordão. A presença dos futuros discípulos, vindo também eles, como Jesus, da

Galiléia para viver a experiência do batismo ministrado por João, deixa entender o seu mundo

espiritual. Eram homens à espera do Reino de Deus, desejosos de conhecer o Messias, cuja

vinda era anunciada como eminente. Basta que João Batista assinale Jesus como o Cordeiro de

Deus (Cf. João 1, 36), para que surja neles o desejo de um encontro pessoal com o Mestre. O

diálogo de Jesus com os seus primeiros dois futuros apóstolos é muito expressivo. À pergunta:

«Que buscais?», eles respondem com outra pergunta: «Rabbi --que quer dizer “Mestre” --

onde moras?». A resposta de Jesus é um convite «Vinde e vede» (Cf. João 1, 38-39). Vinde para

poder ver. A aventura dos apóstolos começa assim, como um encontro de pessoas que se

abrem reciprocamente. Para os discípulos começa um conhecimento direto do Mestre. Vêem

onde vive e começam a conhecê-lo. Não terão de ser arautos de uma idéia, mas testemunhas

de uma pessoa. Antes de serem enviados a evangelizar, terão de «estar» com Jesus (Cf.

Marcos 3, 14), estabelecendo com ele uma relação pessoal. Com este fundamento, a

evangelização não é mais que um anúncio do que se experimentou e um convite a entrar no

mistério da comunhão com Cristo (Cf. 1 João 13).

A quem serão enviados os apóstolos? No Evangelho, Jesus parece restringir a Israel a sua

missão: «Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel» (Mateus 15, 24). Do

mesmo modo parece circunscrever a missão confiada aos Doze: «A estes doze enviou Jesus,

depois de lhes ter dado as instruções seguintes: «Não vades à terra dos gentios nem entreis

nas cidades dos samaritanos; Ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel» (Mateus 10, 5).

Uma certa crítica moderna de inspiração racionalista tinha visto nestas expressões a falta de

uma consciência universalista do Nazareno. Na realidade, isto compreende-se à luz da sua

relação especial com Israel, comunidade da Aliança, na continuidade da história da salvação.

Segundo a espera messiânica, as promessas divinas, feitas imediatamente a Israel, chegariam

ao seu cumprimento quando o próprio Deus, através de seu Eleito, tivesse reunido o seu povo

como faz um pastor com seu rebanho: «Eu salvarei as minhas ovelhas e não estarão mais

expostas ao perigo... Eu suscitarei para elas um pastor que as apascentará, David meu servo:

ele as apascentará e será seu pastor. Eu, o Senhor, serei o seu Deus, e meu o servo David será

príncipe no meio deles» (Ezequiel 34, 22-24). Jesus é o pastor escatológico que reúne as

ovelhas perdidas da casa de Israel e as procura, porque as conhece e ama (Cf. Lucas 15, 4-7 e

Mateus 18, 12-14; Cf. também a figura do bom pastor em João 10, 11 e seguintes). Através

desta «reunião» anuncia-se o Reino de Deus a todos os povos: «A minha glória manifestou-se

entre as nações, e todas as nações verão o juízo que vou executar e a mão que porei sobre

elas» (Ezequiel 39, 21).

E Jesus segue precisamente este perfil profético. O primeiro passo é a «reunião» do povo de

Israel, para que, assim, todos os povos chamados a reunir-se na comunhão com o Senhor

possam ver e crer. Deste modo, os doze, chamados a participar da própria missão de Jesus,

cooperam com o Pastor dos últimos tempos, dirigindo-se também eles, antes de tudo, às

ovelhas perdidas da casa de Israel, ou seja, ao povo da promessa, cuja reunião é o sinal de

salvação para todos os povos, o inicio da universalização da Aliança. Longe de contradizer a

abertura universalista da ação messiânica do Nazareno, o ter restringido, ao início, a sua

missão e a dos doze a Israel torna-se um sinal profético mais eficaz. Após a paixão e a

ressurreição de Cristo, este sinal será esclarecido: o caráter universal da missão dos apóstolos

ficará explícito. Cristo enviará os apóstolos «por todo o mundo» (Marcos 16, 15), a «todos os

povos» (Mateus 28, 19; Lucas 24, 47, «até os confins da terra» (Atos 1, 8). E esta missão

continua. Continua sempre o mandamento do Senhor de reunir os povos na unidade do seu

amor. Esta é a nossa esperança e este é também o nosso mandamento: contribuir para essa

universalidade, para essa verdadeira unidade na riqueza das culturas, em comunhão com o

nosso verdadeiro Senhor Jesus Cristo.

O dom da "Comunhão"

29 de março de 2006

Queridos irmãos e irmãs

Através do ministério apostólico, a Igreja, comunidade reunida pelo Filho de Deus vindo na

carne, viverá através dos tempos edificando e nutrindo a comunhão em Cristo e no Espírito, à

qual todos são chamados e na qual podem experimentar a salvação dada pelo Pai. Os Doze –

como disse o Papa Clemente, terceiro sucessor de Pedro, no final do século I – tiveram o

cuidado, de fato, de deixar sucessores (Cf. 1 Clemente 42, 4) para que a missão que lhes foi

confiada continuasse depois da sua morte. No decorrer dos séculos, a Igreja, organicamente

estruturada sob a direcção dos legítimos pastores, continuou, também, a viver no mundo

como mistério de comunhão, no qual se reflete em certo sentido a mesma comunhão

trinitária, o mistério do próprio Deus.

Já o apóstolo Paulo menciona este supremo manancial trinitário quando deseja ao seus

cristãos: «A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo

sejam com todos vós» (2 Coríntios 13, 13). Estas palavras, provável eco do culto da Igreja

nascente, evidenciam como o dom gratuito do amor do Pai em Jesus Cristo se realiza e se

expressa na comunhão que actua pelo Espírito Santo. Esta interpretação, baseada no estreito

paralelismo que o texto estabelece entre os três sujeitos («a graça do Senhor Jesus Cristo ... o

amor de Deus ... e a comunhão do Espírito Santo»), apresenta a «comunhão» como dom

específico do Espírito, fruto do amor entregue por Deus Pai e da graça oferecida pelo Senhor

Jesus.

Por outro lado, o contexto imediato, caracterizado pela insistência na comunhão fraterna,

leva-nos a ver na «koinonia» do Espírito Santo não só a «participação» na vida divina quase

individualmente, cada um por si, mas também logicamente a «comunhão» entre os crentes,

que o mesmo Espírito suscita como seu artífice e principal agente (Cf. Filipenses 2, 1). Poder-

se-ia afirmar que graça, amor e comunhão, referidos respectivamente a Cristo, ao Pai e ao

Espírito, são aspectos diversos da única acção divina para a nossa salvação, acção que cria a

Igreja e que faz da Igreja – como diz São Cipriano no século III – «um povo reunido pela

unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo» («De Orat. Dom.», 23: PL 4, 536, citado em

«Lumen gentium», 4).

A idéia da comunhão como participação na vida trinitária é iluminada com particular

intensidade no Evangelho de João, onde a comunhão de amor que une o Filho ao o Pai e aos

os homens é, ao mesmo tempo, o modelo e a fonte da comunhão fraterna, que deve unir os

discípulos entre si: «Amai-vos uns aos outros como eu vos amei» (cf João 15, 12; 13, 34). «Que

eles sejam um, como nós somos um» (João 17, 21. 22). Portanto, comunhão dos homens com

o Deus Trinitário e comunhão dos homens entre si. No tempo da peregrinação terrena, o

discípulo, através da comunhão com o Filho, pode participar já na Sua vida divina e na do Pai:

«nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo» (1 João 1,3). Esta vida de

comunhão com Deus e entre nós é a finalidade própria do anúncio do Evangelho, a finalidade

da conversão ao cristianismo: «o que vimos e ouvimos, nós vos anunciamos também, para que

também vós estejais em comunhão conosco» (1 João 1, 3). Portanto, esta dupla comunhão

com Deus e entre nós é inseparável. Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão

com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão

entre nós. E onde não se vive a comunhão entre nós, também não é viva e verdadeira a

comunhão com o Deus Trinitário, como escutamos.

Demos agora o passo seguinte. A comunhão – fruto do Espírito Santo –alimenta-se do Pão

eucarístico (Cf. 1 Corintios 10, 16 -17) e exprime-se nas relações fraternas, numa espécie de

antecipação no mundo futuro. Na Eucaristia Jesus alimenta-nos, une-nos com Ele, com o Pai e

com o Espírito Santo e entre nós, e esta rede de unidade que abraça o mundo é uma

antecipação do mundo futuro no nosso tempo. Deste modo, sendo antecipação do mundo

futuro, a comunhão é um dom que tem, também, consequências muito reais, faz-nos sair da

nossa solidão, do fechamento em nós mesmos, e torna-nos participantes do amor que nos une

a Deus e entre nós. É fácil compreender como é grande este dom, bastando para tal,

pensarmos nas divisões e conflitos que afligem as relações entre os indivíduos, os grupos e

povos inteiros. E se não existir o dom da unidade no Espírito Santo, a divisão da humanidade é

inevitável. A «comunhão» é verdadeiramente a boa nova, o remédio que nos deu o Senhor

contra a solidão que hoje ameaça todos, o dom precioso que nos faz sentir acolhidos e amados

em Deus, na unidade do seu Povo reunido em nome da Trindade; é a luz que faz resplandecer

a Igreja como sinal erguido entre os povos: «Se dizemos que estamos em comunhão com ele, e

caminhamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Mas se caminhamos na luz,

como ele mesmo está na luz, estamos em comunhão uns com os outros» (1 João 1, 6-7). A

Igreja revela-se assim, apesar de todas as fragilidades humanas que pertencem a sua

fisionomia histórica, uma maravilhosa criação de amor, feita para tornar Cristo próximo de

cada homem e cada mulher que queira verdadeiramente encontrá-lo, até o final dos tempos. E

na Igreja o Senhor permanece sempre contemporâneo. A Escritura não é uma coisa do

passado. O Senhor não fala no passado, mas fala no presente, fala hoje connosco, dá-nos a luz,

mostra-nos o caminho da vida, dá-nos a comunhão e assim nos prepara e nos abre à paz.

O serviço à comunhão

05 de abril de 2006

Queridos irmãos e irmãs

Na nova série de catequeses, começada há algumas semanas, queremos considerar as origens

da Igreja para compreender o desígnio originário de Jesus, e deste modo compreender o

essencial da Igreja, que permanece com o passar do tempo. Queremos compreender também

o porquê do nosso estar na Igreja e como temos de nos comprometer a vivê-lo no início de um

novo milênio cristão.

Ao refletir sobre a Igreja nascente, podemos descobrir dois aspectos: um primeiro aspecto é

fortemente sublinhado por Santo Irineu de Lyon, mártir e grande teólogo do final do século II,

o primeiro que nos deixou uma teologia em certo sentido sistemática. Santo Irineu escreve:

«Onde está a Igreja, aí está também o Espírito de Deus; e onde está o Espírito de Deus, aí está

a Igreja e toda graça; pois o Espírito é verdade» («Adversus haereses», III, 24, 1: PG 7, 966).

Portanto, existe uma relação íntima entre o Espírito Santo e a Igreja. O Espírito Santo edifica a

Igreja e dá-lhe a verdade, infunde --como diz São Paulo-- nos corações dos crentes o amor (Cf.

Romanos 5,5).

Mas há também um segundo aspecto. Esta íntima relação com o Espírito não anula nossa

humanidade com toda a sua fraqueza e, deste modo, a comunidade dos discípulos

experimenta desde o início não só a alegria do Espírito Santo, a graça da verdade e do amor,

mas também a provação, sobretudo pelo contraste entre as verdades de fé e as consequentes

lacerações da comunhão. Assim como a comunhão do amor existe desde o início e existirá até

ao fim (Cf. 1 João 1, 1ss), do mesmo modo, por infelicidade, desde o início irrompe também a

divisão. Não temos de nos surpreender pelo facto de que hoje também assim seja: «Saíram

dentre nós --diz a Primeira Carta de João--; mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos

nossos, permaneceriam connosco. Mas sucedeu assim para se ver que nem todos são dos

nossos» (2, 19). Portanto, sempre existe o perigo, nas vicissitudes do mundo e também nas

debilidades da Igreja, de perder a fé, e assim, perder também o amor e a fraternidade.

Portanto, é um dever preciso de quem crê na Igreja do amor e quer viver nela, reconhecer

também este perigo e aceitar que não é possível a comunhão com quem se afastou da

doutrina da salvação (Cf. 2 João 9-11).

Que a Igreja nascente estava claramente consciente das tensões possíveis na experiência da

comunhão mostra-o bem a Primeira Carta de João: não existe outra voz no Novo Testemunho

que se levante com tanta força para sublinhar a realidade do dever do amor fraterno entre os

cristãos; mas essa mesma voz dirige-se com drástica severidade aos adversários, que foram

membros da comunidade e que já não são. A Igreja do amor é também a Igreja da verdade,

entendida antes de tudo como fidelidade ao Evangelho confiado pelo Senhor Jesus aos seus. A

fraternidade cristã nasce pelo facto de todos serem filhos do mesmo Pai pelo Espírito de

verdade: «Com efeito, todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus»

(Romanos 8, 14). Mas a família dos filhos de Deus, para viver na unidade e na paz, necessita de

alguém que a instrua na verdade e a guie com sábio e autorizado discernimento: isto é o que o

ministério dos Apóstolos é chamado a realizar. E aqui chegamos a um ponto importante. A

Igreja é totalmente do Espírito, mas tem uma estrutura, a sucessão apostólica, que tem a

responsabilidade de garantir a permanência da Igreja na verdade doada por Cristo, da qual

também procede a capacidade do amor.

A introdução dos Actos dos Apóstolos expressa com grande eficácia a convergência destes

valores na vida da Igreja nascente: «Eram assíduos à escuta dos ensinamentos dos apóstolos,

ao exercício da comunhão fraterna (koinonia), à fração do pão e às orações» (Atos 2, 42). A

comunhão nasce da fé suscitada pela pregação apostólica, alimenta-se da fracção do pão e da

oração, e exprime-se na caridade fraterna e no serviço. Encontramo-nos ante a descrição da

comunhão da Igreja nascente na riqueza do seu dinamismo interno e da sua expressão visível:

o dom da comunhão é preservado e é promovido em particular pelo ministério apostólico, que

por sua vez é dom para toda a comunidade.

Os apóstolos e seus sucessores são, portanto, os guardiões e as testemunhas autorizadas do

depósito da verdade entregue à Igreja, e são também os ministros da caridade: dois aspectos

que estão ligados. Têm de pensar sempre no caráter inseparável deste duplo serviço, que na

realidade é um só: verdade e caridade, reveladas e doadas pelo Senhor Jesus. Neste sentido,

realizam antes de tudo um serviço de amor: a caridade que têm de viver e promover não pode

separar-se da verdade que preservam e transmitem. A verdade e o amor são duas faces do

mesmo dom: que procede de Deus e que graças ao ministério apostólico é guardado na Igreja

e nos chega até ao presente! Também, através do serviço dos apóstolos e seus sucessores, o

amor de Deus Trindade chega até nós para nos comunicar a verdade que nos faz livres (Cf.

João 8, 32) ! Tudo isto que vemos na Igreja nascente nos leva a rezar pelos Sucessores dos

Apóstolos, por todos os Bispos e pelos Sucessores de Pedro, para que sejam realmente

guardiões da verdade e da caridade; para que sejam, neste sentido, realmente apóstolos de

Cristo, para que a sua luz, a luz da verdade e da caridade não se apague nunca na Igreja e no

mundo.

A comunhão no tempo: a Tradição

26 de abril de 2006

Queridos irmãos e irmãs:

Obrigado pelo vosso afecto! Na nova série de catequeses iniciada há pouco tempo,

procuramos compreender o desígnio originário da Igreja querida pelo Senhor para, assim,

compreender melhor a nossa participação, a nossa vida cristã na grande comunhão da Igreja.

Até agora, compreendemos que a comunhão eclesial é suscitada e sustentada pelo Espírito

Santo, mantida e promovida pelo ministério apostólico. E esta comunhão, à qual chamamos

Igreja, não se estende, somente, a todos os crentes de um certo momento histórico, mas

abraça também todos os tempos e todas as gerações. Portanto, encontramo-nos perante uma

dupla universalidade: a universalidade sincrónica - estamos unidos aos crentes em todas as

partes do mundo - e também uma universalidade dita diacrónica, ou seja, todos os tempos nos

pertencem, também os crentes do passado e os crentes do futuro formam conosco uma única

e grande comunhão.

O Espírito apresenta-se como a garantia da presença activa do mistério na história, Aquele que

assegura a sua realização através dos séculos. Graças ao Paráclito, a experiência do

Ressuscitado feita pela comunidade apostólica na origem da Igreja, poderá sempre ser vivida

pelas gerações seguintes, na medida em que é transmitida e actualizada na fé, no culto e na

comunhão do Povo de Deus, peregrino no tempo. Assim, nós agora, no tempo pascal, vivemos

o encontro com o Ressuscitado não só como algo do passado, mas na comunhão presente da

fé, da liturgia, da vida da Igreja. Nesta transmissão dos bens da salvação, que faz da

comunidade cristã a actualização permanente, com a força do Espírito, da comunhão

originária, consiste a Tradição apostólica da Igreja. É assim chamada, porque nasceu do

testemunho dos apóstolos e da comunidade dos discípulos nos primeiros tempos, foi

transmitida sob a guia do Espírito Santo nos escritos do Novo Testamento e na vida

sacramental, na vida da fé, e a ela - a esta Tradição, que é a realidade sempre actual do dom

de Jesus - a Igreja continuamente se refere como seu fundamento e sua norma através da

sucessão ininterrupta do ministério apostólico.

Jesus, na sua vida histórica, limitava a sua missão à casa de Israel, mas já dava a entender que

o dom era destinado não só ao povo de Israel, mas a todo o mundo e a todos os tempos. O

ressuscitado confia depois explicitamente aos apóstolos (Cf. Lucas 6, 13) a tarefa de fazer

discípulas todas as nações, garantindo a sua presença e sua ajuda até o final dos tempos (Cf.

Mateus 28, 19 seguintes). A universidade da salvação requer, por outro lado, que o memorial

da Páscoa seja celebrado sem interrupção na história até ao regresso glorioso de Cristo (Cf. 1

Coríntios 11, 26). Quem actualizará a presença salvífica do Senhor Jesus, mediante o ministério

dos apóstolos -chefes do Israel escatológico (Cf. Mateus 19, 28) - e por toda a vida do povo da

nova aliança? A resposta é clara: o Espírito Santo. Os Actos dos Apóstolos - na continuidade do

desígnio do Evangelho de Lucas - apresentam ao vivo a união entre o Espírito, os enviados de

Cristo e a comunidade por eles reunida. Graças à acção do Paráclito, os apóstolos e os seus

sucessores podem realizar no tempo a missão recebida do Ressuscitado: «Vós sois

testemunhas disto. E Eu vos enviarei o que o meu Pai prometeu...» (Lucas 24, 48 seguintes).

«Recebereis a força do Espírito Santo, que virá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em

Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra» (Actos 1, 8). E esta

promessa, ao início incredível, realizou-se já no tempo dos apóstolos: «Nós somos

testemunhas destas coisas, assim como o Espírito Santo, dado por Deus aos que lhe

obedecem» (Actos 5, 32).

É, portanto, o próprio Espírito que, mediante a imposição das mãos e a oração dos apóstolos,

consagra e envia os novos missionários do Evangelho (por exemplo, nos Actos 13, 3 seguintes

e 1 Timóteo 4, 14). É interessante observar que, enquanto que em algumas passagens se diz

que Paulo estabelece os presbíteros nas Igrejas (Cf. Actos 14, 23), noutras se afirma que é o

Espírito quem constitui os pastores do rebanho (Cf. Actos 20, 28). A acção do Espírito e a de

Paulo estão deste modo profundamente unidas. Na hora das decisões solenes para a vida da

Igreja, o Espírito está presente para guiá-la. Esta presença-guia do Espírito Santo sente-se

particularmente no Concílio de Jerusalém, em cujas palavras conclusivas ressoa a afirmação:

«decidimos o Espírito Santo e nós...» (Actos 15, 28); a Igreja cresce e caminha «no temor do

Senhor e estava cheia da consolação do Espírito Santo» (Actos 9, 31). Esta permanente

actualização da presença do Senhor Jesus no seu povo, realizada pelo Espírito Santo e expressa

na Igreja pelo ministério apostólico e pela comunhão fraterna, é o que em sentido teológico se

entende pelo termo Tradição: não é a mera transmissão material do que foi entregue ao início

aos apóstolos, mas a presença eficaz do Senhor Jesus, crucificado e ressuscitado, que

acompanha e guia no Espírito a comunidade por Ele reunida.

A Tradição é a comunhão dos fiéis em união com os legítimos pastores no curso da história,

uma comunhão que o Espírito Santo alimenta assegurando o nexo entre a experiência da fé

apostólica, vivida na comunidade originária dos discípulos, e a experiência actual de Cristo na

sua Igreja. Por outras palavras, a Tradição é a continuidade orgânica da Igreja, Templo santo de

Deus Pai, edificado sobre o fundamento dos apóstolos, unidos pela pedra angular, Cristo,

mediante a acção vivificante do Espírito: «Assim, pois, já não sois estranhos nem forasteiros,

mas concidadãos dos santos e familiares de Deus, edificados sobre o fundamento dos

apóstolos e profetas, sendo a pedra angular o próprio Cristo, em quem toda a edificação bem

ordenada se eleva até formar um templo santo no Senhor; N’ Ele também vós estais sendo

conjuntamente edificados, para vos tornardes morada de Deus pelo Espírito» (Efésios 2, 19-

22). Graças à Tradição, garantida pelo ministério dos apóstolos e seus sucessores, a água da

vida derramada do lado de Cristo e seu sangue salvador chegam às mulheres e aos homens de

todos os tempos. Deste modo, a Tradição é a presença permanente do Salvador que vem até

nós, redimir-nos e santificar-nos no Espírito por meio do ministério de sua Igreja para glória do

Pai.

Concluindo e resumindo, podemos, portanto, dizer que a Tradição não é a transmissão de

coisas ou palavras, uma coleção de coisas mortas. A Tradição é o rio vivo que nos une às

origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes. O grande rio que nos conduz ao

porto da eternidade. E, sendo assim, neste rio vivo realiza-se sempre de novo a palavra do

Senhor, que escutamos, ao início,

dos lábios do leitor: «Eis aqui que eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo»

(Mateus 28, 20).

A Tradição Apostólica

03 de Maio de 2006

Queridos irmãos e irmãs

Nestas Catequeses desejamos compreender o que é a Igreja. A última vez meditámos sobre o

tema da Tradição apostólica. Vimos que ela não é uma colecção de objectos, de palavras como

uma caixa que contém coisas mortas; a Tradição é o rio da vida nova que vem das origens, de

Cristo até nós, e envolve-nos na história de Deus com a humanidade. Este tema da Tradição é

tão importante que também hoje desejo deter-me sobre ele: de facto, é de grande

importância para a vida da Igreja.

O Concílio Vaticano II realçou, a este propósito, que a Tradição é apostólica antes de tudo nas

suas origens: "Dispôs Deus, em toda a sua benignidade, que tudo quanto revelara para a

salvação de todos os povos permanecesse íntegro para sempre e fosse transmitido a todas as

gerações. Por isso, Cristo Senhor, em quem se consuma toda a revelação de Deus Sumo (cf. 2

Cor 1, 30; 3, 16; 4, 6), mandou aos Apóstolos que pregassem a todos os homens o Evangelho...

como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, comunicando-lhes os

dons divinos" (Const. dogm. Dei Verbum, 7).

O Concílio prossegue, anotando como tal empenho foi fielmente seguido "pelos Apóstolos

que, pela sua pregação oral, exemplos e instituições, comunicaram aquilo que tinham recebido

pela palavra, convivência e obras de Cristo, ou aprendido por inspiração do Espírito Santo"

(ibid.). Com os Apóstolos, acrescenta o Concílio, colaboraram também "varões apostólicos que,

sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a Mensagem da salvação" (ibid.).

Como chefes do Israel escatológico, também eles doze como doze eram as tribos do povo

eleito, os Apóstolos continuam a "recolha" iniciada pelo Senhor, e fazem-no antes de tudo

transmitindo fielmente o dom recebido, a boa nova do Reino que veio até aos homens em

Jesus Cristo. O seu número expressa não só a continuidade com a santa raiz, o Israel das doze

tribos, mas também o destino universal do seu ministério, que leva a salvação até aos

extremos confins da terra. Pode-se captar isto do valor simbólico que têm os números no

mundo semítico: doze resulta da multiplicação de três, número perfeito, e quatro, número que

remete para os quatro pontos cardeais, e portanto para todo o mundo.

A comunidade, que surgiu do anúncio evangélico, reconhece-se convocada pela palavra

daqueles que foram os primeiros a fazer a experiência do Senhor e por Ele foram enviados. Ela

sabe que pode contar com a orientação dos Doze, como também com a de quantos a eles se

associam pouco a pouco como sucessores no ministério da Palavra e no serviço à comunhão.

Por conseguinte, a comunidade sente-se comprometida a transmitir aos outros a "feliz notícia"

da presença actual do Senhor e do seu mistério pascal, que age no Espírito.

Isto é bem evidenciado nalguns trechos do epistolário paulino: "Transmiti-vos... o que eu

próprio recebi" (1 Cor 15, 3). E isto é importante. São Paulo, como se sabe, originariamente

chamado por Cristo com uma vocação pessoal, é um verdadeiro Apóstolo e, contudo, também

para ele conta sobretudo a fidelidade a quanto recebeu. Ele não queria "inventar" um novo

cristianismo, por assim dizer "paulino". Por isso insiste: "Transmiti-vos... o que eu próprio

recebi". Transmitiu o dom inicial que vem do Senhor e é a verdade que salva. Depois, no fim da

vida, escreve a Timóteo: "Guarda, pelo Espírito Santo que habita em nós, o precioso bem que

te foi confiado" (2 Tm 1, 14).

Mostra isto com eficiência também este antigo testemunho da fé cristã, escrita por Tertuliano

por volta do ano 200: "(Os Apóstolos) no princípio afirmaram a fé em Jesus Cristo e

estabeleceram Igrejas para a Judeia e logo a seguir, espalhados pelo mundo, anunciaram a

mesma doutrina e uma mesma fé às nações e, por conseguinte, fundaram Igrejas em cada

cidade. Depois, delas, as outras Igrejas mutuaram a ramificação da sua fé e as sementes da

doutrina, e continuamente a mutuam para serem precisamente Igrejas. Desta forma também

elas são consideradas apostólicas como descendência das Igrejas dos apóstolos" (De

praescriptione haereticorum, 20: PL 2, 32).

O Concílio Vaticano II comenta: "Aquilo que os Apóstolos transmitiram compreende todas

aquelas coisas que são necessárias para que o Povo de Deus viva santamente e para que

aumente a sua fé, e deste modo a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a

todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que ela acredita" (Const. Dei Verbum, 8). A Igreja

transmite tudo o que ela é e crê, transmite-o no culto, na vida, na doutrina. A Tradição é,

portanto, o Evangelho vivo, anunciado pelos Apóstolos na sua integridade, com base na

plenitude da sua experiência única e irrepetível: pela sua acção a fé é comunicada aos outros,

até nós, até ao fim do mundo.

Por conseguinte, a Tradição é a história do Espírito que age na história da Igreja através da

mediação dos Apóstolos e dos seus sucessores, em fiel continuidade com a experiência das

origens. É quanto esclarece o Papa São Clemente Romano nos finais do século I: "Os Apóstolos

escreve ele anunciaram-nos o Evangelho enviados pelo Senhor Jesus Cristo, Jesus Cristo foi

enviado por Deus. Cristo vem portanto de Deus, os Apóstolos de Cristo: ambos procedem

ordinariamente da vontade de Deus... Os nossos Apóstolos chegaram ao conhecimento por

meio de Nosso Senhor Jesus Cristo que teriam surgido contendas acerca da função episcopal.

Por isso, prevendo perfeitamente o futuro, estabeleceram os eleitos e deram-lhe por

conseguinte a ordem, para que, quando morressem, outros homens provados assumissem o

seu serviço" (Ad Corinthios, 42.44: PG 1, 292.296).

Esta corrente do serviço continua até hoje, continuará até ao fim do mundo. De facto, o

mandato conferido por Jesus aos Apóstolos foi por eles transmitido aos seus sucessores. Além

da experiência do contacto pessoal com Cristo, experiência única e irrepetível, os Apóstolos

transmitiram aos Sucessores o envio solene ao mundo recebido do Mestre.

Apóstolo deriva precisamente da palavra grega "apostéllein", que significa enviar. O envio

apostólico como mostra o texto de Mt 28, 19s. exige um serviço pastoral ("fazei discípulos de

todas as nações..."), litúrgico ("baptizai-as...") e profético ("ensinando-lhes a cumprir tudo

quanto vos tenho mandado"), garantido pela proximidade do Senhor até à consumação do

tempo ("eis que Eu estarei convosco todos os dias até ao fim do mundo").

Assim, de uma forma diferente da dos Apóstolos, temos nós também uma experiência

verdadeira e pessoal da presença do Senhor ressuscitado. Através do ministério apostólico é o

próprio Cristo que alcança quem está chamado à fé. A distância dos séculos é superada e o

Ressuscitado oferece-se vivo e operante por nós, no hoje da Igreja e do mundo. Esta é a nossa

grande alegria. No rio vivo da Tradição Cristo não está distante dois mil anos, mas está

realmente presente entre nós e doa-nos a Verdade, e doa-nos a luz que nos faz viver e

encontrar o caminho para o futuro.

A sucessão apostólica

10 de Maio de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Nas últimas duas audiências meditámos sobre o que é a Tradição na Igreja e vimos que ela é a

presença permanente da palavra e da vida de Jesus no seu povo. Mas a palavra, para estar

presente, tem necessidade de uma pessoa, de uma testemunha. E assim nasce esta

reciprocidade: por um lado, a palavra tem necessidade da pessoa, mas, por outro, a pessoa, a

testemunha, está ligada à palavra que lhe foi confiada e que ele não inventou. Esta

reciprocidade entre conteúdo palavra de Deus, vida do Senhor e pessoa que lhe dá

continuidade é característica da estrutura da Igreja, e hoje queremos meditar este aspecto

pessoal da Igreja.

O Senhor tinha-o iniciado convocando, como vimos, os Doze, nos quais estava representado o

futuro Povo de Deus. Na fidelidade ao mandamento recebido do Senhor, primeiro os Doze,

depois da sua Ascensão, integram o seu número com a eleição de Matias no lugar de Judas (cf.

Act 1, 15-26), e depois associam progressivamente outros nas funções que lhe foram

confiadas, para que continuem o seu ministério. O próprio ressuscitado chama Paulo (cf. Gl 1,

1), mas Paulo, mesmo sendo chamado pelo Senhor, confronta o seu Evangelho com o

Evangelho dos Doze (cf. ibid. 1, 18), preocupa-se em transmitir o que recebeu (cf. 1 Cor 11, 23;

15, 3-4) e na distribuição das tarefas é associado aos Apóstolos, juntamente com outros, por

exemplo com Barnabé (cf. Gl 2, 9). Assim como no início da condição de apóstolo há uma

chamada e um envio do Ressuscitado, também a sucessiva chamada e envio de outros

acontecerá, na força do Espírito, por obra de quem já foi constituído no ministério apostólico.

Este é o caminho pelo qual continuará o ministério, que depois, a partir da segunda geração se

chamará ministério episcopal, "episcopé".

Talvez seja útil explicar brevemente o que significa bispo. Vescovo (bispo) è a forma italiana da

palavra grega "epíscopos". Esta palavra indica alguém que tem uma visão do alto, alguém que

olha com o coração. Assim o próprio São Pedro, na sua primeira Carta, chama ao Senhor Jesus

"pastor e bispo, guarda das vossas almas" (2, 25). E segundo este modelo do Senhor, que é o

primeiro bispo, guarda e pastor das almas, os sucessores dos Apóstolos chamaram-se

sucessivamente bispos, "epíscopoi". A eles é confiada a função do "epoiscopé". Esta função

clara do Bispo evolver-se-á progressivamente, em relação ao início, até assumir a forma já

claramente confirmada em Inácio de Antioquia no início do século II (cf. Ad Magnesios, 6, 1: PG

5, 668) do tríplice múnus de bispo, presbítero e diácono. É um desenvolvimento guiado pelo

Espírito de Deus, que assiste a Igreja no discernimento das formas autênticas da sucessão

apostólica, sempre melhor definidas entre uma pluralidade de experiências e de formas

carismáticas e ministeriais, presentes nas comunidades das origens.

Desta forma, a sucessão na função episcopal apresenta-se como continuidade do ministério

apostólico, garantia da perseverança na Tradição apostólica, palavra e vida, que o Senhor nos

confiou. O vínculo entre o Colégio dos Bispos e a comunidade originária dos Apóstolos deve

ser compreendido antes de tudo na linha da continuidade histórica. Como vimos, aos Doze são

depois associados Matias, Paulo, Barnabé, e em seguida outros, até à formação na segunda e

na terceira geração, do ministério do bispo. Por conseguinte, a continuidade exprime-se nesta

sucessão histórica. E na continuidade da sucessão encontra-se a garantia do perseverar, na

continuidade eclesial, do Colégio apostólico reunido por Cristo. Mas esta continuidade, que

vemos primeiro na continuidade histórica dos ministros, deve ser vista também em sentido

espiritual, porque a sucessão apostólica no ministério é considerada como lugar privilegiado da

acção e da transmissão do Espírito Santo. Temos um reflexo claro destas convicções, por

exemplo, no seguinte texto de Ireneu de Lião (segunda metade do século II): "A tradição dos

Apóstolos, manifestada em todo o mundo, mostra-se em cada Igreja a todos os que desejam

ver a verdade e nós podemos enumerar os bispos estabelecidos pelos Apóstolos nas Igrejas e

os seus sucessores até nós... (Os Apóstolos) de facto quiseram que aqueles que deixavam

como sucessores fossem absolutamente perfeitos e irrepreensíveis em tudo, transmitindo-lhes

a própria missão de ensinamento. Se eles tivessem compreendido correctamente, dele teriam

tirado grande proveito; se, ao contrário, falhassem, teriam obtido um dano gravíssimo"

(Adversus haereses, III 3, 1: PG 7, 848).

Depois, Ireneu indicando aqui esta rede da sucessão apostólica como garantia do perseverar

na palavra do Senhor, concentra-se naquela Igreja "suma e antiquíssima e por todos

conhecida" que foi "fundada e constituída em Roma pelos gloriosíssimos Apóstolos Pedro e

Paulo", dando relevo à Tradição da fé, que nela chega até nós pelos Apóstolos mediante a

sucessão dos bispos. Desta forma, para Ireneu e para a Igreja universal, a sucessão episcopal

da Igreja de Roma torna-se o sinal, o critério e a garantia da transmissão ininterrupta da fé

apostólica: "A esta Igreja, pela sua peculiar principalidade (propter potiorem principalitatem),

é necessário que convirjam todas as Igrejas, isto é, os fiéis de todas as partes, porque nela a

tradição dos Apóstolos sempre foi preservada..." (Adversus haereses, III 3, 2: PG 7, 484). A

sucessão apostólica verificada com base na comunhão com a da Igreja de Roma é portanto o

critério da permanência de cada uma das Igrejas na Tradição da comum fé apostólica, que

através deste canal pôde chegar até nós desde as origens: "Com esta ordem e com esta

sucessão chegaram até nós a tradição que existe na Igreja a partir dos Apóstolos e a pregação

da verdade. Esta é a prova mais completa que una e única é a fé vivificante dos Apóstolos, que

foi conservada e transmitida na verdade" (ibid., III, 3, 3; PG 7, 851).

Segundo estes testemunhos da Igreja antiga, a apostolicidade da comunhão eclesial consiste

na fidelidade ao ensinamento e à prática dos Apóstolos, através dos quais é garantido o

vínculo histórico e espiritual da Igreja com Cristo. A sucessão apostólica do ministério

episcopal é o caminho que garante a fiel transmissão do testemunho apostólico. O que os

Apóstolos representam no relacionamento entre o Senhor Jesus e a Igreja das origens,

representa-o analogamente a sucessão ministerial no relacionamento entre a Igreja das

origens e a Igreja actual. Não é uma simples concatenação material; é o instrumento histórico

do qual se serve o Espírito para tornar presente o Senhor Jesus, Chefe do seu povo, através de

quantos são ordenados para o ministério através da imposição das mãos e da oração dos

bispos. Mediante a sucessão apostólica é Cristo que nos alcança: na palavra dos Apóstolos e

dos seus sucessores é Ele quem nos fala; mediante as suas mãos é Ele quem age nos

sacramentos; no olhar deles é o seu olhar que nos envolve e nos faz sentir amados, acolhidos

no coração de Deus. E também hoje, como no início, o próprio Cristo é o verdadeiro pastor e

guarda das nossas almas, que nós seguimos com grande confiança, gratidão e alegria.

Pedro, o pescador

17 de Maio de 2006

Amados Irmãos e Irmãs,

Na nova série de catequeses começámos antes de tudo a compreender melhor o que é a

Igreja, qual é a ideia do Senhor sobre esta sua nova família. Depois dissemos que a Igreja existe

nas pessoas. E vimos que o Senhor confiou esta nova realidade, a Igreja, aos doze Apóstolos.

Agora queremos vê-los um por um, para compreender nas pessoas o que significa viver a

Igreja, o que significa seguir Jesus. Começamos com São Pedro.

Depois de Jesus, Pedro é a personagem mais conhecida e citada nos escritos

neotestamentários: é mencionado 154 vezes com o cognome de Pétros, "pedra", "rocha", que

é a tradução grega do nome aramaico que lhe foi dado directamente por Jesus Kefa, afirmado

nove vezes sobretudo nas cartas de Paulo; depois, deve-se acrescentar o nome frequente

Simòn (75 vezes), que é a forma helenizada do seu original nome hebraico Simeon (2 vezes:

Act 15, 14; 2 Pd 1, 1). Filho de João (cf. Jo 1, 42) ou, na forma aramaica, bar-Jona, filho de Jonas

(cf. Mt 16, 17), Simão era de Betsaida (cf. Jo 1, 44), uma cidadezinha a oriente do mar da

Galileia, da qual provinha também Filipe e naturalmente André, irmão de Simão. O seu modo

de falar traía o sotaque galileu. Também ele, como o irmão, era pescador: com a família de

Zebedeu, pai de Tiago e de João, dirigia uma pequena empresa de pesca no lago de Genesaré

(cf. Lc 5, 10). Por isso devia gozar de um certo bem-estar económico e era animado por um

sincero interesse religioso, por um desejo de Deus ele queria que Deus interviesse no mundo

um desejo que o estimulou a ir com o irmão até à Judeia para seguir a pregação de João

Baptista (cf. Jo 1, 35-42).

Era um judeu crente e praticante, confiante na presença activa de Deus na história do seu

povo, e sofria por não ver a sua acção poderosa nas vicissitudes das quais ele era, naquele

momento, testemunha. Era casado e a sogra, curada um dia por Jesus, vivia na cidade de

Cafarnaum, na casa na qual também Simão vivia quando estava naquela cidade (cf. Mt 8, 14 s;

Mc 1, 29 s; Lc 4, 38 s).

Recentes escavações arqueológicas permitiram trazer à luz, sob a pavimentação em mosaicos

octagonais de uma pequena igreja bizantina, os vestígios de uma igreja mais antiga existente

naquela casa, como afirmam os grafites com invocações a Pedro. Os Evangelhos informam-nos

que Pedro é um dos primeiros quatro discípulos do Nazareno (cf. Lc 5, 1-11), aos quais se junta

um quinto, segundo o costume de cada Rabino de ter cinco discípulos (cf. Lc 5, 27: chamada de

Levi).

Quando Jesus passa de cinco para doze discípulos (cf. Lc 9, 1-6), será clara a novidade da sua

missão: Ele já não é um entre tantos rabinos, mas veio para reunir o Israel escatológico,

simbolizado pelo número doze, como doze eram as tribos de Israel.

Simão aparece nos Evangelhos com um carácter decidido e impulsivo; ele está disposto a fazer

valer as próprias razões também com a força (pense-se no uso da espada no Horto das

Oliveiras: cf. Jo 18, 10 s). Ao mesmo tempo, por vezes é também ingénuo e medroso, e

contudo honesto, até ao arrependimento mais sincero (cf. Mt 26, 75). Os Evangelhos

permitem seguir passo a passo o seu itinerário espiritual. O ponto de partida é a chamada da

parte de Jesus. Acontece num dia qualquer, enquanto Pedro está empenhado no seu trabalho

de pescador. Jesus encontra-se junto do lago de Genesaré e a multidão reúne-se à sua volta

para o ouvir. O número dos ouvintes gera uma certa confusão. O Mestre vê duas barcas

ancoradas à margem; os pescadores desceram e lavam as redes. Então Ele pede para entrar na

barca, na de Simão, e pede-lhe que se faça ao largo. Sentado naquela cátedra improvisada, da

barca, começa a ensinar à multidão (cf. Lc 5, 1-3). E assim a barca de Pedro torna-se a cátedra

de Jesus. Quando terminou de falar, diz a Simão: "Faz-te ao largo e lança as redes para a

pesca". Simão responde: "Mestre, trabalhámos durante toda a noite e nada apanhámos; mas,

porque tu o dizes, lançarei as redes" (Lc 5, 4-5). Jesus, que era um carpinteiro, não era perito

em pesca: mas Simão, o pescador, confia neste Rabino, que não lhe dá respostas mas o chama

a ter confiança. A sua reacção diante da pesca milagrosa é de admiração e de trepidação:

"Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador" (Lc 5, 8). Jesus responde

convidando-o a ter confiança e a abrir-se a um projecto que ultrapassa qualquer sua

perspectiva: "Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens" (Lc 5, 10). Pedro ainda

não podia imaginar que um dia teria chegado a Roma e seria nessa cidade "pescador de

homens" para o Senhor. Ele aceita esta chamada surpreendente, de se deixar envolver nesta

grande aventura: é generoso, reconhece os seus limites, mas crê n'Aquele que o chama e

segue o sonho do seu coração. Diz sim um sim corajoso e generoso e torna-se discípulo de

Jesus.

Pedro vive outro momento significativo no seu caminho espiritual nas proximidades de

Cesareia de Filipe, quando Jesus faz aos discípulos uma pergunta concreta: "Quem dizem os

homens que Eu sou?" (Mc 8, 27). Mas para Jesus não era suficiente a resposta do ter ouvido

dizer. Daqueles que aceitaram comprometer-se pessoalmente com Ele pretende uma tomada

de posição pessoal. Por isso insiste: "E vós, quem dizeis que Eu sou?" (Mc 8, 29). Responde

Pedro também em nome dos outros: "Tu és o Messias" (ibid.), isto é, Cristo. Esta resposta de

Pedro, que não veio "da carne e do sangue" dele, mas foi-lhe concedida pelo Pai que está no

céu (cf. Mt 16, 17), tem em si como que em gérmen a futura confissão de fé da Igreja.

Contudo, Pedro ainda não tinha compreendido o conteúdo profundo da missão messiânica de

Jesus, o novo sentido desta palavra: Messias.

Demonstra-o pouco depois, deixando compreender que o Messias que persegue nos seus

sonhos é muito diferente do verdadeiro projecto de Deus. Perante o anúncio da paixão

escandaliza-se e protesta, suscitando uma reacção enérgica de Jesus (cf. Mc 8, 32-33). Pedro

quer um Messias "homem divino", que cumpra as expectativas do povo impondo a todos o seu

poder: é também nosso desejo que o Senhor imponha o seu poder e transforme

imediatamente o mundo; Jesus apresenta-se como o "Deus humano", o servo de Deus, que

altera as expectativas da multidão encaminhando-se por uma via de humildade e de

sofrimento. É a grande alternativa, que também nós devemos aprender sempre de novo:

privilegiar as próprias expectativas recusando Jesus ou acolher Jesus na verdade da sua missão

e abandonando as expectativas demasiado humanas.

Pedro impulsivo como é não hesita em repreender Jesus separadamente. A resposta de Jesus

abala todas as suas falsas expectativas, quando o chama à conversão e ao seguimento: "Vai-te

da minha frente, Satanás, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos

homens" (Mc 8, 33). Não me indiques tu o caminho, eu sigo o meu percurso e tu põe-te atrás

de mim.

Pedro aprende desta forma o que significa verdadeiramente seguir Jesus. É a sua segunda

chamada, análoga à de Abraão em Gn 22, depois de Gn 12: "Se alguém quiser vir após mim,

negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Na verdade, quem quiser salvar a sua vida,

há-de perdê-la, mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há-de salvá-la"

(Mc 8, 34-35). É a lei exigente do seguimento: é preciso saber renunciar, se for necessário, ao

mundo inteiro para salvar os verdadeiros valores, para salvar a alma, para salvar a presença de

Deus no mundo (cf. Mc 8, 36-37). Mesmo com dificuldade, Pedro aceita o convite e prossegue

o seu caminho seguindo os passos do Mestre.

Parece-me que estas diversas conversões de São Pedro e toda a sua figura são de grande

conforto e um forte ensinamento para nós. Também nós sentimos o desejo de Deus, também

nós queremos ser generosos, mas também nós esperamos que Deus seja forte no mundo e

transforme imediatamente o mundo segundo as nossas ideias, segundo as necessidades que

vemos. Deus escolhe outro caminho. Deus escolhe o caminho da transformação dos corações

no sofrimento e na humildade. E nós, como Pedro, devemos converter-nos sempre de novo.

Devemos seguir Jesus em vez de o preceder: é Ele quem nos indica o caminho. Assim Pedro

diz-nos: Tu pensas que tens a receita e que deves transformar o cristianismo, mas é o Senhor

quem conhece o caminho. É o Senhor que diz a mim, diz a ti: segue-me! E devemos ter

coragem e humildade para seguir Jesus, porque Ele é o caminho, a Verdade e a Vida.

Pedro, o apóstolo

24 de Maio de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Nestas catequeses estamos a meditar sobre a Igreja. Dissemos que a Igreja vive nas pessoas e,

por isso, na última catequese, começámos a meditar sobre as figuras de cada um dos

Apóstolos, começando por São Pedro. Vimos duas etapas decisivas da sua vida: a chamada

junto do Lago da Galileia e, depois, a profissão de fé: "Tu és Cristo, o Messias". Uma confissão,

dissemos, ainda insuficiente, inicial e contudo aberta. São Pedro coloca-se num caminho de

seguimento. E assim, esta confissão inicial tem em si, como em gérmen, já a futura fé da Igreja.

Hoje queremos considerar outros dois acontecimentos importantes na vida de Pedro: a

multiplicação dos pães ouvimos no trecho agora lido a pergunta do Senhor e a resposta de

Pedro e depois o Senhor que chama Pedro para ser pastor da Igreja universal.

Comecemos com a vicissitude da multiplicação dos pães. Vós sabeis que o povo tinha ouvido o

Senhor durante horas. No fim, Jesus diz: estão cansados, têm fome, devemos dar de comer a

este povo. Os Apóstolos perguntam: Mas como? E André, irmão de Pedro, chama a atenção de

Jesus para um jovem que levava consigo cinco pães e dois peixes. Mas o que são para tantas

pessoas, interrogam-se os Apóstolos. Mas o Senhor faz sentar as pessoas e distribuir estes

cinco pães e os dois peixes e todos se saciam. Aliás, o Senhor encarrega os Apóstolos, e entre

eles Pedro, que recolham o que sobrou em abundância: doze cestas de pão (cf. Jo 6, 12-13).

Sucessivamente o povo, vendo este milagre que parece ser a renovação, tão esperada de um

novo "maná", do dom do pão do céu deseja fazer dele o seu rei. Mas Jesus não aceita e retira-

se para o monte para rezar sozinho. No dia seguinte, Jesus na outra margem do lago, na

Sinagoga de Cafarnaum, interpretou o milagre não no sentido de uma realeza sobre Israel com

um poder deste mundo no modo esperado pela multidão, mas no sentido da doação de si: "o

pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo" (Jo 6, 51). Jesus anuncia a cruz, e

com a cruz a verdadeira multiplicação dos pães, o pão eucarístico o seu modo absolutamente

novo de ser rei, um modo totalmente contrário às expectativas do povo.

Nós podemos compreender como estas palavras do Mestre que não deseja cumprir todos os

dias uma multiplicação dos pães, que não quer oferecer a Israel um poder deste mundo

pareciam verdadeiramente difíceis, aliás, inaceitáveis para a multidão. "Da sua carne": O que

significa? E também para os discípulos é inaceitável o que Jesus diz neste momento. Era e é

para o nosso coração, para a nossa mentalidade, um sermão "duro", que provava a fé (cf. Jo 6,

60). Muitos dos discípulos se afastaram. Queriam alguém que renovasse realmente o Estado

de Israel, do seu povo, e não um que dizia: "Eu dou a minha carne". Podemos imaginar como

as palavras de Jesus eram difíceis também para Pedro, que em Cesareia de Filipe se tinha

oposto à profecia da cruz. E contudo quando Jesus perguntou aos doze: "Quereis retirar-vos

vós também?", Pedro reagiu com o impulso do seu coração generoso, guiado pelo Espírito

Santo. Em nome de todos respondeu com palavras imortais, que são também nossas: "Senhor,

a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna; nós cremos e conhecemos que tu és o Santo

de Deus" (cf. Jo 6, 66-69).

Aqui, como em Cesareia, com as suas palavras Pedro começa a profissão da fé cristológica da

Igreja e torna-se também o intérprete dos outros Apóstolos e também de nós, crentes de

todos os tempos. Isto não significa que já tivesse compreendido o mistério de Cristo em toda a

sua profundidade. A sua fé ainda estava no início, uma fé a caminho; teria chegado à

verdadeira plenitude apenas mediante a experiência dos acontecimentos pascais. Mas

contudo já era fé, aberta à realidade maior aberta sobretudo porque não era fé em algo, era fé

em Alguém: n'Ele, Cristo. Assim, também a nossa fé é sempre uma fé inicial, e devemos

percorrer ainda um longo caminho. Mas é fundamental que seja uma fé aberta e que nos

deixemos guiar por Jesus, porque Ele não só conhece o Caminho, mas é o Caminho.

Mas a generosidade impetuosa de Pedro não o salvaguarda dos riscos relacionados com a

debilidade humana. De resto, é o que também nós podemos reconhecer com base na nossa

vida. Pedro seguiu Jesus com ímpeto, superou a prova da fé, abandonando-se a Ele. Contudo

chega o momento no qual também ele cede aos receios e cai: trai o Mestre (cf. Mc 14, 66-72).

A escola da fé não é uma marcha triunfal, mas um caminho repleto de sofrimentos e de amor,

de provas e de fidelidade a ser renovada todos os dias. Pedro, que já tinha prometido

fidelidade absoluta, conhece a amargura e a humilhação da renegação: o atrevido aprende à

sua custa a humildade. Também Pedro deve aprender a ser frágil e carente de perdão. Quando

finalmente perde a máscara e compreende a verdade do seu coração frágil de pecador crente,

cai num libertador choro de arrependimento. Depois deste choro ele já está pronto para a sua

missão.

Numa manhã de Primavera esta missão ser-lhe-á confiada por Jesus ressuscitado. O encontro

será na margem do lago de Tiberíades. O evangelista João narra-nos o diálogo que naquela

circunstância se realiza entre Jesus e Pedro. Nele revela-se um jogo de verbos muito

significativo. Em grego o verbo "filéo" expressa o amor de amizade, terno mas não totalizante

enquanto o verbo "agapáo" significa o amor sem reservas, total e incondicionado. Jesus

pergunta a Pedro pela primeira vez: "Simão... tu amas-Me (agapâs-me)" com este amor total e

incondicionado ( cf. Jo 21, 15)? Antes da experiência da traição o Apóstolo teria certamente

respondido: "Amo-Te (agapô-se) incondicionalmente". Agora, que conheceu a amarga tristeza

da infidelidade, o drama da própria debilidade, diz apenas: "Senhor... tu sabes que sou deveras

teu amigo (filô-se), isto é, "amo-te com o meu pobre amor humano". Cristo insiste: "Simão, tu

amas-Me com este amor total que Eu quero?". E Pedro repete a resposta do seu humilde amor

humano: "Kyrie, filô-se", "Senhor, tu sabes que eu sou deveras teu amigo". Pela terceira vez

Jesus pergunta a Simão: "Fileîs-me?", "tu amas-Me?". Simão compreende que para Jesus é

suficiente o seu pobre amor, o ùnico de que é capaz, e contudo sente-se entristecido porque o

Senhor teve que lhe falar daquele modo. Por isso, responde: "Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem

sabes que eu sou deveras teu amigo! (filô-se)". Seria para dizer que Jesus se adaptou a Pedro,

e não Pedro a Jesus! É precisamente esta adaptação divina que dá esperança ao discípulo, que

conheceu o sofrimento da infidelidade. Surge daqui a confiança que o torna capaz do

seguimento até ao fim: "E disse isto para indicar o género de morte com que ele havia de dar

glória a Deus. Depois destas palavras acrescentou: "Segue-Me"!" (Jo 21, 19).

A partir daquele dia Pedro "seguiu" o Mestre com a clara consciência da própria fragilidade;

mas esta consciência não o desencorajou. De facto, ele sabia que podia contar com a presença

do Ressuscitado. Dos ingénuos entusiasmos da adesão inicial, passando pela experiência

dolorosa da negação e pelo choro da conversão, Pedro alcançou a confiança naquele Jesus que

se adaptou à sua pobre capacidade de amor. E mostra assim também a nós o caminho, apesar

da nossa debilidade. Sabemos que Jesus se adapta a esta nossa debilidade.

Nós seguimo-lo com a nossa capacidade de amor e sabemos que Jesus é bom e nos aceita.

Para Pedro foi um longo caminho que fez dele uma testemunha de confiança, "pedra" da

Igreja, porque constantemente aberto à acção do Espírito de Jesus. O próprio Pedro qualificar-

se-á como "testemunha dos padecimentos de Cristo e também participante da glória que se

há-de manifestar" (1 Pd 5, 1). Quando escreveu estas palavras já era idoso, encaminhado para

a conclusão da sua vida que selou com o martírio.

Então, foi capaz de descrever a alegria verdadeira e de indicar de onde ela pode ser obtida: a

fonte é Cristo acreditado e amado com a nossa fé frágil mas sincera, apesar da nossa

fragilidade. Por isso escreveu aos cristãos da sua comunidade, e di-lo também a nós: "Sem o

terdes visto, vós o amais; sem o ver ainda, credes nele e vos alegrais com uma alegria

indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das almas" (1 Pd 1,

8-9).

Pedro, a rocha sobre a qual Cristo fundou a Igreja

7 de Junho de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Retomamos as catequeses semanais que iniciámos nesta primavera. Na última, de há quinze

dias, falei de Pedro como o primeiro dos Apóstolos; hoje, queremos voltar mais uma vez sobre

esta grande e importante figura da Igreja. O evangelista João, narrando o primeiro encontro de

Jesus com Simão, irmão de André, registra um acontecimento singular: Jesus, "fixando nele o

olhar... disse: "Tu és Simão, o filho de João. Hás-de chamar-te Cefas que significa Pedra"" (Jo 1,

42). Jesus não costumava mudar o nome aos seus discípulos. Se excluirmos o apelativo de

"filhos do trovão", dirigido numa circunstância precisa aos filhos de Zebedeu (cf. Mc 3, 17) que

não voltou a usar sucessivamente, Ele nunca atribuiu um novo nome a um discípulo seu. Mas

fê-lo com Simão, chamado-o Cefas, nome que depois foi traduzido em grego Petros, em latim

Petrus. E foi traduzido precisamente porque não era só um nome; era um "mandato" que

Pedro recebia daquele modo do Senhor. O novo nome Petrus voltará várias vezes nos

Evangelhos e terminará por substituir o nome originário, Simão.

O facto adquire relevo particular se se considera que, no Antigo Testamento, a mudança do

nome anunciava em geral a designação de uma missão (cf. Gn 17, 5; 32, 28ss, etc.). De facto, a

vontade de Cristo de atribuir a Pedro um papel especial no âmbito do Colégio apostólico

resulta de numerosos indícios: em Cafarnaum o Mestre é hospedado em casa de Pedro (Mc 1,

29); quando a multidão se comprime nas margens do lago de Genesaré, entre as duas barcas

ali ancoradas, Jesus escolhe a de Simão (Lc 5, 3); quando em circunstâncias particulares Jesus

se faz acompanhar só por três discípulos, Pedro é sempre recordado como primeiro do grupo:

assim na ressurreição da filha de Jairo (cf. Mc 9, 2; Mt 17, 1; Lc 9, 28), e por fim durante a

agonia no Horto do Getsémani (cf. Mc 14, 33; Mt 16, 37). E ainda: dirigem-se a Pedro os

cobradores do imposto para o Templo e o Mestre paga para si e somente para ele (cf. Mt 17,

24-27); a quem lava primeiro os pés é a Pedro (cf. Jo 13, 6) e reza unicamente por ele para que

não lhe venha a faltar a fé e possa depois confirmar nela os outros discípulos (cf. Lc 22, 30-31).

De resto, o próprio Pedro tem consciência desta sua posição particular: com frequência é ele

que, em nome também dos outros, toma a palavra para pedir a explicação de uma parábola

difícil (Mt 15, 15), ou o sentido exacto de um preceito (Mt 18, 21) ou a promessa formal de

uma recompensa (Mt 19, 27). Em particular, é ele quem resolve o embaraço de determinadas

situações intervindo em nome de todos. E também quando Jesus, desanimado pela

incompreensão da multidão depois do discurso sobre o "pão de vida", pergunta: "Também vós

quereis ir embora?", a resposta de Pedro é peremptória: "Senhor, a quem iremos? Tu tens

palavras de vida eterna" (cf. Jo 6, 67-69). Igualmente decidida é a profissão de fé que, ainda

em nome dos Doze, ele faz perto de Cesareia de Filipe. A Jesus que pergunta: "Vós quem dizeis

que Eu sou?", Pedro responde: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16, 15-16). Em

resposta Jesus pronuncia então a declaração solene que define, de uma vez para sempre, o

papel de Pedro na Igreja: "Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a

minha Igreja... Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no

Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu" (Mt 16. 18-19). As três metáforas

às quais Jesus recorre são em si muito claras: Pedro será o fundamento rochoso sobre o qual

apoiará o edifício da Igreja; ele terá as chaves do Reino dos céus para abrir ou fechar a quem

melhor julgar; por fim, ele poderá ligar ou desligar no sentido que poderá estabelecer ou

proibir o que considerar necessário para a vida da Igreja, que é e permanece Cristo. É sempre

Igreja de Cristo e não de Pedro. Deste modo, é descrito com imagens de plástica evidência o

que a reflexão sucessiva qualificará com a palavra de "primazia de jurisdição".

Esta posição de preeminência que Jesus decidiu conferir a Pedro verifica-se também depois da

ressurreição: Jesus encarrega as mulheres de ir anunciar a Pedro, distintamente dos outros

Apóstolos (cf. Mc 16, 7); Madalena vai ter com ele e com João para os informar que a pedra

tinha sido afastada da entrada do sepulcro (cf. Jo 20, 2) e João dá-lhe a precedência quando

chegam diante do túmulo vazio (cf. Jo 20, 4-6); será depois Pedro, entre os Apóstolos, a

primeira testemunha de uma aparição do Ressuscitado (cf. Lc 24, 34; 1 Cor 15, 5). Este seu

papel, realçado com decisão (cf. Jo 20, 3-10), marca a continuidade entre a preeminência

obtida no grupo apostólico e a preeminência que continuará a ter na comunidade que nasceu

depois dos acontecimentos pascais, como afirma o Livro dos Actos (cf. 1, 15-26; 2, 14-40; 3, 12-

26; 4, 8-12; 5, 1-11.29; 8, 14-17; 10; etc.). O seu comportamento é considerado tão decisivo,

que está no centro de observações e também de críticas (cf. Act 11, 1-18; Gl 2, 11-14). Ao

chamado Concílio de Jerusalém Pedro desempenha uma função directiva (cf. Act 15 3; Gl 2, 1-

10), e precisamente por este seu ser como testemunha da fé autêntica o próprio Paulo

reconhecerá nele uma certa qualidade de "primeiro" (cf. 1 Cor 15, 5; Gl 1, 18; 2, 7s.; etc.).

Depois, o facto de que vários textos-chave relativos a Pedro possam ser relacionados com o

contexto da Última Ceia, na qual Cristo confere a Pedro o ministério de confirmar os irmãos

(cf. Lc 22, 31s.), mostra como a Igreja que nasce do memorial pascal celebrado na Eucaristia

tenha no ministério confiado a Pedro um dos seus elementos constitutivos.

Esta contextualização da Primazia de Pedro na Última Ceia, no momento institutivo da

Eucaristia, Páscoa do Senhor, indica também o sentido último desta Primazia: Pedro deve ser,

para todos os tempos, o guardião da comunhão com Cristo; deve guiar à comunhão com

Cristo; deve preocupar-se por que a rede não se rompa e assim possa perdurar a comunhão

universal. Só juntos podemos estar com Cristo, que é o Senhor de todos. A responsabilidade de

Pedro é garantir assim a comunhão com Cristo com a caridade de Cristo, conduzindo à

realização desta caridade na vida de todos os dias. Rezemos para que a Primazia de Pedro,

confiada a pobres pessoas humanas, possa ser sempre exercida neste sentido originário

querido pelo Senhor e, assim, possa ser cada vez mais reconhecida no seu verdadeiro

significado pelos irmãos que ainda não estão em plena comunhão connosco.

André, o Protóklitos

14 de Junho de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Nas últimas duas catequeses falámos da figura de São Pedro. Agora queremos, na medida em

que as fontes o permitem, conhecer mais de perto também os outros onze Apóstolos.

Portanto, falamos hoje do irmão de Simão Pedro, Santo André, também ele um dos Doze. A

primeira característica que em André chama a atenção é o nome: não é hebraico, como

teríamos pensado, mas grego, sinal de que não deve ser minimizada uma certa abertura

cultural da sua família. Estamos na Galileia, onde a língua e a cultura gregas estão bastante

presentes. Nas listas dos Doze, André ocupa o segundo lugar, como em Mateus (10, 1-4) e em

Lucas (6, 13-16), ou o quarto lugar como em Marcos (3, 13-18) e nos Actos (1, 13-14). Contudo,

ele gozava certamente de grande prestígio nas primeiras comunidades cristãs.

O laço de sangue entre Pedro e André, assim como a comum chamada que Jesus lhes faz,

sobressaem explicitamente nos Evangelhos. Neles lê-se: "Caminhando ao longo do mar da

Galileia, Jesus viu os dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as

redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes: "Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de

homens"" (Mt 4, 18-19; Mc 1, 16-17). Do Quarto Evangelho tiramos outro pormenor: num

primeiro momento, André era discípulo de João Baptista; e isto mostra-nos que era um

homem que procurava, que partilhava a esperança de Israel, que queria conhecer mais de

perto a palavra do Senhor, a realidade do Senhor presente. Era verdadeiramente um homem

de fé e de esperança; e certa vez, de João Baptista ouviu proclamar Jesus como "o cordeiro de

Deus" (Jo 1, 36); então ele voltou-se e, juntamente com outro discípulo que não é nomeado,

seguiu Jesus, Aquele que era chamado por João o "Cordeiro de Deus". O evangelista narra: eles

"viram onde morava e ficaram com Ele nesse dia" (Jo 1, 37-39). Portanto, André viveu

momentos preciosos de familiaridade com Jesus.

A narração continua com uma anotação significativa: "André, o irmão de Simão Pedro, era um

dos dois que ouviram João e seguiram Jesus. Encontrou primeiro o seu irmão Simão, e disse-

lhe: "Encontramos o Messias" que quer dizer Cristo. E levou-o até Jesus" (Jo 1, 40-43),

demonstrando imediatamente um espírito apostólico não comum. Portanto, André foi o

primeiro dos Apóstolos a ser chamado para seguir Jesus. Precisamente sobre esta base a

liturgia da Igreja Bizantina o honra com o apelativo de Protóklitos, que significa exactamente

"primeiro chamado". E não há dúvida de que devido ao relacionamento fraterno entre Pedro e

André a Igreja de Roma e a Igreja de Constantinopla se sentem irmãs entre si de modo

especial. Para realçar este relacionamento, o meu Predecessor, o Papa Paulo VI, em 1964,

restituiu as insignes relíquias de Santo André, até então conservadas na Basílica Vaticana, ao

Bispo metropolita Ortodoxo da cidade de Patrasso na Grécia, onde segundo a tradição o

Apóstolo foi crucificado.

As tradições evangélicas recordam particularmente o nome de André noutras três ocasiões,

que nos fazem conhecer um pouco mais este homem. A primeira é a da multiplicação dos pães

na Galileia. Naquele momento foi André quem assinalou a Jesus a presença de um jovem que

tinha cinco pães de cevada e dois peixes: era muito pouco observou ele para todas as pessoas

reunidas naquele lugar (cf. Jo 6, 8-9). Merece ser realçado, neste caso, o realismo de André:

ele viu o jovem portanto já se tinha perguntado: "mas o que é isto para tantas pessoas?" (ibid.)

mas apercebeu-se da insuficiência dos seus poucos recursos. Contudo, Jesus soube fazê-los

bastar para a multidão de pessoas que vieram ouvi-lo. A segunda ocasião foi em Jerusalém.

Saindo da cidade, um discípulo fez notar a Jesus o espectáculo dos muros sólidos sobre os

quais o Templo se apoiava. A resposta do Mestre foi surpreendente: disse que não teria ficado

em pé nem sequer uma pedra daqueles muros. Então André, juntamente com Pedro, Tiago e

João, interrogou-o: "Diz-nos quando tudo isto acontecerá e qual o sinal de que tudo está para

acabar" (Mc 13, 1-4).

Para responder a esta pergunta Jesus pronunciou um importante discurso sobre a destruição

de Jerusalém e sobre o fim do mundo, convidando os seus discípulos a ler com atenção os

sinais do tempo e a permanecer sempre vigilantes. Podemos deduzir deste episódio que não

devemos ter receio de fazer perguntas a Jesus, mas ao mesmo tempo devemos estar prontos

para receber os ensinamentos, até surpreendentes e difíceis, que Ele nos oferece.

Por fim, nos Evangelhos está registrada uma terceira iniciativa de André. O Cenário ainda é

Jerusalém, pouco antes da Paixão. Para a festa da Páscoa narra João tinham vindo à cidade

santa alguns Gregos, provavelmente prosélitos ou tementes a Deus, que vinham para adorar o

Deus de Israel na festa da Páscoa. André e Filipe, os dois apóstolos com nomes gregos, servem

como intérpretes e mediadores deste pequeno grupo de Gregos junto de Jesus. A resposta do

Senhor à sua pergunta parece como muitas vezes no Evangelho de João enigmática, mas

precisamente por isso revela-se rica de significado. Jesus diz aos dois discípulos e, através

deles, ao mundo grego: "Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem. Em verdade,

em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se

morrer, dá muito fruto" (12, 23-24).

O que significam estas palavras neste contexto? Jesus quer dizer: sim, o encontro entre mim e

os Gregos terá lugar, mas não como simples e breve diálogo entre mim e algumas pessoas,

estimuladas sobretudo pela curiosidade. Com a minha morte, comparável à queda na terra de

um grão de trigo, chagará a hora da minha glorificação. A minha morte na cruz originará

grande fecundidade: o "grão de trigo morto" símbolo de mim crucificado tornar-se-á na

ressurreição pão de vida para o mundo; será luz para os povos e para as culturas. Sim, o

encontro com a alma grega, com o mundo grego, realizar-se-á naquela profundidade à qual faz

alusão a vicissitude do grão de trigo que atrai para si as forças da terra e do céu e se torna pão.

Por outras palavras, Jesus profetiza a Igreja dos gregos, a Igreja dos pagãos, a Igreja do mundo

como fruto da sua Páscoa.

Tradições muito antigas vêem em André, o qual transmitiu aos gregos esta palavra, não só o

intérprete de alguns Gregos no encontro com Jesus agora recordado, mas consideram-no

como apóstolo dos Gregos nos anos que sucederam ao Pentecostes; fazem-nos saber que no

restante da sua vida ele foi anunciador e intérprete de Jesus para o mundo grego. Pedro, seu

irmão, de Jerusalém, passando por Antioquia, chegou a Roma para aí exercer a sua missão

universal; André, ao contrário, foi o apóstolo do mundo grego: assim, eles são vistos, na vida e

na morte, como verdadeiros irmãos uma irmandade que se exprime simbolicamente no

relacionamento especial das Sedes de Roma e de Constantinopla, Igrejas verdadeiramente

irmãs.

Uma tradição sucessiva, como foi mencionado, narra a morte de André em Patrasso, onde

também ele sofreu o suplício da crucifixão. Mas, naquele momento supremo, de modo

análogo ao do irmão Pedro, ele pediu para ser posto numa cruz diferente da de Jesus. No seu

caso tratou-se de uma cruz decussada, isto é, cruzada transversalmente inclinada, que por isso

foi chamada "cruz de Santo André". Eis o que o Apóstolo dissera naquela ocasião, segundo

uma antiga narração (início do século VI) intitulada Paixão de André: "Salve, ó Cruz, inaugurada

por meio do corpo de Cristo e que se tornou adorno dos seus membros, como se fossem

pérolas preciosas. Antes que o Senhor fosse elevado sobre ti, tu incutias um temor terreno.

Agora, ao contrário, dotada de um amor celeste, és recebida como um dom. Os crentes

sabem, a teu respeito, quanta alegria possuis, quantos dons tens preparados. Portanto, certo e

cheio de alegria venho a ti, para que também tu me recebas exultante como discípulo daquele

que em ti foi suspenso... Ó Cruz bem-aventurada, que recebestes a majestade e a beleza dos

membros do Senhor!... Toma-me e leva-me para longe dos homens e entrega-me ao meu

Mestre, para que por teu intermédio me receba quem por ti me redimiu. Salve, ó Cruz; sim,

salve verdadeiramente!".

Como se vê, há aqui uma profundíssima espiritualidade cristã, que vê na Cruz não tanto um

instrumento de tortura como, ao contrário, o meio incomparável de uma plena assimilação ao

Redentor, ao grão de trigo que caiu na terra. Nós devemos aprender disto uma lição muito

importante: as nossas cruzes adquirem valor se forem consideradas e aceites como parte da

cruz de Cristo, se forem alcançadas pelo reflexo da sua luz. Só daquela Cruz também os nossos

sofrimentos são nobilitados e adquirem o seu verdadeiro sentido.

Portanto, o apóstolo André ensina-nos a seguir Jesus com prontidão (cf. Mt 4, 20; Mc 1, 18), a

falar com entusiasmo d'Ele a quantos encontramos, e sobretudo a cultivar com Ele um

relacionamento de verdadeira familiaridade, bem conscientes de que só n'Ele podemos

encontrar o sentido último da nossa vida e da nossa morte.

Tiago, o Maior

21 de Junho de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Prosseguimos a série de retratos dos Apóstolos escolhidos directamente por Jesus durante a

sua vida terrena. Falámos de São Pedro e de seu irmão, André. Encontramos hoje a figura de

Tiago. Os elencos bíblicos dos Doze mencionam duas pessoas com este nome: Tiago, filho de

Zebedeu, e Tiago, filho de Alfeu (cf. Mc 3, 17.18; Mt 10, 2-3), que são comummente

distinguidos com os nomes de Tiago, o Maior e Tiago, o Menor. Sem dúvida, estas designações

não querem medir a sua santidade, mas apenas distinguir o realce que eles recebem nos

escritos do Novo Testamento e, em particular, no quadro da vida terrena de Jesus. Hoje

dedicamos a nossa atenção à primeira destas duas personagens homónimas.

O nome Tiago é a tradução de Iákobos, forma helenizada do nome do célebre patriarca Tiago.

O apóstolo assim chamado é irmão de João, e nos elencos acima mencionados ocupa o

segundo lugar logo depois de Pedro, como em Marcos (3, 17), ou o terceiro lugar depois de

Pedro e André no Evangelho de Mateus (10, 2) e de Lucas (6, 14), enquanto que nos Actos vem

depois de Pedro e de João (1, 13). Este Tiago pertence, juntamente com Pedro e João, ao

grupo dos três discípulos privilegiados que foram admitidos por Jesus em momentos

importantes da sua vida.

Dado que faz muito calor, gostaria de abreviar e mencionar aqui só duas destas ocasiões. Ele

pôde participar, juntamente com Pedro e Tiago, no momento da agonia de Jesus no horto do

Getsémani e no acontecimento da Transfiguração de Jesus. Trata-se portanto de situações

muito diversas uma da outra: num caso, Tiago com os outros dois Apóstolos experimenta a

glória do Senhor, vê-o no diálogo com Moisés e Elias, vê transparecer o esplendor divino de

Jesus; no outro encontra-se diante do sofrimento e da humilhação, vê com os próprios olhos

como o Filho de Deus se humilha tornando-se obediente até à morte. Certamente a segunda

experiência constitui para ele a ocasião de uma maturação na fé, para corrigir a interpretação

unilateral, triunfalista da primeira: ele teve que entrever que o Messias, esperado pelo povo

judaico como um triunfador, na realidade não era só circundado de honra e de glória, mas

também de sofrimentos e fraqueza. A glória de Cristo realiza-se precisamente na Cruz, na

participação dos nossos sofrimentos.

Esta maturação da fé foi realizada pelo Espírito Santo no Pentecostes, de forma que Tiago,

quando chegou o momento do testemunho supremo, não se retirou. No início dos anos 40 do

século I o rei Herodes Agripa, neto de Herodes o Grande, como nos informa Lucas, "maltratou

alguns membros da Igreja. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João" (Act 12, 1-2).

A notícia tão limitada, privada de qualquer pormenor narrativo, revela, por um lado, quanto

era normal para os cristãos testemunhar o Senhor com a própria vida e, por outro, como Tiago

ocupava uma posição de relevo na Igreja de Jerusalém, também devido ao papel

desempenhado durante a existência terrena de Jesus. Uma tradição sucessiva, que remonta

pelo menos a Isidoro de Sevilha, narra de uma sua permanência na Espanha para evangelizar

aquela importante região do Império Romano.

Segundo outra tradição, ao contrário, o seu corpo teria sido transportado para a Espanha, para

a cidade de Santiago de Compostela. Como todos sabemos, aquele lugar tornou-se objecto de

grande veneração e ainda hoje é meta de numerosas peregrinações, não só da Europa mas de

todo o mundo. É assim que se explica a representação iconográfica de São Tiago que tem na

mão o cajado do peregrino e o rolo do Evangelho, típicos do apóstolo itinerante e dedicado ao

anúncio da "boa nova", características da peregrinação da vida cristã.

Portanto, de São Tiago podemos aprender muitas coisas: a abertura para aceitar a chamada do

Senhor também quando nos pede que deixemos a "barca" das nossas seguranças humanas, o

entusiasmo em segui-lo pelos caminhos que Ele nos indica além de qualquer presunção

ilusória, a disponibilidade a testemunhá-lo com coragem, se for necessário, até ao sacrifício

supremo da vida. Assim, Tiago o Maior, apresenta-se diante de nós como exemplo eloquente

de adesão generosa a Cristo. Ele, que inicialmente tinha pedido, através de sua mãe, para se

sentar com o irmão ao lado do Mestre no seu Reino, foi precisamente o primeiro a beber o

cálice da paixão, a partilhar com os Apóstolos o martírio.

E no final, resumindo tudo, podemos dizer que o caminho não só exterior mas sobretudo

interior, do monte da Transfiguração ao monte da agonia, simboliza toda a peregrinação da

vida cristã, entre as perseguições do mundo e os confortos de Deus, como diz o Concílio

Vaticano II. Seguindo Jesus como São Tiago, sabemos, também nas dificuldades, que seguimos

o caminho justo.

Tiago, o Menor

28 de Junho de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Ao lado da figura de Tiago "o Maior", filho de Zebedeu, do qual falámos na quarta-feira

passada, nos Evangelhos aparece outro Tiago, que é chamado "o Menor". Também ele faz

parte das listas dos doze Apóstolos escolhidos pessoalmente por Jesus, e é sempre

especificado como "filho de Alfeu" (cf. Mt 10, 3; Mc 3, 18; Lc 5; Act 1, 13). Com frequência ele

foi identificado com outro Tiago, chamado "o Menor" (cf. Mc 15, 40), filho de uma Maria (cf.

ibid.) que poderia ser a "Maria de Cleofas" presente, segundo o Quarto Evangelho, aos pés da

Cruz juntamente com a Mãe de Jesus (cf. Jo 19, 25). Também ele era originário de Nazaré e

provavelmente parente de Jesus (cf. Mt 13, 55; Mc 6, 3), do qual à maneira semítica é

considerado "irmão" (cf. Mc 6, 3; Gl 1, 19).

Deste último Tiago, o livro dos Actos ressalta o papel preeminente desempenhado na Igreja de

Jerusalém. No Concílio apostólico ali celebrado depois da morte de Tiago, o Maior, afirmou

juntamente com os outros que os pagãos podiam ser acolhidos na Igreja sem antes terem que

se submeter à circuncisão (cf. Act 15, 13). São Paulo, que lhe atribui uma aparição específica

do Ressuscitado (cf. 1 Cor 15, 7), na ocasião da sua ida a Jerusalém nomeia-o inclusivamente

antes de Cefas-Pedro, qualificando-o "coluna" daquela Igreja como ele (cf. Gl 2, 9). Em seguida,

os judeus-cristãos consideram-no o seu principal ponto de referência. A ele é também

atribuída a Carta que tem o nome de Tiago e que está incluída no cânone neotestamentário.

Ele não se apresenta nela como "irmão do Senhor", mas como "servo de Deus e do Senhor

Jesus Cristo" (Tg 1, 1).

Entre os estudiosos debate-se a questão da identificação destas duas personagens com o

mesmo nome, Tiago filho de Alfeu e Tiago "irmão do Senhor". As tradições evangélicas não nos

conservaram narração alguma sobre um nem sobre outro em referência ao período da vida

terrena de Jesus. Os Actos dos Apóstolos, ao contrário, mostram-nos que um "Tiago"

desempenhou um papel importante, como já mencionámos, depois da ressurreição de Jesus,

na Igreja primitiva (cf. Act 12, 17; 15, 13-21; 21, 18).

O acto mais relevante por ele realizado foi a intervenção na questão do relacionamento difícil

entre os cristãos de origem judaica e os de origem pagã: nisto ele contribuiu juntamente com

Pedro para superar, ou melhor, para integrar a dimensão originária judaica do cristianismo

com a exigência de não impor aos pagãos convertidos a obrigação de se submeterem a todas

as normas da lei de Moisés. O livro dos Actos preservou-nos a solução de compromisso,

proposta precisamente por Tiago e aceite por todos os Apóstolos presentes, segundo o qual

aos pagãos que acreditassem em Jesus Cristo se devia pedir apenas que se abstivessem do uso

idolátrico de comer carne dos animais oferecidos em sacrifício aos deuses, e da "impudicícia",

palavra que provavelmente se referia às uniões matrimoniais não consentidas. Na prática,

tratava-se de aderir só a poucas proibições, consideradas bastante importantes, da legislação

mosaica.

Deste modo, obtiveram-se dois resultados significativos e complementares, ambos ainda hoje

válidos: por um lado, reconheceu-se a relação inseparável que une o cristianismo à religião

hebraica como a sua marca perenemente viva e válida; por outro, foi concedido que os

cristãos de origem pagã conservassem a própria identidade sociológica, que teriam perdido se

tivessem sido obrigados a observar os chamados "preceitos cerimoniais" mosaicos: eles já não

deviam ser considerados obrigatórios para os pagãos convertidos. Em suma, era iniciada uma

prática de estima e respeito recíprocos que, não obstante lamentáveis incompreensões

posteriores, tinha por sua natureza a salvaguarda de tudo o que caracterizava cada uma das

duas partes.

A informação mais antiga sobre a morte deste Tiago é-nos oferecida pelo historiador judeu

Flávio José. Nas suas Antiguidades Judaicas (20, 201s), redigidas em Roma por volta do século

I, ele narra que o fim de Tiago foi decidido por uma iniciativa ilegítima do Sumo Sacerdote

Anano, filho de Annas afirmado nos Evangelhos, o qual aproveitou do intervalo entre a

deposição de um Procurador romano (Festo) e a chegada do sucessor (Albino) para decretar a

sua lapidação no ano 62.

Em nome deste Tiago, além do apócrifo Protoevangelho de Tiago, que exalta a santidade e a

virgindade de Maria, Mãe de Jesus, está particularmente relacionada com a Carta que tem o

seu nome. No cânone do Novo Testamento ela ocupa o primeiro lugar entre as chamadas

"Cartas católicas", isto é, destinadas não a uma só Igreja particular como Roma, Éfeso, etc. mas

a muitas Igrejas. Trata-se de um escrito bastante importante, que insiste muito sobre a

necessidade de não reduzir a própria fé a uma mera declaração verbal ou abstracta, mas de

expressá-la concretamente em obras de bem. Entre outras coisas, ele convida-nos à constância

nas provas alegremente aceites e à oração confiante para obter de Deus o dom da sabedoria,

graças à qual chegamos à compreensão de que os verdadeiros valores da vida não consistem

nas riquezas transitórias, mas antes em saber compartilhar as próprias substâncias com os

pobres e com os necessitados (cf. Tg 1, 27).

Assim a carta de São Tiago mostra-nos um cristianismo muito concreto e prático. A fé deve

realizar-se na vida, sobretudo no amor ao próximo e particularmente no compromisso pelos

pobres. É com esta base que deve ser lida também a famosa frase: "Assim como o corpo sem

alma está morto, assim também a fé sem obras está morta" (Tg 2, 26). Por vezes esta

declaração de Tiago foi contraposta às afirmações de Paulo, segundo o qual nós somos

tornados por Deus justos não em virtude das nossas obras, mas graças à nossa fé (cf. Gl 2, 16;

Rm 3, 28). Contudo, as duas frases, aparentemente contraditórias com as suas perspectivas

diversas, na realidade, se forem bem interpretadas, completam-se. São Paulo opõe-se ao

orgulho do homem que pensa que não precisa do amor de Deus que nos antecipa, opõe-se ao

orgulho da autojustificação sem a graça simplesmente doada e não merecida. Ao contrário,

São Tiago fala das obras como fruto normal da fé: "a árvore boa dá bons frutos", diz o Senhor

(Mt 7, 17). E São Tiago repete e transmite-nos este conceito.

Por fim, a carta de Tiago exorta-nos a abandonarmo-nos nas mãos de Deus em tudo o que

fazemos, pronunciando sempre as palavras: "Se o Senhor quiser" (Tg 4, 15). Assim, ele ensina-

nos a não presumir que planificamos a nossa vida de modo autónomo e interessado, mas a dar

espaço à vontade imperscrutável de Deus, que conhece o verdadeiro bem para nós. Desta

forma São Tiago permanece um mestre de vida sempre actual para cada um de nós.

João, filho de Zebedeu

05 de Julho de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Dedicamos o encontro de hoje à recordação de outro membro muito importante do colégio

apostólico: João, filho de Zebedeu e irmão de Tiago. O seu nome, tipicamente judaico, significa

"o Senhor fez a graça". Estava a consertar as redes na margem do lago de Tiberíades, quando

Jesus o chamou juntamente com o irmão (cf. Mt 4, 21; Mc 1, 19). João pertence também ao

grupo restrito, que Jesus chama em determinadas ocasiões.

Está com Pedro e com Tiago quando Jesus, em Cafarnaum, entra em casa de Pedro para curar

a sua sogra (cf. Mc 1, 29); com os outros dois segue o Mestre na casa de Jairo, chefe da

sinagoga, cuja filha será chamada à vida (cf. Mc 5, 37); segue-o quando ele sobe ao monte para

ser transfigurado (cf. Mc 9, 2); está ao lado dele no Monte das Oliveiras quando, face à

imponência do Templo de Jerusalém, pronuncia o sermão sobre o fim da cidade e do mundo

(cf. Mc 13, 3); e, finalmente, está ao seu lado quando, no Horto do Getsémani, se retira para

rezar ao Pai antes da Paixão (cf. Mc 14, 33). Pouco antes da Páscoa, quando Jesus escolhe dois

discípulos para os enviar a preparar a sala para a Ceia, confia a ele e a Pedro esta tarefa (cf. Lc

22, 8).

Esta sua posição de relevo no grupo dos Doze torna de certa forma compreensível a iniciativa

tomada um dia pela mãe: ela aproximou-se de Jesus para lhe pedir que os dois filhos,

precisamente João e Tiago, pudessem sentar-se um à sua direita e outro à sua esquerda no

Reino (cf. Mt 20, 20-21). Como sabemos, Jesus respondeu fazendo por sua vez uma pergunta:

pediu que eles estivessem dispostos a beber do cálice que ele mesmo estava para beber (cf.

Mt 20, 22).

A intenção que estava por detrás daquelas palavras era a de despertar os dois discípulos,

introduzi-los no conhecimento do mistério da sua pessoa e de os fazer reflectir sobre a futura

chamada a ser suas testemunhas até à prova suprema do sangue.

De facto, pouco depois Jesus esclareceu que não veio para ser servido mas para servir e dar a

própria vida em resgate pela multidão (cf. Mt 20, 28). Nos dias seguintes à ressurreição,

encontramos "os filhos de Zebedeu" empenhados com Pedro e outros discípulos numa noite

infrutuosa, à qual se segue, pela intervenção do Ressuscitado, a pesca milagrosa: será "o

discípulo que Jesus amava" quem reconhece primeiro "o Senhor" e quem o indica a Pedro (cf.

Jo 21, 1-13).

Na Igreja de Jerusalém, João ocupou um lugar de realce na orientação do primeiro

agrupamento de cristãos. De facto, Paulo estava incluído entre os que Ele chama as "colunas"

daquela comunidade (cf. Gl 2, 9). Na realidade, nos Actos, Lucas apresenta-o juntamente com

Pedro quando vão rezar no Templo (cf. Act 3, 1-4.11) ou estão diante do Sinédrio para

testemunhar a própria fé em Jesus Cristo (cf. Act 4, 13.19). Juntamente com Pedro é enviado

pela Igreja de Jerusalém para confirmar aqueles que na Samaria aceitaram o Evangelho,

pregando por eles a fim de que recebam o Espírito Santo (cf. Act 8, 14-15).

Em particular, deve recordar-se o que afirma, juntamente com Pedro, diante do Sinédrio que

os está a processar: "Quanto a nós, não podemos deixar de afirmar o que vimos e ouvimos"

(Act 4, 20). Precisamente esta franqueza ao confessar a própria fé permanece um exemplo e

uma admoestação para todos nós a estarmos sempre prontos para declarar com determinação

a nossa inabalável adesão a Cristo, antepondo a fé a qualquer cálculo ou interesse humano.

Segundo a tradição, João é "o discípulo predilecto", que no Quarto Evangelho apoia a cabeça

no peito do Mestre durante a Última Ceia (cf. Jo 13, 21), encontra-se aos pés da Cruz

juntamente com a Mãe de Jesus (cf. Jo 19, 25) e, por fim, é testemunha quer do túmulo vazio

quer da própria presença do Ressuscitado (cf. Jo 20, 2; 21, 7).

Sabemos que esta identificação hoje é debatida pelos estudiosos, alguns dos quais vêem nele

simplesmente o protótipo do discípulo de Jesus. Deixando aos exegetas a tarefa de resolver a

questão, contentamo-nos com receber uma lição importante para a nossa vida: o Senhor

deseja fazer de cada um de nós um discípulo que vive uma amizade pessoal com Ele. Para

realizar isto não é suficiente segui-lo e ouvi-lo exteriormente; é preciso também viver com e

como Ele.

Isto é possível apenas no contexto de uma relação de grande familiaridade, repleto do calor de

uma total confiança; por isso um dia Jesus disse: "Ninguém tem mais amor do que quem dá a

vida pelos seus amigos... Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do

que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que

ouvi de meu Pai" (Jo 15, 13.15).

Nos apócrifos Actos de João o Apóstolo é apresentado não como fundador de Igrejas nem

sequer como guia de comunidades já constituídas, mas em contínua itinerância como

comunicador da fé no encontro com "almas capazes de ter esperança e de ser salvas" (18, 10;

10, 8). Tudo é movido pela intenção paradoxal de mostrar o invisível. De facto, ele é chamado

pela Igreja oriental simplesmente "o Teólogo", isto é, aquele que é capaz de falar das coisas

divinas em termos acessíveis, revelandoumarcano acesso a Deus mediante a adesão a Jesus.

O culto de João apóstolo afirmou-se a partir da cidade de Éfeso, onde, segundo uma antiga

tradição, trabalhou por muito tempo, falecendo ali com uma idade extraordinariamente

avançada, sob o Imperador Trajano. Em Éfeso o imperador Justiniano, no século VI, mandou

construir em sua honraumagrande basílica, da qual permanecem ainda imponentes ruínas.

Precisamente no Oriente ele gozou e goza ainda de grande veneração. Na iconografiabizantina

é representado com frequência muito idoso segundo a tradição morreu sob o imperador

Trajano e em intensa contemplação, quase na atitude de quem convida ao silêncio.

De facto, sem adequado recolhimento não é possível aproximar-se do mistério supremo de

Deus e da sua revelação. Isto explica porque, há anos, o Patriarca Ecuménico de

Constantinopla, Atenágoras, aquele que o Papa Paulo VI abraçou num memorável encontro,

afirmou: "João está na origem da nossa mais alta espiritualidade. Como ele, os "silenciosos"

conhecem aquele misterioso intercâmbio dos corações, invocando a presença de João e o seu

coração inflama-se" (O. Clément, Diálogos com Atenágoras, Turim 1972, p. 159). O Senhor nos

ajude a pormo-nos na escola de João para aprender a grande lição do amor, de modo que nos

sintamos amados por Cristo "até ao fim" (Jo 13, 1) e empreguemos a nossa vida por Ele.

João, o teólogo

09 de Agosto de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Antes das férias eu tinha começado a fazer pequenos retratos dos doze Apóstolos. Os

Apóstolos eram companheiros de vida de Jesus, amigos de Jesus e este caminho deles com

Jesus não era só um caminho exterior, da Galileia a Jerusalém, mas um caminho interior no

qual aprenderam a fé em Jesus Cristo, não sem dificuldades porque eram homens como nós.

Mas precisamente por isto, porque eram companheiros de vida de Jesus, amigos de Jesus que

num caminho não fácil aprenderam a fé, são também guias para nós, que nos ajudam a

conhecer Jesus Cristo, a amá-lo e a ter fé n'Ele. Eu já tinha falado sobre quatro dos doze

Apóstolos: de Simão Pedro, do seu irmão André, de Tiago, o irmão de São João, e do outro

Tiago, chamado "o Menor", que escreveu uma Carta que encontramos no Novo Testamento. E

eu tinha começado a falar de João, o evangelista, mencionando na última audiência antes das

férias os dados essenciais que traçam a fisionomia deste Apóstolo. Agora gostaria de

concentrar a atenção sobre o conteúdo do seu ensinamento. Por conseguinte, os escritos dos

quais hoje desejamos ocupar-nos são o Evangelho e as Cartas que têm o seu nome.

Se existe um assunto característico que mais sobressai nos escritos de João, é o amor. Não foi

por acaso que quis iniciar a minha primeira Carta encíclica com as palavras deste Apóstolo:

"Deus é amor (Deus caritas est); quem está no amor habita em Deus e Deus habita nele" (1 Jo

4, 16). É muito difícil encontrar textos do género noutras religiões. Portanto, tais expressões

põem-nos diante de um dado verdadeiramente peculiar do cristianismo. Certamente João não

é o único autor das origens cristãs que fala do amor. Sendo este um elemento essencial do

cristianismo, todos os escritores do Novo Testamento falam dele, mesmo se com acentuações

diferentes. Se agora nos detemos a reflectir sobre este tema em João, é porque ele nos traçou

com insistência e de modo incisivo as suas linhas principais. Portanto, confiemo-nos às suas

palavras. Uma coisa é certa: ele não reflecte de modo abstracto, filosófico, ou até teológico,

sobre o que é o amor. Não, ele não é um teórico. De facto, o verdadeiro amor, por sua

natureza, nunca é meramente especulativo, mas faz referência directa, concreta e verificável a

pessoas reais. Pois bem, João, como apóstolo e amigo de Jesus mostra-nos quais são os

componentes ou melhor as fases do amor cristão, um movimento caracterizado por três

momentos.

O primeiro refere-se à própria Fonte do amor, que o Apóstolo coloca em Deus, chegando,

como ouvimos, a afirmar que "Deus é amor" (1 Jo 4, 8.16). João é o único autor do Novo

Testamento que nos dá uma espécie de definição de Deus. Ele diz, por exemplo, que "Deus é

Espírito" (Jo 4, 24) ou que "Deus é luz" (1 Jo 1, 5). Aqui proclama com intuição resplandecente

que "Deus é amor". Observe-se bem: não é simplesmente afirmado que "Deus ama", nem

sequer que "o amor é Deus"! Por outras palavras: João não se limita a descrever o agir divino,

mas procede até às suas raízes. Além disso, não pretende atribuir uma qualidade a um amor

genérico e talvez impessoal; não se eleva do amor a Deus, mas dirige-se directamente a Deus

para definir a sua natureza com a dimensão infinita do amor. Com isto João deseja dizer que o

constitutivo essencial de Deus é o amor e, portanto, toda a actividade de Deus nasce do amor

e está orientada para o amor: tudo o que Deus faz é por amor, mesmo se nem sempre

podemos compreender imediatamente que Ele é amor, o verdadeiro amor.

Mas, a este ponto é indispensável dar um passo em frente e esclarecer que Deus demonstrou

concretamente o seu amor entrando na história humana mediante a pessoa de Jesus Cristo,

que encarnou, morreu e ressuscitou por nós. Este é o segundo momento constitutivo do amor

de Deus. Ele não se limitou às declarações verbais, mas, podemos dizer, empenhou-se

verdadeiramente e "pagou" em primeira pessoa. Como escreve precisamente João, "Tanto

amou Deus o mundo (isto é: todos nós) que lhe entregou o seu Filho Unigénito" (Jo 3, 16).

Agora, o amor de Deus pelos homens concretiza-se e manifesta-se no amor do próprio Jesus.

João escreve ainda: Jesus "que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por

eles até ao extremo" (Jo 13, 1). Em virtude deste amor oblativo e total nós somos radicalmente

resgatados do pecado, como escreve ainda São João: "Filhinhos meus... se alguém pecar,

temos junto do Pai um advogado, Jesus Cristo, o Justo, pois Ele é a vítima que expia os nossos

pecados, e não somente os nossos, mas também os de todo o mundo" (1 Jo 2, 1-2; cf. 1 Jo 1,

7). Eis até onde chegou o amor de Jesus por nós: até à efusão do próprio sangue para a nossa

salvação! O cristão, detendo-se em contemplação diante deste "excesso" de amor, não pode

deixar de reflectir sobre qual é a resposta obrigatória. E penso que sempre e de novo cada um

de nós deve interrogar-se sobre isto.

Esta pergunta introduz-nos no terceiro momento da dinâmica do amor: de destinatários

receptivos de um amor que nos precede e nos domina, somos chamados ao compromisso de

uma resposta activa, que para ser adequada só pode ser uma resposta de amor. João fala de

um "mandamento". De facto, ele refere estas palavras de Jesus: "Dou-vos um novo

mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos

amei" (Jo 13, 34). Onde está a novidade à qual Jesus se refere? Ela consiste no facto de que

não se contenta de repetir o que já era exigido no Antigo Testamento e que lemos nos outros

Evangelhos: "Ama o próximo como a ti mesmo" (Lv 19, 18; cf. Mt 22, 37-39; Mc 12, 29-31; Lc

10, 27). No antigo preceito o critério normativo era presumido a partir do homem ("como a ti

mesmo"), enquanto que no preceito mencionado por João, Jesus apresenta como motivo e

norma do nosso amor a sua própria pessoa: "Como Eu vos amei". É assim que o amor se torna

verdadeiramente cristão, levando em si a novidade do cristianismo: quer no sentido de que

ele deve destinar-se a todos sem distinções, quer porque deve sobretudo chegar até às últimas

consequências, tendo unicamente como medida chegar ao extremo. Aquelas palavras de

Jesus, "como Eu vos amei", convidam-nos e ao mesmo tempo preocupam-nos; são uma meta

cristológica que pode parecer inalcançável, mas são, ao mesmo tempo, um estímulo que não

nos permite acomodar-nos no que podemos realizar. Não permite que nos contentemos do

que somos, mas estimula-nos a permanecer a caminho rumo a esta meta.

Aquele texto áureo de espiritualidade que é o pequeno livro do final da Idade Média intitulado

Imitação de Cristo escreve a este propósito: "O nobre amor de Jesus estimula-nos a realizar

coisas grandes e a desejar coisas sempre mais perfeitas. O amor quer estar no alto e não ser

aprisionado por baixeza alguma. O amor quer ser livre e separado de qualquer afecto

mundano... de facto, o amor nasceu de Deus, e só pode repousar em Deus acima de todas as

coisas criadas. Quem ama voa, corre e rejubila, é livre, e nada o retém. Dá tudo a todos e tem

tudo em todas as coisas, porque encontra repouso no Único grande que está acima de todas

as coisas, do qual brota e provém qualquer bem" (livro III, cap. 5). Qual melhor comentário do

que o "mandamento novo", enunciado por João? Pedimos ao Pai que o possamos viver,

mesmo se sempre de modo imperfeito, tão intensamente que contagiemos a todos os que

encontrarmos no nosso caminho.

João, o vidente de Patmos

23 de Agosto de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Na última catequese tínhamos chegado à meditação sobre a figura do Apóstolo João. Primeiro,

tínhamos procurado ver quanto se pode saber da sua vida. Depois, numa segunda catequese,

tínhamos meditado acerca do conteúdo central do seu Evangelho, das suas Cartas: a caridade,

o amor. E hoje estamos ainda empenhados com a figura de João, desta vez para meditar sobre

o Vidente do Apocalipse. E fazemos imediatamente uma observação: enquanto nem o Quarto

Evangelho nem as Cartas atribuídas ao Apóstolo trazem o seu nome, o Apocalipse faz

referência ao nome de João por quatro vezes (cf. 1, 1.4.9; 22, 8). É evidente que o Autor, por

um lado, não tinha motivo algum para não mencionar o próprio nome e, por outro, sabia que

os seus primeiros leitores o podiam identificar com clareza. Sabemos também que, já no

século III, os estudiosos discutiam sobre a verdadeira identidade anagráfica do João do

Apocalipse. Contudo, poderíamos também chamá-lo "o Vidente de Patmos", porque a sua

figura está ligada com o nome desta ilha do Mar Egeu, onde, segundo o seu próprio

testemunho autobiográfico, ele se encontrava como deportado "por causa da palavra de Deus

e do testemunho d Jesus" (Ap 1, 9). Precisamente em Patmos, "no dia do Senhor, o espírito

arrebatou-me" (Ap 1, 10), João teve visões grandiosas e ouviu mensagens extraordinárias, que

influenciarão bastante a história da Igreja e toda a cultura cristã. Por exemplo, do título do seu

livro Apocalipse, Revelação foram introduzidas na nossa linguagem as palavras "apocalipse,

apocalíptico", que recordam, embora de modo impróprio, a ideia de uma catástrofe iminente.

O livro deve ser compreendido no quadro da dramática experiência das sete Igrejas da Ásia

(Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia, Laodicéia), que nos finais do século I

tiveram que enfrentar grandes dificuldades perseguições e tensões também internas no seu

testemunho a Cristo. João dirige-se a elas mostrando profunda sensibilidade pastoral em

relação aos cristãos perseguidos, que ele exorta a permanecer firmes na fé e a não se

identificarem com o mundo pagão, tão forte. O seu objecto é constituído em definitiva pela

revelação, a partir da morte e ressurreição de Cristo, do sentido da história humana. De facto,

a primeira e fundamental visão de João refere-se à figura do Cordeiro, que é imolado mas que

está de pé (cf. Ap 5, 6), colocado no meio do trono onde já está sentado o próprio Deus. Com

isto, João quer dizer-nos antes de tudo duas coisas: a primeira é que Jesus, mesmo tendo sido

morto com um acto de violência, em vez de cair no chão paradoxalmente está bem firme

sobre os seus pés, porque com a ressurreição venceu definitivamente a morte; a outra é que o

próprio Jesus, precisamente porque morto e ressuscitado, já é plenamente partícipe do poder

real e salvífico do Pai. Esta é a visão fundamental. Jesus, o Filho de Deus, nesta terra é um

Cordeiro indefeso, ferido, morto. E contudo está erguido, de pé, está diante do trono de Deus

e é partícipe do poder divino. Ele tem nas suas mãos a história do mundo. E assim o Vidente

quer dizer-nos: tende confiança em Jesus, não tenhais medo dos poderes contrastantes, da

perseguição! O Cordeiro ferido e morto vence! Segui o Cordeiro Jesus, confiai-vos a Jesus,

caminhai pelo seu caminho! Mesmo se neste mundo é só um Cordeiro que parece frágil, é Ele

o vencedor!

Uma das principais visões do Apocalipse tem por objecto este Cordeiro no acto de abrir um

livro, primeiro fechado com sete selos que ninguém tinha sido capaz de abrir. João é

inclusivamente apresentado no gesto de abrir o livro e de o ler (cf. Ap 5, 4). A história

permanece indecifrável, incompreensível. Ninguém a pode ler. Talvez este pranto de João

diante do mistério da história tão obscuro expresse a perturbação das Igrejas asiáticas pelo

silêncio de Deus diante das perseguições a que estavam expostas naquele momento. É uma

perturbação na qual se pode reflectir bem o nosso horror face às graves dificuldades,

incompreensões e hostilidades que também hoje a Igreja sofre em várias partes do mundo.

São sofrimentos que a Igreja sem dúvida não merece, assim como o próprio Jesus não

mereceu o seu suplício. Contudo eles revelam quer a maldade do homem, quando se

abandona às sugestões do mal, quer a orientação superior dos acontecimentos por parte de

Deus. Pois bem, só o Cordeiro imolado é capaz de abrir o livro selado e de revelar o seu

conteúdo, de dar sentido a esta história aparentemente com tanta frequência absurda. Só Ele

pode tirar indicações e ensinamentos para a vida dos cristãos, aos quais a sua vitória sobre a

morte traz o anúncio e a garantia da vitória que também eles sem dúvida obterão. Toda a

linguagem intensamente imaginária da qual João se serve oferece este conforto.

No centro das visões que o Apocalipse expõe estão também aquelas muito significativas da

Mulher que dá à luz um Filho varão, e a complementar do Dragão precipitado do céu, mas

ainda é muito poderoso. Esta Mulher representa Maria, a Mãe do Redentor, mas representa

ao mesmo tempo toda a Igreja, o Povo de Deus de todos os tempos, a Igreja que em todos os

tempos, com grande sofrimento, dá à luz Cristo sempre de novo. E está sempre ameaçada pelo

poder do Dragão. Parece indefesa, frágil. Mas enquanto está ameaçada, perseguida pelo

Dragão está também protegida pela consolação de Deus. E esta Mulher no final vence. O

Dragão não vence. Eis a grande profecia deste livro, que nos dá confiança! A Mulher que sofre

na história, a Igreja que é perseguida no final torna-se a Esposa maravilhosa, figura da nova

Jerusalém onde não há mais lágrimas nem pranto, imagem do mundo transformado, do novo

mundo cuja luz é o próprio Deus, cuja lâmpada é o Cordeiro.

Por este motivo o Apocalipse de João, mesmo estando cheio de referências contínuas a

sofrimentos, tribulações e pranto a face obscura da história está de igual modo repleto de

frequentes cantos de louvor, que representam quase a face luminosa da história. Assim, por

exemplo, lê-se nele que uma grande multidão, que canta quase gritando: "Aleluia! O Senhor

nosso Deus, o Todo-Poderoso, começou o seu reinado! Alegremo-nos, rejubilemos, dêmos-lhe

glória, porque chegou o momento das núpcias do Cordeiro, a sua esposa já está pronta" (Ap

19, 6-7). Estamos diante do típico paradoxo cristão, segundo o qual o sofrimento nunca

precipita como última palavra, mas é visto como ponto de passagem para a felicidade. Aliás,

ele mesmo já está misteriosamente cheio da alegria que brota da esperança. Precisamente por

isto João, o Vidente de Patmos, pode encerrar o seu livro com uma última aspiração,

palpitante de expectativa trepidante. Ela invoca a vinda do Senhor: "Vinde, Senhor Jesus!" (Ap

22, 20). É uma das orações centrais da cristandade nascente, traduzida também por São Paulo

na forma aramaica: "Marana tha". E esta oração "Vinde, Senhor Jesus!" (1 Cor 16, 22) tem

diversas dimensões. Naturalmente é antes de tudo expectativa da vitória definitiva do Senhor,

da nova Jerusalém, do Senhor que vem e transforma o mundo. Mas, ao mesmo tempo, é

também oração eucarística: "Vinde Jesus, agora!". E Jesus vem, antecipa esta sua chegada

definitiva. Assim com alegria dizemos ao mesmo tempo: "Vinde agora e de modo definitivo!".

Esta oração tem também um terceiro significado: "Já viestes, Senhor! Temos a certeza da

vossa presença entre nós. É uma experiência jubilosa. "Mas vinde de modo definitivo!". E

assim, com São Paulo, com o Vidente de Patmos, com a cristandade nascente, também nós

rezamos: "Vinde, Jesus! Vinde e transformai o mundo! Vinde já hoje e vença a paz!" Amém.

Mateus

30 de Agosto de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Prosseguindo a série de retratos dos doze Apóstolos, que começámos há algumas semanas,

hoje detemo-nos em Mateus. Na verdade, apresentar completamente a sua figura é quase

impossível, porque as notícias que lhe dizem respeito são poucas e fragmentadas. Mas o que

podemos fazer, não é tanto um esboço da sua biografia, mas ao contrário o perfil que o

Evangelho transmite.

Entretanto, ele está sempre presente nos elencos dos Doze escolhidos por Jesus (cf. Mt 10, 3;

Mc 3, 18; Lc 6, 15; Act 1, 13). O seu nome hebraico significa "dom de Deus". O primeiro

Evangelho canónico, que tem o seu nome, apresenta-no-lo no elenco dos Doze com uma

qualificação bem clara: "o publicano" (Mt 10, 3). Desta forma ele é identificado com o homem

sentado no banco dos impostos, que Jesus chama ao seu seguimento: "Partindo dali, Jesus viu

um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: "Segue-me!". Ele

levantou-se e seguiu-o". (Mt 9, 9). Também Marcos (cf. 2, 13-17) e Lucas (cf. 5, 27-30) narram

a chamada do homem sentado no posto de cobrança, mas chamam-no "Levi". Para imaginar o

cenário descrito em Mt 9, 9 é suficiente recordar a magnífica tela de Caravaggio, conservada

aqui em Roma na Igreja de São Luís dos Franceses. Dos Evangelhos sobressai um ulterior

pormenor biográfico: no trecho que precede imediatamente a narração da chamada é

referido um milagre realizado por Jesus em Cafarnaum (cf. Mt 9, 1-8; Mc 2, 1-12) e é

mencionada a proximidade do Mar da Galileia, isto é do Lago de Tiberíades (cf. Mc 2, 13-14).

Disto pode deduzir-se que Mateus desempenhasse a função de cobrador em Cafarnaúm,

situada precisamente "à beira-mar" (Mt 4, 13), onde Jesus era hóspede fixo na casa de Pedro.

Com base nestas simples constatações que resultam do Evangelho podemos fazer algumas

reflexões. A primeira é que Jesus acolhe no grupo dos seus íntimos um homem que, segundo

as concepções em vigor na Israel daquele tempo, era considerado um público pecador. De

facto, Mateus não só administrava dinheiro considerado impuro devido à sua proveniência de

pessoas estranhas ao povo de Deus, mas colaborava também com uma autoridade estrangeira

odiosamente ávida, cujos tributos podiam ser determinados também de modo arbitrário. Por

estes motivos, mais de uma vez os Evangelhos falam unitariamente de "publicanos e

pecadores" (Mt 9, 10; Lc 15, 1), de "publicanos e prostitutas" (Mt 21, 31). Além disso eles vêem

nos publicanos um exemplo de mesquinhez (cf. Mt 5, 46: amam os que os amam) e

mencionam um deles, Zaqueu, como "chefe dos publicanos e rico" (Lc 19, 2), enquanto a

opinião popular os associava a "ladrões, injustos, adúlteros" (Lc 18, 11). É ressaltado um

primeiro dado com base nestes elementos: Jesus não exclui ninguém da própria amizade. Ao

contrário, precisamente porque se encontra à mesa em casa de Mateus-Levi, em resposta a

quem falava de escândalo pelo facto de ele frequentar companhias pouco recomendáveis,

pronuncia a importante declaração: "Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas

sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores" (Mc 2, 17).

O bom anúncio do Evangelho consiste precisamente nisto: na oferenda da graça de Deus ao

pecador! Noutro texto, com a célebre parábola do fariseu e do publicano que foram ao Templo

para rezar, Jesus indica inclusivamente um anónimo publicano como exemplo apreciável de

confiança humilde na misericórdia divina: enquanto o fariseu se vangloria da própria perfeição

moral, "o cobrador de impostos... nem sequer ousava levantar os olhos para o céu, mas batia

no peito, dizendo: "Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador"". E Jesus comenta: "Digo-

vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será

humilhado, e quem se humilha será exaltado" (Lc 18, 13-14). Na figura de Mateus, portanto, os

Evangelhos propõem-nos um verdadeiro e próprio paradoxo: quem aparentemente está

afastado da santidade pode até tornar-se um modelo de acolhimento da misericórdia de Deus

e deixar entrever os seus maravilhosos efeitos na própria existência. Em relação a isto, São

João Crisóstomo faz uma significativa anotação: ele observa que só na narração de algumas

chamadas se menciona o trabalho que as pessoas em questão desempenhavam. Pedro, André,

Tiago e João são chamados quando estão a pescar, Mateus precisamnete quando cobra os

impostos. Trata-se de trabalhos de pouca importância comenta Crisóstomo "porque não há

nada mais detestável do que um cobrador de impostos e nada de mais comum do que a

pesca" (In Matth. Hom.: PL 57, 363). A chamada de Jesus chega portanto também a pessoas de

baixo nível social, enquanto desempenham o trabalho quotidiano.

Outra reflexão, que provém da narração evangélica, é que à chamada de Jesus, Mateus

responde imediatamente: "ele levantou-se e seguiu-o". A condensação da frase ressalta

claramente a prontidão de Mateus ao responder à chamada. Isto significava para ele o

abandono de todas as coisas, sobretudo do que lhe garantia uma fonte de lucro seguro,

mesmo se muitas vezes injusto e desonesto. Evidentemente Mateus compreendeu que a

familiaridade com Jesus não lhe permitia perseverar em actividades desaprovadas por Deus.

Intuiu-se facilmente a aplicação ao presente: também hoje não é admissível o apego a coisas

incompatíveis com o seguimento de Jesus, como é o caso das riquezas desonestas. Certa vez

Ele disse sem meios-termos: "Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos

pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me" (Mt 19, 21). Foi precisamente isto

que Mateus fez: levantou-se e seguiu-o! Neste "levantar-se" é legítimo ver o abandono de uma

situação de pecado e ao mesmo tempo a adesão consciente a uma existência nova, recta, na

comunhão com Jesus.

Por fim, recordamos que a tradição da Igreja antiga concorda na atribuição a Mateus da

paternidade do primeiro Evangelho. Isto acontece já a partir de Papias, Bispo de Hierápoles na

Frígia por volta do ano 130. Ele escreve: "Mateus reuniu as palavras (do Senhor) em língua

hebraica, e cada um as interpretou como podia" (em Eusébio de Cesareia, Hist. eccl. III, 39, 16).

O historiador Eusébio acrescenta esta notícia: "Mateus, que primeiro tinha pregado aos

hebreus, quando decidiu ir também a outros povos escreveu na sua língua materna o

Evangelho por ele anunciado; assim, procurou substituir com a escrita, junto daqueles dos

quais se separava, aquilo que eles perdiam com a sua partida" (ibid., III, 24, 6). Já não temos o

Evangelho escrito por Mateus em hebraico ou em aramaico, mas no Evangelho grego que

ainda continuamos a ouvir, de certa forma, a voz persuasiva do publicano Mateus que, tendo-

se tornado Apóstolo, continua a anunciar-nos a misericórdia salvadora de Deus e ouvimos esta

mensagem de São Mateus, meditámo-la sempre de novo para aprender também nós a

levantar-nos e a seguir Jesus com determinação.

Filipe

06 de Setembro de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Prosseguindo no delineamento das fisionomias dos vários Apóstolos, como fazemos há

algumas semanas, hoje encontramos Filipe. Nas listas dos Doze, ele é sempre colocado no

quinto lugar (assim em Mt 10, 3; Mc 3, 18; Lc 6, 14; Act 1, 13), portanto substancialmente

entre os primeiros.

Apesar de Filipe ter origens hebraicas, o seu nome é grego, como o de André, e isto é um

pequeno sinal de abertura cultural que não se deve subestimar. As notícias que temos sobre

ele são-nos fornecidas pelo Evangelho de João. Ele provinha do mesmo lugar de origem de

Pedro e de André, isto é, de Batsaida (cf. Jo 1, 44), uma pequena cidade pertencente à

tetrarquia de um dos filhos de Herodes, o Grande, também ele chamado Filipe (cf.Lc3,1).

O Quarto Evangelho narra que, depois de ter sido chamado por Jesus, Filipe encontra Natanael

e diz-lhe: "Encontrámos aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas: Jesus,

filho de José de Nazaré" (Jo 1, 45). Natanael dá uma resposta bastante céptica ("De Nazaré

pode vir alguma coisa boa?"), perante a qual Filipe não se desencoraja e responde com

determinação: "Vem e verás!" (Jo 1, 46). Nesta resposta, breve mas clara, Filipe manifesta as

características da verdadeira testemunha: não se contenta em propor o anúncio, como uma

teoria, mas interpela directamente o interlocutor sugerindo-lhe que faça ele mesmo uma

experiência pessoal do que foi anunciado. Os mesmos dois verbos são usados pelo próprio

Jesus quando dois discípulos de João Baptista se aproximam dele para lhe perguntar onde

mora. Jesus responde: "Vinde ver" (cf. Jo 1, 38-39).

Podemos pensar que Filipe se dirija também a nós com aqueles dois verbos que exigem um

envolvimento pessoal. Também a nós diz o que dissera a Natanael: "Vem e verás". O Apóstolo

convida-nos a conhecer Jesus de perto. De facto, a amizade, o verdadeiro conhecer o outro,

precisa da proximidade, aliás, de certa forma vive dela. De resto, não se deve esquecer que,

segundo o que escreve Marcos, Jesus escolheu os Doze com a finalidade primária que

"andassem com Ele" (Mc 3, 14), ou seja, que partilhassem a sua vida e aprendessem

directamente dele não só o estilo do seu comportamento, mas sobretudo quem era Ele

realmente. Com efeito, só assim, participando na sua vida, o podiam conhecer e depois

anunciar. Mais tarde, na Carta de Paulo aos Efésios, ler-se-á que o importante é "aprender de

Cristo" (4, 20), portanto, não só e não tanto ouvir os seus ensinamentos, as suas palavras, mas

ainda mais conhecê-lo pessoalmente, a sua humanidade e divindade, o seu mistério, a sua

beleza. De facto, Ele não é só um Mestre, mas um Amigo, ou melhor, um Irmão. Como

poderíamos conhecê-lo profundamente permanecendo distantes? A intimidade, a

familiariedade, o habitual fazem-nos descobrir a verdadeira identidade de Jesus Cristo.

Portanto: é precisamente isto que nos recorda o apóstolo Filipe. E convida-nos a "vir", a "ver",

isto é, a entrar num contacto de escuta, de resposta e de comunhão de vida com Jesus dia

após dia.

Depois, por ocasião da multiplicação dos pães, ele recebeu de Jesus um pedido específico e

surpreendente: onde era possível comprar o pão para saciar a fome de todo o povo que o

seguia (cf. Jo 6, 5). Então Filipe respondeu com muito realismo: "Duzentos denários de pão não

chegam para cada um comer um bocadinho" (Jo 6, 7). Vêem-se aqui a praticidade e o realismo

do Apóstolo, que sabe julgar as reais consequências de uma situação. Depois, como correram

as coisas nós sabemo-lo. Sabemos que Jesus tomou os pães e, depois de ter rezado, distribuiu-

os.

Assim realizou-se a multiplicação dos pães. Mas é interessante que Jesus se tenha dirigido

precisamente a Filipe para obter uma primeira indicação sobre o modo de resolver o

problema: sinal evidente de que ele fazia parte do grupo limitado que o circundava. Noutro

momento, muito importante para a história futura, antes da Paixão, alguns Gregos que se

encontravam em Jerusalém para a Páscoa "foram ter com Filipe... e pediram-lhe: "Senhor, nós

queremos ver Jesus!". Filipe foi dizer isto a André; André e Filipe foram dizê-lo a Jesus" (Jo 12,

20-22). Mais uma vez, temos a indicação de um seu prestígio especial no âmbito do colégio

apostólico. Sobretudo, neste caso, ele serve de intermediário entre o pedido de alguns Gregos

provavelmente falava o grego e pôde disponibilizar-se como intérprete e Jesus; Mesmo se ele

se une a André, o outro Apóstolo com um nome grego, é contudo a ele que aquelas pessoas

desconhecidas se dirigem. Isto ensina-nos a estar também nós sempre prontos, tanto a ouvir

pedidos e invocações, de onde quer que venham, como a orientá-los para o Senhor, o único

que os pode satisfazer plenamente. Com efeito, é importante saber que nós não somos os

destinatários últimos das orações de quem nos aproxima, mas é o Senhor: para ele devemos

orientar todo aquele que se encontre em necessidade. Então: cada um de nós deve ser um

caminho aberto para ele!

Há depois outra ocasião completamente particular, na qual Filipe entra em cena. Durante a

Última Ceia, tendo Jesus afirmado que conhecê-lo significa também conhecer o Pai (cf. Jo 14,

7), Filipe pede quase ingenuamente: "Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!" (Jo 14, 8).

Jesus responde-lhe com um tom de indulgente reprovação: "Há tanto tempo que estou

convosco, e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes,

então, "mostra-nos o Pai"? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim?... Crede-me: Eu

estou no Pai e o Pai está em Mim" (Jo 14, 9-11). Estas palavras são as mais nobres do

Evangelho de João. Elas contêm uma profunda revelação. No final do Prólogo do seu

Evangelho, João afirma: "A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no

seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer" (Jo 1, 18). Pois bem, aquela afirmação, que é do

evangelista, é retomada e confirmada pelo próprio Jesus. Mas com uma nova característica. De

facto, enquanto o Prólogo de João fala de uma intervenção esclarecedora de Jesus mediante

as palavras do seu ensinamento, na resposta a Filipe Jesus faz referência à própria pessoa

como tal, dando a entender que é possível compreendê-lo não só mediante o que diz, mas

ainda mais mediante o que ele simplesmente é.

Para nos expressarmos segundo o paradoxo da Encarnação, podemos dizer que Deus se

conferiu um rosto humano, o de Jesus, e por conseguinte de agora em diante, se

verdadeiramente queremos conhecer o rosto de Deus, devemos contemplar o rosto de Jesus!

No seu semblante vemos realmente quem é e como é Deus!

O evangelista não nos diz se Filipe compreendeu plenamente a frase de Jesus. Sem dúvida, ele

dedicou-lhe totalmente a própria vida. Segundo algumas narrações posteriores (Actos de Filipe

e outros), o nosso Apóstolo teria evangelizado primeiro na Grécia e depois na Frígia onde

enfrentou a morte, em Herápoles, com um suplício descrito diversamente como crucifixão ou

lapidação.

Desejamos concluir a nossa reflexão recordando a finalidade para a qual deve tender a nossa

vida: encontrar Jesus como o encontrou Filipe, procurando ver nele o próprio Deus, o Pai

celeste. Se este compromisso viesse a faltar, seríamos remetidos sempre e só para nós como

num espelho, e estaríamos cada vez mais sós! Ao contrário, Filipe ensina-nos a deixar-nos

conquistar por Jesus, a estar com Ele e a convidar também outros a partilhar esta companhia

indispensável. E vendo-o, encontrando Deus, encontrar a verdadeira vida.

Tomé

17 de Setembro de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Prosseguindo os nossos encontros com os doze Apóstolos escolhidos directamente por Jesus,

hoje dedicamos a nossa atenção a Tomé. Sempre presente nas quatro listas contempladas

pelo Novo Testamento, ele, nos primeiros três Evangelhos, é colocado ao lado de Mateus (cf.

Mt 10, 3; Mc 3, 18; Lc 6, 15), enquanto nos Actos está próximo de Filipe (cf. Act 1, 13). O seu

nome deriva de uma raiz hebraica, ta'am, que significa "junto", "gémeo". De facto, o

Evangelho chama-o várias vezes com o sobrenome de "Dídimo" (cf. Jo 11, 16; 20, 24; 21, 2),

que em grego significa precisamente "gémeo". Não é claro o porquê deste apelativo.

Sobretudo o Quarto Evangelho oferece-nos informações que reproduzem alguns traços

significativos da sua personalidade. O primeiro refere-se à exortação, que ele fez aos outros

Apóstolos, quando Jesus, num momento crítico da sua vida, decidiu ir a Betânia para

ressuscitar Lázaro, aproximando-se assim perigosamente de Jerusalém (cf. Mc 10, 32). Naquela

ocasião Tomé disse aos seus condiscípulos: "Vamos nós também, para morrermos com Ele" (Jo

11, 16).

Esta sua determinação em seguir o Mestre é deveras exemplar e oferece-nos um precioso

ensinamento: revela a disponibilidade total a aderir a Jesus, até identificar o próprio destino

com o d'Ele e querer partilhar com Ele a prova suprema da morte. De facto, o mais importante

é nunca separar-se de Jesus. Por outro lado, quando os Evangelhos usam o verbo "seguir" é

para significar que para onde Ele se dirige, para lá deve ir também o seu discípulo. Deste

modo, a vida cristã define-se como uma vida com Jesus Cristo, uma vida a ser transcorrida

juntamente com Ele. São Paulo escreve algo semelhante, quando tranquiliza os cristãos de

Corinto com estas palavras: "estais no nosso coração para a vida e para a morte" (2 Cor 7, 3). O

que se verifica entre o Apóstolo e os seus cristãos deve, obviamente, valer antes de tudo para

a relação entre os cristãos e o próprio Jesus: morrer juntos, viver juntos, estar no seu coração

como Ele está no nosso.

Uma segunda intervenção de Tomé está registada na Última Ceia. Naquela ocasião Jesus,

predizendo a sua partida iminente, anuncia que vai preparar um lugar para os discípulos para

que também eles estejam onde Ele estiver; e esclarece: "E, para onde Eu vou, vós sabeis o

caminho" (Jo 14, 4). É então que Tomé intervém e diz: "Senhor, não sabemos para onde vais,

como podemos nós saber o caminho?" (Jo 14, 5). Na realidade, com esta expressão ele coloca-

se a um nível de compreensão bastante baixo; mas estas suas palavras fornecem a Jesus a

ocasião para pronunciar a célebre definição: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo 14, 6).

Portanto, Tomé é o primeiro a quem é feita esta revelação, mas ela é válida também para

todos nós e para sempre. Todas as vezes que ouvimos ou lemos estas palavras, podemos

colocar-nos com o pensamento ao lado de Tomé e imaginar que o Senhor fala também

connosco como falou com ele.

Ao mesmo tempo, a sua pergunta confere também a nós o direito, por assim dizer, de pedir

explicações a Jesus. Com frequência nós não o compreendemos. Temos a coragem para dizer:

não te compreendo, Senhor, ouve-me, ajuda-me a compreender. Desta forma, com esta

franqueza que é o verdadeiro modo de rezar, de falar com Jesus, exprimimos a insuficiência da

nossa capacidade de compreender, ao mesmo tempo colocamo-nos na atitude confiante de

quem espera luz e força de quem é capaz de as doar.

Depois, muito conhecida e até proverbial é a cena de Tomé incrédulo, que aconteceu oito dias

depois da Páscoa. Num primeiro momento, ele não tinha acreditado em Jesus que apareceu na

sua ausência, e dissera: "Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu

dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito" (Jo 20, 25). No fundo,

destas palavras sobressai a convicção de que Jesus já é reconhecível não tanto pelo rosto

quanto pelas chagas. Tomé considera que os sinais qualificadores da identidade de Jesus são

agora sobretudo as chagas, nas quais se revela até que ponto Ele nos amou. Nisto o Apóstolo

não se engana. Como sabemos, oito dias depois Jesus aparece no meio dos seus discípulos, e

desta vez Tomé está presente. E Jesus interpela-o: "Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos!

Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!" (Jo 20, 27). Tomé

reage com a profissão de fé mais maravilhosa de todo o Novo Testamento: "Meu Senhor e

meu Deus!" (Jo 20, 28). A este propósito, Santo Agostinho comenta: Tomé via e tocava o

homem, mas confessava a sua fé em Deus, que não via nem tocava. Mas o que via e tocava

levava-o a crer naquilo de que até àquele momento tinha duvidado" (In Iohann. 121, 5). O

evangelista prossegue com uma última palavra de Jesus a Tomé: "Porque me viste, acreditaste.

Felizes os que, sem terem visto, crerão" (cf. Jo 20, 29). Esta frase também se pode conjugar no

presente; "Bem-aventurados os que crêem sem terem visto".

Contudo, aqui Jesus enuncia um princípio fundamental para os cristãos que virão depois de

Tomé, portanto para todos nós. É interessante observar como o grande teólogo medieval

Tomás de Aquino, compara com esta fórmula de bem-aventurança aquela aparentemente

oposta citada por Lucas: "Felizes os olhos que vêem o que estais a ver" (Lc 10, 23). Mas o

Aquinate comenta: "Merece muito mais quem crê sem ver do que quem crê porque vê" (In

Johann. XX lectio VI 2566). De facto, a Carta aos Hebreus, recordando toda a série dos antigos

Patriarcas bíblicos, que acreditaram em Deus sem ver o cumprimento das suas promessas,

define a fé como "fundamento das coisas que se esperam e comprovação das que não se

vêem" (11, 1). O caso do Apóstolo Tomé é importante para nós pelo menos por três motivos:

primeiro, porque nos conforta nas nossas inseguranças; segundo porque nos demonstra que

qualquer dúvida pode levar a um êxito luminoso além de qualquer incerteza; e por fim, porque

as palavras dirigidas a ele por Jesus nos recordam o verdadeiro sentido da fé madura e nos

encorajam a prosseguir, apesar das dificuldades, pelo nosso caminho de adesão a Ele.

Uma última anotação sobre Tomé é-nos conservada no Quarto Evangelho, que o apresenta

como testemunha do Ressuscitado no momento seguinte à pesca milagrosa no Lago de

Tiberíades (cf. Jo 21, 2). Naquela ocasião ele é mencionado inclusivamente logo depois de

Simão Pedro: sinal evidente da grande importância de que gozava no âmbito das primeiras

comunidades cristãs. Com efeito, em seu nome foram escritos depois os Actos e o Evangelho

de Tomé, ambos apócrifos mas contudo importantes para o estudo das origens cristãs. Por fim

recordamos que segundo uma antiga tradição, Tomé evangelizou primeiro a Síria e a Pérsia

(assim refere já Orígenes, citado por Eusébio de Cesareia, Hist. eccl. 3, 1) e depois foi até à

Índia ocidental (cf. Actos de Tomé 1-2 e 17ss.), de onde mais tarde o cristianismo alcançou

também a Índia meridional. Nesta perspectiva missionária terminamos a nossa reflexão,

expressando votos de que o exemplo de Tomé corrobore cada vez mais a nossa fé em Jesus

Cristo, nosso Senhor e nosso Deus.

Bartolomeu

4 de Outubro de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Na série dos Apóstolos chamados por Jesus durante a sua vida terrena, hoje quem atrai a

nossa atenção é o apóstolo Bartolomeu. Nos antigos elencos dos Doze ele é sempre colocado

antes de Mateus, enquanto varia o nome daquele que o precede e que pode ser Filipe (cf. Mt

10, 3; Mc 3, 18; Lc 6, 14) ou Tomé (cf. Act 1, 13). O seu nome é claramente um patronímico,

porque é formulado com uma referência explícita ao nome do pai. De facto, trata-se de um

nome provavelmente com uma marca aramaica, Bar Talmay, que significa precisamente "filho

de Talmay".

Não temos notícias de relevo acerca de Bartolomeu; com efeito, o seu nome recorre sempre e

apenas no âmbito dos elencos dos Doze acima citados e, por conseguinte, nunca está no

centro de narração alguma. Mas, tradicionalmente ele é identificado com Natanael: um nome

que significa "Deus deu". Este Natanael provinha de Caná (cf. Jo 21, 2), e portanto é possível

que tenha sido testemunha do grande "sinal" realizado por Jesus naquele lugar (cf. Jo 2, 1-11).

A identificação das duas personagens provavelmente é motivada pelo facto que este Natanael,

no episódio de vocação narrada pelo Evangelho de João, é colocado ao lado de Filipe, isto é, no

lugar que Bartolomeu ocupa nos elencos dos Apóstolos narrados pelos outros Evangelhos.

Filipe tinha comunicado a este Natanael que encontrara "aquele sobre quem escreveram

Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, filho de José de Nazaré" (Jo 1, 45). Como sabemos,

Natanael atribuiu-lhe um preconceito bastante pesado: "De Nazaré pode vir alguma coisa

boa?" (Jo 1, 46a). Esta espécie de contestação é, à sua maneira, importante para nós. De facto,

ela mostra-nos que segundo as expectativas judaicas, o Messias não podia provir de uma

aldeia tanto obscura como era precisamente Nazaré (veja também Jo 7, 42). Mas, ao mesmo

tempo realça a liberdade de Deus, que surpreende as nossas expectativas fazendo-se

encontrar precisamente onde não o esperávamos. Por outro lado, sabemos que Jesus na

realidade não era exclusivamente "de Nazaré", pois tinha nascido em Belém (cf. Mt 2, 1; Lc 2,

4) e que por fim provinha do céu, do Pai que está no céu.

Outra reflexão sugere-nos a vicissitude de Natanael: na nossa relação com Jesus não devemos

contentar-nos unicamente com as palavras. Filipe, na sua resposta, faz um convite

significativo: "Vem e verás!" (Jo 1, 46b). O nosso conhecimento de Jesus precisa sobretudo de

uma experiência viva: o testemunho de outrem é certamente importante, porque

normalmente toda a nossa vida cristã começa com o anúncio que chega até nós por obra de

uma ou de várias testemunhas. Mas depois devemos ser nós próprios a deixar-nos envolver

pessoalmente numa relação íntima e profunda com Jesus; de maneira análoga os Samaritanos,

depois de terem ouvido o testemunho da sua concidadã que Jesus tinha encontrado ao lado

do poço de Jacob, quiseram falar directamente com Ele e, depois deste colóquio, disseram à

mulher: "Já não é pelas tuas palavras que acreditamos, nós próprios ouvimos e sabemos que

Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo" (Jo 4, 42).

Voltando ao cenário de vocação, o evangelista refere-nos que, quando Jesus vê Natanael

aproximar-se exclama: "Aqui está um verdadeiro Israelita, em quem não há fingimento" (Jo 1,

47). Trata-se de um elogio que recorda o texto de um Salmo: "Feliz o homem a quem Iahweh

não atribui iniquidade" (Sl 32, 2), mas que suscita a curiosidade de Natanael, o qual responde

com admiração: "Como me conheces?" (Jo 1, 48a). A resposta de Jesus não é imediatamente

compreensível. Ele diz: "Antes que Filipe te chamasse, eu te vi quando estavas sob a figueira"

(Jo 1, 48b). Não sabemos o que aconteceu sob esta figueira. É evidente que se trata de um

momento decisivo na vida de Natanael. Ele sente-se comovido com estas palavras de Jesus,

sente-se compreendido e compreende: este homem sabe tudo de mim, Ele sabe e conhece o

caminho da vida, a este homem posso realmente confiar-me. E assim responde com uma

confissão de fé límpida e bela, dizendo: "Rabi, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel" (Jo 1,

49). Nela é dado um primeiro e importante passo no percurso de adesão a Jesus. As palavras

de Natanael ressaltam um aspecto duplo e complementar da identidade de Jesus: Ele é

reconhecido quer na sua relação especial com Deus Pai, do qual é Filho unigénito, quer na

relação com o povo de Israel, do qual é proclamado rei, qualificação própria do Messias

esperado. Nunca devemos perder de vista nenhuma destas duas componentes, porque se

proclamamos apenas a dimensão celeste de Jesus, corremos o risco de o transformar num

ser sublime e evanescente, e se ao contrário reconhecemos apenas a sua colocação concreta

na história, acabamos por descuidar a dimensão divina que propriamente o qualifica.

Da sucessiva actividade apostólica de Bartolomeu-Natanael não temos notícias claras. Segundo

uma informação referida pelo historiador Eusébio do século IV, um certo Panteno teria

encontrado até na Índia os sinais de uma presença de Bartolomeu (cf. Hist. eccl., V 10, 3). Na

tradição posterior, a partir da Idade Média, impôs-se a narração da sua morte por

esfolamento, que se tornou muito popular. Pense-se na conhecidíssima cena do Juízo

Universal na Capela Sistina, na qual Michelangelo pintou São Bartolomeu que segura com a

mão esquerda a sua pele, sobre a qual o artista deixou o seu auto-retrato. As suas relíquias são

veneradas aqui em Roma na Igreja a ele dedicada na Ilha Tiberina, aonde teriam sido levadas

pelo Imperador alemão Otão III no ano de 983. Para concluir, podemos dizer que a figura de

São Bartolomeu, mesmo sendo escassas as informações acerca dele, permanece contudo

diante de nós para nos dizer que a adesão a Jesus pode ser vivida e testemunhada também

sem cumprir obras sensacionais. Extraordinário é e permanece o próprio Jesus, ao qual cada

um de nós está chamado a consagrar a própria vida e a própria morte.

Simão o Cananeu e Judas Tadeu

11 de Outubro de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Hoje tomamos em consideração dois dos doze Apóstolos: Simão o Cananeu e Judas Tadeu

(que não se deve confundir com Judas Iscariotes). Consideramo-los juntos, não só porque nas

listas dos Doze são sempre mencionados um ao lado do outro (cf. Mt 10, 4; Mc 3, 18; Lc 6, 15;

Act 1, 13), mas também porque as notícias que a eles se referem não são muitas, excepto o

facto que o Cânon neotestamentário conserva uma carta atribuída a Judas Tadeu.

Simão recebe um epíteto que varia nas quatro listas: Mateus qualifica-o como "cananeu",

Lucas define-o "zelote". Na realidade, as duas qualificações equivalem-se, porque significam a

mesma coisa: na língua hebraica, de facto, o verbo qanà' significa "ser zeloso", "dedicado" e

pode referir-se quer a Deus, porque é zeloso do povo por ele escolhido (cf. Êx 20, 5), quer a

homens que são zelosos no serviço a Deus único com dedicação total, como Elias (cf. 1 Rs 19,

10). Portanto, é possível que este Simão, se não pertencia exactamente ao movimento

nacionalista dos Zelotes, tivesse pelo menos como característica um fervoroso zelo pela

identidade judaica, por conseguinte, por Deus, pelo seu povo e pela Lei divina. Sendo assim,

Simão coloca-se no antípoda de Mateus, que ao contrário, sendo publicano, provinha de uma

actividade considerada totalmente impura.

Sinal evidente que Jesus chama os seus discípulos e colaboradores das camadas sociais e

religiosas mais diversas, sem exclusão alguma. Ele interessa-se pelas pessoas, não pelas

categorias sociais ou pelas actividades! E o mais belo é que no grupo dos seus seguidores,

todos, mesmo se diversos, coexistiam, superando as inimagináveis dificuldades: de facto, era

o próprio Jesus o motivo de coesão, no qual todos se reencontravam unidos. Isto constitui

claramente uma lição para nós, com frequência propensos a realçar as diferenças e talvez as

contraposições, esquecendo que em Jesus Cristo nos é dada a força para superar os nossos

conflitos. Tenhamos também presente que o grupo dos Doze é a prefiguração da Igreja, na

qual devem ter espaço todos os carismas, os povos, as raças, todas as qualidades humanas,

que encontram a sua composição e a sua unidade na comunhão com Jesus.

No que se refere depois a Judas Tadeu, ele é chamado assim pela tradição, unindo ao mesmo

tempo dois nomes diferentes: de facto, enquanto Mateus e Marcos o chamam simplesmente

"Tadeu" (Mt 10, 3; Mc 3, 18), Lucas chama-o "Judas de Tiago" (Lc 6, 16; Act 1, 13). O

sobrenome Tadeu tem uma derivação incerta e é explicado ou como proveniente do aramaico

taddà', que significa "peito" e, por conseguinte, significaria "magnânimo", ou como abreviação

de um nome grego como "Teodoro, Teódoto". Dele são transmitidas poucas coisas. Só João

assinala um seu pedido feito a Jesus durante a Última Ceia. Diz Tadeu ao Senhor: "Senhor,

como aconteceu que te deves manifestar a nós e não ao mundo?". É uma pergunta de grande

actualidade, que também nós fazemos ao Senhor: porque o Ressuscitado não se manifestou

em toda a sua glória aos seus adversários para mostrar que o vencedor é Deus? Por que se

manifestou só aos Discípulos? A resposta de Jesus é misteriosa e profunda. O Senhor diz: "Se

alguém me tem amor, há-de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e Nós viremos a

ele e nele faremos morada" (Jo 14, 22-23). Isto significa que o Ressuscitado deve ser visto,

sentido também com o coração, de modo que Deus possa habitar em nós. O Senhor não se

mostra como uma coisa. Ele quer entrar na nossa vida e por isso a sua manifestação é uma

manifestação que exige e pressupõe o coração aberto. Só assim vemos o Ressuscitado.

Foi atribuída a Judas Tadeu a paternidade de uma das Cartas do Novo Testamento, que são

chamadas "católicas" porque não se destinam a uma determinada Igreja local, mas a um

círculo muito amplo de destinatários. De facto, ele dirige-se "aos eleitos amados por Deus Pai e

guardados para Jesus Cristo" (v. 1). A preocupação central deste escrito é advertir os cristãos

de todos os que, com o pretexto da graça de Deus, desculpam a própria devassidão e para

desviar outros irmãos com ensinamentos inaceitáveis, introduzindo divisões dentro da Igreja

"deixando-se levar pelo seu delírio" (v. 8), assim define Judas estas suas doutrinas e ideias

especiais. Ele compara-os inclusivamente aos anjos caídos, e com palavras fortes diz que

"seguiram pelo caminho de Caim" (v. 11). Além disso classifica-os sem reticências como

"nuvens sem água que os ventos levam; árvores de outono sem fruto, duas vezes mortas,

desarraigadas; ondas furiosas do mar que repelem a espuma da sua torpeza; estrelas errantes

condenadas à negrura das trevas eternas" (vv. 12-13).

Talvez hoje nós já não estejamos habituados a usar uma linguagem tão polémica, que contudo

nos diz uma coisa importante. No meio de todas as tentações que existem, com todas as

correntes da vida moderna, devemos conservar a identidade da nossa fé. Certamente, o

caminho da indulgência e do diálogo, que o Concílio Vaticano II felizmente empreendeu, deve

ser sem dúvida prosseguida com uma constância firme. Mas este caminho do diálogo, tão

necessário, não deve fazer esquecer o dever de reconsiderar e de evidenciar sempre com igual

força as linhas-mestras e irrenunciáveis da nossa identidade cristã. Por outro lado, é necessário

ter bem presente que esta nossa identidade exige força, clareza e coragem face às

contradições do mundo em que vivemos. Por isso o texto epistolar prossegue assim: "Mas vós,

caríssimos, fala a todos nós mantende-vos no amor de Deus, esperando que a misericórdia de

Nosso Senhor Jesus Cristo vos conceda a vida eterna. Tratai com misericórdia aqueles que

vacilam..." (vv. 20-22). A Carta conclui-se com estas bonitas palavras: "Àquele que é poderoso

para vos livrar das quedas e vos apresentar diante da sua glória, imaculados e cheios de

alegria, ao Deus único, nosso Salvador, por meio de Jesus Cristo, Senhor nosso, seja dada

glória, a majestade, a soberania e o poder, antes de todos os tempos, agora e por todos os

séculos, Amém" (vv. 24-25).

Vê-se bem que o autor destas frases vive plenamente a própria fé, à qual pertencem

realidades grandes como a integridade moral e a alegria, a confiança e por fim o louvor, sendo

motivado em tudo apenas pela bondade do nosso único Deus e pela misericórdia de nosso

Senhor Jesus Cristo. Por isso, tanto Simão o Cananeu, como Judas Tadeu nos ajudam a

redescobrir sempre de novo e a viver incansavelmente a beleza da fé cristã, sabendo dar um

testemunho dela forte e ao mesmo tempo sereno.

Judas Iscariotes e Matias

18 de Outubro de 2006

Queridos irmãos e irmãs!

Terminando hoje de percorrer a galeria de retratos dos Apóstolos chamados directamente por

Jesus durante a sua vida terrena, não podemos omitir de mencionar aquele que é sempre

nomeado por último nas listas dos Doze: Judas Iscariotes. A ele queremos associar a pessoa

que depois é eleita para o substituir, Matias.

Já o simples nome de Judas suscita entre os cristãos uma reacção instintiva de reprovação e de

condenação. O significado do apelativo "Iscariotes" é controverso: a explicação mais seguida

compreende esta palavra como "homem de Queriot" referindo-se à sua aldeia de origem,

situada nas vizinhanças de Hebron e mencionada duas vezes na Sagrada Escritura (cf. Js 15, 25;

Am 2, 2).

Outros interpretam-no como variação da palavra "sicário", como se aludisse a um guerrilheiro

armado com um punhal que em latim se chama sica. Por fim, há quem veja no sobrenome a

simples transcrição de uma raiz hebraico-aramaica que significa: "aquele que estava para o

entregar". Esta designação encontra-se duas vezes no IV Evangelho, ou seja, depois de uma

confissão de fé de Pedro (cf. Jo 6, 71) e depois durante a unção de Betânia (cf. Jo 12, 4). Outras

passagens mostram que a traição estava a ser realizada, dizendo: "aquele que o traía"; assim,

durante a Última Ceia, depois do anúncio da traição (cf. Mt 26, 25) e depois no momento do

aprisionamento de Jesus (cf. Mt 26, 46.48; Jo 18, 2.5). Ao contrário, as listas dos Doze

recordam a traição como uma coisa já efectuada: "Judas Iscariotes, o que o traiu", assim diz

Marcos (3, 19); Mateus (10, 4) e Lucas (6, 16) usam fórmulas equivalentes. A traição como tal

aconteceu em dois momentos: antes de tudo no planeamento, quando Judas se põe de acordo

com os inimigos de Jesus por trinta moedas de prata (cf. Mt 26, 14-16), e depois na execução

com o beijo dado ao Mestre no Getsémani (cf. Mt 26, 46-50). Contudo, os evangelistas

insistem sobre a qualidade de apóstolo, que competia a Judas para todos os efeitos: ele é

repetidamente chamado "um dos Doze" (Mt 26, 14.47; Mc 14, 10.20; Jo 6, 71) ou "do número

dos Doze" (Lc 22, 3). Aliás, por duas vezes Jesus, dirigindo-se aos Apóstolos e falando

precisamente dele, indica-o como "um de vós" (Mt 26, 21; Mc 14, 18; Jo 6, 70; 13, 21). E Pedro

dirá de Judas que "era do nosso número e tinha recebido o nosso mesmo ministério" (Act 1,

17).

Trata-se portanto de uma figura pertencente ao grupo dos que Jesus tinha escolhido como

companheiros e colaboradores íntimos. Isto suscita duas perguntas na tentativa de dar uma

explicação aos acontecimentos que se verificaram. A primeira consiste em perguntar como

aconteceu que Jesus tenha escolhido este homem e nele tenha confiado. Apesar de Judas ser

de facto o ecónomo do grupo (cf. Jo 12, 6b; 13, 29a), na realidade é qualificado também como

"ladrão" (Jo 12, 6a). Permanece o mistério da escolha, também porque Jesus pronuncia um

juízo muito severo sobre ele: "ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue" (Mt

26, 24).

Torna-se ainda mais denso o mistério acerca do seu destino eterno, sabendo que Judas "se

arrependeu e restituiu as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e aos idosos, dizendo:

"Pequei, entregando sangue inocente"" (Mt 27, 3-4). Mesmo se em seguida ele se afastou para

se ir enforcar (cf. Mt 27, 5), não compete a nós julgar o seu gesto, substituindo-nos a Deus

infinitamente misericordioso e justo.

Uma segunda pergunta refere-se ao motivo do comportamento de Judas: porque traíu Jesus?

A questão é objecto de várias hipóteses. Alguns recorrem ao factor da sua avidez de dinheiro;

outros dão uma explicação de ordem messiânica: Judas teria ficado desiludido ao ver que Jesus

não inseria no seu programa a libertação político-militar do seu próprio País. Na realidade os

textos evangélicos insistem sobre outro aspecto: João diz expressamente que "tendo já o

diabo metido no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que O entregasse" (Jo 13, 2);

analogamente escreve Lucas: "Entrou satanás em Judas, chamado Iscariotes que era do

número dos Doze" (Lc 22, 3).

Desta forma, vai-se além das motivações históricas e explica-se a vicissitude com base na

responsabilidade pessoal de Judas, o qual cedeu miseravelmente a uma tentação do maligno.

A traição de Judas permanece, contudo, um mistério. Jesus tratou-o como um amigo (cf. Mt

26, 50), mas, nos seus convites a segui-lo pelo caminho das bem-aventuranças, não forçava as

vontades nem as preservava das tentações de satanás, respeitando a liberdade humana.

De facto, as possibilidades de perversão do coração humano são verdadeiramente muitas. O

único modo de as evitar consiste em não cultivar uma visão das coisas apenas individualista,

autónoma, mas ao contrário em colocar-se sempre de novo da parte de Jesus, assumindo o

seu ponto de vista. Devemos procurar, dia após dia, estar em plena comunhão com Ele.

Recordemo-nos de que também Pedro se queria opor a ele e ao que o esperava em Jerusalém,

mas recebeu uma forte reprovação: "Tu não aprecias as coisas de Deus, mas só as dos

homens" (Mc 8, 32-33)!

Pedro, depois da sua queda, arrependeu-se e encontrou perdão e graça. Também Judas se

arrependeu, mas o seu arrependimento degenerou em desespero e assim tornou-se

autodestruição. Para nós isto é um convite a ter sempre presente quanto diz São Bento no

final do fundamental capítulo V da sua "Regra": "Nunca desesperar da misericórdia divina".

Na realidade Deus "é maior que o nosso coração", como diz São João (1 Jo 3, 20). Por

conseguinte, tenhamos presente duas coisas. A primeira: Jesus respeita a nossa liberdade. A

segunda: Jesus espera a nossa disponibilidade para o arrependimento e para a conversão; é

rico de misericórdia e de perdão. Afinal, quando pensamos no papel negativo desempenhado

por Judas devemos inseri-lo na condução superior dos acontecimentos por parte de Deus. A

sua traição levou à morte de Jesus, o qual transformou este tremendo suplício em espaço de

amor salvífico e em entrega de si ao Pai (cf. Gl 2, 20; Ef 5, 2.25).

O Verbo "trair" deriva de uma palavra grega que significa "entregar". Por vezes o seu sujeito é

inclusivamente Deus em pessoa: foi ele que por amor "entregou" Jesus por todos nós (cf. Rm

8, 32). No seu misterioso projecto salvífico, Deus assume o gesto imperdoável de Judas como

ocasião da doação total do Filho para a redenção do mundo.

Em conclusão, queremos recordar também aquele que depois da Páscoa foi eleito no lugar do

traidor. Na Igreja de Jerusalém a comunidade propôs dois para serem sorteados: "José, de

apelido Barsabas, chamado justo, e Matias" (Act 1, 23). Foi precisamente este o pré-escolhido,

de modo que "foi associado aos onze Apóstolos" (Act 1, 26). Dele nada mais sabemos, a não

ser que também tinha sido testemunha de toda a vicissitude terrena de Jesus (cf. Act 1, 21-22),

permanecendo-lhe fiel até ao fim. À grandeza desta sua fidelidade acrescenta-se depois a

chamada divina a ocupar o lugar de Judas, como para compensar a sua traição. Tiramos disto

mais uma lição: mesmo se na Igreja não faltam cristãos indignos e traidores, compete a cada

um de nós equilibrar o mal que eles praticam com o nosso testemunho transparente a Jesus

Cristo, nosso Senhor e Salvador.

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