A Imagem Construída

144
UNIVERSIDADE DE LISBOA Faculdade de Arquitectura A Imagem Construída PROBLEMAS DA REPRESENTAÇÃO ESPACIAL NO ALVOR DA MODERNIDADE MARTIM SOUSA FERRO ENES DIAS DISSERTAÇÃO PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ARQUITECTURA ORIENTADOR CIENTÍFICO: PROFESSOR DOUTOR J ORGE SPENCER J ÚRI: PROFESSOR DOUTOR J OÃO FRANCISCO FIGUEIRA, PRESIDENTE PROFESSOR DOUTOR PAULO PEREIRA, VOGAL LISBOA, OUTUBRO DE 2013

Transcript of A Imagem Construída

Page 1: A Imagem Construída

UNIVERSIDADE DE LISBOA

Faculdade de Arquitectura

A Imagem Construída

PROBLEMAS DA REPRESENTAÇÃO ESPACIAL NO ALVOR DA MODERNIDADE

MARTIM SOUSA FERRO ENES DIAS

DISSERTAÇÃO PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ARQUITECTURA ORIENTADOR CIENTÍFICO: PROFESSOR DOUTOR JORGE SPENCER

JÚRI:

PROFESSOR DOUTOR JOÃO FRANCISCO FIGUEIRA, PRESIDENTE PROFESSOR DOUTOR PAULO PEREIRA, VOGAL

LISBOA, OUTUBRO DE 2013

Page 2: A Imagem Construída

i

A IMAGEM CONSTRUÍDA: PROBLEMAS DA REPRESENTAÇÃO ESPACIAL NO ALVOR DA MODERNIDADE

RESUMO:

Uma das principais consequências da transição entre o mundo medieval e a idade mo-

derna foi o abandono progressivo da tradição oral, em favor de uma cultura de produção e

difusão sistemática de imagens. Este estudo analisa os efeitos dessa transformação na repre-

sentação do espaço e foca a capacidade de significação da representação medieval e da re-

presentação moderna. Para identificar quer os seus pontos de contacto quer a diferença de

estatuto que as opõe procedeu-se ao confronto de alguns exemplos paradigmáticos, através

de um percurso histórico selectivo que culmina na instituição da perspectiva linear, enca-

rada como ponto de chegada hipotético do projecto histórico da modernidade. Conside-

rou-se, ainda, a ambiguidade própria de que se reveste, para os arquitectos, a representação

do espaço, tanto ao nível metodológico (uma vez que constitui, simultaneamente, um ins-

trumento de trabalho e o seu resultado) como ao nível histórico (pois está na origem do

seu ofício enquanto arte liberal).

Uma representação pode assumir várias formas e significados e não é apenas a ilustração

neutra de uma realidade que lhe é anterior ou de um discurso já fixado. O modo como é

lida e se dá a ler influi no significado daquilo que representa. Diferentes paradigmas imagé-

ticos propõem diferentes formas de ver o mundo, que são também a chave para a leitura

das representações a que dão origem. Assim, a representação naturalista (e, concretamente,

a representação do espaço de modo científico) veio responder ao desejo moderno de rigor

visual. Ao fazê-lo, alterou simultaneamente os próprios parâmetros de avaliação da repre-

sentação, o que é particularmente evidente na comparação com as representações pré-

modernas, definidas por outros critérios e tendo em vista outros fins. É justamente na

tensão entre estas duas formas de comunicar, uma mais abstracta e a outra mais visual, que

se joga a história da cultura projectual moderna.

PALAVRAS-CHAVE: Representação, espaço, modernidade, perspectiva, abstracção.

Page 3: A Imagem Construída

ii

BUILDING IMAGES: PROBLEMS OF SPATIAL REPRESENTATION IN THE WAKE OF MODERNITY

ABSTRACT:

A major consequence of the complex transition from medieval world to modern age was

the phasing out of oral tradition. Accordingly, a culture based on the systematic produc-

tion and dissemination of images was on the rise. The present study examines the effects of

this transformation on the representation of space. By investigating both medieval and

modern representations’ ability to convey meaning we sought to identify their shared as-

pects as well as their difference in status. To do so, we compared a series of paradigmatic

cases leading up to the establishment of linear perspective. Its adoption as a paramount

tool for spatial representation is thus seen as a hypothetical arrival point in a wider histori-

cal route towards modernization. For Architects, the representation of space is of itself

ambiguous, being both the means and the end of their work. Furthermore, historically, it

can be seen as pivotal in the rise of their profession as a liberal art.

A picture may take on several forms and meanings. As we shall conclude, it is not simp-

ly the neutral illustration of a reality or a discourse that precedes it or is already set. What

it represents is greatly influenced by the way in which it offers itself to perception. Differ-

ent visual paradigms suggest different ways of seeing and precondition what the picture

itself conveys. Realistic representation (and specifically that of space according to scientific

laws) can be seen as an historical response to a modern desire for visual accuracy. In pre-

vailing over pre-modern forms of representation it changed the mode whereby images are

seen, introducing its own interpretation key. It is the tension between these two ways of

communicating (the former more abstract, the latter inherently visual) that defines what is

at stake in the transition to a modern culture of image making.

KEYWORDS: Representation, space, modernity, perspective, abstraction.

Page 4: A Imagem Construída

Para a Joana

Page 5: A Imagem Construída

Quid ergo Athenis et Hierosolymis?

TERTULIANO

Page 6: A Imagem Construída

v

ÍNDICE

INTRODUÇÃO 1 CONSIDERAÇÕES HERMENÊUTICAS 7 ESTADO DOS CONHECIMENTOS 11

1. Comunicação sem imagens 16

CAOS E COSMOS 17 UM DISCURSO INVISÍVEL 22 O CASO RORICZER 27

2. Representação do mundo visível 33

AD VERUM PER MATERIALIA 34 NATURALISMO NA REPRESENTAÇÃO HUMANA 40 MOLTO PIÙ CHE EGLI NON VEDE 46

3. Da perspectiva naturalis à perspectiva artificialis 49

UMA NOVA CENOGRAFIA 50 A BASÍLICA DE ASSIS 53 LA COSTRUZIONE LEGITTIMA 58

4. A imagem construída 62

A PERSPECTIVA COMO FORMA SIMBÓLICA 63 RACIONALIZAÇÃO DA VISTA 68 RACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS 87 SELECÇÃO BIBLIOGRÁFICA 92 ANEXO DOCUMENTAL 101

Page 7: A Imagem Construída

1

INTRODUÇÃO

O tema geral deste estudo é a representação espacial. A análise tomará como ponto

de partida o período histórico correspondente ao alvor da modernidade na Europa,

que abarca a longa e complexa transição entre o mundo medieval e a sociedade do

Renascimento. De todas as transformações ocorridas neste período, interessar-nos-á,

sobretudo, o ponto de viragem correspondente ao abandono progressivo da tradição

oral, em favor de uma cultura assente na produção e difusão sistemática de “ima-

gens”. Estas podem assumir várias formas e significados e estão longe de esgotar-se

em meras ilustrações, ou nos veículos neutros de um discurso que lhes é anterior. O

modo como são lidas e se dão a ler influi de modo directo no significado daquilo

que representam. E, no caso específico da Arquitectura, a forma como são manipu-

ladas — voluntária ou involuntariamente — determina, em grande medida, os re-

sultados da prática projectual. Como se verá, na época em estudo, a sua produção

foi concomitante com a construção de uma nova identidade cultural, de que foram

simultaneamente a causa e o efeito.

Historicamente, o advento de uma cultura eminentemente visual pode ser expli-

cado pela confluência de uma miríade de factores distintos, entre os quais se desta-

cam importantes inovações técnicas e conceptuais como a imprensa e a perspectiva

linear; uma reforma global do pensamento científico, transversal a todos os campos

do conhecimento, e assente num paradigma antropocêntrico (que conduziria, mais

tarde, ao racionalismo “iluminado” de pensadores como Newton ou Descartes); a

ascensão das universidades como centros de pesquisa e discussão de ideias, por opo-

sição ao ensimesmamento do conhecimento monacal; a afirmação progressiva de

uma existência de carácter urbano, promovida por factores económicos, sociais e

demográficos. O objectivo não será, porém, analisar em detalhe todos estes fenó-

menos, nem fornecer um quadro histórico abrangente do seu desenvolvimento, mas

avaliar o alcance e os efeitos específicos do seu contributo para a transformação dos

métodos de representação espacial e para o advento de uma cultura visual genuina-

mente moderna. E essa transformação, como veremos, não se cingiria às imagens

em si mesmas, ou ao seu aspecto visual: na prática específica da Arquitectura, ela

introduziu uma mudança assinalável na forma de entender o método de projecto,

bem como o seu significado teórico e operativo e os seus reflexos na forma de con-

Page 8: A Imagem Construída

2

ceber a própria figura do arquitecto e a natureza do seu trabalho. Mas antes ainda

de abordar o tema específico da representação espacial, ou o problema da Arquitec-

tura e dos seus rostos, é necessário compreender o estatuto das imagens enquanto

instrumentos de representação. E, para tal, é preciso reflectir, de modo mais abran-

gente, sobre o significado geral de um instrumento técnico ou simbólico e da sua

relação com a sociedade que lhe dá origem.

É já antiga a tendência historiográfica para explicar a vida de uma dada sociedade,

ou de uma dada época, à luz do seu grau de desenvolvimento tecnológico. Ao identi-

ficar o Homem como um ser essencialmente técnico — isto é, como um ser cuja es-

sência reside na capacidade de reconhecer e transformar o mundo em redor, com o

auxílio de ferramentas cada vez mais especializadas —, muitos historiadores e filóso-

fos olharam o curso global da História como a crónica de uma ascensão tecnológica e

leram nos seus estádios sucessivos o cumprimento de uma vocação científica inelutá-

vel. Esta tendência é patente, por exemplo, numa corrente importante da historiogra-

fia germânica do início do séc. XX, de que Oswald Spengler é um dos principais

representantes. Segundo ele, a Antropologia assenta, primariamente, num longo per-

curso de aperfeiçoamento técnico: aquilo que cada homem é coincide, a cada momen-

to, com o que pode fazer através dos instrumentos técnicos de que dispõe — da mão

nua às primeiras ferramentas manufacturadas; do carro de bois à locomotiva. O al-

cance da visão dos homens coincide com o alcance crescente desses objectos e dessas

ferramentas, e o seu próprio corpo se altera através do seu uso e da sua disseminação1.

No entanto, o raciocínio pode inverter-se: se são capazes, em determinadas épocas,

de produzir determinados instrumentos, os homens fazem-no porque sentem um

conjunto de aspirações e de privações que não conheciam antes, ou que não estavam

ainda em estado de conhecer2. Isto não significa, porém, que tais sentimentos se re-

duzam aos efeitos de uma conjuntura técnica deficitária, que cumpriria modernizar.

Se assim fosse, o Homem seria, de facto, um ser puramente técnico, condenado a um

determinismo eterno e invariável. Mas, tal como é possível reconhecer nas ideias no-

vas o resultados de novos instrumentos, também é possível ver nesses instrumentos a

1 Veja-se, concretamente, a análise histórica gizada ao longo do ensaio Der Mensch und die Te-chnik, Beitrag zu einer Philosophie des Lebens, publicado em 1931. Cf. SPENGLER, O Homem e a Técnica, ed. cit., passim.

2 Neste contexto, são dignas de menção as investigações da Antropologia francesa de meados do séc. XX — e, em particular, alguns dos trabalhos do etnólogo André Leroi-Gourhan, a que nos reportaremos adiante.

Page 9: A Imagem Construída

3

tradução de ideias novas, assentes numa base não apenas técnica, mas também cultu-

ral e espiritual.

Os dois pólos da oposição não podem, pois, ser pensados separadamente. A voca-

ção técnica do Homem só parece revelar o seu verdadeiro alcance quando contraposta

à sua vocação espiritual e à contingência que perpassa, necessariamente, a totalidade

do tempo histórico. Ou, dito de outro modo, a relação recíproca entre o que uma

sociedade é, ou o que deseja ser, e a tecnologia de que dispõe — seja ela agrícola,

industrial ou artística — são dois aspectos indestrinçáveis, que devem ser compreen-

didos e investigados em conjunto. Só a partir do seu cruzamento se pode entender,

plenamente, momentos históricos tão importantes quanto a descoberta do fogo ou a

observação dos astros, a invenção da imprensa ou da máquina a vapor.

A análise proposta procurará realçar, por isso, em todas as suas etapas, esta relação

de dependência mútua — o laço dialéctico que liga as ideias aos instrumentos e os

instrumentos às ideias. No entanto, os instrumentos que ocupam o centro deste estu-

do pertencem a um tipo especial. Não se trata, apenas, de ferramentas de trabalho

comuns, destinadas à transformação material ou mecânica do mundo. Trata-se de

instrumentos de representação — e, mais concretamente, de instrumentos de represen-

tação espacial. O que está em causa é a própria representação do mundo, o cenário

onde se desenrola a existência humana na multiplicidade das suas acções. E, por isso,

o laço dialéctico acima referido é, aqui, ainda mais forte: em cada época, o Homem

representa o mundo de determinado modo, consoante o vocabulário técnico e simbó-

lico de que dispõe.

A representação espacial pode ser feita de diversos modos: através da linguagem

falada e escrita, da representação gráfica ou da modelação tridimensional — ou ainda

da combinação de alguns ou de todos estes métodos. Não obstante, embora todos

correspondam a modalidades de representação espacial, as informações que veiculam

diferem substancialmente quanto ao seu estatuto. Com efeito, descrever a aparência

de uma igreja numa carta não é o mesmo que enviar um postal ilustrado figurando-a.

De igual modo, pintar uma igreja numa tela ou filmá-la com uma câmara de vídeo

são gestos muito diferentes, que conduzem a resultados igualmente díspares. A diver-

gência não reside, porém, numa simples falta de rigor. Se assim fosse, a igreja visada

seria uma só, e os modos de representação não fariam senão revelar a sua identidade

de modo mais ou menos completo, consoante a sua extensão e a sua resolução. O que

Page 10: A Imagem Construída

4

está em causa, porém, não é simplesmente a quantidade da informação veiculada, mas

a sua qualidade. A igreja “falada” e a igreja “fotografada” são diferentes uma da outra

— e, no limite, irreconciliáveis. E isto porque cada meio de representação mostra algo

de determinado modo e deixa de fora um mundo infinito de outras possibilidades.

Os meios de representação determinam, em grande medida, portanto, a natureza

dos conteúdos representados3. Mas, no caso específico da prática arquitectónica, esta

interdependência reveste-se de uma ambivalência adicional: mais do que uma forma

de retratar a realidade, a representação é o próprio instrumento da sua transforma-

ção. Ao projectarem edifícios, os arquitectos operam sobre a realidade de modo

virtual, através de representações mais ou menos abstractas dos elementos construti-

vos que, articuladamente, compõem o espaço. Robin Evans observa, a propósito do

trabalho de projecto:

«I was (...) struck by (...) the peculiar disadvantage under which architects labour, never working directly with the object of their thought, always working at it through some intervening medium, almost always the draw-ing, while painters and sculptors, who might spend some time on prelim-inary sketches and maquettes, all ended up working on the thing itself which, naturally, absorbed most of their attention and effort. (...) The re-sulting displacement of effort and indirectness of access still seem to me to be distinguishing features of conventional architecture considered as a visual art (...).»4

Na prática arquitectónica, é difícil traçar uma fronteira entre a representação e a

criação, porque os meios de representação, nas mãos dos arquitectos, são ao mesmo

tempo meios criadores. Ao longo de (quase) todo o processo do projecto, até ao

momento de fixação de uma forma definitiva, o desenho desempenha um papel

heurístico — isto é, ele não serve para traduzir uma realidade já definida em todos

os seus detalhes, mas para encontrá-la no decorrer da própria busca5. Numa palavra,

a Arquitectura faz-se representando-se. E, por isso, estudá-la — estudar as suas for-

3 Para lá desta simbiose dialéctica, mensagem e veículo fundem-se mesmo, na formulação ra-dical de Marshall McLuhan, expressa no célebre aforismo: «the medium is the message». MCLUHAN, Understanding Media, ed. cit., p. 7 e passim.

4 EVANS, Translations from drawing to building, ed. cit., p. 156. 5 Para uma análise dessa capacidade transformadora cf. SPENCER, op. cit., passim.

Page 11: A Imagem Construída

5

mas, bem como a sua origem e o seu significado — implicará sempre estudar os

instrumentos de desenho de que faz uso6.

Contudo, o desenho não foi sempre o meio de representação privilegiado no pro-

jecto de Arquitectura e na construção de edifícios. Pode mesmo afirmar-se que a

transição para a cultura arquitectónica moderna se define, em grande medida, pelo

protagonismo que o desenho veio assumir como instrumento de trabalho e forma

de pensamento. Assim, no contexto deste estudo, ao falar-se de um “alvor da moder-

nidade”, fala-se da mudança de paradigma operada na transição da Idade Média para

o Renascimento no que respeita, especificamente, à transformação dos meios de re-

presentação espacial. Enquanto que a tradição medieval privilegiava a oralidade, a

cultura renascentista veio introduzir um sistema de representação eminentemente

visual, que revolucionaria todos os aspectos da prática artística e arquitectónica.

* * *

A presente dissertação divide-se em quatro capítulos principais, um capítulo de

considerações finais, uma selecção bibliográfica e um anexo documental.

O primeiro capítulo começa por tratar as formas de comunicar procedentes da

tradição oral, isentas do recurso a imagens. Depois de um enquadramento geral,

que envolve uma reflexão sobre o “conteúdo” ideal deste tipo de discurso e os cons-

trangimentos a que estava sujeito, focar-se-á o domínio concreto da representação

espacial. Por fim, analisar-se-á um exemplo paradigmático: os desenhos publicados

em Ratisbona, no séc. XV, pelo mestre-construtor Matthäus Roriczer. Ao ocupar-se

da pré-modernidade, este capítulo servirá ainda de contraponto aos desenvolvimen-

tos históricos em análise nos dois capítulos seguintes.

O segundo capítulo refere o debate medieval sobre a validade da arte religiosa, e

da representação em concreto, tomando por pretexto algumas ideias do Abade Su-

ger de Saint-Denis e de Bernardo de Claraval, extraídas do contexto mais amplo das

reformas monásticas que lhes deram origem. Através da sua contraposição, caracte-

rizar-se-á a mudança de paradigma que conduzirá a uma arte mais vocacionada para

6 São estes instrumentos que determinam, também, a qualidade dos seus resultados: «There is an intimate relationship between architectural meaning and the modus operandi of the architect, between the richness of our cities as places of imagery and reverie, as structures of embodied knowledge for collective orientation, and the nature of architectural techne, the differing modes of architectural conception and implementation.» PÉREZ-GÓMEZ, “The Revelation of Order”, ed. cit., p. 5.

Page 12: A Imagem Construída

6

o estímulo dos sentidos e assente em representações cada vez mais naturalistas. Tal

acontecerá a propósito da escultura, da pintura e da literatura, enquadradas pelo

pensamento teórico da época.

O terceiro capítulo foca concretamente a representação espacial, à luz da evolu-

ção descrita no capítulo anterior. Identificar-se-ão os avanços no sentido de repre-

sentar o espaço de forma cada vez mais naturalista e, progressivamente, científica. O

exemplo da Basílica de Assis servirá para analisar os ensaios pictóricos que precede-

ram a fixação de uma técnica perspéctica, bem como a sua vocação ilusionística. Por

fim, caracterizar-se-á a perspectiva como método científico, ponto de chegada sim-

bólico para o desejo de rigor na representação espacial, um dos traços definidores

do dealbar da Idade Moderna.

O quarto capítulo, menos vinculado a uma progressão cronológica, acompanha a

“construção” de uma “imagem”, tendo por base os elementos reunidos nos três ca-

pítulos anteriores e introduzindo outros. Em jeito de conclusão, tecer-se-á conside-

rações sobre as implicações históricas, científicas, artísticas e filosóficas da

introdução da perspectiva. E procurará dar-se conta da magnitude do fenómeno e

das profundas mudanças que operou, na vista, em geral, e no trabalho do cientista e

do arquitecto, em particular.

Nas considerações finais proceder-se-á a uma breve reavaliação das etapas da

análise proposta ao longo do estudo. Completam o texto a selecção bibliográfica e

um anexo documental, que reúne as ilustrações a que o texto faz referência.

Page 13: A Imagem Construída

7

CONSIDERAÇÕES HERMENÊUTICAS

O fenómeno da representação espacial pode ser reconduzido ao problema mais vas-

to da representação gráfica. Em ambos os casos, o que está em jogo é o estatuto

referencial das imagens, o valor da informação que veiculam e, sobretudo, a sua

relação com a realidade representada. É a natureza desta relação que determina o

valor operativo de cada imagem — e é ela que ocupará o centro da nossa análise.

Partir-se-á da convicção fundamental de que toda a imagem representa uma rea-

lidade possível: aquilo que mostra não é o mundo mas apenas um mundo, de entre

uma infinidade de mundos possíveis. O seu olhar é sempre o resultado de uma

construção e, por isso, o reflexo de uma síntese irredutível a esta ou àquela realidade

concreta. Isto significa que nenhuma representação é neutra em relação àquilo que

representa — mesmo quando procura “apagar-se” e confiar o protagonismo da rela-

ção ao objecto representado. Todas as representações se mostram a si mesmas no

objecto representado e condicionam, necessariamente, o modo como este aparece ao

observador e o tipo de informações que é capaz de veicular.

À luz desta verificação, a oposição entre representações ditas abstractas e repre-

sentações ditas realistas pode ser entendida como a tomada de consciência, mais ou

menos explícita, da não-neutralidade dos meios de representação7. A análise que se

segue, guiada por esta tomada de consciência, procurará revelar os meios de repre-

sentação na sua opacidade e determinar o modo como condicionam a experiência

do objecto representado. Procurar-se-á olhar cada imagem não apenas por aquilo

que mostra efectivamente, mas por aquilo que pretende mostrar, pelo modo como o

faz e pelos motivos por que o faz. Será sobretudo na capacidade de significação das

próprias representações, e não no seu conteúdo imediato, que focaremos a nossa

atenção.

7 Historicamente, esta tomada de consciência parece ter-se revelado, com um vigor até então desconhecido, no final séc. XIX. Por uma série de razões — entre as quais, muito brevemente: os desenvolvimentos da filosofia idealista e da filosofia da linguagem, a introdução da fotografia (e, mais tarde, do filme animado) ou as inovações tecnológicas do mundo industrial —, a vira-gem do século ficou marcada, nas arte visuais, por uma tomada de consciência da representa-ção enquanto entidade mediadora, mas autónoma. Isso explica o fascínio crescente com o próprio gesto de representar, arrancado ao anonimato a que o condenara, involuntariamente, a arte “pré-conceptual”. Com efeito, um dos temas favoritos da arte modernista será a exploração dos modos (e dos limites) da representação — seja na pintura, na escultura ou na literatura,

Page 14: A Imagem Construída

8

Em termos gerais, o estudo proposto consistirá numa breve análise histórica, bali-

zada no tempo e no espaço, e servir-se-á de fontes documentais e exemplos concretos

para fundamentar as suas conclusões. No entanto, antes de apresentar esses exemplos,

impõe-se ainda um breve esclarecimento sobre os métodos e os objectivos implicados

na sua recolha.

O que se pretendeu fazer não foi um roteiro cronológico exaustivo, ou sequer um

estudo detalhado sobre este ou aquele momento histórico, sobre esta ou aquela obra

de arte. Procedeu-se, antes, a um acompanhamento crítico da história dos meios de

representação espacial, segundo critérios específicos. A análise deter-se-á nas circuns-

tâncias concretas da introdução desses meios (ou da sua vigência) na medida em que

estas ajudem a compreender as suas implicações conceptuais e o modo como influen-

ciaram a cultura visual e arquitectónica do seu tempo — tanto ao nível da sua prática

como do seu entendimento e da sua recepção.

De igual modo, ao situar cada representação na época e no lugar onde teve origem,

e ao identificar o seu autor ou a sua filiação, não se procurou traçar o seu perfil histó-

rico exacto, mas compreender de que modo o contexto em que se inseriu terá condi-

cionado o seu poder de significação. E não se tratará, tão-pouco, de procurar vestir a

pele de um homem medieval ou renascentista e reencenar a sua cultura e o seu modo

de pensar. Mais uma vez, não serão as circunstâncias concretas relativas à proveniên-

cia de cada imagem ou de cada registo gráfico que ocuparão o centro da análise, mas a

sua fundamentação conceptual. Procurou-se, assim, ter em conta cada lugar e cada

época na medida em que propiciaram a introdução de determinada ideia ou prática

— ou, recorrendo ao conceito cunhado por André Leroi-Gourhan, na medida em que

constituíram um milieu favorable ao seu aparecimento8.

Em suma, o percurso histórico desenhado será um percurso “interessado”. E é

evidente que um empreendimento deste género implica, sempre, algum grau de

distorção9. Falar-se-á de Roriczer, mas não de Villard de Honnecourt; discutir-se-á o

através dos impressionismos, dos expressionismos ou dos cubismos. Todos, pese embora a sua enorme variedade, deram azo a reflexões sobre os actos de ver e dar a ver. Ao entroniza-rem o tema da representação, subtraíram a arte ao jugo da “realidade” e enunciaram a possibi-lidade de uma nova objectividade criativa, regida por regras inteiramente diferentes.

8 Cf. LEROI-GOURHAN, Milieu et Techniques, ed. cit., passim. 9 Relembre-se a consideração metodológica de Panofsky, a propósito da disciplina da História de

Arte: «However we may look at it, the beginning of our investigation always seems to presuppose the end.» PANOFSKY, Meaning in The Visual Arts, ed. cit., p. 32.

Page 15: A Imagem Construída

9

contributo de Alberti, mas calar-se-á o de Piero della Francesca; falaremos de pintura

a propósito de uma discreta capela francesa de província, e de escultura a propósito

daquela que é, porventura, a mais famosa catedral gótica de França; deter-nos-emos

na Basílica de Assis, onde os pueris ensaios perspécticos darão azo a reflexões sobre

realidade virtual; finalmente, seremos inevitavelmente breves na abordagem da inven-

ção revolucionária que foi a da imprensa tipográfica. Os exemplos escolhidos e os

pontos de viragem assinalados não coincidirão, necessariamente, com as balizas geo-

gráficas e temporais consagradas pela historiografia tradicional e serão mais numero-

sas as omissões que as menções. Mas terão todas um carácter exemplar. Isso justifica-

se, não só, pela dimensão necessariamente reduzida de uma análise desta natureza,

mas sobretudo pelo enfoque que se procurou dar aos problema identificados.

Enquanto disciplina autónoma, a Arquitectura é definida, em grande medida,

pelo recurso à representação espacial enquanto instrumento mediador. Daí decorre,

naturalmente, a pertinência do estudo desses meios de representação, sejam eles o

desenho, a fotografia ou a imagem digital. Como já se disse, estes não possuem o

mesmo valor conceptual, nem são interpretados da mesma forma — assim como

não o é qualquer representação espacial, em sentido lato, seja ela elaborada por um

técnico não arquitecto, por um artista visual ou por um amador. E, contudo, devido

ao seu estatuto referencial, a natureza destas representações nem sempre é posta em

causa.

Assim como, para os arquitectos, o desenho não é, simplesmente, a descrição

rigorosa de uma realidade por vir, a representação em geral não é só, inversamente,

a cristalização de uma realidade já existente10. E embora seja comum falar-se, hoje,

de uma sobremediatização da arquitectura e das suas consequências nocivas, esta

crítica foca geralmente a quantidade em detrimento da qualidade e coíbe-se, a mais

das vezes, de analisar os próprios veículos dessa mediatização. Assim, esperamos que

o tratamento das questões propostas por esta análise contribua para uma genealogia

10 Evans enuncia a distinção, numa comparação entre Arquitectura e Pintura: «In painting, until well into the twentieth century, the subject was always (...) taken from nature. (...) the subject, or something like it, is held to exist prior to its representation. This is not true of architecture, which is brought into existence through drawing. The subject-matter (the building or space) will exist after the drawing, not before it. (...) Drawing in architecture is not done after nature, but prior to construction; it is not so much produced by reflection on the reality outside the drawing, as productive of a reality that will end up outside the drawing.» EVANS, Translations from drawing to building, ed. cit., p. 165.

Page 16: A Imagem Construída

10

possível dos conceitos que definem a prática arquitectónica na actualidade. E se é

verdade que tal pode dizer-se de qualquer análise que se debruce sobre qualquer

tema relacionado com a Arquitectura, parece-nos necessário que, ocupando a ima-

gem um lugar tão destacado na cultura arquitectónica contemporânea, se revisitem,

hoje mais do que nunca, as formas do passado que estiveram na sua origem.

Não será exagero considerar que as inovações processuais introduzidas há qui-

nhentos anos geraram hábitos que são, ainda hoje, não só os da prática profissional

dos arquitectos, como os da investigação científica e da própria visão, no sentido

mais lato do termo. No campo concreto da Arquitectura, o desenho enquanto acti-

vidade independente e anterior ao início da construção, a autonomia profissional do

arquitecto enquanto profissional liberal e autor do projecto, a relação com o cliente,

o interesse pluridisciplinar por matérias tão diversas como o desenho, a tectónica, a

História da Arte ou a Filosofia (todas elas leccionadas em escolas de Arquitectura),

tudo isto pode ser reconduzido ao alvor da modernidade e aos novos paradigmas

então introduzidos. E se, como muitos prevêem, esses hábitos estão próximos de um

fim (espelhando o fim análogo da “era da imprensa”, ditado pela hegemonia do

digital), será importante, mais do que redigir um obituário (sob pena de se cair num

exercício meramente nostálgico, reaccionário ou inoperante), compreender exacta-

mente o que está em jogo na mudança de paradigma que agora se anuncia.

Por fim, embora os problemas aqui analisados se reportem à representação espa-

cial como foi praticada na transição para a modernidade, o ponto de vista deste

estudo é, forçosamente, o do momento em que é escrito: a contemporaneidade. Isso

será evidente ao longo do texto, na selecção dos aspectos tomados como mais rele-

vantes, seleccionados de entre muitos outros possíveis. Reler a origem e a ascensão

da preponderância hodierna do elemento visual, com o distanciamento que nos

permite a História entretanto decorrida, pareceu-nos um exercício potencialmente

revelador. E esperamos que tal possa contribuir para uma compreensão mais infor-

mada — e, por isso, criticamente mais rica — dos seus desenvolvimentos recentes.

Page 17: A Imagem Construída

11

ESTADO DOS CONHECIMENTOS

A análise proposta acompanha a evolução dos modos de representação espacial no

período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. O Renascimento,

ponto de chegada genérico dessa transformação — e o Renascimento italiano, em

particular —, é porventura o período mais estudado da História da Arquitectura.

Andrea Palladio, por exemplo, é uma das figuras que mais fascínio exerceu sobre a

classe arquitectónica, tanto como arquitecto quanto como autor e teórico. De igual

forma, também Alberti é frequentemente apontado como o patriarca dos arquitec-

tos modernos. Por isso, é vasta a bibliografia à disposição de quem se lance numa

análise do período, no seu todo ou num aspecto circunscrito. O mesmo não pode

afirmar-se, com igual segurança, do ponto de partida histórico do presente estudo.

É certo que existem inúmeros estudos sobre a cultura construtiva medieval — o

tema específico dos segredos maçónicos ligados aos grémios de construtores, por

exemplo, suscitou desde sempre a curiosidade dos historiadores —, mas a escassez

de documentação original levou, necessariamente, a uma historiografia de cariz mais

especulativo (o mesmo se aplicando às épocas precedentes). O tema específico da

representação espacial durante a Idade Média, quando não se atém a problemas

técnicos, recai numa análise mais alargada do tema, que engloba o contexto filosófi-

co, político e social da época.

Estas breves observações genéricas permitem introduzir os critérios que presidi-

ram, na preparação deste trabalho, à selecção da bibliografia primária — aqui en-

tendida como a bibliografia que analisa directamente as fontes documentais, ou que

está mais próxima delas. No caso do Renascimento, para evitar a dispersão (tanto

nas fontes e como na própria argumentação desenvolvida), bem como um discurso

de natureza demasiado generalista, recorreu-se a estudos mais focados sobre os te-

mas em discussão — e, em concreto, a qualidade comunicativa das representações

espaciais e as mudanças operadas nos métodos que lhes deram origem. Em relação à

Idade Média, procuraram-se estudos igualmente focados, mas enquadrados pela

visão global acima referida. Alguns autores merecem, neste contexto, uma menção

especial, pela importância do seu contributo para a construção e o encadeamento da

argumentação que a dissertação propõe.

Page 18: A Imagem Construída

12

O trabalho de Erwin Panofsky foi não só útil como inspirador. A hipótese por

ele suscitada acerca da correspondência entre filosofia escolástica e arquitectura

gótica foi particularmente importante, tanto pela análise em si como pelo conjunto

de possibilidades historiográficas que enuncia. Igualmente importante foi a sua tra-

dução comentada dos escritos do Abade Suger e, ainda, a reflexão sobre a perspecti-

va como “forma simbólica”. Em qualquer destes casos, a análise desenvolvida

permanece actual, seja pela abrangência do material tratado, seja pela natureza plu-

ridisciplinar das suas reflexões.

Foi também útil, no estudo da tradição oral medieval, o trabalho de outro histo-

riador da mesma geração: Richard Krautheimer. A caracterização da Idade Média

como um “tempo de oralidade” (por contraponto à comunicação através de ima-

gens) deve muito ao artigo “Introduction to an ‘Iconography of Mediaeval Ar-

chitecture’”, de 1942. No sentido de introduzir e definir essa iconografia,

Krautheimer propôs-se analisar não só edifícios medievais, mas (e sobretudo) as suas

descrições verbais ou desenhadas, para aí reconhecer os princípios estruturantes da

prática arquitectónica medieval. Ao exumar o pensamento subjacente à concepção e

representação da arquitectura da época, o autor interroga-se sobre natureza do “con-

teúdo” dessa arquitectura, bem como das suas representações, discutindo a sua ca-

pacidade de significação cultural e, acima de tudo, religiosa. Explora também o

conceito de cópia vigente à época e a hierarquia de importância do material copia-

do, de modo a caracterizar os hábitos e as prioridades dos construtores medievais.

Esta análise relaciona-se estreitamente com outra, mais recente, de Joseph Ry-

kwert: “On the oral transmission of architectural theory”. Neste trabalho de 1984,

o autor defende a eminência da oralidade e da memória na produção arquitectónica

medieval, reforçando assim a ideia de que a teoria arquitectónica da época atribuía

uma importância relativamente reduzida às representações arquitectónicas fiéis (no

sentido hodierno que atribuímos aos conceitos de reprodução e cópia). Rykwert

analisa, com esse fim, o exemplo sintomático do panfleto de Matthäus Roriczer.

Na segunda metade do século XX, a historiografia da Arquitectura explorou ca-

minhos alternativos à investigação puramente arqueológica e tornou-se mais per-

meável a outras áreas do conhecimento, como a Política, a Sociologia, a Economia e

a Filosofia — o contributo crítico do estruturalismo francês, e das escolas pós-

marxista e de Frankfurt, fizeram entrar nomes como Martin Heidegger, Walter

Page 19: A Imagem Construída

13

Benjamin ou Michel Foucault no campo da reflexão sobre Arquitectura. Nasce as-

sim uma nova geração de autores — radicados na Escola de Veneza e, depois, nos

Estados Unidos, mas não só —, mais conscientes do potencial crítico do seu traba-

lho de investigação. São disso exemplo Manfredo Tafuri, Bruno Zevi ou Sigfried

Giedion. Também nesta análise se procurou aplicar ao campo da produção arqui-

tectónica dispositivos de reflexão que lhe são (ou foram) tradicionalmente externos,

já que os fenómenos em estudo se encontram integrados em tendências mais gerais,

com vastas ramificações — compreender uns implica, ainda que sucintamente, en-

quadrar os outros. Neste contexto, recorreu-se, implícita ou explicitamente, ao pen-

samento das escolas referidas, bem como às ideias de Marshall McLuhan, Nelson

Goodman ou André Leroi-Gourhan.

Paralelamente à abertura da reflexão arquitectónica a novos territórios, viu-se

surgir, a partir da década de 60, análises (académicas ou literárias) cada vez mais

focadas, tanto num objecto de estudo específico como na investigação de um aspec-

to concreto, transversal a mais do que uma obra, época ou fenómeno artístico. Esta

tendência intensifica-se hoje, cada vez mais, devido ao alargamento do campo de

estudo e ao aumento exponencial da quantidade de investigadores. Assim, no que

respeita aos desenvolvimentos modernos da representação, a profusão de bibliogra-

fia disponível obrigou a restrições auto-impostas. Deu-se preferência, sobretudo, a

estudos críticos — aqui entendidos como fazendo parte da historiografia que, de

um modo geral, não recorre directamente a fontes11 — e focados sobre temas rele-

vantes para a análise. Falamos, concretamente, de autores como James Ackerman,

Robin Evans, Mario Carpo e Alberto Pérez-Gómez.

Para além de ancorar o estudo a um discurso académico mais recente, esta esco-

lha permitiu, sobretudo, uma abordagem mais teórica das implicações da represen-

tação na transição para uma cultura moderna. Note-se, ainda assim, que parte

destas investigações é assinada por arquitectos, ou produzida por um meio académi-

co que acompanha, directamente, o seu trabalho. Se hoje, mais do que nunca, a

relação umbilical entre a prática arquitectónica e formas de representação (ou nota-

11 É evidente que a bibliografia primária e a bibliografia crítica, nos termos aqui definidos, não são mutuamente exclusivas. Mas a distinção parece-nos pertinente, sobretudo, se se considerar que muitas das análises desenvolvidas pelos autores da segunda metade do séc. XX só seriam possí-veis depois do “trabalho de campo” levado a cabo pelas gerações anteriores (por Panofsky e Krau-theimer, nomeadamente). Mais: essa geração foi já, em alguns casos, a referência para análises mais abrangentes, indo muito além de uma análise arqueológica (no sentido mais estrito do termo).

Page 20: A Imagem Construída

14

ção) espacial parece incontestável, a consciência dessa relação deu azo a uma produ-

ção teórica específica. Robin Evans é talvez o melhor exemplo desta tendência, re-

lendo a história da representação arquitectónica com os olhos de um arquitecto, isto

é, do ponto de vista da suas possibilidades operativas. Também James Ackerman se

interessou concretamente pelas convenções gráficas utlizadas por arquitectos, bem

como a sua origem e evolução histórica.

Mas são porventura Carpo e Pérez-Gómez, pelo teor das reflexões que produzi-

ram, que mais interessam ao contexto deste estudo. Ambos transcendem o âmbito

estrito da historiografia e procedem a análises transversais dos temas da imagem e

da representação espacial ao serviço da prática e da cultura arquitectónica. A obra

fundamental de Carpo (Architecture in the Age of Printing) ensaia uma análise global

das implicações do advento da “era da reprodutibilidade técnica” (aproximando-se,

assim, do famoso ensaio do mesmo nome, de Benjamin). Ao estudar como esta

transformação afectou, em particular, as representações arquitectónicas, o autor

também se debruça sobre a oposição entre a cultura oral da Idade Média e a cultura

desenhada do Renascimento.

Pérez-Gómez analisa, em diversas publicações, a relação entre arquitectura e ci-

ência — ou entre arte e técnica — e avança a possibilidade de uma mutação da prá-

tica arquitectónica ocidental, que se intensificou a seguir ao Renascimento: o que

havia sido especulação filosófica tornou-se progressivamente numa actividade do-

minada pela razão positivista e pela técnica. As análises de ambos os autores partem

de um ponto de vista contemporâneo — não é por acaso, de resto, que a produção

literária recente de ambos se interessa pela contemporaneidade da prática arquitec-

tónica e, nomeadamente, pela hegemonia recente do recurso a ferramentas digitais.

Page 21: A Imagem Construída
Page 22: A Imagem Construída

16

1. Comunicação sem imagens

No ano mil, o Ocidente vivia ainda os efeitos da queda do Império Romano. Desde

que os bárbaros haviam atravessado o Reno e o Danúbio, a Europa era um território

rústico e pobre12. Longe do fausto de Bizâncio, atravessava-se aquilo que os huma-

nistas italianos baptizariam — a posteriori, e servindo causa própria — de Idade das

Trevas. O epíteto é geralmente atribuído a Petrarca, cujo fascínio pelo Império

Romano o levou a reconhecer, no período que à queda deste se seguiu, um retroces-

so civilizacional13. A geração seguinte de humanistas, já plenamente empenhada em

fazer renascer a cultura clássica, daria por terminado o interregno, conferindo pleno

sentido à designação de “Idade Média”14.

12 Cf. DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 13 e DUBY, O Ano Mil, ed. cit., pp. 29-30. 13 Cf. MOMMSEN, op. cit., passim. 14 Embora, em certa medida, esta segmentação da História europeia ainda hoje vigore, foi sendo

sucessivamente matizada. Se, por um lado, era evidente o desinteresse de Petrarca pela Idade Média — para ele, Carlos Magno, por exemplo, era um simples rei que só os povos bárbaros se atreveriam a comparar com Pompeu ou Alexandre (cf. MOMMSEN, ibid., p. 235) —, por outro, a histo-riografia moderna (e a do séc. XX em especial) interessou-se pelos proto-renascimentos do período (nomeadamente o carolíngio, epónimo daquele rei) e reconheceu o lugar histórico daquilo a que Panofsky chamaria, no plural, as “renascenças” (cf. PANOFSKY, Renaissance and Renascences, ed. cit., pp. 42-113 e FERGUSON, op. cit., passim.). No âmbito deste trabalho, utilizar-se-á a designação genérica de “Idade Média” (bem como o adjectivo “medieval”) para referir o período convencionado entre os sécs. V e XV.

Page 23: A Imagem Construída

17

CAOS E COSMOS

Numa Europa essencialmente rural, os mosteiros foram, além de depositários da

cultura erudita do passado, importantes pólos de desenvolvimento local. Em alguns

casos — como, entre nós, o dos Cistercienses de Alcobaça —, o Abade era senhor

de um verdadeiro feudo, com privilégios directamente outorgados por reis e papas.

As comunidades de monges sob a sua tutela viviam mais ou menos recolhidas em

oração, conforme a ordem que professavam, mas quase sempre dinamizando a pai-

sagem em seu redor, nomeadamente através do trabalho agrícola. A sua vida esteve

estritamente ligada às moradas que construíram para si: o mosteiro era um universo

fechado, auto-suficiente, pensado para a vida em comum. Os espaços do quotidiano

— o capítulo, o dormitório, o refeitório, a cozinha — estavam organizados em tor-

no de um claustro, «uma ilha de natureza (...) rectificada, separada do mundo mau

que a rodeia, um lugar onde o ar, o sol, as árvores, os pássaros, as águas correntes

reencontram a frescura e a pureza dos primeiros dias do mundo». Por outras pala-

vras, «o claustro arranca um lanço do cosmos ao desregramento que naturalmente o

afecta. Restabelece-o em proporções harmoniosas. Aos que escolheram retirar-se

para ele, fala a linguagem acabada, cumprida do outro mundo»15.

Adossada ao claustro encontrava-se a estrutura mais importante do complexo

abacial: a igreja. Aí se celebrava a liturgia, actividade comunitária por excelência.

Quando não estavam a trabalhar, os monges rezavam e o regresso frequente ao espa-

ço da igreja, a horas certas, marcava o ritmo dos dias. Rezava-se também de noite,

às vezes interrompendo o sono, o que explicava a proximidade do dormitório à igre-

ja. Como essa, outras razões de natureza prática determinavam a disposição espacial

da abadia. Quando, após o Édito de Milão, os cristãos romanos puderam finalmen-

te erguer os seus espaços de culto, escolheram como modelo, não os templos dedi-

cados aos deuses do panteão latino, mas a basílica romana, um espaço público de

reunião capaz de abrigar grupos numerosos. A sua presença arquetípica perdurou

até aos nossos dias, implícita ou explicitamente, como modelo e como vocábulo16, e

15 DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 276. 16 Pese embora as transformações a que foi sendo sujeita e a antiga concorrência com a planta

centralizada, que ganhou novo fôlego na Renascença Italiana. Cf. WITTKOWER, op. cit., pp. 1-33 e LOTZ, op. cit., pp. 66-73.

Page 24: A Imagem Construída

18

as igrejas foram quase sempre sendo concebidas para escutar a palavra. Para além

disso, deviam permitir uma circulação fácil no seu interior, particularmente as que

acolhiam um número elevado de peregrinos, que ali iam adorar uma relíquia ou

paravam em trânsito para qualquer outro destino sagrado.

Seria, porém, míope reconhecer nessas igrejas somente uma resposta pragmática

aos problemas enunciados, e outros do mesmo tipo. Factores como a proximidade

ao dormitório ou a fácil circulação dos fieis explicam apenas em parte a forma do

edifício, já que a função predominantemente religiosa destes espaços transcendia,

em muito, essas condicionantes de ordem funcional. A igreja está, por exemplo,

orientada de acordo com os quatro pontos cardeais e inscreve-se assim, pela sua

implantação, numa ordem supraterrena. Os significados desta configuração espacial

são múltiplos e variam de acordo com as interpretações — nomeadamente, a ideia

de que o Sol nascente que iluminava o altar-mor revelava o ideal divino como ob-

jectivo a atingir no final da progressão pela nave; e, de modo simétrico, a ideia de

que a entrada da igreja, ao receber os últimos raios do Sol poente, estava associada

ao Mal e era a charneira entre o mundo terreno e o espaço sagrado17. No entanto,

independentemente da exegese adoptada, bastará neste contexto observar, de modo

genérico, que o espaço da igreja remete para um mundo cujo significado transcende

o problema puramente material que coloca. E se nem todos os que nele entravam

seriam sensíveis às implicações abstractas da sua implantação, o mesmo não poderá

dizer-se dos efeitos que produzia. Ao fazer coincidir a incidência do Sol com o eixo

da nave principal, o espaço da igreja recebe poeticamente a luz e confere-lhe um

sentido metafórico: é o Sol que gira à sua volta — e não o contrário, cuja constata-

ção levaria Galileu ao Santo Ofício.

Contudo, mais do que receber a luz solar, cujas possibilidades expressivas seriam,

como se verá, amplamente exploradas nas catedrais Góticas por vir, as igrejas mo-

násticas (e as igrejas românicas, em geral) eram espaços interiores, quase uterinos. O

seu carácter fortificado protegia os fiéis (simbólica e literalmente) de um mundo

hostil e acolhia-os num espaço que evocava o mundo divino. A decoração do inte-

17 Cf. DOW, op. cit., p. 291. O tímpano do pórtico era, por isso, um lugar privilegiado para as re-presentações do Julgamento Final. Ainda segundo esta autora, os extremos do transepto, o Norte, mais escuro, e o Sul, mais luminoso, representariam a Antiga e a Nova Aliança, respectivamente.

Page 25: A Imagem Construída

19

rior era, assim, determinante para dotar o edifício de significado religioso e isso era

evidente logo à entrada:

«Habituados finalmente os olhos à penumbra, logo o mudo discurso da pedra his-toriada, acessível como era imediatamente à vista e à fantasia de qualquer um (porque pictura est laicorum literatura), fulminou o meu olhar e mergulhou-me numa visão de que ainda hoje a custo a minha língua consegue falar.»18

Quem assim fala é o narrador de O Nome da Rosa, admirando o portal da igreja

no mosteiro beneditino que servirá de cenário à intriga19. Nas páginas seguintes,

Adso de Melk verá ainda a sua alma arrebatada, ora «por aquele concerto de belezas

terrenas e de majestosos sinais sobrenaturais», ora por «outras visões horríveis de

ver, e justificadas naquele lugar só pela sua força parabólica e alegórica ou pelo en-

sinamento moral que transmitiam»20. O pórtico era a entrada simbólica da casa de

Deus, dando acesso a um céu recriado na terra. A transposição do pórtico de entra-

da assumia, assim, um carácter iniciático, a um tempo místico e pedagógico, onde

se justificavam até «visões horríveis», pela sua «força parabólica e alegórica» [fig.11].

Fosse através da estrutura, do controlo da luz ou da «pedra historiada», esta capaci-

dade de evocar o divino foi central na concepção medieval da arte, e da arquitectura

em particular. Assim como o claustro era um pedaço de paraíso resgatado ao desre-

gramento do universo, também a igreja, ao inscrever-se numa narrativa metafísica,

suspendia o terreno e convocava o divino, habilitando o espaço ao ritual litúrgico.

Ao tempo dos mosteiros suceder-se-ia “o tempo das catedrais”. Se à igreja abaci-

al, centro isolado num mundo rural, opusermos a catedral, sua congénere urbana,

facilmente se compreende que a capacidade de dotar um lugar de significado religi-

oso conheceu diferentes graus de sofisticação. A catedral era o centro da vida cos-

mopolita que novamente despontava na Europa e que brilharia, em especial, na

França dos sécs. XII e XIII21. A rodeá-la já não está um mosteiro mas uma escola (e,

depois, uma universidade) e para lá dos seus muros já não se avista o mundo rural

mas a cidade.

18 ECO, op. cit., pp. 43-4. 19 A inspiração para a escultura do tímpano ficcionado por Eco vem do pórtico sul da igreja da

Abadia de Moissac, esculpido no séc. XII. Cf. RUDOLPH, A Companion to Medieval Art, ed.cit., pp.38-9. 20 ECO, op. cit., p. 46. 21 Cf. HEERS, op. cit., pp. 151-5.

Page 26: A Imagem Construída

20

A discussão sobre o perfil dos homens que construíram as catedrais do Gótico

esteve na origem de acesas polémicas — as hipóteses avançadas pelos historiadores

imputam o trabalho tanto a membros do clero como a construtores profissionais22.

Não obstante, certo é que a actividade construtiva se vinha especializando [fig. 1]. A

complexidade estrutural e a exuberância decorativa das catedrais da Île-de-France,

em particular, revelam notórios avanços da técnica construtiva e uma carga simbóli-

ca que faz o estilo Românico de muitos mosteiros parecer modesto ou atarracado.

Nascia assim aquilo que ficou conhecido, à época, como opus francigenum. Os pór-

ticos de entrada, por exemplo, transformar-se-iam em monumentos quase autóno-

mos, valendo por si mesmos. Para Duby, eles são nada menos que a razão de ser dos

transeptos das catedrais francesas, que já não têm «outra função que a de dispor ao

norte e ao sul do edifício um pórtico tão vasto, tão convincente como aquele que se

vira para poente»23. Apresentam ilustrações teatrais, cada vez mais complexas, dos

dogmas da Igreja e das histórias da Bíblia. O seu programa decorativo integra uma

estratégia mais vasta de catequização direccionada a quem não fala latim, já que

«pictura est laicorum literatura».

A nova igreja é mais alta e mais clara, volta-se para o céu e é mais transparente, o

que é evidente no exterior mas também no interior, que agora se encheria de luz.

Na Abadia de Saint-Denis, o ilustre Abade Suger (a que regressaremos) fez erguer

um «novo coro transparente, que substituiu a abside carolíngia opaca, e que seria

acompanhado de uma nave igualmente luminosa», sendo todo o edifício «inundado

de uma luz mais brilhante que até então.»24 A luz como metáfora divina foi um dos

temas centrais da arquitectura gótica, associada à ideia de transparência25. Esta dita-

ria o gosto por panos parietais mais ligeiros (por oposição às paredes maciças româ-

nicas, menos perfuradas para evitar o enfraquecimento estrutural) e cumprir-se-ia

22 Sobre o perfil dos “arquitectos” na idade média: «(...) much fruitless discussion about how many medieval masons were also clergy — and whether clergy were or were not architects — broke on the assumption of a rigid professionality among medieval designers and masons, parallel to that of modern practitioners, while the few documents, such as the records of discussions at Florence and Milan cathedrals, show that clergy and masons and laymen all frequently took design decisions col-legially or, as we would now say, in committee.» RYKWERT, “On the Oral Transmission”, ed. cit., p. 15.

23 DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 288. 24 SUGER, On the Abbey, ed. cit., p. 22 (tradução nossa). A citação é de Panofsky, interpretando

as palavras que Sujer deixou escritas. Vide infra p. 33. 25 PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., p. 23. O «princípio da transparência» tem, para o autor,

um significado mais amplo: transparência reflecte também o gosto conceptual por uma arquitectura estruturalmente mais clara, reconhecível e evidente.

Page 27: A Imagem Construída

21

plenamente na exuberante arte do vitral, que ensinava enquanto surpreendia. A iri-

descência intangível dos seus efeitos caleidoscópicos era comparável à polifonia mu-

sical de Pérotin26 [fig. 9]. Assim como a luz do sol animava estas janelas coloridas,

também Deus, enquanto luz espiritual, infundia vida na Igreja27.

Os espaços e elementos estruturais e decorativos até aqui nomeados serão sufici-

entes para mostrar que, através da manipulação destes e de outros dispositivos ar-

quitectónicos, a arquitectura medieval (e a catedral em particular) é a concretização

do edifício teórico da doutrina da Igreja, uma poderosa máquina de significação que

emana de um meio académico sofisticado. As suas formas procedem da teologia e

para ela remetem, como demonstrou Panofsky num célebre estudo sobre a relação

recíproca entre Escolástica e arquitectura gótica28. Para o historiador, esta reciproci-

dade verificou-se de forma «concentrada» (e porventura inédita) nos séculos XII e

XIII, na região parisiense29. Segundo a sua análise, a arquitectura do período seria a

expressão de um «hábito mental»30, uma forma de pensar transposta para a constru-

ção, como se a arquitectura gótica (e as catedrais da alta Idade Média, concretamen-

te) fosse a manifestação, em pedra, da cosmovisão vigente, ou desejada. Isto

verifica-se não só aos níveis decorativo (iconografia bíblica) e espacial (aproveita-

mento metafórico da disposição do espaço ou dos efeitos de luz), mas também de

forma subliminar, a um nível tectónico e construtivo — isto é, na própria organiza-

ção hierárquica dos elementos da construção31.

26 DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 294. 27 Cf. DOW, op. cit., p. 290. 28 Cf. PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., passim. A publicação corresponde a uma conferên-

cia proferida em 1948. Krautheimer aproxima-se desta visão, ao iniciar assim um artigo de 1942: «(...) no mediaeval source ever stresses the design of an edifice or its construction, apart from the material which has been used. On the other hand the practical or liturgical functions are always taken into consideration; they lead on to questions of the religious significance of an edifice and these two groups together seem to stand in the centre of mediaeval architectural thought. (...) The ‘content’ of architecture seems to have been among the more important problems of mediaeval architectural theory; perhaps indeed it was its most important problem.» KRAUTHEIMER, “Introduction to an Icono-graphy”, ed. cit., p. 1.

29 Cf. PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit.: «(...) we can observe (...) a connection between Go-thic art and Scholasticism which is more concrete that a mere “paralellism” (...); a genuine cause-and-effect relation (...).» (p. 20); «the High Gothic cathedral sought to embody the whole of Christian knowledge» (p. 44). O historiador chama «concentrated phase» ao período entre 1130-40 e meados de 1270 e refere, no plano geográfico, a «100-mile zone around Paris» (pp.20-1).

30 Ibid., p. 20. 31 De forma muito geral: o esquematismo escolástico, de que os escritos de Tomás de Aquino

são um exemplo maior, formaliza princípios rígidos como a organização do todo segundo uma confi-guração de partes homólogas, logicamente relacionadas mas destrinçáveis entre si. Assim também, no campo da Arquitectura, os elementos construtivos eram tratados como os elementos de um dis-

Page 28: A Imagem Construída

22

Na base da concepção arquitectónica medieval esteve, assim, o desejo de transpor

para a construção conceitos cuja origem não é, em si mesma, material ou visual,

mas religiosa, literária e filosófica. Se, por um lado, é verdade que a decoração figu-

rativa estava presente, por outro, não o será menos que a prioridade não era repro-

duzir com exactidão gráfica formas específicas. Antes, evocavam-se conceitos através

do uso conceptual da geometria, aplicada ao espaço. Esse, juntamente com a deco-

ração, assumia um valor simbólico, que podia remeter para um sacramento ou um

profeta, por exemplo, ou para o “céu” ou a “salvação”. De modo mais geral e sinté-

tico, o edifício procurava também encarnar, globalmente, conceitos como a unidade

e a clareza32.

UM DISCURSO INVISÍVEL

Muitos são os testemunhos que dão conta de uma propensão generalizada, na Idade

Média, para a palavra dita. Henri-Jean Martin, por exemplo, referindo-se às condi-

ções de difusão da literatura francesa do séc. XII, observa:

«[Elle] était avant tout faite pour être récitée, ou lue à haute voix devant des audi-teurs. Le public sachant lire n'était pas encore assez nombreux pour qu'il pût en être autrement. Il peut paraître à première vue surprenant qu'une tradition litté-raire considérable ait pu se développer dans de telles conditions, mais c’est parce que, pénétrés comme nous le sommes de culture écrite, nous n'arrivons plus à faire l'effort d'imagination suffisant pour nous représenter le mécanisme des transmissions littéraires orales, pourtant attesté dans de nombreuses civilisati-ons.»33

O mesmo autor cita, em seguida, o exemplo dos jograis itinerantes na França dos

sécs. XI e XII, que viajavam de corte em corte recitando de cor poemas, romances e curso filosófico, determinando, nomeadamente, a hierarquia de elementos estruturais (ou estruturan-tes) e a sua relação entre si e com o todo. Ibid. p. 31 e passim.

32 Dow dá seguimento às ideias de Panofsky e escreve: «(...) the Gothic cathedral is said to be the Neoplatonic visualization of that cosmic harmony whereby all creation mirrors the divine reality. Or, alternatively, it has been seen as the material result of an architectural synthesis with its spiritual parallel in the synthesis of faith and reason at which the Thomist aimed.» DOW, op. cit., p. 290.

33 MARTIN, op. cit., p. 28. O autor acrescenta ainda: «Il semble cependant qu'à notre époque ces nouveaux moyens de diffusion non écrite de la pensée que sont le cinéma, et surtout la radio, devraient nous aider à mieux concevoir ce que peut être, pour des millions d'individus, une transmis-sion d'œuvres et d'idées n'empruntant plus le circuit normal du texte écrit.»

Page 29: A Imagem Construída

23

vidas de santos — faziam-no em verso por assim lhes ser mais fácil memorizar esses

textos34. Os estudiosos, por outro lado, tinham à sua disposição manuscritos que

podiam (e sabiam) ler, mas, antes da imprensa de Gutenberg, o seu número era

muito reduzido. Viam-se assim constrangidos a lê-los em voz alta: fazendo-o, me-

morizavam-lhes o conteúdo e podiam assim dispensar a presença física dos textos35.

Uma cultura que dependia da oralidade estava, assim, necessariamente subordinada

à memória dos homens, a qual que procurava auxiliar através de processos

mnemotécnicos. Já Vitrúvio, mil anos antes — e Pitágoras, meio milénio antes dele

—, se mostrara empenhado em abreviar o discurso para facilitar a sua memorização:

no preâmbulo do quinto livro do seu célebre tratado, o autor promete explicações

expeditas, «para que sejam entregues à memória»36.

Na ausência de métodos para reproduzir fielmente imagens, também a transmis-

são de conhecimento técnico foi confiada à oralidade. Todavia, no contexto da

construção medieval, outra razão determinante pode apontar-se para a persistência

da tradição oral (e, simetricamente, para a rareza do registo escrito ou desenhado): o

sigilo imposto pelos grémios de construtores. Se, por um lado, os seus membros

comunicavam entre si, formavam aprendizes e desejavam legar o seu conhecimento

a futuras gerações, por outro, paradoxalmente, pretendiam também proteger do

olhar de estranhos os segredos da sua profissão, numa lógica corporativa de protec-

ção da classe. Esta propensão secretista alimentou mitos e lendas que ora estimula-

ram ora dificultaram a tarefa dos historiadores. Ainda assim, é consensual que

existiram, de facto, imposições formais com vista a proteger os segredos da profissão

(independentemente de terem sido mais ou menos restritivas, nesta cidade ou na-

34 Ibid., p. 29. 35 Cf. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., pp. 24-5 e nota 10. Também Duby fala de monges

medievais que deviam «ler e reler em voz alta» os livros iluminados que anualmente recebiam. DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 277.

36 «Escrever sobre arquitectura não é a mesma coisa que escrever história ou poesia. As histó-rias (...) entretêm os leitores (...) trazem várias espectativas de coisas novas. (...) Porém, isto não se verifica nos tratados de arquitectura, porque os vocábulos, concebidos pela própria especificidade da arte, trazem obscuridade à linguagem (...). Se os escritos que longamente divagam sobre os preceitos não forem resumidos e explicados em pequenas e claras definições, tornam-se confusos para as mentes (...). Nestas circunstâncias, brevemente exporei os difíceis termos técnicos e as proporções das partes dos edifícios, para que sejam entregues à memória. E, desse modo, as mentes poderão recebê-los de modo mais expedito. Até porque, vendo a cidade ocupada com os negócios públicos e privados, julguei que deveria escrever em poucas palavras, para que os que recorrem a este tratado pudessem rapidamente consultá-lo no pouco tempo livre de que dispõem.» VITRÚVIO. Tratado de Arquitectura, ed. cit., p. 175. É o próprio Vitrúvio que, a seguir, cita Pitágoras como inspiração.

Page 30: A Imagem Construída

24

quele período), mantendo-se, em alguns casos, em vigor até ao séc. XVIII. Regula-

das pelos estatutos das próprias organizações corporativas, estas restrições incluíam,

por exemplo, a proibição expressa de registar por escrito segredos técnicos da profis-

são37.

Havia, pois, que assegurar a transmissão de conhecimentos e, no mesmo gesto,

impedir a sua divulgação aos não-iniciados: era necessário um discurso invisível.

Ora, é precisamente à luz deste binómio dialéctico que deve ser interpretada a juste-

za da tradição oral, sob pena de se incorrer na simplificação de considerar a “falta de

desenho” da cultura arquitectónica medieval como um defeito, ou tão-só como um

estádio tecnologicamente deficitário, por oposição à era da imprensa que se lhe se-

guiu. Em certa medida, pode até dizer-se que esse avanço tecnológico não era se-

quer bem-vindo, não apenas pelo zelo secretista, mas também, como se verá, pela

própria natureza do discurso veiculado. Para compreender esse discurso, e especifi-

camente como a sua forma influenciou o seu conteúdo, será útil analisar em que

condições ele circulou para lá de um âmbito mais restrito.

Um dos traços distintivos da arquitectura medieval foi, precisamente, a incapaci-

dade de sobreviver incólume a viagens no espaço e no tempo. E, no entanto, tal não

significa que o conceito de “cópia” fosse desconhecido, ou que os construtores da

Idade Média não tenham querido (e conseguido) importar edifícios de outros luga-

res. Antes pelo contrário: um estudo de Richard Krautheimer põe em evidência a

intenção deliberada de imitar certas construções arquetípicas, elegendo-a como um

aspecto central das tradições arquitectónicas românica e bizantina38. No entanto,

estas cópias não parecem assemelhar-se aos seus originais, nem, tão-pouco, entre si.

A elucidação dessa aparente discrepância ajuda-nos a compreender não só o concei-

to medieval de cópia, como também alguns princípios da própria arquitectura da

época e das suas representações. À medida que evoluíram os mecanismos de trans-

missão e disseminação de informação (com recurso a imagens rigorosamente dese-

nhadas e reproduzidas), modernizou-se também o conceito de “cópia” até ao que é

hoje o nosso. Na Idade Média, porém, copiava-se com base noutros critérios. Com

37 CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., p. 25 (para uma bibliografia actualizada sobre o tema ver nota 13).

38 Cf. KRAUTHEIMER, “Introduction to an Iconography”, ed. cit.

Page 31: A Imagem Construída

25

vista a identificá-los, Krautheimer debruçou-se sobre o exemplo paradigmático do

Santo Sepulcro, em Jerusalém, e das suas cópias erguidas um pouco por toda a Eu-

ropa, interessando-se pela relação que estas estabelecem com o original39.

O santuário, que tanto fascínio exerceu sobre o imaginário europeu da época,

constituiu um dos temas mais recorrentes da cultura medieval. Prova disso foram,

nomeadamente, as sucessivas campanhas das Cruzadas40. À excepção dessas expedi-

ções, porém, poucos efectivamente o visitavam: viajar não era fácil e a cidade de

Jerusalém, que foi permanecendo Árabe apesar daquelas campanhas militares, era

um destino particularmente hostil. Assim sendo, as “réplicas” do santuário procura-

ram recriar virtualmente esse lugar santo, convocar a sua transcendência41. Essas

reconstituições baseavam-se num conhecimento veiculado oralmente e, neste caso

específico, eram instrumentais os relatos de quem efectivamente foi (e sobreviveu) à

Terra Santa, quer se tratasse de peregrinos, mercadores ou militares. Nomes, quan-

tidades, medidas aproximadas, disposições relativas ou a geometria da planta eram

as informações que podiam ser reproduzidas à chegada42. Krautheimer analisa vários

exemplos de cópias documentadas, isto é, edifícios que sabemos terem sido intenci-

onalmente declinados do Santo Sepulcro, para demonstrar que o que partilham com

o original são, com efeito, atributos daquele jaez. Um dos mais significativos de

entre esses era, por exemplo, a planta circular. Contudo, após análise de vários

exemplos, o historiador é levado a concluir que, aos olhos do homem medieval,

quase tudo o que tivesse mais do que quatro lados podia ser considerado um círcu-

lo; que um semicírculo, um quadrado ou um rectângulo não eram formas claramen-

te distintas; que, em suma, uma semelhança geométrica aproximada era condição

39 O autor justifica assim a pertinência do seu caso de estudo: «Among the great number of edi-fices erected throughout the Middle Ages with the intention of imitating a highly venerated prototype, one group is particularly suitable for establishing the nature of a mediaeval copy: the imitations of the Holy Sepulchre at Jerusalem. They exist not only in great numbers but also depend on a model which is still relatively well preserved and can easily be reconstructed in its original aspect. These copies were built all over Europe from the 5th to as late as the 17th century.» Ibid., p. 3.

40 Cf. HEERS, op. cit., pp. 157-68. 41 Algo de semelhante pode ser apontado a propósito de dois outros fenómenos análogos. Na

pintura retabular, através do hábito de retratar cenas bíblicas sobre fundos locais, fossem paisagens ou cidades, importava-se a cena para o contexto específico da comunidade a que se destinavam. A uma escala urbana, a reconstituição teatral da paixão de Cristo, que ainda hoje é encenada em algumas cidades um pouco por todo o mundo, era um modo performativo de recriar a «geografia sagrada» do cristianismo. Cf. COLDSTREAM, Medieval Architecture, ed. cit., pp. 151-52.

42 Cf. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., p. 37.

Page 32: A Imagem Construída

26

bastante para aparentar dois edifícios distintos [fig. 2]43. Krautheimer conclui, en-

fim, que a «imprecisão» medieval (por oposição ao rigor moderno) revela que a imi-

tação formal era levada a cabo «não tanto pela imitação em si, mas por aquilo que

esta implicava»44, pelo seu significado.

Assim se compreende terem ganho estas “cópias” uma vida arquitectónica pró-

pria: apesar de existir de facto como edifício construído, o Santo Sepulcro conver-

teu-se numa descrição, num conjunto de atributos — um modelo abstracto — e foi

nessa capacidade que circulou pela Europa. Esses atributos não perfaziam o todo

que era o objecto arquitectónico a reproduzir. Eram, antes, aspectos seleccionados à

luz do que, por um lado, se julgava importante e, por outro, do que podia efectiva-

mente ser comunicado por palavras, sem que houvesse contradição entre os dois

critérios. A literatura da época confirma isso mesmo: para os autores medievais era

plausível comparar (e, portanto, equiparar) edifícios que partilhassem apenas um ou

dois destes atributos 45 . O laço de parentesco entre duas igrejas chegou a ser,

tão-somente, o nome do santo da dedicação, o que atesta, mais uma vez, a impor-

tância atribuída à palavra e à tradição oral.

Por fim, esta atitude é também evidente em representações desenhadas. É o caso

de uma iluminura do início do séc. XI, um retrato arquitectónico particularmente

exaustivo, que consta do Sacramentário de Henrique II, Sacro Imperador Roma-

no-Germânico46. Trata-se, também aqui, do Santo Sepulcro, ou, neste caso concre-

to, da Anastasis, a rotunda central do edifício [fig. 3]. Conduzindo o olhar de baixo

para cima, pode ver-se na iluminura: o interior do túmulo de Cristo; a galeria da

rotunda do edifício original e, imediatamente por cima, as quatro janelas do cleres-

tório, ambas vistas a partir do interior; a cobertura da galeria, o alçado do clerestório

(com nove janelas) e a cúpula perfurada por um óculo, agora vistos do exterior; e

43 A figura mostra quatro dos muitos exemplos mencionados por Krautheimer. Sobre estes, es-pecificamente, o historiador escreve: «All four of these structures were intended to represent the Holy Sepulchre at Jerusalem. But all four are quite different from one another: they are round or octagonal, with a single nave or surrounded by an ambulatory, vaulted or possibly with timber roofs, with one or more absidioles, and eight or twelve supports. The differences seem considerably to outweigh the similarities. These differences become even more striking when the four edifices are compared with their common prototype at Jerusalem (...).» KRAUTHEIMER, “Introduction to an Icono-graphy”, ed. cit., p. 5 (sublinhado nosso).

44 Ibid., pp. 7-8. 45 Ibid., p. 15. 46 O luxuoso livro foi encomendado por Henrique (antes ainda de ser Imperador, mas pouco tem-

po depois de se auto-coroar rei, em 1002) aos monges iluminadores da Abadia Beneditina de Santo Emmerano, em Ratisbona.

Page 33: A Imagem Construída

27

finalmente, de regresso ao interior e ao piso térreo do edifício, a parte de cima do

túmulo, flanqueada por dois soldados adormecidos47.

Esta desintegração dos diferentes elementos que compõem o edifício original, e o

“cubismo” da sua posterior recomposição, revelam, mais uma vez, a natureza insular

de cada um dos atributos considerados importantes, bem como a sua submissão a

uma visão hierarquizada da arquitectura. De modo análogo, na pintura retabular

medieval, as personagens mais importantes assumiam dimensões maiores ou encon-

travam-se em planos superiores no espaço pictórico, num gesto anti-naturalista que

ilustra a primazia simbólica dessas representações. Na escultura, igualmente, a prio-

ridade dada a princípios de pedagogia catequética produzia efeitos análogos [fig.

4]48. Assim também, no caso da iluminura analisada, o túmulo de Cristo serve, si-

multaneamente, de início e fim ao edifício e unifica a representação, conferindo a

toda a estrutura uma coerência simbólica.

O CASO RORICZER

Pouco chegou até nós a que se possa chamar, com propriedade, uma teoria contem-

porânea da arquitectura medieval. Existem algumas peças escritas e desenhadas,

elaboradas nos sécs. XV e XVI (registando, em muitos casos, técnicas mais antigas)

e provenientes, na sua maioria, da Alemanha e de Espanha, mas de natureza mais

prescritiva que teórica. Isto é, documentos que fornecem instruções sobre como

fazer algo, mais do que a teoria subjacente49. É disso exemplo o panfleto Roriczer.

Os Roriczer eram uma família de mestres de obra com actividade documentada

no ducado da Baviera a partir do séc. XIV50, em particular na cidade de Ratisbona.

À época, a actividade construtiva era, frequentemente, um ofício familiar, passado

de pai para filho. No caso dos Roriczer, pelo menos três gerações — Wenczlaw, o

filho Konrad e o neto Matthäus — trabalharam na construção da catedral daquela

47 Cf. KRAUTHEIMER, “Introduction to an Iconography”, ed. cit., p. 14. 48 A figura mostra uma escultura das Santas Mães, ou Santa Ana triplice. Santa Ana, a “primeira

mãe”, carrega Maria, sua filha, ao colo. Esta “segunda mãe” é representada mais pequena, de acor-do com o seu grau de parentesco com Santa Ana, e tem ao colo, por sua vez, Jesus, a figura mais pequena da composição.

49 Cf. COLDSTREAM, Medieval Architecture, ed. cit., p. 61. 50 Embora a sigla “R.” geralmente associada à família tenha ocorrências mais antigas.

Page 34: A Imagem Construída

28

cidade, onde ocuparam posições de crescente importância. O seu trabalho trouxe-

lhes notoriedade, tornando-os solicitados noutras construções da região 51 .

Matthäus, chefe de obras da catedral a partir de 1477, publica em 1486-7, a mando

do Bispo de Eichstätt, três volumes sobre construção: Das Büchlein von der Fialen

Gerechtigkeit, Die Geometria Deutsch e um terceiro opúsculo dedicado a empenas.

No primeiro destes volumes — em tradução livre, “o panfleto sobre a justa edifica-

ção de pináculos” — Roriczer regista um método cuja origem remonta, provavel-

mente, a uma tradição oral mais antiga52 e visa determinar, a partir da planta, a

altura e perfil de um pináculo. Especula-se que esta pequena publicação auxiliasse a

formação de pedreiros e o aprofundamento dos conhecimentos técnicos de emprei-

teiros e donos de obra. No contexto da obra, o panfleto poderia ainda servir de au-

xiliar de memória para construtores ou capatazes já familiarizados com a técnica

construtiva53.

Através de uma série de esquemas geométricos relativamente simples, Roriczer

ilustra os passos a seguir para “levantar” a planta de forma adequada54. O sistema

prescreve a concepção do pináculo como uma sucessão de formas contidas em para-

lelepípedos sobrepostos, cujo volume vai diminuindo de acordo com uma factor

constante. Por outras palavras, a planta do pináculo vai reduzindo à medida que

este cresce em altura e essas sucessivas reduções são determinadas mediante uma

construção geométrica proporcional. O método é, portanto, elaborado em planta,

partindo-se daí para a correspondência em alçado [fig. 6]. Roriczer começa por de-

senhar um quadrado correspondente à planta-base do pináculo e, no interior deste,

inscreve os quadrados das plantas intermédias sucessivas; finalmente, por meio de

51 Cf. MORSBACH, Peter. “Roriczer” in Neue Deutsche Biographie (2005), Bd. 22. p. 35-6. 52 O próprio Roriczer cita um grupo de construtores de Praga (“Junker von Prag”) como in-

spiração. Cf. RORICZER, op. cit., p. 97 e SHELBY, “The Geometrical Knowledge”, ed. cit., pp. 412. 53 Cf. SHELBY, ibid., pp. 417-8. Além das razões aventadas para a redação do folheto, não será

improvável que esta maneira “justa de edificar pináculos” visasse também, e sobretudo, um equilíbrio estruturalmente seguro. Segundo Carpo, embora ainda não existisse, na Idade Média, uma «ciência da Estática», as regras propostas por Roriczer não diferem muito do que será hoje um exercício de escola nessa área. Cf. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., p. 25.

54 As restrições já referidas em relação à publicação de segredos da profissão estavam, em Ra-tisbona, explicitamente consagradas nos estatutos publicados em 1459, que regulavam a actividade construtiva na cidade. É de supor, portanto, que também a família Roriczer as terá conhecido. No entanto, Matthäus não as terá desrespeitado ao publicar o seu panfleto, que, na opinião de Rykwert, é demasiado simples para desvendar segredos maçónicos: «Certainly the regulations at Regensburg did prohibit the revealing of how to elevate from a given plan, and the booklets seem to be concerned with a method of doing this. But (...) Whatever is being taught (...) is not the doctrine of Euclid, but a relatively simple sleight-of-hand or rule-of-thumb.» RYKWERT, “On the Oral Transmission”, ed.cit., p.21.

Page 35: A Imagem Construída

29

operações geométricas auxiliares, é possível determinar a planta dos elementos sali-

entes que despontam ao longo da estrutura55.

O discurso de Roriczer é essencialmente geométrico, de matriz euclidiana, e pode

ser entendido como um prolongamento natural do recurso à oralidade e à memória,

que parece vir auxiliar. A concomitância entre a natureza esquemática do panfleto e

a tradição oral é tão mais evidente se pensarmos na qualidade narrativa de uma

construção geométrica. Ela é, com efeito, um processo que se desenrola no tempo,

uma sequência que pode ser recitada em voz alta, do início da operação até à sua

conclusão56. Este tempo real da operação confere-lhe uma qualidade performativa,

próxima da formação em geometria descritiva que ainda hoje recebemos nas nossas

escolas. Marcar um ponto, achar uma bissectriz, rebater um plano, são sequências

de operações que memorizamos e executamos sobre o papel.

Finalmente, esta forma de comunicar está também na base da formação dos

aprendizes da profissão e condiz com a tradição do aprender fazendo, segundo a

qual os mestres mais velhos treinavam os aprendizes nas suas oficinas. Aí, a trans-

missão do conhecimento era essencialmente oral e não, como viria a tornar-se regra,

por meio de manuais. Aprender através de livros era um conceito alheio ao homem

medieval comum, o que facilmente se compreende sabendo que a maioria das pes-

soas não sabia ler nem tinha acesso a manuscritos, então apanágio das elites religio-

sas e nobiliárias57.

Se é verdade que a transmissão oral de conhecimento se coaduna com a cultura

arquitectónica da época, não o será menos que, para os construtores da Idade Mé-

dia, mesmo que o tivessem desejado, teria sido muito difícil registar modelos arqui-

tectónicos em imagens precisas. O problema não era premente, pois não se punha

no momento de comunicar o “projecto” à obra — e se fosse necessário duplicar

55 Ou, em termos matemáticos: «The answer (...) is arrived at by the use of a modulated rule and the passage from one level to another by the use of inscribed squares rotating at 45°, which gives the operator a series of squares related as 1:√2 — or, as it was called, ad quadratum.» Ibid., p. 19.

56 Cf. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., pp. 35-6. O autor acrescenta: «It is easier to tell a story than to learn a table of logarithms by heart — a factor that may help to explain the centuries-long primacy of geometry, and the concomitant absence of arithmetic, in oral cultures. In part, the rise of number and algorism in modern Europe is also an effect of the printed page.»

57 Cf. SHELBY, “The Geometrical Knowledge”, ed. cit., pp. 411-2. Duby refere, a este propósito, uma literatura podre, escrita em latim, «forjada no pequeno círculo dos letrados e apenas para uso próprio.» DUBY, O Ano Mil, ed. cit., p. 17.

Page 36: A Imagem Construída

30

nesse contexto algum desenho, havia métodos mais rudimentares que permitiam

fazê-lo58. Não obstante, como já foi referido, era praticamente impossível fazê-los

circular para lá de um espaço geográfico restrito. Essa proeza viria a ser apanágio da

imprensa (e, depois, da gravura, da fotografia e, até certa medida, do computador e

das redes digitais). No início do séc. XV, porém, a Europa não dispunha, ainda, de

um meio prático, fiável e rigoroso (no sentido gráfico e mimético) de comunicar

informação sob a forma de imagens e os construtores, naturalmente, desenvolviam a

sua actividade de acordo com estas limitações. O panfleto editado por Roriczer é

disso um bom exemplo. O seu autor, também vinculado a uma tradição pré-

tipográfica, define uma regra, por oposição a um modelo. Seguindo as suas instru-

ções, pode obter-se uma miríade de pináculos diferentes: é-nos fornecido, não o

retrato de um pináculo específico, que seríamos convidados a imitar, mas uma re-

ceita que permite a edificação de um pináculo. Este, apesar de “edificado de forma

justa”, pode assumir várias formas — ou seja, a mesma regra pode gerar pináculos

diferentes.

A natureza esquemática da receita de Roriczer torna-se particularmente evidente

a partir das especulações de William Mitchell em torno das suas potencialidades59.

O autor propõe uma leitura mais livre, não apenas na passagem do desenho à práti-

ca construtiva, mas também ao nível da especulação puramente gráfica. Como não

se cinge ao âmbito estrito da construção de pináculos, os resultados são algo fanta-

siosos60 e, justamente por isso, úteis para compreender a qualidade abstracta do

conhecimento ali veiculado, bem como a multiplicidade de variações a que este

pode dar origem. Mitchell sugere vários ângulos de aproximação ao problema, ex-

plorando diferentes possibilidades contidas in nuce nas instruções do mestre de Ra-

tisbona. Chama a atenção, por exemplo, para a diferença implicada em reconhecer,

no primeiro esquema de Roriczer [fig. 6], três quadrados ou oito triângulos rectân-

gulos (ou ainda um conjunto de várias linhas soltas, convergindo em vários pontos)

[fig. 7]; ou em procurar construí-lo em vigas de madeira, peças metálicas ou ele-

mentos de betão pré-fabricado, o que suscitaria problemas construtivos diversos e

58 Como, por exemplo, a prática de perfurar ou desenhar por cima do desenho original, de forma a fazer o desenho passar para a folha imediatamente por baixo. Cf. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., pp. 28-9.

59 MITCHELL, “Vitruvius Redux”, ed. cit., pp. 11-3. 60 Como o próprio reconhece: «Roriczer himself had something else in mind». Ibid., p. 12.

Page 37: A Imagem Construída

31

sugeriria outras tantas variações [fig. 8]. Finalmente, o autor enceta uma especula-

ção puramente gráfica em torno do diagrama original, o que lhe permite reconhecer

nele uma planta, um pictograma ou uma composição geométrica abstracta, confor-

me a sensibilidade de quem olha. Independentemente da intenção primitiva de Ro-

riczer, ao fazer depender as leituras e operações possíveis da sensibilidade e do inte-

interesse de cada um, torna-se clara a potencial ambiguidade do panfleto.

Essa liberdade de interpretação é fundamental para o entendimento da noção de

“regra” em análise neste estudo. Em termos gerais, uma regra estabelece os predica-

dos que definem uma série de eventos. Trata-se, pois, de uma definição essencial-

mente nominal, que se limita a descrever em termos universais. Como vimos, um

conjunto de pináculos diferentes entre si podem ser, ainda assim, o resultado da

prescrição de Roriczer. Logo, embora se trate de objectos fundamentalmente dife-

rentes, o facto de obedecerem à mesma regra consigna-os a uma mesma classe —

neste caso, a dos pináculos cuja altura é decorrente da área da base, segundo um

factor constante.

Este modo de pensar concorda com o que já se disse a propósito da cultura ar-

quitectónica medieval e, em particular, com o forma de comunicar dos construtores

da época. Carpo enuncia do seguinte modo as ramificações do problema:

«(...) in a culture that lacks reproducible images (...), theoretic discourse tends in-evitably to formalize its arguments. (...) Unable to conjure up the realm of con-crete objects, discourse will focus on abstract categories or classes. During this process of formalization the object itself disappears. Rules and principles define a class of events without individualizing them or distinguishing specific cases.»61

O problema pode, assim, ser reconduzido a uma discussão filosófica mais antiga

e mais vasta, cuja repercussão na produção arquitectónica medieval é assinalável.

Com efeito, pode afirmar-se, de modo muito geral, que a epistemologia clássica e o

discurso científico a que aspirava partem da oposição canónica entre conhecimento

empírico — aquilo a que os gregos chamavam empeiría, isto é, o conhecimento

veiculado pelos sentidos e pelas sensações, expresso por proposições particulares —

e conhecimento epistémico — a epistême ou scientia, adquirida por via indutiva e

expressa por proposições universais. O primeiro inscreve-se no domínio do acidente

61 CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., p. 34.

Page 38: A Imagem Construída

32

ou da contingência, incapaz de ascender ao plano da universalidade; o segundo,

adquirido através da síntese de várias captações empíricas convertidas, através da

linguagem, em operadores universais, transcende o hic et nunc da experiência quoti-

diana e, logo, o plano da temporalidade.

Assim, à semelhança do que já acontecia no pensamento clássico — e a Escolásti-

ca estava precisamente a braços com a tarefa conciliadora de incorporar o pensa-

mento de Aristóteles na doutrina da Igreja62 —, é excluído do discurso científico o

conteúdo que a comunicação oral (ou verbal) não se encontra vocacionada para

transmitir, isto é, qualidades específicas, exclusivas ou acidentais. Essas qualidades,

que dizem respeito a um objecto individuado, enquanto caso isolado, são (ou viriam

a ser) tendencialmente expressas por imagens. É esta vocação intrínseca de cada um

dos dois tipos de discurso que leva William Ivins à seguinte ilação:

«(...) much of the philosophical theory of the past can eventually be traced back to the fact that, whereas it was possible (...) to describe or define objects by the use of words (...) addressed (...) to the ear, it was not possible to describe or define them by exactly repeatable images addressed to the eye.»63

62 Tarefa a que Panofsky chamou «[the] technique of reconciling the seemingly irreconcilable, perfected into a fine art». PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., p. 67. Vide infra p. 48.

63 Cf. IVINS, Prints and Visual Communication, ed. cit., p. 63.

Page 39: A Imagem Construída

33

2. Representação do mundo visível

A reforma levada a cabo pelo Abade Suger na Abadia de Saint-Denis, que a converte-

ria no epicentro do novo opus francigenum, foi muito além da construção da nova

ábside mais luminosa acima referida. Desde os primeiros anos do seu ofício abacial,

inaugurado em 1122, Suger vinha angariando fundos para a reconstrução e redecora-

ção da basílica; aquando da sua morte, deixou um edifício renovado64 e cheio de pre-

ciosos tesouros, só comparáveis aos da catedral de Constantinopla65 [fig. 10]. Mas o

exemplo de Saint-Denis é especial por outra razão ainda: ciente da importância das

transformações que promoveu, e delas manifestamente orgulhoso66, Suger deixou

registos eloquentes, mas precisos, da sua actividade enquanto patrono67. Assim, legou

à posteridade não só a possibilidade de reconstituir o processo de construção da aba-

dia que reinventou mas as ideias por detrás da grande empresa.

64 Sobre o papel do Abade Suger como patrono das artes em Saint Denis cf. RUDOLPH, Artistic Change, ed. cit., passim e SUGER, On the Abbey, ed. cit., passim.

65 Cf. CROSBY, Sumner McKnight [et al.], The Royal Abbey of Saint-Denis, ed. cit., passim. 66 Segundo Panofsky: «To put it less academically: he was enormously vain.» SUGER, On the

Abbey, ed. cit., p. 29. 67 Nomeadamente o Libellus de consecratione ecclesiae S. Dionysii (“Pequeno livro sobre a

consagração da igreja de Saint-Denis”) e o Liber de rebus in administratione sua gestis (“Livro sobre o que foi feito sob a sua administração”), ambos compostos em meados da década de 40.

Page 40: A Imagem Construída

34

AD VERUM PER MATERIALIA

Louvado pelos seus contemporâneos, que o equipararam a um segundo Cícero, Suger

é autor de uma prosa que ombreia em eloquência com a do famoso orador romano,

mas não (infelizmente para os historiadores) em clareza68. Mais exuberante ainda na

sua poesia, o abade entregava-se, por vezes, a «orgias sobre a metafísica neoplatónica

da luz»69:

«Pars nova posterior dum jungitum anteriori, Aula micat medio clarificata suo. Claret enim claris quod clare concopulatur, Et quod perfundit lux nova, claret opus Nobile, quod constat auctum sub tempore nostro, Qui Suggerus eram, ne duce dum fieret.»70

Luminoso seria, assim, o nobre edifício, «invadido por uma nova luz». Mas a am-

bição da empreitada em Saint-Denis gerou algumas animosidades. De entre elas, é

célebre a de Bernardo de Claraval. Numa longa carta de 1127, este concede a Suger

o mérito de ter levado a cabo importantes reformas, mas descreve, simultaneamente,

a desordem em que se encontrara, até aí, a Abadia. Bernardo critica-lhe a propensão

para o luxo e para as coisas mundanas e observa que, naquela abadia, «sem delonga

e de boa vontade, se dava a César o que era de César; mas não se cuidava com igual

solicitude do dever de dar a Deus o que é de Deus.»71 O abade cisterciense era defen-

sor acérrimo de um monaquismo mais austero, baseado numa vida de silêncio, de

obediência cega e de abnegação, nomeadamente em relação ao conforto pessoal e ao

contacto com o mundo secular.

68 Cf. SUGER, On the Abbey, ed. cit., p. xi. 69 Ibid., pp. 21-2. 70 Os versos destinavam-se a ser exarados na pedra e celebravam a construção e consagração

do novo coro superior da igreja. A passagem é traduzida por Panofsky assim: «Once the new rear part is joined to the part in front, The church shines with its middle part brightened. For bright is that which is brightly coupled with the bright, And bright is the noble edifice which is pervaded by the new light; Which stands enlarged in our time, I, who was Suger, being the leader while it was being accomplished.» Ibid., pp. 48-51.

71 Cf. BERNARDO de CLARAVAL, op. cit., p. 377. Bernardo cita a passagem do Evangelho segundo S. Mateus (22, 12) para se referir às estreitas relações entre Suger e a corte parisiense, que torna-vam a abadia num lugar de reunião mundano e ponto de encontro para as tropas reais.

Page 41: A Imagem Construída

35

A sua doutrina implicava, também, uma reflexão sobre a função da arte religiosa

(e, consequentemente, a forma que esta devia assumir), bem ilustrada nesta famosa

diatribe contra a exuberância da escultura românica francesa:

«Que vêm fazer nos vossos claustros, onde os religiosos se entregam às santas leitu-ras, esses monstros grotescos, essas belezas disformes e extraordinárias e estas belas deformidades? Que significam aqui, macacos imundos, leões ferozes, centauros bi-zarros que não são mais do que meios homens? Porquê estes tigres malhados? Por-quê estes guerreiros em combate? Porquê estes caçadores soprando em cornos? Aqui, ora vemos vários corpos sob uma única cabeça, ora várias cabeças sobre um único corpo. Aqui, um quadrúpede arrasta uma cauda de réptil, além um peixe tem corpo de quadrúpede. Aqui está um animal a cavalo. Enfim a diversidade das formas é de tal forma grande que se passa o tempo a decifrar os mármores em vez de ler os manuscritos, que se ocupa o dia a contemplar estas curiosidades em vez de meditar sobre a lei de Deus.»72

Segundo esta visão — onde, mais do que menosprezar a arte figurativa em si, se

pressentia o seu carácter pernicioso —, estava interdita a figuração, pintada ou escul-

pida, em contexto sacro (excepção feita aos crucifixos). Estava igualmente banido o

uso de materiais como pedras preciosas, pérolas e seda. Os hábitos dos monges devi-

am ser de linho ou burel e os castiçais e incensórios de ferro forjado; só os cálices

podiam ser de prata. Porém, nem as reformas de Suger nem o pensamento que lhes

esteve na origem previram (como Bernardo havia recomendado) uma simplificação da

elaborada coreografia do ritual litúrgico ou o despojamento do luxo da igreja, dos

seus altares e do seu tesouro. Pelo contrário:

«To me, I confess, one thing has always seemed preeminently fitting: that every costlier or costliest thing should serve, first and foremost, for the administration of the Holy Eucharist. If golden pouring vessels, golden vials, golden little mor-tars used to serve (...) to collect the blood of goats or calves or the red heifer: how much more must golden vessels, precious stones, and whatever is most valued among all created things, be laid out, with continual reverence and full devotion, for the reception of the blood of Christ! Surely neither we nor our possessions suf-fice for this service. (...) The detractors (...) object that a saintly mind, a pure heart, a faithful intention ought to suffice for this sacred function; and we, too, explicitly and especially affirm that it is these that principally matter. [But] we

72 DUBY, São Bernardo, ed. cit., p. 143. O texto provem da Apologia ad Willelmum Abbatem Sanc-ti Theodorici, um panfleto que condenava os costumes da Abadia de Cluny, escrito em 1125 e dedi-cado a Guilherme de Saint-Thierry.

Page 42: A Imagem Construída

36

profess that we must do homage also through the outward ornaments of sacred vessels, and to nothing in the world in an equal degree as to the service of the Ho-ly Sacrifice, with all inner purity and with all outward splendor.»73

Suger era um apreciador confesso da beleza e do esplendor, fosse qual fosse a sua

forma, e concebia o cerimonial eclesiástico como uma experiência essencialmente

estética. Prescindir, no serviço a Deus, daquilo que Ele nos oferece e nos permite

trabalhar e aperfeiçoar seria, para o abade, pecar gravemente por omissão74.

Bernardo de Claraval parece estar presente, de modo implícito, nos escritos de

Suger, especialmente nas frequentes passagens em que este, justificando as opções da

sua administração, parece defender-se dos ataques de um oponente imaginário. Da

relação conflituosa entre ambos reza a correspondência que trocaram, bem como os

relatos contemporâneos de terceiros. É a partir destes testemunhos se pode comparar,

por exemplo, as visitas papais de Inocêncio II às abadias de Saint-Denis e Claraval,

ambas em Abril de 113175. Do contraste entre a forma como o pontífice foi recebido

por Suger e, depois, por Bernardo de Claraval, resulta clara a diferença de opinião

daqueles abades (e das comunidades que lideravam) em relação ao fausto e ao luxo

eclesiásticos. Em Saint-Denis, o papa foi recebido numa «basílica vermelho-brilhante,

com coroas de ouro, cintilando com o esplendor de pedras preciosas»; em Claraval

acolheu-o uma «comunidade em alegria solene, todos de olhos fixados no chão, sem

vagueios curiosos (...). Naquela igreja não viu o [Bispo] Romano nada que cobiçasse,

nenhuma decoração litúrgica perturbou a sua atenção, nada se via na capela que não

fossem paredes nuas.»76

Todavia, este gosto pelo requinte arquitectónico e decorativo não procedia apenas

da vontade de honrar os espaços e os objectos sagrados com os atavios do engenho e

da beleza — ou de um irreprimível desejo de auto-celebração, pessoal ou institucio-

nal. O refinamento da Abadia de Saint-Denis, bem como o das igrejas propriamente

góticas que se lhe seguiram (e o da melhor arte do período, de um modo geral) deve

ser entendido no contexto de uma concepção renovada de Deus e da Teologia.

73 SUGER, On the Abbey, ed. cit., pp. 64-7. Tradução inglesa de Panofsky. 74 Cf. ibid., p. 13. 75 Cf. RUDOLPH, Artistic Change, ed. cit. pp. 3-4. 76 Ibid.

Page 43: A Imagem Construída

37

Há já pelo menos meio milénio que a doutrina cristã sancionava explicitamente o

uso da arte como forma de educar os iletrados em matérias espirituais. Esta aquies-

cência recebeu a sua formulação clássica pela pena de Gregório, o Grande, Doutor da

Igreja e Papa desde 590 até à sua morte, em 604. O pontífice, prolífico autor em

matérias teológicas, deixou uma marca indelével nesses anos formadores do ritual

cristão77. Por volta do ano 600, numa troca de correspondência que se tornaria canó-

nica78, Gregório condena os ímpetos iconoclastas do bispo Sereno de Marselha e dá-

lhe a entender que a destruição de imagens de santos venerados é um prática contra-

producente, que conduz à alienação dos fiéis:

«O que as Escrituras são para os homens educados, são-no as imagens para os ig-norantes, que através delas vêem o que devem aceitar [e] lêem nelas o que não conseguem ler em livros.»79

Mas Gregório não estava exactamente a incentivar o louvor a Deus através da arte,

mas antes a arte como forma de chegar a Deus. Embora reconhecesse a utilidade des-

sas imagens (que estabeleciam um elo de ligação essencial entre a Igreja e as popula-

ções, maioritariamente iletradas), estava ciente do perigo que comportavam:

«Adorar imagens é uma coisa, mas aprender através da história que contam o que deve ser adorado é outra.»80

Ou seja, adorá-las por si mesmas seria cair no vício inverso — nisso estavam de

acordo Papa e Bispo — mas, contanto que permanecessem um meio conducente a

um fim (e não um fim em si mesmo), cumpriam uma importante função evangeliza-

dora.

Pese embora as enérgicas invectivas do Antigo Testamento contra o uso de ima-

gens, o recurso à arte no ritual litúrgico, e a imagens em concreto, inscrevia-se numa

tradição antiga e geralmente não contestada81, que enquadra a posição moderada de

77 Cf. BARASCH, op. cit., p. 64. 78 Para uma análise da correspondência, nomeadamente das duas cartas atribuídas a Gregório e

da sua importância no contexto da teoria da arte medieval cf. KESSLER, op. cit., passim. 79 DAVIS-WEYER, op. cit., p. 48. A passagem provém da Sancti Gregorii Magni Epistolarum, Livro

XI, epístola 13. 80 Ibid. 81 Cf. ibid., p. x e RUDOLPH, Artistic Change, ed. cit., pp. 12-3.

Page 44: A Imagem Construída

38

Gregório. Os Cistercienses podiam advogar (como viriam a fazer, séculos mais tarde)

uma forma de liturgia mais íntima — mais sublimada, se se quiser, e por isso, tam-

bém, mais elitista —, mas para o devoto comum contava sobretudo o que podia ver,

ouvir, sentir e cheirar. Cientes disso, as autoridades eclesiásticas procuraram desde

cedo manter ocupados os sentidos dos fiéis. Onde Bernardo de Claraval via «[bispos

que] despertavam a devoção nas pessoas através da ornamentação material, porque

não conseguiam fazê-lo através das coisas espirituais», outros reconheciam um «hu-

manismo litúrgico»82 radicado num proselitismo mas inclusivo, e por isso mais eficaz.

Suger iria mais longe, propondo, no espaço da igreja, uma experiência de tipo

anagógico, isto é, de arrebatamento extático. Ele próprio se maravilhava com a rique-

za da cruz de Santo Elói e o escrínio de Carlos Magno, que adornavam o altar-mor

[fig. 10]:

«Often we contemplate (...) these different ornaments (...) [and] I say, sighing deeply in my heart: Every precious stone was thy covering, the sardius, the topaz, and the jasper, the chrysolite, and the onyx, and the beryl, the sapphire, and the carbuncle, and the emerald. (...) Thus, when — out of my delight in the beauty of the house of God — the loveliness of the many-colored gems has called me away from external cares, and worthy meditation has induced me to reflect, transferring that which is material to that which is immaterial (de materialibus ad immaterialia transferendo), on the diversity of the sacred virtues: then it seems to me that I see myself dwelling, as it were, in some strange region of the universe which neither exists entirely in the slime of the earth nor entirely in the purity of Heaven; and that, by the grace of God, I can be transported from this inferior to that higher world in an anagogical manner.»83

O abade advogava, assim, uma suspensão entre o céu e a terra, induzida pela expe-

riência sensível da arte e da arquitectura. As concepções espaciais da Idade Média

eram um produto da sua época84 e seria por isso difícil para nós, hoje, vestir a pele de

um homem medieval85. Resta-nos imaginar o espanto que ele sentiria ao penetrar

numa catedral gótica — equivalente, em alguma medida, àquele que ainda hoje nos é

82 WADDELL, op. cit., pp. 96-7. A passagem provém da Apologia ad Willelmum (vide supra nota 72). 83 SUGER, On the Abbey, ed. cit., pp. 62-5. 84 Vide infra p. 49. 85 Apesar do contributo expressivo dos historiadores como Duby, e da restante escola dos An-

nales, cujo método historiográfico consistiu em evocar o Zeitgeist da época, enfatizando a pers-pectiva do indivíduo médio; ou ainda de escritores como Eco, que mobilizam a sua erudição para pintar um cenário contemporâneo ao desses homens.

Page 45: A Imagem Construída

39

dado experimentar. Suger, bem como outros líderes eclesiásticos seus contemporâ-

neos, tirou proveito dessa reacção, com vista a surpreender os fiéis e, ao mesmo tem-

po, enobrecer o culto divino através do espaço onde este tomava lugar. Panofsky

expressou deste modo a transformação que assim ganhava forma:

«There is a formidable distance from the highest, purely intelligible sphere of ex-istence to the lowest, almost purely material one (...); but there is no unsur-mountable chasm between the two. (...) For even the lowliest of created things partakes somehow of the essence of God (...). Therefore the process, by which the emanations of the Light Divine flow down until they are nearly drowned in mat-ter and broken up into what looks like a meaningless welter of coarse material bodies, can always be reversed into a rise from pollution and multiplicity to purity and oneness; and therefore man, anima immortalis corpore utens, need not be ashamed to depend upon his sensory perception and sense-controlled imagination. Instead of turning his back on the physical world, he can hope to transcend it by absorbing it.»86

O que se pretendia com o esplendor arquitectónico de Saint-Denis (e do gótico

francês) era que a luz que invadia a catedral iluminasse também as almas dos fiéis —

que uma iluminação física os elevasse a uma iluminação espiritual. Para Suger, «a

comunicação com o Criador operava-se menos pela palavra do que pelo raio lumino-

so, a manifestação mais imediata do divino entre todas as aparências sensíveis»87. O

mundo apreendido pelo olhar era, mais do que um símbolo, o ponto de partida para

aceder a um outro mundo, supra-sensível. Ou, no dizer do próprio abade: «Mens

hebes ad verum per materialia surgit»88.

86 SUGER, On the Abbey, ed. cit., p. 19. Panofsky interpreta assim os escritos do Pseudo-Dionisio, um teólogo neoplatónico de origem síria que viveu por volta do ano 500 e cujo nome hoje se desco-nhece, mas que exerceu uma influência considerável sobre o pensamento medieval. Pensava-se, à época, que este autor e Dionísio, o Aeropagita (o juiz ateniense convertido ao cristianismo por São Paulo) eram uma e a mesma figura — o seu sobrenome advém dessa confusão. Também Suger pensou tratar-se de uma e a mesma pessoa quando leu os seus escritos (na tradução comen-tada de João Escoto Erígena) e achou, assim, ter encontrado um poderoso aliado para a sua causa. Cf. ibid., p. 26. Sobre a influência do Corpus Areopagiticum na filosofia medieval cf. LECLERCQ, op. cit., passim.

87 DUBY, São Bernardo, ed. cit., p. 123. 88 SUGER, On the Abbey, ed. cit., p. 46-9. Panofsky traduz a passagem assim: «The dull mind ris-

es to truth through that which is material.» Trata-se de um verso de outro poema destinado a ser inscrito, desta vez nas novas portas da Igreja, esculpidas em bronze com os temas da paixão e da ressurreição (ou ascensão). Dir-se-ia quase tratar-se de um manifesto para o programa de Suger em Saint-Denis.

Page 46: A Imagem Construída

40

Estava assim em mudança a atitude dos homens perante a religião e perante o

mundo em redor. A consciência de que o divino residia, não só num além inatingível,

mas na Terra — ou, melhor dizendo, a consciência de que a Terra era como um espe-

lho vivo desse Além desconhecido — reacendeu o interesse pelo rosto concreto da

criação divina. E a essa criação o Homem acedia através dos seus sentidos, os mesmos

a que se destinava a invenção dos mestres construtores da arquitectura gótica.

NATURALISMO NA REPRESENTAÇÃO HUMANA

Se o mundo físico era uma criação divina, também a vida na Terra, na sua dimensão

material para além da espiritual, fazia parte desse desígnio. Afinal, «não se lia nas

primeiras linhas do Génesis que Adão foi colocado por Deus acima de todas as criatu-

ras para que as dominasse, que o mundo lhe foi oferecido para que o administrasse e

que foi chamado a embelezar o Jardim?»89 Estava assim sancionada, também, a obser-

vação da Natureza (no sentido lato) e das suas formas. E esta nova aquiescência levou,

na alta Idade Média, a um renascimento: o interesse crescente em representar não ape-

nas as coisas invisíveis, mas também as visíveis, aquelas que podemos reconhecer e

apreender de modo imediato, através dos sentidos. À prática da pintura e da escultu-

ra, em concreto, iria presidir um novo olhar, progressivamente mais “científico”, cu-

jos efeitos se estenderiam a todos os campos do pensamento e da actividade humana.

E será útil comparar, ainda que brevemente, alguns exemplos representativos da es-

cultura românica e gótica, para assistir de perto à concretização destas ideias.

Na Basílica de Santa Madalena, em Vézelay, o pórtico central que faz a comunica-

ção entre o nártex e o interior da igreja exibe um tímpano do mesmo tipo daquele

que teria contemplado Adso de Melk [fig. 11]. Foi executado entre 1120 e 1132 e

inclui um conjunto escultórico especialmente rico, que revela, sobretudo ao nível da

execução, um desejo evidente de superar a sua própria bidimensionalidade. Trata-se,

pois, de um bom exemplo para reconhecer a tensão crescente entre novidade e tradi-

ção na escultura do período.

89 DUBY, São Bernardo, ed. cit., p. 122.

Page 47: A Imagem Construída

41

O programa iconográfico do tímpano refere-se à missão evangelizadora conferida

por Cristo aos apóstolos, que ocupa a cena central90. Das Suas mãos partem raios que

pousam sobre os apóstolos reunidos à Sua volta, cada qual munido de um exemplar

das Escrituras. Estes deviam agora partir ao encontro de fiéis e gentios, representados

nos frisos periféricos: na arquivolta perfilam-se os eleitos e os danados, os doentes a

curar e os endiabrados a esconjurar; no lintel desfilam os vários povos de um mundo

por evangelizar91. Estes últimos assumem as formas fantásticas com que eram imagi-

nados na Idade Média, não faltando representações do tipo das que mereceram a re-

provação de Bernardo de Claraval.

O discurso está organizado esquematicamente: por um lado, existe uma hierarqui-

zação das personagens de acordo com o seu tamanho — Cristo é a figura maior, se-

guindo-se os apóstolos e, por fim, uma pequena turba de criaturas heréticas —; por

outro lado, a cena funciona não como um quadro naturalista, dotado de unidade

espacio-temporal, mas como uma história em vinhetas. Apesar da animação gerada

pelas acrobacias dos apóstolos, que parecem querer preencher todo o espaço disponí-

vel do tímpano, os seus pés perfilados revelam uma organização complanar só contra-

riada, do tronco para cima, pela sobreposição pontual de personagens. Os episódios

da moldura, apesar do efeito de sombra do fundo (obtido pela modulação autónoma

das figuras), também são cenas organizadas de modo complanar e, por isso, maiorita-

riamente bidimensionais. Finalmente, as figuras comunicam mais pelos seus atributos

e pelas suas acções do que pela sua modelação. Com efeito, representações naturalis-

tas, se e quando as há, são «justificadas naquele lugar só pela sua força parabólica e

alegórica ou pelo ensinamento moral que transmitiam»92.

É sobretudo a figura de Cristo, modelada de forma audaz e imaginativa, que so-

bressai no conjunto. O seu relevo volumétrico anuncia a possibilidade de emancipa-

ção em relação à supremacia do friso (ou do alto relevo), prenunciando a estatuária

monumental dos séculos seguintes93. As suas vestes ondulantes revelam um esmero

proporcional à importância da figura representada. No entanto, uma observação aten-

90 Não é, no entanto, consensual qual seja exactamente a cena bíblica representada, podendo tratar-se do Pentecostes, da Missão aos Apóstolos ou da Ascenção de Cristo, conforme a inter-pretação. Cf. KATZENELLENBOGEN, The Central Tympanum at Vézelay, ed. cit., passim.

91 Estão ainda representados, no friso da arquitrave exterior, os doze signos do zodíaco e pe-quenas cenas figurando as ocupações correspondentes a cada mês do ano. Cf. ibid., pp. 142-8.

92 Vide supra nota 20. 93 Cf. KOEHLER, op. cit., pp. 79-80.

Page 48: A Imagem Construída

42

ta do semblante de Cristo revela uma expressão distante — um rosto nobre e hieráti-

co, de olhar perdido no infinito [fig. 12]. A clivagem entre o mundo físico e o mundo

espiritual não permite, ainda, a cumplicidade entre o modelo e o observador94.

Na Catedral de Chartres, os flancos dos pórticos estão decorados por séries de

estátuas adossadas às colunas, ao estilo da Abadia de Saint-Denis, sua precursora esti-

lística. À esquerda do portal central, na fachada principal (decorada em meados do

séc. XII), encontra-se esculpida uma figura do Antigo Testamento95 cuja cabeça é

comparável à do Cristo de Vézelay [fig. 13]. O confronto entre as duas atesta um

salto qualitativo evidente. O semblante de Chartres é animado por uma vida interior;

representa uma figura autoritária, mas humana, quase condescendente, que parece

devolver o olhar de quem a observa. O homem esculpido é, enfim, “parecido” com o

homem observador e autoriza uma comparação entre quem vê e o que é visto.

Repare-se agora, dando um passo atrás, no conjunto em que se insere a figura [fig.

14]. As personagens aí representadas assemelham-se, na sua «imobilidade tectónica»96,

às colunas em que se apoiam — hirtas, verticais, disciplinadas, dir-se-ia «infundidas

por uma ideia interior de estabilidade»97. Embora não carreguem literalmente o peso

do portal, são estruturais por vocação: são os homens e mulheres que sustentam sim-

bolicamente a Igreja. Saúdam quem entra, como a recordar continuamente que são

elas, na sua solidez pétrea, que mantêm o edifício de pé. Contudo, apesar da rigidez,

são plasticamente mais delicadas do que as figuras do tímpano de Vézelay, em geral, e

as dos frisos do lintel e da arquitrave, em particular. Revelam, ainda, um novo gosto

pela figuração — concretamente pela figuração humana.

Quando, em meados dos anos vinte do séc. XIII (portanto, três quartos de século

depois), foram executadas as esculturas análogas da fachada Sul da igreja, essa tendên-

cia já se mostrava mais maturada. As figuras tinham-se emancipado, pareciam avançar

ainda mais para fora da coluna e os seus corpos foram modelados com uma atenção

94 Cf. ibid., pp. 83-4. Toma-se emprestada ao mesmo autor a comparação que se segue, entre a escultura de Vézelay e a de Chartres.

95 Ignora-se a sua identidade precisa, como a das restantes figuras daquele portal (e igualmente as do portal principal de Saint Denis, que lhe servem de inspiração). Para uma discussão das dife-rentes atribuições propostas pelos historiadoes cf. KATZENELLENBOGEN, The Sculptural Programs of Chartres Cathedral, ed. cit., pp. 27-8.

96 Cf. ibid., p. 92. 97 Cf. ibid., p. 27.

Page 49: A Imagem Construída

43

mais fiel ao naturalismo das formas. O conjunto escultórico no flanco esquerdo do

portal central é disso exemplo [fig. 15]: os santos Simão, Mateus, Tomás, Filipe, An-

dré e Pedro formam um grupo expressivo, de figuras mais humanas e fisionomias

mais variadas. Os seus braços não estão caídos, paralelos ao corpo, mas ocupados a

carregar os seus atributos ou a gesticular, movimentos que animam as pregas das suas

túnicas. E o naturalismo não se confina aos traços fisionómicos, sugerindo também a

convivência que espontaneamente ocorreria num grupo de pessoas. Apesar de habitar

cada um por baixo do seu baldaquino de pedra, estas figuras são menos autistas do

que as do exemplo anterior: viram-se para o lado e parecem até conversar. Se as figu-

ras do portal poente mantinham uma relação «ideal», as do portal sul mantêm uma

relação «natural»98.

Um último salto, de mais de uma centena e meia de anos no tempo (e trezentos e

cinquenta quilómetros no espaço), permitirá rematar a sequência de exemplos com

um ponto de chegada hipotético: o pórtico da igreja da Cartuxa de Champmol, em

Dijon, esculpido entre 1389 e 1393 [fig. 17]. O seu autor, Claus Sluter, foi um escul-

tor flamengo ao serviço de Filipe, o Audaz, o Duque da Borgonha que havia erguido

a cartuxa para seu panteão dinástico. Aí deparam-se-nos os retratos do Duque e da

mulher, à esquerda e à direita do portal, respectivamente, ambos ajoelhados em ora-

ção e flanqueados pelos respectivos santos padroeiros, João Baptista e Catarina de

Alexandria. O centro da composição é uma elegante Nossa Senhora, cujo peso recai

sobre a perna esquerda, o lado em que segura Jesus. A perna e o braço direitos estão

descaídos, em repouso, conferindo à figura um suave movimento centrípeto, realçado

pela modelação do manto, apanhado na anca. Achamo-nos, portanto, em qualquer

dos casos, diante de figuras completamente libertas dos constrangimentos formais ou

estruturais de um pórtico de entrada. Não se deixam aprisionar pelos baldaquinos que

as protegem: mexem-se, assumem posições, relacionam-se explicitamente umas com

as outras. Fazem parte do elenco de uma encenação dramática, que ganha pleno sen-

tido enquanto conjunto escultórico completo99. Está-se, enfim, longe do carácter

98 Cf. ibid., p. 92. 99 Note-se, a propósito do protagonismo quase herético assumido pelos duques, que a emanci-

pação também ocorre ao nível temático. Não era novidade que os patronos se fizessem representar, mas, enquanto figuras seculares, não eram colocados no mesmo plano e à mesma escala que figu-ras religiosas, mencionadas nas escrituras. Finalmente, a disposicão deste portal lembra-nos um

Page 50: A Imagem Construída

44

hierático e distante do Cristo de Vézelay, ou da escultura de Chartres; Sluter cria uma

composição dramática coerente, composta de personagens individuais (psicologica-

mente autónomas), esculpidas de forma naturalista e à mesma escala. Ao contrariar o

gosto predominante do gótico francês, o escultor antecipa a arte do o Renascimento

— e quase prenuncia o Barroco.

Apesar da escultura se libertar, progressivamente, da arquitectura, o que permane-

cia na parede acompanhou — e, em alguns casos, antecedeu — a tendência em análi-

se. A pintura mural, embora ameaçada pelos vãos góticos cada vez maiores que se iam

generalizando a norte dos Alpes, manteve a sua importância. E tal é visível sobretudo

no Sul da Europa, onde, havendo mais luz solar, as janelas tendiam a manter-se mais

pequenas. Itália foi o palco privilegiado das experiências inovadoras que tanto contri-

buíram, como se verá, para o desenvolvimento da perspectiva linear. Antes disso,

porém, e ainda no contexto francês, considere-se uma representação do martírio de

São Lourenço [fig. 18], analisada por Wilhelm Koehler100. Trata-se de um fresco do

complexo monástico de Berzé-la-Ville (um priorado dependente da vizinha Abadia de

Cluny), executado no início do séc. XII na ábside da capela101.

O mártir surge na base do fresco, estendido e agrilhoado sobre um leito de cha-

mas, conforme a tradição iconográfica. No entanto, é o imperador romano, seu

opressor, que protagoniza o episódio, ocupando a maior parte do espaço superior da

composição. Furioso, parece querer saltar do trono, de onde precariamente se debru-

ça. Na sua agitação, confere à cena um movimento descendente que, juntamente com

as forquilhas dos carrascos à esquerda, relaciona as diferentes personagens e contribui

para «enlear o observador no feitiço da acção dramática.»102 Quanto ao desenho, «o

perfil das pernas e dos braços, da mais subtil qualidade linear, a execução das mãos, a

justeza do gesto, tudo revela um saber seguro, a maturidade de um pensamento»103; e

outro, o de entrada na Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, esculpido por Nicolau de Chanterene em 1517. Este é flanqueado pelas estátuas do rei D. Manuel e a sua segunda mulher, em oração sob luxuosos baldaquinos, também eles acompanhados dos seus santos padroeiros (neste caso, Jerónimo e João Baptista). A composição revela uma «clara influência borgonhesa». PEREIRA, op. cit., vol. 1, p. 417.

100 Cf. KOEHLER, op. cit., pp. 63-79. 101 Para uma análise dos frescos da capela e da sua importância no contexto mais vasto da arte

cluniacense cf. FOCILLON, op. cit., pp. 141-56. 102 KOEHLER, op. cit., pp. 66-7. 103 FOCILLON, op. cit., p. 148.

Page 51: A Imagem Construída

45

quanto à modelação, esta vai muito para além da mera sugestão: os volumes autono-

mizam-se no espaço e dialogam entre si, livres do grilhão da complanaridade104.

Para ilustrar o carácter inovador do fresco, Koehler insere-o no contexto francês e

confronta-a com outras representações da mesma época (frescos, iluminuras ou escul-

turas), nomeadamente a do Cristo de Vézelay [fig. 11], que lhe é posterior por uma

vintena de anos, aproximadamente. A posição singular daquela figura esculpida evo-

ca, com efeito, a do imperador: ambos se encontram desconfortavelmente sentados,

com o torso voltado para o observador e as pernas flectidas e de esguelha105. Mas se

em Vézelay a rigidez do torso contrastava com a posição das pernas, evocativa do

“cubismo egípcio”, em Berzé-la-Ville todo o corpo parece acompanhar esse movimen-

to giratório, conferindo-lhe uma maior credibilidade anatómica. Embora esculpido, o

primeiro exemplo parece menos volumétrico, ou tridimensional. Ora em casos como

este, e como há pouco se afirmava, a pintura parece ter tomado a dianteira na con-

quista do naturalismo representativo106.

104 Cf. ibid., p. 150. 105 Cf. KOEHLER, op. cit., pp. 79-80. A posição oblíqua improvável que daí resulta permite aos au-

tores de ambas as obras explorar as possibilidades criadas pelo arrepanhamento das vestes das figuras. O aproveitamento das pregas dos tecidos para ensaiar o gosto medieval por padrões geo-métricos (mais evidente em Vézelay) ou, alternadamente, para sugerir, através da modelação das formas, os membros por elas cobertos (como já entrevemos em Berzé-la-Ville), é reveladora de tendências conflituantes na arte da época. Segundo Koehler: «(...) the artists of the leading schools of painting, breaking away from the tradition of the earlier Romanesque style, turn during the first half of the twelfth century to a definite and on the whole uniform system of characteristic motifs which tend to show the articulated body beneath and through its garments.» Ibid., p. 75.

106 Este naturalismo pode ser entendido, até certa medida, como uma revisitação dos ideais clás-sicos — ideia que viria mais tarde a ser, como já se referiu, intencional e consequentemente ex-plorada pelos ideólogos humanistas do Renascimento. Seria incontornável, de qualquer forma, relacionar o gosto por representações anatomicamente mais correctas, que já se revela nos exem-plos mais precoces do séc. XII, com a perfeição que, neste campo, havia já sido lograda pela escul-tura greco-romana. Com efeito, uma das explicações plausíveis para os novos caminhos da arte gótica foi a influência da arte bizantina, que, neste aspecto, melhor teria conservado a memória da Antiguidade Clássica. Essa é, nomeadamente, a tese geral de Koehler: «(...) we have no difficulty in finding out where the ultimate sources are, both of the concept of the human figure from which the interest in the articulated body results, and of the means to materialize it in the work of art. They are a legacy from classical antiquity which survived in Byzantine art. From classic models have been derived not only the general notion underlying the statuesque interpretation of the figure but also all the individual motifs which are used to show the articulated body through the garments; they are nothing but derivations, variations, schematizations of motifs developed as early as the Hellenistic period of Greek sculpture.» Ibid., pp. 78-9.

Page 52: A Imagem Construída

46

MOLTO PIÙ CHE EGLI NON VEDE

Poder-se-ia citar muitos exemplos ainda, pintados ou esculpidos, sempre com o mes-

mo intuito: reconhecer, no modo como as figuras representadas se comportam (este-

jam sentadas ou de pé, paradas ou em movimento), uma nova vitalidade até então

desconhecida. Ao mostrarem-se compreensivas ou zangadas, estas figuras parecem

animadas por uma vontade própria. E o gosto por personagens mais densas, mais

profundas (metafórica e literalmente), é acompanhado pela literatura característica da

época.

A Legenda Aurea, uma série de relatos hagiográficos compilados pelo Arcebispo de

Génova, Jacopo da Varazze, por volta de 1260, é disso um bom exemplo. O texto é

fértil em heroísmo, fé e desenvolvimentos dramáticos, atribuindo importância tanto

aos aspectos particulares como aos aspectos gerais do relato e narrando a vida dos

santos como se de pessoas individuais se tratasse. Outro exemplo são as Meditationes

passionis Christi, um texto de cerca de 1300, tradicionalmente atribuído a

São Boaventura (mas na realidade escrito por um Franciscano cujo nome se desco-

nhece). Estas meditações propõem uma versão humanizada do sofrimento de Cristo,

dotando os episódios da Paixão de pormenores intimistas e imbuindo-os de emo-

ção107. Como outros, estes dois exemplos, particularmente populares à época e profu-

samente publicados, contribuíram para definir uma nova gramática canónica a aplicar

às representações dos textos sagrados e ajudam a enquadrar a inflexão narrativa nas

artes visuais religiosas.

À luz do que foi dito, facilmente se compreende o interesse votado pelo pensamen-

to medieval à disciplina da Psicologia. Neste campo, a produção medieval foi prolífe-

ra e indestrinçável das polémicas reformistas já referidas e suas respectivas concepções

artísticas. No contexto deste estudo, bastará mencionar que, independentemente do

que separava as reflexões deste abade ou daquele teólogo — e muitas houve, numa

época de grande efervescência intelectual —, o que pareceu reunir maior consenso foi

o desejo de resolver o problema suscitado pelo antagonismo centenar entre corpo e

espírito. O mesmo haviam procurado fazer os escultores de Chartres, ou os pintores

107 Cf. IVINS, Art & Geometry, ed. cit., p. 62.

Page 53: A Imagem Construída

47

de Berzé-la-Ville, ao humanizar as personagens bíblicas que representaram, numa

tentativa estocástica de transcender a sua natureza puramente tipológica.

Em mais do que uma frente, portanto, o pensamento do homem medieval estava

em trânsito, afastando-se daquela separação canónica, em direcção a um novo com-

promisso conciliador. De modo muito genérico, poder-se-ia dizer que, até então, o

espírito era tido como existindo para além do corpo, e que este era o veículo corrupto

da sua passagem pela Terra. Isto explica o pensamento binómico de Bernardo de Cla-

raval, que via o mundo «como uma perpétua revolta do temporal contra o eterno, da

razão humana contra a fé, dos sentidos contra o espírito.»108 E daí decorria a nature-

za problemática da arte. Mas a partir de então (sem pôr em causa o dogma da vida

eterna das almas), as artes visuais espelhariam um novo acordo de reciprocidade, no

qual corpo e alma surgem interligados numa relação mutuamente inclusiva. «A alma

(...) era agora tida como o princípio organizativo e unificador do próprio corpo, ao

invés de uma substância independente dele.»109 Esta concordância iria contribuir de

forma decisiva para o interesse em representar o corpo, e a natureza em geral, na cer-

teza de com isso se estar também a abrir uma janela para a alma. E representações

psicologicamente sensíveis viriam assim dar origem a figuras humanas individuais,

menos tipificadas e mais particulares.

Para Panofsky, a aproximação da escultura gótica à existência humana no plano

material, através da reprodução fiel das suas formas, «proclama a vitória do Aristote-

lismo», no sentido em que «se acreditava que a existência de Deus era [agora] de-

monstrável através da Sua criação, em vez de a priori.» 110 Retoma-se, assim, o

contexto filosófico mais vasto sobre o qual assenta a presente análise. O domínio

reivindicado pela linguagem canónica da Igreja medieval (e, em particular, pela sua

tradução artística) era o dos operadores universais que transcendiam o plano da tem-

poralidade. A Igreja confronta o fiel com uma sucessão de tipos formais, independen-

tes do seu contexto histórico ou geográfico. O seu programa formal é, por isso,

extremamente ambicioso e extremamente humilde: embora aponte um conjunto de

verdades eternas, arredias a qualquer forma de representação finita, fá-lo por meio de

um complexo sistema de signos e metáforas, consciente do hiato último e intranspo-

108 SUGER, On the Abbey, ed. cit., p. 26. 109 PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., p. 7. 110 Ibid.

Page 54: A Imagem Construída

48

nível entre o mundo construído — e representado — e o mundo espiritual. Resolver

esta contradição era um dos principais problemas com que se debatia a filosofia esco-

lástica, «cuja raison d’être era [nada menos que] estabelecer a unidade da Verdade.»

Com esse propósito objectivo, «os homens dos sécs. XII e XIII lançaram-se na tarefa

(...) de escrever um tratado de paz permanente entre fé e razão.»111

A “descoberta” da alma humana num corpo humano, distendida no tempo mas

segura na progressão, acompanharia a arte do Ocidente durante muitos séculos ainda,

conhecendo no Barroco um apogeu expressivo inigualável112. Mas a mudança de pa-

radigma tornar-se-ia evidente muito antes ainda, quando Leone Battista Alberti, ar-

quétipo do polímate humanista do Quattrocento, escreve o seguinte:

«Così adunque conviene sieno ai pittori notissimi tutti i movimenti del corpo, quali bene impareranno dalla natura, bene che sia cosa difficile imitare i molti movimenti dello animo. Et chi mai credesse, se non provando, tanto essere difficile, volendo dipignere uno viso che rida, schifare di non lo fare piuttosto piangioso che lieto? E ancora chi mai potesse senza grandissimo studio espriemere visi nei quale la bocca, il mento, gli occhi, le guance, il fronte, i cigli, tutti ad uno ridere o piangere convengono? Per questo molto conviensi impararli dalla natura, e sempre seguire cose molto pronte e quali lassino da pensare a chi le guarda molto più che egli non vede.»113

As palavras foram publicadas em 1435, no seu tratado sobre pintura. O texto tem

um valor fundacional para a cultura moderna (a ele se regressará adiante, a propósi-

to da perspectiva linear). Estava assim perfeitamente reinstituída e legitimada a tra-

dição da observação da Natureza, bem como a sua derradeira função espiritual: só

um pintor que aprenda, através da observação, a representar os aspectos mais fuga-

zes da realidade natural poderá pretender dar a quem aprecia a sua obra mais em que

pensar do que aquilo que ali se vê.

111 PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., pp. 28-9. 112 O adensamento psicológico, conjugado com o gosto pela acção dramática, viria a culminar

nos exemplos mais extremos da pintura italiana maneirista (pela mão de artistas como Tintoretto, em Veneza) e, mais tarde, já propriamente barroca (Caravaggio, em Roma, ou Guercino, em Bolonha).

113 ALBERTI, Della Pittura, ed. cit., p. 94 (sublinhado nosso).

Page 55: A Imagem Construída

49

3. Da perspectiva naturalis à perspectiva artificialis

A comensurabilidade é a condição essencial para que o Homem se aproprie do espa-

ço em redor. Assim também, a medida do espaço medieval era a medida do homem

desse tempo — semeador, diligente, combativo. As suas noções espaciais partiam da

visão do que lhe estava mais próximo; e, em particular, o seu próprio corpo, que era

a referência para unidades de medida como o palmo, a braça, o pé. As terras culti-

vadas, a orla dos bosques, as paliçadas, os fossos e os muros eram as fronteiras desse

espaço e os limites de um campo visual familiar. Para lá dele escondia-se um mundo

desconhecido e difícil de dominar: os desertos, as montanhas e os mares114. Esta

visão circunscrita levava a que se visse com os olhos o que estava perto e com o espí-

rito o que estava longe. Isso é atestado, nas representações da época, pela preponde-

rância do elemento simbólico. Com efeito, «a pedagogia ilustrada do cristianismo

difundiu largamente, e desde a origem, sinais cuja riqueza de significado era acessí-

vel a todos, sem supor a organização lógica de um espaço: a imaginação e a memória

permitiam ao maior número de fieis decompor, isolar e reunir os elementos de uma

cena pintada ou esculpida.»115

114 Cf. BRAUNSTEIN, op. cit., p. 599. 115 Ibid., p. 600 (sublinhado nosso).

Page 56: A Imagem Construída

50

UMA NOVA CENOGRAFIA

Durante a Idade Média, nas descrições e reproduções arquitectónicas, o protago-

nismo recaiu sobre os elementos principais de cada estrutura representada. Estes

eram considerados, antes de mais, de acordo com a sua importância religiosa, em

detrimento da sua conformação exacta ou do seu aspecto visual. Mas, na mesma

medida em que crescia o interesse da sociedade medieval pelo mundo terreno e pe-

las coisas materiais que o povoam, ganhava progressivamente forma um novo modo

de olhar, propriamente científico — isto é, enquadrado por uma doutrina teórica e

munido de instrumentos de observação específicos. Os seus efeitos estender-se-iam

a todos os campos do pensamento e da actividade humana e reformariam, nomea-

damente, os métodos de observação utilizados pelas ciências naturais.

Neste contexto, cresceu também a tendência para a produção de cópias, repre-

sentações e descrições do objectos arquitectónico baseadas, cada vez mais, em crité-

rios de fidelidade visual. Isso mesmo pode verificar-se a propósito de uma

comparação entre dois conjuntos de iluminuras116. As mais antigas datam do final

do séc. XI e mostram Henrique I, Rei dos Francos, outorgando doações e privilé-

gios ao priorado de St.-Martin-des-Champs, reconstruído sob o seu patronato [fig.

19]. As mais recentes, executadas por volta de 1250, tomaram as primeiras como

modelo (na forma e no conteúdo) e representam o sucessor de Henrique, Filipe I,

repetindo o mesmo gesto [fig. 20]. Cerca de cento e cinquenta anos separam os dois

exemplos.

O exemplar românico é um desenho confuso, onde as figuras, os edifícios e as

inscrições se sucedem de modo visualmente desorganizado. A cópia gótica, por seu

turno, revela o gosto escolástico pela organização hierárquica: divide-se em quatro

cenas estanques, cada uma correspondendo a uma categoria sócio-clerical: o sobera-

no, os edifícios eclesiásticos, os membros do episcopado e a nobreza secular. A re-

presentação das duas igrejas obedece a uma convenção visual coerente: são ambas

representadas em alçado e, por se situarem lado a lado e quase de nível, enunciam

um hipotético horizonte. A iluminura mais antiga, pelo contrário, representa-as por

meio de projecções múltiplas. O seu autor faz uso de uma espécie de liberdade cu-

116 A comparação é proposta por Panofsky em Gothic Architecture, ed. cit., pp. 41-4.

Page 57: A Imagem Construída

51

bista para representar vários pontos em simultâneo, orquestrando desse modo um

conjunto de elementos previamente escolhidos — um método análogo àquele que

foi referido a propósito das representações do Santo Sepulcro (e, concretamente, da

iluminura do Sacramentário de Henrique II).

Também a caracterização dos dignitários presentes na cerimónia revela o recurso

a soluções antagónicas: no primeiro exemplo, as figuras estão pouco cuidadas e as-

semelham-se muito entre si, tanto na posição quanto na fisionomia; no segundo

exemplo, porém, parecem ter ganho uma nova vida: mexem-se e dialogam entre si,

arrancadas ao anonimato a que haviam sido votadas na representação anterior e

dotadas de uma individualidade própria. Finalmente, o enquadramento geral da

moldura da iluminura gótica (inexistente no original românico) confere unidade

formal a todo o conjunto (e acrescenta, em rodapé, uma cerimónia de consagração

que lhe acorda realismo e dignidade)117. Em suma, a iluminura do séc. XIII oferece,

por comparação, uma representação psicologicamente mais profunda das persona-

gens, bem como uma reprodução sistematizada dos elementos arquitectónicos.

Verificou-se já como a representação do movimento abriu caminho para o natu-

ralismo na reprodução de figuras humanas — a propósito da escultura (com os

exemplos de Chartres e, depois, de Champmol) e da pintura (com o martírio de São

Lourenço, em Berzé-la-Ville). Ora, como verificou Alberti no seu tratado sobre

pintura, todo o movimento implica uma deslocação no espaço:

«Ma noi dipintori, i quali vogliamo coi movimenti delle membra mostrare i mo-vimenti dell'animo, solo riferiamo di quel movimento si fa mutando el luogo.»118

Ou seja, os pintores que «querem com os movimentos dos membros mostrar os

movimentos da alma» só podem representar movimento «quando ocorre uma mu-

dança de posição». E isto requer, por sua vez, a representação de um espaço, de um

palco que acolha esse movimento. Além disso, era inevitável que as personagens

representadas de modo naturalista tendessem a interagir entre si — como já se en-

contrava sugerido na escultura do pórtico Sul de Chartres e na segunda das ilumi-

117 Ibid., 41-2. 118 ALBERTI, Della Pittura, ed. cit., p. 95.

Page 58: A Imagem Construída

52

nuras acima comparadas — e que, portanto, crescesse também uma nova sensibili-

dade teatral. A arte religiosa recorria, assim, cada vez mais ao drama e à acção para

«enlear o observador no feitiço da acção dramática»119. E esses recursos estilísticos

implicariam, para que houvesse plausibilidade visual e narrativa no movimento das

personagens e nas relações que estabeleciam entre si, a criação de um novo espaço

pictórico.

Na viragem para o séc. XIV, artistas como Duccio, em Siena, e Giotto, em Flo-

rença, procuravam conceber conjuntos figurativos, não já como congéries de símbo-

los espacialmente independentes, mas como cenas dramaticamente coerentes120. Os

seus esforços convergiam no sentido de resgatar estas personagens mais humanas,

mais “reais”, ao limbo bidimensional que habitavam — como a douradura homo-

génea de influência bizantina que as figuras tinham, muitas vezes, por fundo [fig.

5]121 — e trazê-las para um mesmo espaço unificado. E para tal era necessária uma

técnica de representação que tornasse possível, a duas dimensões, a coabitação rea-

lista das personagens num espaço tridimensional, análogo ao da realidade física em

que decorria a própria vida de quem observa a pintura. A resolução desse problema

visual dependia, pois, da capacidade de determinar a proximidade (ou distância) a

que as figuras se encontravam umas das outras, de acordo com as regras de um sis-

tema visual preciso.

Por fim, é importante notar que a iminência da “descoberta” da perspectiva line-

ar se insere num contexto histórico mais vasto. O séc. XV europeu, que assistiu,

enfim, à generalização do uso daquela técnica, foi marcado pela busca de novos

estímulos para a fé cristã, no rescaldo de dois séculos de tumulto. No final do

séc. XIII, tornara-se inadiável aceitar o falhanço geral das campanhas das cruzadas,

que haviam mobilizado a espiritualidade dos povos europeus (e os cofres dos seus

monarcas). Após uma longa e humilhante série de derrotas, o Ocidente perdeu o

acesso a Jerusalém, o seu umbilicus mundi, e os povos islâmicos alargaram o seu

119 Vide supra nota 102. 120 Cf. IVINS, Art & Geometry, ed. cit., p. 62. 121 O exemplo na figura é um triptíco da escola veneziana, da autoria de Jacobello del Fiore, cuja

execução data provavelmente do primeiro quartel do século XV. Representa Nossa Senhora da Misericórdia flaqueada pelos santos João Baptista e João Evangelista. A ausência do enquadramen-to arquitectónico que lhe fornecia a moldura esculpida (entretanto perdida) faz ressaltar a ausência de contexto espacial tridimensional ao nível pictórico. O fundo dourado acentua a divindade das figuras representadas, remetendo-as para um universo tipificado.

Page 59: A Imagem Construída

53

poderio militar e territorial, que vinha ameaçando a Europa desde o séc. VII122. E

outras catástrofes se seguiriam: o cisma papal, que fracturou politicamente a Euro-

pa, e a peste bubónica, que ceifou a vida de quase um quarto da sua população.

Vista por este prisma, a revolução visual operada pela introdução da perspectiva

veio contribuir para uma necessária infusão de ânimo religioso. Foi um instrumento

renovador ao serviço de uma arte mais convincente, com uma mensagem mais clara

e universal.

A BASÍLICA DE ASSIS

O olhar interessado sobre a realidade da vida material suscitou problemas teológicos

que interessaram, como se viu, o meio intelectual dos mosteiros e das universidades

medievais. Mas esse interesse alastrou rapidamente ao meio artístico. As botteghe dos

pintores italianos, em concreto, foram laboratórios de experimentação privilegiados,

de onde surdiram novas formas de representação sistemática do mundo. As tendên-

cias iconoclastas vigentes na arte religiosa, bem como o gosto pela abstracção mística,

foram progressivamente relegadas em favor de representações mais próximas do natu-

ralismo visual. O pensamento teológico das ordens religiosas — nomeadamente das

ordens mendicantes, vocacionadas para uma evangelização mais ampla e ecuménica

— contribuiu de modo decisivo para esta viragem figurativa123. Os franciscanos, em

particular, promoveram aquela que é, para muitos, «a mais revolucionária encomenda

da história da arte tardo-medieval do Ocidente»124: a Basílica de S. Francisco, em

Assis125.

122 Cf. EDGERTON, The Mirror, ed. cit., p. 13-4. 123 A propósito do ciclo decorativo de Assis, Camerota caracteriza assim a mudança em causa:

«Il carattere ultraterreno simbolico e arristocratico dei modi bizantini, piu adatto al lusso delle abazie che alla semplicita delle chiese conventuali, pottrebbe esser sembrato inadatto a vizualizzare il mes-sagio terreno e tangibile della predicazione di San Francesco. La contemplazione del divino come tracendenza degli eventi mondani andava riconsiderata radicalmente; il divino andava contemplato volgendo lo sguardo alla sua creazione, cioè al uomo e a la natura. Il modo migliore per esprimere il dialogo di francesco con la natura come espressione del dialogo con dio, era quello di rafigurare obietivamente le forme del creato.» Cf. CAMEROTA, op. cit., pp. 39-40.

124 EDGERTON, The Heritage of Giotto, ed. cit., p. 56. 125 Era apropriado que estes desenvolvimentos ocorressem numa basílica sob a alçada dos fran-

ciscanos, a ordem mendicante que, mais do que qualquer outra, soube impor-se no mundo cristão pela sua autoridade nos planos espiritual, tecnológico e cientifico. Eram, além disso, franciscanos

Page 60: A Imagem Construída

54

Em 1228, apenas dois anos após a sua morte, Francisco é canonizado e dá-se iní-

cio, por iniciativa papal, à construção da basílica. Composta por duas igrejas sobre-

postas e uma cripta, onde jazem os restos mortais do santo, a construção tornar-se-ia,

antes do final do século, o lugar de peregrinação mais visitado da Europa cristã126. No

seu interior, coloridos frescos historiados faziam as vezes de vitrais [fig. 21]. Na igreja

superior, o programa figurativo da pintura mural narra episódios do Novo e do Ve-

lho Testamento e momentos da vida de S. Francisco. Cimabue foi o pintor encarre-

gue da decoração, que leva a cabo na ábside e numa parte do transepto. Contudo, o

seu trabalho termina por volta de 1290127 e, com a subsequente passagem de testemu-

nho, os trabalhos acusariam uma mudança de orientação estilística evidente.

O sucessor de Cimabue foi o anónimo Maestro d'Isacco, que alguns estudiosos

identificam como Giotto128. O pintor continuou o programa decorativo do antecessor

nos mesmos moldes, isto é, em episódios narrativos (ou “quadros”) distribuídos ao

longo do transepto e da nave principal. Mas as novas figuras representadas adquiri-

ram uma plasticidade desconhecida dos pintores das gerações precedentes e vieram

ocupar um espaço tridimensional igualmente inédito129. Esta evolução é particular-

mente evidente no famoso ciclo dedicado à vida de São Francisco, uma série de vinte

e oito representações que exploram as relações atávicas entre a vida do santo e a vida

de Jesus.

Cada um dos episódios configura uma cena teatral autónoma e pode reconhecer-

se, na maioria deles, o recurso a soluções compositivas perspécticas. No entanto, nem

todos revelam o mesmo grau de maturidade no seu uso. Na maior parte dos casos, o

pintor recorre à “perspectiva paralela” (ou aquilo a que chamaríamos, mais propria-

alguns dos maiores estudioso problema perspectico, como Rogério Bacon, John Peckham e Roberto Grossetesta. Cf. CAMEROTA, op. cit., pp. 39-40.

126 Cf. EDGERTON, The Heritage of Giotto, ed. cit., p. 48. 127 Ibid., pp. 55-6. 128 O epíteto deriva dos frescos que narram a história bíblica da morte de Isaque, localizados

na mesma basílica, perto da obra dos pintores pré-giottescos das escolas romana e toscana (en-tre os quais os seguidores de Duccio e Cimabue). Mas as suas volumetrias e tridimensionalidade antecipam em vários anos a revolução pictórica operada por Giotto, de modo que a sua atribuição há muito constitui um enigma para os historiadores de arte. Se o Maestre d'Isacco era ou não o jovem Giotto, ou se, por outro lado, seria um mestre mais velho, no pleno da sua actividade artística, não é relevante no contexto desta análise, como não o são outros problemas análogos que confluem para a famosa Questione Giottesca. Para uma discussão actualizada dessa problemática cf. NESSI, Sil-vestro, La basilica di S. Francesco in Assisi e la sua documentazione storica, Assisi: Casa Editrice Francescana, 1994.

129 Cf. CAMEROTA, op. cit., pp. 35-6.

Page 61: A Imagem Construída

55

mente, axonometria) para representar o edificado. É o caso do terceiro episódio da

série, em que Francisco é representado dormindo [fig. 24]. Por trás dele, Jesus indica

o palácio com que o santo está a sonhar, uma metáfora para a evangelização francis-

cana. A estrutura é vagamente reminiscente da iluminura do Santo Sepulcro já anali-

sada [fig. 3], por consistir numa pilha de pisos relativamente autónomos. Aqui,

porém, sente-se uma vontade mais clara de retratar o edifício de modo naturalista —

com as suas estruturas porticadas, nos dois pisos inferiores, e as ricas janelas góticas,

nos dois pisos cimeiros — e não se confundem, nomeadamente, alçados interiores e

exteriores. Ainda assim, se tomados isoladamente, cada um dos elementos construídos

(bem como o dossel da cama e os bancos que a ladeiam) corresponde a uma constru-

ção axonométrica. Só a composição geral, pela forma como se escolheram os pontos

de vista das várias perspectivas paralelas, permite sustentar que o pintor já havia intu-

ído o conceito de ponto de fuga.

Ocasionalmente, porém, essa intuição concretiza-se e é efectivamente explorado o

sistema perspéctico convergente num único ponto, sobretudo na representação de

interiores130. É o caso do sétimo episódio, em que Francisco, liderando um grupo de

frades ansiosos mas felizes, recebe do Papa Inocêncio III a bula que confirma a Regra

Franciscana [fig. 25]. Na execução das quatro mísulas centrais que sustentam, em

fundo, os arcos, o pintor revela dominar perfeitamente a técnica da perspectiva con-

vergente, ainda que a despeito das mísulas laterais, que contradizem o sistema e reto-

mam o modo axonométrico.

Além de ter sido empregue para conferir à narração da lenda de São Francisco verosi-

milhança e acessibilidade, a perspectiva foi explorada também com um fim diferente,

ainda que aparentado. A cada tramo da nave correspondem dois vãos laterais, um em

frente do outro. A cada um destes vãos corresponde um grupo de três episódios [fig. 22]

(excepto no tramo mais próximo da entrada que, sendo mais longo, compreende quatro

episódios). Cada um destes grupos é articulado e enquadrado por elementos arquitectó-

nicos pintados, cuja tridimensionalidade é simulada através da perspectiva131. Sobre a

natureza visual destes elementos, é oportuno tecer algumas considerações.

130 Ibid., p. 37. 131 Esta organização da história em quadros, quase vinhetas, cada um confinado a um espaço

circunscrito, devidamente arrumado num esquema geral, revela algo do “hábito mental” escolástico.

Page 62: A Imagem Construída

56

Trata-se de um sistema de quatro colunas salomónicas, de capitel coríntio, assentes

numa cornija dentada que percorre toda a largura do vão. As colunas suportam uma se-

gunda cornija, maior e mais projectada, decorada com uma cachorrada perspectivada, em

estilo romano. Esta cinge todo o espaço da igreja e serve de bitola a todas as cenas narra-

tivas representadas, àquela cota, nos alçados interiores, independentemente do seu tema

ou autor. Foi concebida, portanto, no início dos trabalhos, como elemento unificador,

provendo de coerência formal e conceptual todo o espaço da igreja132. Mas é sobretudo o

pincel do sucessor (ou de um dos sucessores) de Cimabue que, ao aperfeiçoar-lhe a pers-

pectiva e ao articulá-la com os elementos arquitectónicos que a suportam, lhe confere o

seu carácter inovador133.

À semelhança da cornija, tanto a base como o capitel das colunas se encontram pers-

pectivados, na sua maioria, segundo a lógica isométrica presente nas cenas já analisadas.

Mas a composição dos elementos — a disposição no espaço pictórico dessas diferentes

perspectivas paralelas — revela, também aqui, a intenção geral por detrás da representa-

ção. As projecções destes volumes, do capitel à base, convergem todas (à direita e à es-

querda) para baixo, num eixo imaginário que percorre o centro de cada vão [fig. 23]134.

Isto confere à composição o aspecto de uma vista em contra-plongée135.

Os episódios franciscanos, melhor ou pior, fazem uso da perspectiva para atribuir a

cada cena uma coerência visual autónoma: o conjunto é concebido sequencialmente, mas

cada quadro é um episódio narrativo e (portanto) espacialmente estanque. Mas o disposi-

tivo arquitectónico simulado que os enquadra tem por base uma concepção espacial glo-

bal — ou seja, os diferentes “quadros” encontram-se arrumados numa estrutura visual

que simula uma verdadeira construção. E aqui reside a distinção entre os dois: não é sim-

plesmente a coerência visual de uma representação localizada que é visada, mas a coerên-

cia visual do próprio espaço da igreja, tal qual se oferece à percepção do visitante.

132 Cf. EDGERTON, The Heritage of Giotto, ed. cit., p. 51. O autor acredita que a moldura e os epi-sódios narrativos foram executados por artistas diferentes em momentos diversos. Ibid., pp. 59-63.

133 Comparando as duas campanhas decorativas, Edgerton conclui o seguinte: «In sum and in spite of Cimabue's reputation as the teacher of Giotto and harbinger of the proto-Renaissance stilo nuovo, we now regard his fictive classical architectural enframement at Assisi as perceptually naive.» Ibid., p. 55. Para uma análise das subtis diferencas na execução da perspectiva da cachorrada ao longo do perímetro da igreja cf. ibid., pp. 47-8.

134 Ibid., pp. 58-9. 135 Contribuem particularmente para o efeito as bases das colunas que, embora discretas, con-

firmam o efeito pela orientação perspéctica (e a intenção do pintor). Se o objectivo fosse simular a convergência da perspectiva algures no centro da composicão, como se estivéssemos a olhá-la de frente, a sua orientação seria a oposta: convergiriam para cima, em vez de para baixo.

Page 63: A Imagem Construída

57

Esta tendência é ainda evidente num outro lugar, quando o artista, em vez de criar

uma arquitectura onde ela não existe, se propõe fazer justamente o contrário: escondê-la.

Trata-se de um detalhe, mas revelador136. No primeiro tramo da nave, nos vãos de ambos

os lados, um colunelo pênsil do clerestório interrompe a continuidade da falsa cornija e

invade parcialmente o céu das cenas imediatamente abaixo, onde vem morrer [fig. 26].

Na tentativa de anular o elemento perturbador, o pintor faz o friso passar por cima do

fuste, ignorando-o [fig. 27]. Mas como tal causasse um distúrbio visual, a supressão do

colunelo envolveu um artifício mais sofisticado, precursor do trompe-l'œil — que tão

apreciado viria a ser nas decoração murais do Renascimento e do Maneirismo (e depois

sublimado nos tectos de Andrea Pozzo). Ao inclinar as linhas horizontais na direcção

descendente, o pintor consegue anular o efeito dissonante que se teria produzido se o

friso se tivesse mantido de nível. E, deste modo, o olho do observador pode ignorar a

presença do colunelo e ser iludido pela continuidade da cornija137.

Qualquer representação perspéctica pressupõe a determinação de um ponto de vista, a

partir do qual é construído e legitimado um determinado retrato da realidade. A isto se

regressará mais abaixo. Mas, nos dois últimos exemplos referidos, o pintor usa a perspec-

tiva para levar essa representação mais longe, procurando subtrair ao momento da obser-

vação o juízo crítico do observador, e levando-o a substituir a afirmação implícita de “isto

é a realidade, vista daquele ponto de vista” por esta outra: “isto é a realidade, vista do meu

ponto de vista”, ou apenas, “isto é a realidade”.

Será legítimo discutir o mérito da execução técnica destas “perspectivas”. Elas apare-

cem-nos, hoje, algo rudimentares, quando confrontadas com o contributo dos séculos

seguintes. Assim como Giotto, ao superar Cimabue, exerceu um grande fascínio sobre os

pintores do Trecento, também Masaccio exerceria uma influência afim sobre os artis-

tas do século seguinte. Com efeito, a história da perspectiva conheceria novos capítu-

los brilhantes, por exemplo, nos famosos frescos da Capela Brancacci ou na Trinitá de

Santa Maria Novella [fig. 28], outro exemplo ilusório particularmente eloquente,

ambas em Florença. Mas no contexto deste estudo, contará sobretudo reconhecer nas

136 Analisado em CAMEROTA, op. cit., p. 36. 137 Será aqui oportuno lembrar que já Vitrúvio discutia a corecção óptica na arquitectura (decor-

rente da lição euclidiana), demonstrando assim sensibilidade à questão da distorção das propor-ções segundo a posição do observador. Também os gregos, como se sabe, eram sensíveis ao problema. Mas o objectivo destas correcções era compensar a fraqueza do olhar humano, de modo a conduzi-lo a uma compreensão sinestésica da ideia de ordem veiculada pelos edifícios clássicos. Cf. PÉREZ-GÓMEZ, “The Revelation of Order”, ed. cit., pp. 7-8.

Page 64: A Imagem Construída

58

representações analisadas o princípio inovador que enunciam: o das imagens que jogam o

seu sucesso (já quase só) na eficácia da ilusão produzida no olho do observador. E isto

bastará para colocar a Basílica de Assis numa História da realidade virtual.

LA COSTRUZIONE LEGITTIMA

Deve-se a Euclides a mais antiga formulação matemática do sistema óptico humano,

que, no Ocidente, permaneceu fundamentalmente em vigor até ao alvor da moderni-

dade. O matemático grego, activo por volta do ano 300 a.C., interessou-se pelos raios

da luz e verificou, em particular, que estes viajam sempre em linha recta e que podi-

am ser reflectidos ou refractados. Analogamente, concebeu o fenómeno da visão co-

mo uma série de linhas rectas com origem no olho humano, formando um cone.

Estes raios visuais, sendo mesuráveis, permitiam estudar a relação entre a grandeza

aparente e a dimensão real de um objecto no campo visual.

Estavam assim lançadas as bases de uma nova ciência matemática: a Óptica. No

tratado que a ela dedicou, Euclides explicou o fenómeno das aparências através das

relações geométricas entre a dimensão dos objectos, a sua posição no espaço e a gran-

deza aparente com que são apreendidos pelo olho. Isto permitiu-lhe formular teore-

mas como «as grandezas mais próximas distinguem-se melhor do que as mais

longínquas» ou «de uma série de intervalos iguais que se afastam do [nosso] olho, o

mais longínquo parece mais pequeno»138.

Com estes postulados, o matemático demonstrava um conhecimento claro, inferi-

do de modo empírico, das utilidades e limitações deste sistema. Com efeito, para

além de observar o carácter aparentemente ilusório do fenómeno da visão — que,

para mais, já Platão, por exemplo, referia na República139 —, as suas reflexões concre-

tizaram-se em instrumentos práticos. É recuperado, por exemplo, o sistema de Tales

de Mileto, que consistia em usar os raios do Sol para descobrir a altura de uma estru-

tura140; e é proposta, como forma de avaliar a distância relativa de um objecto, a me-

138 CAMEROTA, op. cit., p.12. As citações correspondem aos teoremas II e IV-VII, respectivamente. 139 PLATÃO, República X, 602c. 140 Tales teria medido uma pirâmide através da sua sombra, fazendo uma comparação de pro-

porções com a sombra de um pau de comprimento conhecido, ou a sua própria. Cf. CAMEROTA, op. cit., pp. 12 e 25.

Page 65: A Imagem Construída

59

dição do ângulo formado pelos raios imaginários que partiam da retina do observador

ao seu encontro. Soluções deste tipo, que permitiam a medição através da vista, tor-

nar-se-iam úteis, nomeadamente, à Astronomia e à Topografia.

Com a queda do Império Romano, a herança da ciência clássica na Europa per-

maneceu relativamente inerte. E a “perspectiva” de Euclides, enquanto explicação do

fenómeno da visão e enquanto método de medição, tão-pouco conheceu desenvolvi-

mentos substanciais até à Idade Média141, o que permite a David Lindberg inferir que

«O carácter essencial da ciência óptica medieval, que a distingue da moderna, é que

não pode existir problema óptico sem observador. A óptica medieval era [tão-só] uma

teoria da visão.»142 Em breve, porém, se trilharia o caminho para a inclusão do obser-

vador como variável do problema.

A partir do séc. XIV, a importância relativamente subalterna do tema no âmbito

das matérias leccionadas nas universidades medievais começou, enfim, a ser reconsi-

derada e é proposta a inclusão da ciência óptica, ou perspectiva naturalis, no currículo

do quadrivium143. Antes do final do século, estava suficientemente difundida a com-

preensão de dois princípios geométricos já referidos, fundamentais para o desenvol-

vimento das inovações iminentes: a identificação do olho como o vértice de uma

pirâmide formada pelos raios ópticos e a intersecção dessa pirâmide como meio de

medir a grandeza aparente de um objecto. Reuniam-se enfim as condições para que

esta teoria geométrica, que nada tinha ainda que ver com as artes visuais, levasse ao

desenvolvimento da perspectiva artificialis, o problema pictórico que entusiasmou o

meio intelectual florentino do Quattrocento144.

141 Não quer isto dizer, evidentemente, que se tenha verificado uma ausência completa de curio-sidade sobre o tema. O seu estudo académico prosseguiu, nomeadamente no mundo árabe, onde entre os sécs. VII e XI, académicos muçulmanos (e Alhazen, em particular) redescobriam com inter-esse o legado euclidiano. O seu trabalho de tradução e comentário dos tratados gregos, posterior-mente retraduzidos para Latim, ajudaria mais tarde a reacender na Europa o interesse por estas questões. Cf. LINDBERG, op. cit., pp. 58-86.

142 Citado em EDGERTON, The Mirror, ed. cit., p. 22. 143 Cf. CAMEROTA, op. cit., p. 22. 144 Cf. ibid., p. 32 e PÉREZ-GÓMEZ, “The Revelation of Order”, ed. cit., p. 7.

Page 66: A Imagem Construída

60

Como é consensualmente aceite por quem estuda o período145, foi o polifacético

Brunelleschi o primeiro a demonstrar publicamente em Florença, na transição do

primeiro para o segundo quartel do séc. XV, um sistema perspéctico linear plenamen-

te desenvolvido. O método alastrou rapidamente às composições pictóricas de outros

artistas daquela cidade e viajou, em seguida, ao longo de Itália e para lá dos Alpes146.

A partir das obras que chegaram até nós, é lícito assumir que, na primeira metade do

séc. XV, pintores como Masaccio [fig. 29] ou os irmãos van Eyck [fig. 30] exerciam a

sua actividade conhecendo, já, pelo menos uma das variantes da nova teoria perspéc-

tica. Assim, o que é finalmente confiado à escrita por Alberti, em 1435, não deve ser

entendido como um volte-face histórico, devido à radical originalidade de um só

indivíduo, mas como a etapa mais recente de uma pesquisa que se conduzia em várias

frentes. Não obstante, é num texto sobre pintura publicado por aquele autor que

encontramos a primeira descrição de um método para representar objectos no espaço

a que pode já chamar-se, com propriedade, perspectiva linear147.

O tratado Della Pittura compreende três livros, o primeiro dos quais trata dos

fundamentos geométricos da pintura148. O autor começa por expor as definições eu-

clidianas básicas de ponto, linha e plano e prossegue com noções da óptica clássica,

nomeadamente o conceito de raios visuais e o da pirâmide por eles formada. Final-

mente, propõe a intersecção dessa pirâmide por um plano, com vista a obter uma

representação cientificamente perspectivada [fig. 31]. Fá-lo — e talvez resida aqui a

novidade maior — mediante uma série de passos sequenciais, cuja simplicidade con-

tribuiu sem dúvida para a eficácia da sua difusão [fig. 32]149.

145 Cf. ANDERSEN, op. cit., p. 11. 146 Este episódio, envolvendo supostamente o auxílio de um espelho, consistiu na representação

do Baptistério de Florença e da Piazza della Signoria e tem sido extensamente debatido e reconsti-tuído por vários historiadores. Cf. ibid., pp. 11-15. Muitos reconhecem nele a charneira da mudança de paradigma na representação espacial moderna (apesar dos dois pequenos quadros a que deu origem não terem chegado até nós senão nas referências feitas à sua existência por terceiros). Edgerton, por exemplo, afirma taxativamente o seguinte: «These two lost panels (...) were surely the most influential artworks produced during the entire European Renaissance. (...) Within weeks after Brunelleschi's initial demonstration, his perspective method was adopted by some of the most talent-ed artists of Florence — Masaccio, Donatello, and even the conservative Fra Angelico, thence throughout Italy.» EDGERTON, The Mirror, ed. cit., pp. 5-6.

147 Cf. ANDERSEN, op. cit., p. 17. 148 O segundo, acima citado (p. 52), discute os temas da composição, do desenho e da cor e o

terceiro ensaia um código deontológico do artista. 149 Cf. EDGERTON, The Mirror, ed. cit., p. 8. A representação esquemática da sequência proposta

por Alberti (que a figura reproduz uma versão abreviada) procede do mesmo autor. Cf. ibid., pp. 68-70.

Page 67: A Imagem Construída

61

O processo tem início com a circunscrição da área a pintar e com a determinação

de um ponto de fuga, chamado “punto centrico”:

«(...) dirò quello fo io quando dipingo. Principio, (...) scrivo uno quadrangolo di retti angoli (...). Poi dentro a questo quadrangolo (...) fermo uno punto il quale occupi quello luogo dove il razzo centrico ferisce, e per questo il chiamo punto centrico. Sarà bene posto questo punto alto (...) non più che sia l'altezza dell'uo-mo quale ivi io abbia a dipignere, però che così e chi vede e le dipinte cose vedute paiono medesimo in suo uno piano.»150

Em seguida, planificam-se os raios de uma pirâmide visual que, ao serem secciona-

dos num dado ponto, irão fixar a distância que o espaço da pintura dista da cena re-

presentada. Finalmente, acha-se a linha do horizonte, ou a “linea centrica”:

«Fatto questo, io descrivo nel quadrangolo della pittura attraverso una dritta linea dalle inferiori equedistante, quale dall'uno lato all'altro passando super 'l centrico punto divida il quadrangolo. Questa linea a me tiene uno termine quale niuna ve-duta quantità, non più alta che l'occhio che vede, può sopragiudicare. E questa, perché passa per 'l punto centrico, dicasi linea centrica.» 151

É, pois, evidente que Alberti estava já perfeitamente familiarizado com os concei-

tos-chave de “ponto de fuga” e “linha de horizonte”, condições sine qua non da nova

teoria152. Instituía-se assim a “costruzione legittima”, como ficou conhecida à época,

ou perspectiva linear.

150 ALBERTI, Della Pittura, ed. cit., p. 70-1. 151 Ibid., p. 74. 152 É pertinente notar que Alberti esperava que o leitor seguisse as suas instruções sem que

fosse visualmente auxiliado na compreensão de cada passo. Nenhum dos cerca de vinte manuscritos quatrocentistas da obra que ainda hoje se conseravam é ilustrado. Cf. EDGERTON, The Mirror, ed. cit., p. 118. Assim, o método eternizado por Alberti neste momento histórico de transição recorda ainda a progressão das sequências geométricas medievais, como a do panfleto Roriczer. Outra coincidência entre os dois autores, mais circunstancial, foi a edição quase simultânea, em Ratisbona, do dito panfleto e da primeira tradução do De Re Aedificatoria, o tratado arquitectónico de Alberti.

Page 68: A Imagem Construída

62

4. A imagem construída

Segundo as conclusões de Euclides acerca do modo como se produz, no olho huma-

no, o fenómeno da visão, todos os homens vêem essencialmente o mesmo: um

mundo naturalmente perspectivado, onde linhas paralelas tendem a fugir para um

ponto comum. A ser assim, porém, é curioso notar que só na Europa de mil e qua-

trocentos se tenha começado, enfim, a representar o espaço com recurso a um sis-

tema científico análogo ao que havia sido identificado pelo matemático grego. No

entanto, a relação entre o modo como cada observador experimenta visualmente o

mundo físico e o modo como o representa é, evidentemente, muito mais complexa,

e perpetuamente condicionada pelo ambiente cultural em que se insere. É esta, em

parte, a razão porque a perspectiva não deve ser entendida, de forma tecnicista,

como um avanço histórico positivista, que teria chegado “adiantado” ou “atrasado”.

O seu aparecimento deve ser enquadrado no contexto cultural e científico que pro-

piciou a sua descoberta e a sua maturação.

Page 69: A Imagem Construída

63

A PERSPECTIVA COMO FORMA SIMBÓLICA

O ambiente socio-cultural da Idade Média, quando comparado com o das épocas

sucessivas — e, em particular, com o da nossa, assente numa verdadeira cultura das

imagens — era tendencialmente menos “visual”. Isso mesmo testemunha, por

exemplo, a literatura da época, onde «haveria que procurar muito se se quisesse en-

contrar uma qualidade descritiva comparável à das aguarelas alpestres de Albrecht

Dürer» ou algo «de comparável aos diários de viagens do séc. XIX: até os peregrinos

do Oriente, mais abertos às impressões provocadas pelo exotismo, vindos para des-

cobrir, por vezes em lágrimas, os lugares bíblicos tantas vezes evocados pela imagi-

nação, se limitam a anotar para os seus leitores a veracidade de informações de que

já dispunham antes da sua partida.»153

Assim também, verificou-se, na primeira das duas iluminuras da comparação

acima analisada, um aparente descuido no tratamento visual da representação das

figuras e da arquitectura. Dessa “negligência” apresentou também provas Krauthei-

mer, ao focar concretamente representações arquitectónicas. Todavia, não se deve

concluir, com isto, que os peregrinos que foram à Terra Santa (e o homem medie-

val, de um modo geral) «são insensíveis à cor local, mas [antes] que não dispõem do

vocabulário necessário à descrição e que, dos [seus] cinco sentidos, talvez a vista não

seja o mais sensível.»154

Não dispunham do vocabulário das imagens, mas de outro, mais abstracto por-

que essencialmente verbal; mais adaptado ao tipo de comunicação que praticavam,

tendencialmente oral, e aos meios de comunicação que tinham ao seu alcance. Esse

vocabulário correspondia à vocação simbólica da arte e da religião (domínios que

eram praticamente indestrinçáveis). De resto, só por meio de tal vocabulário se po-

de veicular significados transcendentais, que são maiores do que quem os comunica,

que dificilmente (ou nunca) se abarcam completamente. Neste sentido, a sociedade

da Idade Média é hoje, para o homem contemporâneo, um universo perfeitamente

remoto. E por isso mesmo, para uma sociedade como a actual — que, tendo cum-

prido a sua vocação científica e tecnológica, tudo sabe e tudo vê —, a forma que

153 BRAUNSTEIN, op. cit., p. 602. 154 Ibid.

Page 70: A Imagem Construída

64

assumiu a comunicação medieval revela-se, antes de mais, pelas suas limitações.

Enquanto observadores do pós-Renascimento, temos «muito a esquecer, e algo a

aprender, antes de poder apreciar a arte medieval.»155

A dimensão religiosa deste fenómeno deve também ser tida em conta. À luz do que

foi dito, poder-se-á concluir que a perspectiva foi, num primeiro momento, um pro-

blema da cristandade europeia. Com efeito, a sua reintrodução no pensamento aca-

démico e posterior generalização como método científico teve lugar no contexto de

uma sociedade vincadamente religiosa. Era em torno do culto cristão, nas várias for-

mas que assumia, que orbitava a maior parte da criação artística da época. E, neste

contexto, é importante destacar aquilo que foi, efectivamente, a matéria temática

dessa arte pictórica: as personagens das Escrituras (e, em particular, a Virgem), bem

como os santos do primeiro milénio da cristandade, muitos deles martirizados. Estes

e outros temas de índole semelhante destinavam-se a um público devoto, ansioso por

ter Deus «presente de forma mais palpável e implicado de modo imanente nos pro-

blemas da sua vida quotidiana.»156 Para quem não sabia ler e não frequentava os círcu-

los intelectuais da época (ou seja, a grande maioria) a crescente justeza visual dessa

nova forma de representar, assim como a mudança de paradigma para uma arte mais

narrativa e menos abstracta, reforçaram, metafórica e literalmente, a ilusão da presen-

ça divina. Esta forma “franciscana” de comunicar retemperou a fé católica e aproxi-

mou a Igreja dos seus fiéis157. E as entidades eclesiásticas sediadas em Roma souberam

tirar partido dessa aproximação158.

Mas a questão coloca-se igualmente a outro nível (mais subliminar, se se quiser): o

dos teólogos que pensavam o problema da representação e o dos artistas que a leva-

vam a termo. Uns e outros estiveram activamente envolvidos no processo cultural que

155 Como relembra Panofsky: «A experiência re-creativa de uma obra de arte depende (…) não apenas da sensibilidade natural e do treino visual do espectador, mas também do seu equipamento cultural. Um observador inteiramente ‘ingénuo’ é algo que não existe. O observador ‘ingénuo’ da Idade Média tinha muito a aprender, e algo a esquecer, antes de poder apreciar a estatuária e a arquitectura clássicas, e o observador ‘ingénuo’ do período Pós-Renascimento tinha muito a esque-cer, e algo a aprender, antes de poder apreciar a arte medieval – já para não falar da arte primitiva.» PANOFSKY, Meaning in the Visual Arts, ed. cit., p. 40.

156 Cf. EDGERTON, The Mirror, ed. cit., p. 20. 157 Vide supra nota 125. 158 Com efeito, é legítimo ler na confirmação da regra franciscana por parte do Papa [fig. 25] a

metáfora de uma Igreja que reconhecia a necessidade de se aproximar dos seus súbditos, e que via na evangelização simples e despretenciosa daquela ordem mendicante um modo de o fazer.

Page 71: A Imagem Construída

65

conduziu à ascensão das tendências que ocupam este estudo. Os primeiros tiveram

responsabilidade como intelectuais — enquanto comentadores e tradutores dos textos

antigos — e orientadores da doutrina da igreja. Foram ainda patronos ou encomen-

dadores directos, já que muitos eram abades ou bispos (e, portanto, autoridades ecle-

siásticas com poder executivo). Os segundos, mestres construtores, pintores e

escultores, executores dos programas artísticos que lhes eram encomendados, emanci-

param-se à medida que avançava o Quattrocento. A classe já se havia especializado em

face das complexas exigências que colocava, por exemplo, a construção de uma grande

catedral gótica. Surgiam agora, no seu âmbito (ou interessados nos seus problemas),

alguns intelectuais de direito próprio.

Brunelleschi, por exemplo, esteve intimamente ligado ao aspecto técnico da cons-

trução, no qual introduziu, como se sabe, inovações consideráveis, nomeadamente no

estaleiro do Duomo de Florença. Assim, se o ciclo decorativo de Assis foi provavel-

mente, elaborado por um teólogo159 (como o havia sido o tímpano de Vézelay160),

arquitectos como Brunelleschi ou Alberti exerciam já uma influência própria e decisi-

va sobre a condução do programa das suas obras — influência essa que conheceria

um paroxismo exemplar no século seguinte, com as relações de proximidade que Ra-

fael ou Miguel Ângelo estabeleceram com o próprio chefe da Igreja.

Para quem pensava e para quem fazia (bem como para quem governava e financia-

va), olhar o mundo com a precisão geométrica do sistema de Euclides, e representá-lo

com o auxílio da perspectiva linear, era aproximar-se da perfeição do olhar de

Deus161. Tal modo de representação permitia olhar — e ver — aquilo que Ele nos

oferece e nos dá a capacidade de trabalhar e aperfeiçoar162. Tratava-se, pois, de certo

modo, de cumprir o desígnio divino.

Mas as implicações da representação perspectivada, como viriam a demonstrar os

desenvolvimentos históricos posteriores, artísticos e científicos, transcenderam larga-

mente o contexto religioso em que germinaram. Dir-se-ia mesmo que, até certo pon-

159 Vide supra p. 53. 160 A hipótese é avançada por Katzenellenbogen e baseia-se na complexidade programática das

representações. Cf. KATZENELLENBOGEN, The Central Tympanum at Vézelay, ed. cit., p. 142, 151 e passim.

161 A religião cristã é profícua em referências ao olhar geométrico de Deus (bem como em me-táforas arquitectónicas da criação) que se prestavam à justificação desta atitude. Pérez-Gómez cita o exemplo do jesuíta Juan Bautista Villalpando e das suas reflexões sobre a perspectiva como a forma de visão do próprio Deus. Cf. PÉREZ-GÓMEZ, “The Revelation of Order”, ed. cit., p. 13.

162 Vide supra nota 74.

Page 72: A Imagem Construída

66

to, foram essas mesmas implicações que lhe colocaram alguns dos seus maiores pro-

blemas. Ver com os olhos de Deus — para muitos teólogos, desde o primeiro mo-

mento, uma fantasia herética a suprimir — tornou-se o principal apanágio do homem

moderno. E a perspectiva pode contar-se entre os factores que mais contribuíram para

a revolução científica que se seguiria, oferecendo ao Homem o controlo do seu mun-

do — ou ajudando a criar essa ilusão.

Aludindo às implicações da introdução da perspectiva linear, Panofsky afirma

que este novo modo de representação confere «uma expressão visual ao conceito de

infinito; porque o ponto de fuga perspéctico só pode ser definido como “o ponto

projectado em que todas as paralelas se unem”.»163 Em sentido metafórico, represen-

tar o infinito significa dominá-lo intelectualmente, trazê-lo para o âmbito do repre-

sentável, do compreensível, do admissível. Assim, a perspectiva, enquanto nova

categoria simbólica, assume um valor cultural fundacional: o espaço, infinitamente

representável, sai da órbita do desconhecido (apanágio do divino) e passa a ser con-

quistável pelo Homem, porque representável. A representação do mundo físico com

recurso a métodos científicos — a sua “construção legítima” — é, portanto, uma

conquista do Homem sobre o seu meio. E, por isso, é um dos factores que mais

contribuíram para ascensão do pensamento humanista, na sua qualidade de movi-

mento cultural transversal, promotor de uma cosmovisão antropocêntrica.

Euclides, ao fazer depender a sua teoria de factores como a variação do ângulo

óptico necessário para abarcar um dado objecto, «prescindia de qualquer implicação

psicológica na percepção de grandezas»164. Para ele, tratava-se de uma investigação

empírica, motivada pela vontade de descobrir o fenómeno natural que preside à

visão humana. Mas a quaestione perspectiva, tal como foi entendida e desenvolvida

no final da Idade Média e na Renascença, tornar-se-ia mais complexa e matizada. A

perspectiva linear trouxe consigo o problema cuja formulação, ausente da Óptica

medieval, a reduzia a uma «teoria da visão»165 — a saber, o observador. «Ao redefi-

nir [o plano d]a pintura ou a superfície de desenho como um plano imaterial de

projecção, a perspectiva (...) mostra, não só o que é visto, mas o que é visto sob con-

163 PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., pp. 16-7. 164 Cf. CAMEROTA, op. cit., p. 10. 165 Vide supra p. 59.

Page 73: A Imagem Construída

67

dições particulares.»166 Ou seja, se oferece (ou devolve) a realidade tal como é perce-

bida de um ponto de vista específico, então oferece uma realidade, e não a realida-

de. Como verificou Giedion, «com a invenção da perspectiva, a noção moderna de

individualismo encontrou o seu contraponto artístico. Numa representação em

perspectiva, cada elemento se relaciona com o ponto de vista único do observador

individual.»167 Por outras palavras, o objecto é submetido ao sujeito.

A representação legitimada por um método científico de leitura, embora suben-

tenda uma realidade anterior à representação, só consegue captá-la através dos seus

elementos particulares, infinitos na quantidade. Segundo a premissa desta tecnolo-

gia representativa, portanto, perde-se irrevogavelmente a possibilidade de represen-

tar um todo absoluto — o que, parecendo contraditório, era possível através do

“vocabulário medieval”, mais remissivo e menos visualmente descritivo. Segundo

aquela forma de ver, mesmo a demonstração da mais perfeita ignorância pressupu-

nha uma apreensão mais abrangente do mundo (quando comparada com uma re-

presentação cientificamente rigorosa), pois é infinitamente vasta a categoria do não

saber.

Não se trata de questionar a natureza estritamente subjectiva da representação,

aplicável a qualquer dos casos168. O que está em causa não é só o que de facto se

representa, mas a ambição do próprio acto de representar, que influi no resultado.

Pode concluir-se, portanto, que a conquista sobre o mundo prefigurada pela pers-

pectiva é ambivalente, porque acarreta um preço — o Homem, “herói” subentendi-

do desta conquista, tinha também algo a perder. Por um lado, o infinito é

conquistado, pois pode ser representado. Por outro, essa conquista implica uma

subjectivação irrevogável do ponto de vista. Representa-se o infinito, mas de um

ponto de vista determinado. O infinito deixa-se aprisionar pela representação, mas

não a ideia de absoluto, que permanece, conceptualmente, fora deste novo sistema,

para sempre condenado a produzir representações particulares da realidade.

166 Cf. PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., pp. 16-7 (sublinhado nosso). 167 GIEDION, op. cit., p. 31. 168 Nas palavras de Nelson Goodman: «The most ascetic vision and the most prodigal, like the

sober portrait and the vitriolic caricature, differ not in how much but only in how they interpret. (...) nothing is ever represented either shorn of or in the fullness of its properties. A picture never merely represents x, but rather represents x as a man or represents x to be a mountain, or represents the fact that x is a melon.» GOODMAN, Languages of Art, ed. cit., p. 9.

Page 74: A Imagem Construída

68

RACIONALIZAÇÃO DA VISTA

Como se pôde verificar a propósito dos exemplos acima analisados, o meio de repre-

sentação não corresponde, nunca, a um veículo neutro. A sua natureza e o seu al-

cance condicionam necessariamente a coisa representada e o modo como é

apreendida pelo observador. É fácil de ver que uma descrição verbal, por exemplo, é

constitutivamente diferente de um registo gráfico, ainda que os dois almejem repre-

sentar o mesmo modelo. Ivins observa: «É pouco provável que uma descrição verbal

tenha alguma vez estado na origem de um retrato [visual] reconhecível.»169 E isto

porque existe uma heterogeneidade absoluta entre uma palavra e uma imagem, ou

entre um texto e um rosto. As palavras são, por natureza, signos universais, mesmo

quando organizadas em frases longas e complexas, destinadas a descrever exaustiva-

mente uma imagem ou uma situação. Trata-se de símbolos que veiculam realidades

possíveis, anteriores à fixação específica de um determinado volume ou de uma for-

ma. Um dado objecto ou uma dada pessoa, quando descritos por meio de palavras,

e mesmo recorrendo a uma multidão de qualidades ou predicados, suscitarão ainda

um número infinito de imagens possíveis170.

169 IVINS, On the Rationalization, ed. cit., p. 7. Mcluhan formula o problema de forma semelhante: «All the words in the world cannot describe an object like a bucket, although it is possible to tell in a few words how to make a bucket. This inadequacy of words to convey visual information about ob-jects was an effectual block to the development of the Greek and Roman sciences.» MCLUHAN, Un-derstanding Media, ed. cit., p. 158. Ao salientar a vocação instrutiva («how to make a bucket») em detrimento da descritiva, o autor poderia estar a referir-se ao panfleto sobre pináculos, analisado no primeiro capítulo. Ademais, como Mcluhan, também Ivins reconheceu este “bloqueio” da ciência clássica, que é uma das teses centrais do seu Art & Geometry (cf. ed. cit.).

170 Sobre a diferença de estatuto entre os símbolos escritos ou falados e as imagens cf. LEROI-GOURHAN, Le Geste et la Parole, vol. 1, ed. cit., p. 294: «L’écriture alphabétique conserve à la pen-sée un certain niveau de symbolisme personnel. En effet dans l’écrit, la vision conduit à une recons-truction du son qui reste individuelle et dans une marge étroite mais certaine, à une interprétation personnelle de la matière phonétique. Plus encore, les images déclenchées par la lecture res-tent-elles la propriété, de richesse variable, de l’imagination du lecteur. En changeant de plan, en remplaçant les symboles idéographiques par des lettres, l’alphabet n’abolit pas toutes les possibilités de recréation. En d’autres termes, si l’écriture alphabétique répond aux besoins de la mémoire so-ciale (…) elle conserve à l’individu le bénéfice de l’effort d’interprétation qu’elle en exige.» Cf., também, IVINS, On the Rationalization, ed. cit., p. 8 (e nota 5): «In thinking about symbols it is necessary to remember that while some symbols are defined by their references, other references are defined by their symbols. The more closely a highly organized and purely conceptual subject, such as mathematics, defines its symbols, the wider is the range of variation that may be introduced into the physical forms of the symbols without effecting change in their significance. Thanks to the pictorial symbol's sensuously immediate definition of its reference, it is basic for many of the recogni-tions of similarity which must be made before practical knowledge or science is possible.»

Page 75: A Imagem Construída

69

Tal como não existe um sistema de notação para veicular com precisão a quali-

dade de um sabor ou de um odor — «no limite, [à falta de adjectivos,] podemos

dizer que os morangos sabem a morango e que as rosas cheiram a rosa.»171 —, os

dados fornecidos, num só relance, por uma representação visual jamais poderão ser

traduzidos, com toda a fidelidade, por um conjunto de palavras. Isto não significa,

porém, que não seja possível representar o mundo e compreendê-lo por meio de

palavras. Como se viu, a cultura medieval caracteriza-se justamente por uma pre-

ponderância da comunicação oral. E, como também se viu, seria redutor defini-la,

por essa razão, como uma cultura menos “exacta” ou menos “rigorosa”, em sentido

lato. O que a tradição oral retinha do mundo envolvente era um conjunto de in-

formações constitutivamente diferente daquele que é veiculado por uma imagem,

mas nem por isso menos rico. Pelo contrário, e justamente devido ao seu carácter

universal, as palavras pertencem ao universo da possibilidade e encerram, por isso,

uma liberdade que certas imagens, enquanto registos completos e figés, não estão em

condições de transmitir.

A este propósito, é oportuno referir o sistema de coordenadas concebido por

Ptolemeu, astrónomo e geógrafo alexandrino de origem grega172. Activo no segundo

quartel do séc. II, estima-se que, ao prosseguir as suas investigações nos campos da

Geografia e da Astronomia, Ptolemeu tenha elaborado vários mapas e cartas astro-

nómicas. Para fazer circular esses desenhos, porém, havia que superar o obstáculo

colocado pela ausência de suportes visuais fiáveis173. Com esse fim, o cientista pro-

pôs, no seu tratado Geografia174, um conjunto de instruções que permitia aos leito-

res interessados desenhar os mapas pela sua própria mão175:

171 IVINS, ibid., p. 7. 172 Da sua vida pouco se sabe, mas os seus influentes escritos chegaram-nos através de uma

acidentada genealogia de cópias, traduções e comentários. Cf. JONES, op. cit., p. xi-xii. 173 No projecto de “descrever” (em vez de “desenhar”) a geografia do mundo antigo, Ptolemeu foi

precedido por Estrabão, geógrafo grego autor de um tratado em dezassete livros em que o perfil de diferentes países e regiões é sugerido evoncando a forma geométrica que mais se lhes assem-elhe — um método evidentemente pouco rigoroso do ponto de vista gráfico. Cf. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., p. 21.

174 O título original do tratado, Γεωγραφικὴ Ὑφήγησις, pode traduzir-se como “guia para desenhar o mapa do mundo”. Cf. PTOLEMY, op. cit., p. 4.

175 Ptolemeu insiste na tentativa de tornar o processo infalível: procurou organizar os seus trata-dos de tal modo que a leitura de um não requeresse a leitura dos restantes. Cf. JONES, op. cit., p. xii.

Page 76: A Imagem Construída

70

«It remains for us to turn our attention to the method of making maps. There are two ways in which this matter may be treated; one is to represent the habitable earth as spherical; the other is to represent it as a plane surface. Both have this common purpose, that is, they are constructed for use, to show (in the absence of any picture) how from commentaries alone the student may be able, with the ut-most facility, to construct a new map.»176

O que circulava era, assim, um texto contendo um sistema de coordenadas geo-

métricas que permitia que cada ponto do futuro mapa, descrito através de um par

de números que correspondiam à longitude e latitude, fosse desenhado numa grelha

previamente concebida, também de acordo com instruções concretas. Ptolemeu

convertia, assim, mapas desenhados «em sequências de letras e números — [isto é,]

um ficheiro alfanumérico que (...) podia ser registado e transmitido sem [perigo de]

distorção.»177 O desenho resultante, elaborado a posteriori tantas vezes quanto neces-

sário, era, literalmente, a ilustração de um discurso já enunciado por escrito.

O conhecimento assim veiculado pertence, ainda, ao âmbito da tradição oral ou

escrita. Com efeito, é através da linguagem verbal (e não visual) que primeiro se

expressa o conteúdo do discurso. Assim sendo, tal conteúdo partilha o carácter uni-

versal de toda a linguagem escrita ou falada, deixando uma margem de liberdade ao

leitor que a interpreta. Paradoxalmente, porém, o sistema parece ser utilizado jus-

tamente para colmatar a ausência de imagens, que ele próprio visa produzir. O texto

de Ptolemeu não é, por exemplo, um poema amoroso, com duplos sentidos, florea-

dos linguísticos ou sonoridades cuidadosamente planeadas. Pelo contrário: o que

interessa ao geógrafo é consagrar à escrita um sistema à prova de interpretações sub-

jectivas, ou equívocos. A própria linguagem que usa nos seus tratados, em geral,

parece querer expurgar a língua em que se exprime da sua potencial ambiguidade:

«[o autor] usa habitualmente verbos sesquipedais e utiliza frases longas e labirínti-

cas; mas o seu vocabulário e a sua fraseologia são repetitivos, esquivando-se à lin-

guagem figurativa, e a sua sintaxe enovelada provém do desejo de expressar as

condições e as consequências de um pensamento de uma assentada, estando muito

distante da retórica auto-consciente.»178

176 Ptolemeu, Geografia, I, 18. Tradução inglesa de E. Stevenson, citada em CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., p. 148 (nota 19 do cap. 2).

177 Ibid., p. 21. 178 Cf. JONES, op. cit., p. xi.

Page 77: A Imagem Construída

71

Uma representação que podia ser descodificada e recriada mediante uma chave

interpretativa, que lhe era anterior, abria a possibilidade do tráfico rigoroso de in-

formação visual. Com efeito, a modernidade do processo é assinalável — e não será

exagerado reconhecer nela um prenúncio das sequências de “zeros” e “uns” que

constituem a informação digital com que a nossa sociedade hoje lida diariamente.

No entanto, o sistema dependia, ainda, da capacidade que o interlocutor final teria

de compreender as instruções e “reconstruir” a imagem requerida, o que nem sem-

pre se provou fácil179. Com efeito, o conteúdo do discurso traía a vocação da sua

forma. O geógrafo parecia querer anular a propensão universal das palavras, testan-

do (porventura inadvertidamente) os limites da linguagem escrita para transmitir

conteúdo visual. Contrariava, assim, a ideia de que uma «descrição verbal» não pode

estar «na origem de um retrato reconhecível»180.

Historicamente, as representações a que chamamos “imagens” — isto é, as repre-

sentações cujo referente é identificado, em parte ou no todo, através dos seus atri-

butos formais visíveis — só iniciaram a escalada de protagonismo cultural que as

levaria ao páramo que hoje ocupam no alvor da modernidade. Até então, a repre-

sentação desenhada, fosse qual fosse o seu suporte — desde as figuras rupestres do

homem pré-histórico às iluminuras dos monges copistas medievais, passando pelas

incontáveis variações de que nos dá conta a História da Arte —, era demasiado ine-

ficaz enquanto meio de comunicação visual. E isto por duas razões fundamentais:

por um lado, como já se referiu, não podia ser duplicada com exactidão, de modo

suficientemente durável e numeroso; por outro, carecia de um sistema de suporte

conceptual universalmente reconhecido, um modo sistemático de organizar as re-

presentações visuais que pudesse servir como medida do seu rigor181.

O primeiro desses problemas encontraria solução com a introdução da imprensa

tipográfica, que viria revolucionar a forma como o conhecimento era transmitido.

179 O próprio Ptolemeu se queixou, a propósito de mapas baseados nos seus tratados, de des-vios às instruções neles fornecidas. Cf. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., p. 21 e nota 19.

180 Vide supra nota 169. 181 Curiosamente, a satisfação destas duas condições sine qua non para a proliferação de ima-

gens na cultura ocidental quase coincidiu historicamente. Isso não implica, porém, que tenha havido, no sentido estrito, uma co-dependência das duas tecnologias: a existência de uma não pressupõe a existência da outra. Estiveram, porém, relacionadas, não só pela partilha do contexto histórico como pela sua relação íntima de mútua propiciação. Cf. CARPO, The Alphabet, ed. cit., pp. 26-7.

Page 78: A Imagem Construída

72

Quando Andreas Vesalius, ilustre anatomista dos Países Baixos que se tornaria mé-

dico de Carlos V, publica, em 1543, o seu famoso tratado anatómico, essa mudança

de paradigma era já evidente. O De humani corporis fabrica, baseado em dissecções

do corpo humano efectuadas na Universidade de Pádua, é a primeira gramática do

corpo humano que define as suas diferentes partes com recurso a imagens. Impressa

a partir de blocos de madeira, a edição é constante e imutável ao longo de toda a

tiragem, desembaraçando-se dos constrangimentos da cópia manual182. Ao contrário

do sabor de um morango ou do cheiro de uma rosa — que, tal qual os sentimos

através do paladar e do olfacto, permanecem, até hoje, difíceis de aprisionar por um

sistema de notação183 —, os ossos e os músculos podiam agora ser perfeitamente

identificados visualmente, através das detalhadas ilustrações do tratado de

Vesalius184. Tornava-se agora possível transmitir conhecimento através de imagens

rigorosas, que podiam ser reproduzidas em série e exportadas185.

Quanto ao segundo impedimento, a solução iria requerer, nas palavras de Ivins,

«um sistema lógico de correspondência (...) entre as representações gráficas (...) dos

objectos e a sua localização no espaço.»186 Ou seja, era necessário encontrar um mo-

do de notação fundado, ao contrário do de Ptolemeu, em elementos propriamente

visuais. E esse sistema foi, como é sabido, a perspectiva linear. A sua introdução

rasgou um campo de possibilidades novo, que iria transformar para sempre a histó-

ria da representação espacial.

Progressivamente, a “miopia” medieval, bem como o carácter eminentemente

simbólico das representações daquela época, seriam preteridos em favor de descri-

ções cada vez mais orientadas para a reprodução do original nos seus aspectos visí-

veis. Segundo Krautheimer, «a partir do séc. XV, este processo torna-se óbvio:

apesar de poder variar a escala ou o material de uma cópia, e de o [edifício] original

182 Cf. IVINS, On the Rationalization, ed. cit., p. 13 e ANTONIU, op. cit., passim. 183 Sobre a vocação e os limites de um sistema notacional cf. GOODMAN, Languages of Art, ed.

cit., pp. 127-221. 184 A autoria das gravuras não é certa, mas a sua atribuição mais recente e consensual da sua

proveniência é a oficina de Tiziano. 185 Note-se que a primeira geração de tratados arquitectónicos renascentistas (nomeadamente o

De re aedificatoria, publicado por Alberti em 1452), bem como o de Vitrúvio, muito antes, não pres-supunham a ilustração do texto (independentemente das figuras que os editores sucessivos tenham decidido incluir, ex post facto). À semelhança de Ptolemeu, os seus autores viram-se forçados a trabalhar sob o constrangimento da ausência de meios técnicos para assegurar a reprodução fiel de imagens — isto é, decidiram ficar-se pela palavras. Já Palladio e Serlio publicariam, no século se-guinte, textos ilustrados, em consonância com a “era da imprensa”.

186 IVINS, On the Rationalization, ed. cit., p. 9.

Page 79: A Imagem Construída

73

[a que se refere] poder ser [visualmente, criativamente] transformado ou simplifica-

do nos detalhes, a relação entre os elementos constitutivos e a sua proporção relativa

permanece, no essencial, inalterada.»187

A principal inovação introduzida pela perspectiva é a possibilidade da manuten-

ção das relações proporcionais rigorosas entre os elementos de uma mesma compo-

sição, o que permite organizar o espaço de forma regrada e reproduzi-lo, depois, de

acordo com essa regra. Além disso, ao procurar recriar a experiência efectiva do olho

humano, a perspectiva introduzia um factor de verosimilhança inaudito. Uma re-

presentação espacial como a que compõe Rafael no “Casamento da Virgem” [fig.

30], por exemplo, constrói-se segundo leis perspécticas que convertem o espaço

representado num espaço análogo àquele que o próprio observador habita. Neste

sentido, trata-se de uma representação que joga o seu “sucesso” no âmbito de um

reconhecimento mimético, isto é, de acordo com a maior ou menor semelhança da

representação à realidade a que se reporta188.

O gosto dominante parece ter-se aproximado, progressivamente, do realismo.

Numa passagem dedicada ao valor representacional da perspectiva linear, Nelson

Goodman diz o seguinte:

«An artist may choose his means of rendering motion, intensity of light, quality of atmosphere, vibrancy of colour, but if he wants to represent space correctly, he must — almost anyone will tell him — obey the laws of perspective. The adop-tion of perspective during the Renaissance is widely accepted as a long stride for-ward in realistic depiction. The laws of perspective are supposed to provide absolute standards of fidelity that override differences in style of seeing and pic-turing.»189

187 KRAUTHEIMER, “Introduction to an Iconography”, ed. cit., p. 20 (sublinhado nosso). 188 Isto não significa, contudo, que a composição de Rafael se reduza a um sistema de notação

espacial, ou um registo “impressionista” da realidade. Trata-se, evidentemente, de uma composição ideal, que representa pessoas e cidades ideais. Nossa Senhora, personagem idealizada por exce-lência, é aqui retratada como uma mulher bonita e ricamente vestida, no auge da juventude. E o ambiente da cena assume quase o carácter de um manifesto arquitectónico urbano (entre o que é reminiscente da arquitectura que a Renascença italiana nos legou e o que sabemos ter sido o seu ideal). No entanto, o facto de se tratar de representações ideais em nada diminui as implicações do sistema de valores enunciado: a perspectiva configura um espaço tridimensional coerente e regrado. E o pintor parece revelar, inclusivamente, orgulho no domínio do novo método perspéctico, o que é particularmente evidente na distribuição de diferentes grupos de pessoas pelo espaço que serve de fundo ao matrimónio. Ao dispersá-los assim, Rafael parece servir-se deles para testar (ou exibir) a sua capacidade de representar proximidade e distância.

189 GOODMAN, Languages of Art, ed. cit., p. 10 (sublinhado nosso).

Page 80: A Imagem Construída

74

Com efeito, as leis da perspectiva vêm fixar um cânone representacional absolu-

to. A sua vocação conceptual é a criação de algo como um alfabeto universal da

representação. Deste modo, o realismo das construções perspécticas faz esquecer a

sua condição de representações e a distância que as separa do modelo que se pro-

põem representar. Mas, como vimos, a apreciação que fazemos de uma representa-

ção gráfica ou pictórica, a própria representação e o impulso que levou à sua

produção, tudo procede de um enquadramento prévio, psicológico, cultural, histó-

rico — humano, se se quiser. Seria então ingénuo, em face do reconhecimento desta

evidência, tomar a perspectiva simplesmente pela representação transparente de um

mundo que lhe é anterior; ou achar que, devido ao seu estatuto técnico privilegiado,

ela o recriaria de modo mais “verdadeiro” ou mais “rigoroso”. E seria igualmente

ingénuo assumir que, descendendo de uma longa tradição de ensaios representacio-

nais, a perspectiva viria pôr fim ao problema da representação e oferecer uma ima-

gem definitiva da realidade. Independentemente da ambição do seu programa de

intenções e da forma como foi apresentada à (ou pela) sociedade do Renascimento,

a perspectiva é, evidentemente, uma forma simbólica — isto é, uma forma que co-

difica uma determinada visão do mundo190.

O mundo em perspectiva é isso mesmo: um mundo perspectivado. Não é o

mundo, mas um mundo. E é a representação que a Renascença fez de si própria, a

proposta visual de uma sociedade mais “rigorosa”, mais científica, mais imagética,

que encontrará eco na revolução científica que arrancaria também nesta época e que

transformaria praticamente todos os domínios do saber.

190 A mais famosa defesa da interpretação subjectiva da perspectiva é, porventura, a que Panofsky publicou em 1927, Perspektive als symbolische Form. Cf. PANOFSKY, Perspective as Sym-bolic Form, ed. cit. Também Goodman subscreve a caracterização do sistema perspéctico enquanto possibilidade (e não verdade última), embora por razões inteiramente suas, isto é, do domínio da linguística e da lógica. Não é tanto a desconfiança da desmesura da sua ambição implícita que o move, mas a inviabilidade científica do sistema, em que identifica várias falhas (procedentes de aspectos técnicos relacionados com a convergência de linhas e as condições excepcionais do ângu-lo de visão das imagens produzidas). Cf. GOODMAN, Languages of Art, ed. cit., p. 16-9. O autor aca-ba por se desvincular da tradição euclidiana que auxiliou e legitimou a introdução da perspectiva: «the behavior of light sanctions neither our usual nor any other way of rendering space; and perspec-tive provides no absolute or independent standard of fidelity.» Ibid., p. 19.

Page 81: A Imagem Construída

75

RACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO

A gradual elevação da Arquitectura à categoria de ofício autónomo, associado a um

conjunto de saberes e de práticas específicas, não foi um movimento isolado e deve,

antes, se entendida à luz de um impulso global de especialização que afectou vários

sectores da sociedade medieval. Com a complexificação exponencial dos conheci-

mentos abrangidos por cada área do saber, os ofícios multiplicaram-se e tornaram-se

mais hierarquizados. O conhecimento genérico, detido, outrora, pela classe clerical,

desmembrou-se e deu lugar a uma multiplicidade de saberes diferentes que começa-

va agora a ser demasiado extensa e complexa para poder ser reconduzida a uma ori-

gem comum.

Cada disciplina desenvolvia, agora, um vocabulário específico e um conjunto de

técnicas cada vez mais especializadas. Este fenómeno não se traduziu apenas numa

reformulação do saber científico, mas também numa reestruturação socio-

profissional. Com a disseminação dos grandes centros urbanos, os diferentes ofícios

organizaram-se em torno de colectividades profissionais (ou grémios), como aquela

em que estava filiada a família Roriczer. Estas destinavam-se a regular a actividade

global de cada grupo de artífices, a assegurar um equilíbrio justo entre as suas des-

pesas e os seus lucros e a controlar, enfim, a transmissão de saberes entre diferentes

gerações.

Nesta época de transformações, o trabalho do arquitecto estava, ainda, ligado à

construção e implicava, evidentemente, o domínio de um conjunto de conhecimen-

tos práticos. No entanto, o arquitecto surgia, já, como uma figura urbana e letrada,

integrada no tecido profissional da sociedade. A ambiguidade do seu estatuto crescia

cada vez mais, pois estava repartido entre a sabedoria empírica do mestre construtor

e uma erudição teórica que o elevaria, a pouco e pouco, acima da realidade chã do

estaleiro de obra. Mais do que um simples artesão, o arquitecto era o elemento que

coordenava uma série de procedimentos técnicos e lhes conferia um sentido global.

E esta posição de protagonismo traduz-se inevitavelmente, num incremento do seu

prestígio:

Page 82: A Imagem Construída

76

«This professional architect (...) would rise from the ranks and supervise the work in person. In doing so he grew into a man of the world, widely travelled, often well read, and enjoying a social prestige unequalled before and unsurpassed since. Freely selected propter sagacitatem ingenii, he drew a salary envied by the lower clergy and would appear in the site, “carrying gloves and a rod” (virga), to give (...) curt orders (...).»191

Com efeito, os primeiras casos de reconhecimento autoral do trabalho do arqui-

tecto, na acepção moderna do termo, acontecem ainda na Idade Média. Exemplo

disso é a celebração, em efígie tumular, do arquitecto medieval francês Hugues

Libergier, que era assim equiparado, após a sua morte em 1263, a uma autoridade

eclesiástica [fig. 35]192. Neste caso raro, o arquitecto já não correspondia a um tra-

balhador anónimo, integrado num grupo indistinto de mestres construtores. Antes,

os frutos do seu trabalho são reconhecidos e recompensados pela comunidade, bem

como pelos mecenas régios ou eclesiásticos que patrocinam o seu trabalho.

Ao contrário de outras artes (como a Pintura ou a Escultura), a Arquitectura

parece ter-se convertido, desde muito cedo, num modo de expressão alográfico, isto

é, dependente de um sistema de notação anterior à sua execução193. Com efeito, os

exemplos conhecidos de desenhos arquitectónicos remontam, pelo menos, ao

séc. XIII, e é de crer que a utilização, se não de métodos mais complexos, pelo me-

191 PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., p. 26. O arquitecto medieval, embora «munido de lu-vas e uma vara», ainda acompanha a obra. O facto de Alberti, no séc. XV, já raramente o fazer é, embora anedótico, revelador. O tratadista florentino era já, segundo Spencer, um arquitecto de «mãos limpas»: um intelectual, dedicado exclusivamente ao desenho, a quem restava lamentar-se «quando os indivíduos que estão à frente desses estaleiros não cumprem ou não compreendem os seus traçados geométricos.» SPENCER, op. cit., p. 54.

192 Cf. PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., p. 26. A efígie encontrava-se originalmente na Igreja de S. Nicásio, em Reims, em cuja construção Libergier havia participado. Depois da destrui-ção daquela igreja aquando da Revolução Francesa, foi transferida para a Catedral da cidade.

193 Alografia, do Grego ἄ λ λο ς (“outro” ou “outra coisa”) e γραφ ία (“escrita” ou “registo desenhado”). A questão de saber se a Arquitectura não foi, desde sempre, um modo de expressão alográfico prende-se, como adiante se verá, com a própria definição de Arquitectura. Se se consid-erar que uma obra arquitectónica pressupõe um acto de planificação prévio — ou seja, que não existe sem um projecto, no sentido lato — então a Arquitectura é, sempre, alográfica. Segundo este ponto de vista, as contruções primitivas, nascidas de modo espontâneo e em obediência a neces-sidades puramente físicas ou funcionais, pertencem a um tempo “pré-arquitectónico”, anterior ao acto projectual.

Page 83: A Imagem Construída

77

nos de esquemas fosse corrente durante a Antiguidade194. Além disso, existiam já

inúmeros instrumentos auxiliares do desenho, como pêndulos ou sistemas de cordas

que faziam as vezes de compassos e permitiam, assim, se não traduzir anotações

gráficas, pelo menos regrar geometricamente o processo construtivo. Era comum a

prática de marcar a pedra com o auxílio de moldes em madeira, ou latão, cujos con-

tornos eram decalcados ou perfurados195. Apesar disso, o arquitecto não era, ainda,

um autor, no pleno sentido que hoje damos à palavra. E isto, sobretudo, porque o

seu trabalho não consistia ainda na elaboração de desenhos autónomos, fruto exclu-

sivo do seu engenho ou da sua imaginação. Com efeito, os métodos elencados visa-

vam auxiliar, sobretudo, o “desenho em obra” e resolver problemas concomitantes

com o próprio acto da construção. A planificação e a edificação não eram, pois,

momentos autónomos, nem podiam ser delimitados de modo preciso.

Mesmo quando a obra se baseava em desenhos, estes, como que antevendo os

problemas surgidos durante a construção, deixavam em aberto uma série de decisões

formais que só no estaleiro podiam ser definitivamente resolvidas — da mesma ma-

neira que, a outra escala, o panfleto Roriczer apenas podia fornecer indicações gerais

a quem dele se servisse para erigir um pináculo. Ao contrário dos desenhos moder-

nos que, mais tarde, viriam a permitir construir edifícios de raiz em locais distantes

daqueles onde haviam sido traçados (e dispensando a presença ou o auxílio do seu

autor), os desenhos medievais que conhecemos, mesmo quando destinados à troca

de informação entre o mestre construtor e a sua equipa, não determinavam a cons-

trução em todos os seus detalhes. O seu conteúdo era, muitas vezes, meramente

indicativo, acompanhado depois de explicações não-visuais e esquemas feitos em

obra, pelo arquitecto ou pelos seus capatazes.

O que estava em causa, neste tipo de desenhos, não era a transmissão de uma

forma visual acabada, mas de um conjunto de ideias simultaneamente visuais e

orais. E essa mescla, ao contrário de uma simples cópia, permitia, ainda, uma certa

liberdade na interpretação das formas, de resto visível nas variações regionais da

arquitectura medieval. Os construtores seguiam um plano, mas completavam-no

com a própria ideia que faziam dos diferentes elementos construtivos. Assim, por

194 Embora a questão seja controversa. Cf. KOSTOF, “The Practice of Architecture in the Ancient World: Egypt and Greece” in KOSTOF, The Architect, ed. cit., pp. 3-27.

195 Cf. SHELBY, “Mediaeval Masons’ Templates”, ed. cit., passim.

Page 84: A Imagem Construída

78

exemplo, os renques de colunas e a sucessão de abóbadas indicadas num desenho

esquemático — a mais das vezes apenas indicadas — não corresponderiam necessa-

riamente a colunas ou abóbadas definitivas ou perfeitamente fixadas quanto à sua

forma, mas a colunas e a abóbadas possíveis, que a experiência e a imaginação do

construtor ajudavam a conformar. O processo construtivo «prosseguia através da

retórica e da geometria, erguendo os alçados a partir de uma planta [delineada no

solo] e prolongando-se as discussões sobre a forma final do edifício, ainda desco-

nhecida, até ao fim [da obra].»196 E os reflexos da liberdade de interpretação dos

suportes gráficos, bem como o processo criativo orgânico da obra, são legíveis em

grande parte das construções medievais que chegaram até nós. Ao contrário da apa-

rência unitária de uma igreja renascentista, por exemplo, uma igreja românica ou

gótica exibe, muitas vezes, diferenças estilísticas evidentes, testemunho das diferen-

tes campanhas de obras e do gosto divergente de sucessivos mestres construtores

(bem como das vicissitudes da construção) [fig. 16]197. O conhecimento da técnica da representação ensaiada pelos pintores do Quattro-

cento, e institucionalizada por Alberti, rapidamente alastraria ao resto de Itália. No

início do séc. XVII, a perspectiva linear era já aprendida e desenvolvida (com avan-

ços e recuos) por artistas além dos Alpes. Um século depois, a educação para “ver

em perspectiva”, a que progressivamente se sujeitara o olhar do público em geral,

parecia cumprida: o método ascendeu a uma verdade natural, universalmente aceite,

e a própria realidade do mundo físico era agora apreendida segundo o cânone pers-

péctico. A racionalização de um sistema de vista implicou a qualidade do próprio

“ver” — era o próprio acto de olhar a realidade que era, assim, culturalmente trans-

formado.

A perspectiva influenciou (e foi influenciada por) um conjunto mais vasto de

transformações. Ela não corresponde, apenas, ao arranque genealógico da Geometria

moderna, mas também, em certo sentido, de uma boa parte da Ciência e da Filosofia.

A realidade nova que Galileu afirmou como verdadeira era regrada por leis naturais.

196 PÉREZ-GÓMEZ, “The Revelation of Order”, ed. cit., p. 6. Vide supra nota 22. 197 Isto verifica-se em vários casos, mesmo apesar da vocação escolástica da catedral para ser

um discurso perfeito, ou seja, para espelhar a simetria e unicidade de uma summa escolástica.

Page 85: A Imagem Construída

79

O que o astrónomo italiano via era «um mundo de essências perenes e leis matemá-

ticas, desenvolvidas num espaço homogeneizado e geometrizado»198.

Para além das inovações já referidas — conferir a objectos representados bidimen-

sionalmente «a sua localização no espaço»199 e domar o infinito, definindo-o mate-

maticamente —, a Geometria operou uma viragem conceptual assinalável.

Retrospectivamente, o seu principal contributo para a modernização da representação

espacial foi, talvez, a criação de um sistema de referentes visuais transaccionáveis. Por

outras palavras, o desenvolvimento da nova cultura perspéctica introduziu uma lin-

guagem visual capaz de dar forma ao «espaço homogeneizado e geometrizado» de

Galileu e permitir a sua difusão universal. Isso implicaria, por seu turno, uma uni-

formização dos meios de comunicação visual, fundamental para os avanços científi-

cos que o Ocidente viria a conhecer nos séculos seguintes. Com efeito, só a criação

desse “campo de trabalho” permitiu o desenvolvimento da ciência e da tecnologia

que se tornariam, mais tarde, os fundamentos da sociedade que, em certa medida, é

ainda hoje a nossa. Muitos factores estiveram, por exemplo, na origem da mecaniza-

ção do trabalho no séc. XIX, mas os desenvolvimentos matemáticos da perspectiva

(ocorridos nos séculos que mediaram entre a sua introdução e a revolução industri-

al) contam-se seguramente entre os pré-requisitos mais importantes.

Desde o sécs. XV e (sobretudo) XVI que, devido à introdução da imprensa, as

descrições científicas do mundo, natural e artificial, vinham progredindo a um rit-

mo cada vez mais acelerado. Só numa sociedade capaz de produzir publicações ilus-

tradas em série fazia sentido que cientistas como Vesalius publicassem os seus

tratados. Paralelamente, para aqueles cientistas (e aquelas representações) que re-

queriam uma reprodução visualmente rigorosa do espaço, a introdução da perspec-

tiva foi decisiva. Os esforços crescentes de descrição e classificação de formas

tornaram-se essenciais à progressão da ciência, fornecendo-lhe um filão de elemen-

tos representáveis — e, por isso, manipuláveis. Ivins, para quem estes desenvolvi-

mentos teriam sido impensáveis sem a revolução visual operada no Renascimento,

escrevia, em 1938: «Existem hoje poucas ciências ou tecnologias que não sejam pre-

198 PÉREZ-GÓMEZ, “The Revelation of Order”, ed. cit., p. 13. Vide infra nota 207. 199 Vide supra nota 186.

Page 86: A Imagem Construída

80

dicadas, de uma forma ou de outra, no poder da simbolização [aqui entendida como

caracterização visual] pictórica invariável.»200

Nesta mudança de paradigma, o que ficava definitivamente para trás era a con-

juntura cultural pré-moderna — de que Krautheimer e Rykwert salientaram o ca-

rácter oral 201 e Ivins o carácter táctil 202 . O conhecimento do mundo e o

desenvolvimento da ciência e da técnica jogar-se-iam a, partir de então, num terre-

no essencialmente visual, em detrimento da “comunicação sem imagens” das épocas

precedentes.

No âmbito específico da representação arquitectónica, importa vincar que o re-

curso a plantas e alçados não foi, como é sabido, uma invenção da Renascença. Vá-

rios testemunhos dão conta disso, entre os quais o tratado de Vitrúvio, que, a

propósito de dois aspectos da sua definição de Arquitectura, a “ordenação” e da

“disposição”, refere o seguinte:

«A ordenação define-se como a justa proporção na medida das partes da obra con-sideradas separadamente e, numa visão de totalidade, a comparação proporcional tendo em vista a comensurabilidade. (...) A disposição, por sua vez, define-se co-mo a colocação adequada das coisas e o efeito estético da obra com a qualidade que lhe vem dessas adequações. São estas as espécies de disposição, que em grego se dizem ideae: icnografia, ortografia, cenografia. A icnografia consiste no uso con-junto e adequado do compasso e da régua, e por ela se fazem os desenhos das for-mas nos terrenos da zona a construir. A ortografia, por seu turno, define-se como o alçado do frontispício e figura pintada à medida e de acordo com a disposição da obra futura. Por fim, a cenografia é o bosquejo do frontispício com as partes late-rais em perspectiva e a correspondência de todas as linhas em relação ao centro do círculo. Estas espécies de disposição nascem da reflexão e da invenção.»203

O que o arquitecto romano prevê, assim, são as três “ideias gregas” — ichno-

graphia, orthographia, scaenographia, no original latino — que presidem à criação da

forma arquitectónica e a que se chega através da «reflexão e da invenção». Saber se a

200 IVINS, On the Rationalization, ed. cit., p. 13. A título de exemplo, o autor cita ainda, como ex-pressivos avanços científicos, a «classificação nas áreas da arqueologia, da peritagem artística, do diagnóstico médico e da detecção criminal, conhecimentos e práticas que foram [depois] completa-mente reinventados com a introdução da fotografia (...)», que Ivins também vê como descendente da perspectiva.

201 Cf. KRAUTHEIMER, “Introduction to an Iconography”, ed. cit., passim. e RYKWERT, “On the Oral Transmission”, ed. cit., passim.

202 Cf. IVINS, Art & Geometry, ed. cit., passim. 203 VITRÚVIO. Tratado de Arquitectura, ed. cit., p. 37.

Page 87: A Imagem Construída

81

terceira destas era, ou não, uma forma de perspectiva está na base de uma longa

discussão académica, ainda hoje não resolvida204. Parece, contudo, consensual que

os dois primeiros termos correspondem à planta e ao alçado, respectivamente.

A articulação daquelas três ideias não envolvia necessariamente, porém, um sis-

tema de correspondências recíprocas205, o que reduzia as vantagens do seu uso en-

quanto instrumento técnico, sobretudo para os arquitectos. Por essa razão, só no

séc. XVI se popularizou o uso de plantas, tal como o entendemos hoje. A existirem

antes disso, as plantas eram normalmente concebidas como uma caracterização do

construção tal qual assentava directamente no solo. E os alçados, também raros,

eram apenas a cara visível do edifício206. Estavam ambos mais próximos de declara-

ções de intenções do que de desenhos técnicos, destinando-se a caracterizar os pro-

jectos mais do que a descrevê-los em pormenor. Além disso, desenhar à escala era

ainda pouco usual, o que tornaria muito difícil a leitura coerente de um projecto

com várias peças desenhadas. Os desenhos utilizados eram, por isso, representações

complexas, com informação sobreposta, de vários tipos, não necessariamente articu-

lada. E a ausência de técnicas de reprodução contribuiria para que este estado de

coisas permanecesse: afinal, um desenho não era feito para circular livremente, e o

âmbito do seu uso era, portanto, restrito. Não requeria uma linguagem universal,

porque dependia, ainda, da relação de proximidade entre quem projectava e quem

construía.

Da mesma forma, o uso de cortes não era ainda generalizado. Seccionar um edi-

fício era tão invulgar quanto dissecar o corpo humano — actividade em que Vesa-

lius foi, como se referiu, pioneiro. A dissecção do corpo humano constitui, aliás,

uma metáfora de vasto alcance. No limiar de uma revolução científica, a sociedade

europeia no séc. XVI vivia sob a influência da literatura clássica (que, estudada e

204 Uma alternativa antiga e muito discutida é traduzir scaenographia por profilo, ou corte. Foi es-sa a opção de Daniele Barbaro na sua tradução do tratado vitruviano, de 1556. O erudito veneziano, patrono de Palladio, preferiu salientar a utilidade do corte, e, no mesmo gesto, recusar a utilidade, para os arquitectos, da perspectiva. Cf. ACKERMAN, Origins, Imitation, Conventions, ed.cit., pp. 224-5. Também Alberti preferiu essa via no seu De re aedificatoria. Cf. ibid., pp. 28-9.

205 Ao contrário de hoje em dia, em que, num projecto de arquitectura vulgar, plantas, alçados e cortes estão indestrinçávelmente ligados. Um lapso num pode ser identificado na (ou definido pela) quebra da relação coerente com os restantes elementos gráficos que o descrevem.

206 PÉREZ-GÓMEZ, “The Revelation of Order”, ed. cit., p. 9. Carpo relaciona essa relativa impre-cisão com a ausência da noção conceptual e operativa de “infinito”. Isto é, só um observador colo-cado, conceptualmente, no infinito veria alçados representados em projecções paralelas. Cf. CARPO, The Alphabet, ed. cit., p. 19.

Page 88: A Imagem Construída

82

traduzida por teólogos, começava a ter uma circulação mais ampla e a ser revisitada

por círculos progressivamente mais laicos). Neste ambiente, crescia o interesse pela

composição das coisas, isto é, dos elementos autónomos constituintes do mundo

natural. E a realidade era, por isso, decomposta e analisada: seccionar um objecto é

reconhecer implicitamente que o mundo é divisível em partes e que, ao analisar

uma delas, se contribui para tornar o todo mais claro, mais conhecido207.

Assim também, à luz deste desejo de rigor científico, a descrição espacial trans-

formava-se. No âmbito concreto da produção arquitectónica, um edifício secciona-

do era como um corpo cujo interior se pode compreender melhor. O corte, desen-

desenvolvido neste contexto, tornar-se-ia parte do elenco principal dos elementos

gráficos que caracterizam um projecto. Técnica representativa por excelência para

operar virtualmente sobre a matéria, o corte é, ainda hoje, central para a descrição

de um projecto de arquitectura (ou para o desenho em geral, seja de mobiliário, de

equipamento ou industrial).

Ao fazer uso, na sua construção, de plantas, alçados e, progressivamente, cortes, a

perspectiva assume uma qualidade unificadora, representando como que a súmula

de todos estes elementos gráficos [figs. 33 e 34]. Além disso, confere ao projecto um

sentido a priori, um fim hipotético em si mesmo, anterior ao fim último da cons-

trução. Articulando os desenhos, a perspectiva permite produzir uma antevisão do

projecto e reforçar, assim, o seu carácter auto-suficiente. Poder-se-ia dizer que re-

clama para si, enquanto meio de representação, parte do protagonismo reservado à

obra final.

207 Pérez-Gómez, referindo-se ao impacto do pensamento de Galileu, tece estas considerações: «After the seventeenth century, the notion of system, or a whole made of coordinated parts (the prototype of all rationality), was taken from astronomy and utilized as the model for the science and philosophy of the sublunar world. The epistemological revolution implied a radical transformation of the human condition. (...) when the new science rejected the superiority of the heavens, the universe was transformed into a whole comprised of common elements and governed by universal laws. Earth became the "field" of an exact science (...). Modern physics thus originated in the application of ex-act, immutable notions of an abstract order (mathemata) to the sphere of reality. (...) Galileo simulta-neously desecrated the heavens and humanized science. He postulated a field of unified knowledge that opposed the ancient hierarchical scheme in which the exactness of the heavens regressed to the confusion of earthly life. (...) He presented to the world a new ideal of intelligibility, one that would eventually encompass the totality of human knowledge.» PÉREZ-GÓMEZ, Architecture and the crisis, ed. cit., pp. 166-7.

Page 89: A Imagem Construída

83

Este sistema gráfico articulado prosseguiu a sua vocação de representação global

ao longo de todo o séc. XVI — disso dão conta as várias investigações, vertidas em

tratados reguladores. Embora fossem, de início, estritamente teóricos e matemáti-

cos, estes avançariam progressivamente no sentido de fornecer indicações prescriti-

vas para a construção da imagem perspéctica em desenho. Este pragmatismo,

revelou, sobretudo, o desejo de emancipar a Geometria enquanto ciência, isto é,

fazer dela uma tecnologia útil ao trabalho científico. Para isso, estas investigações

distanciaram-se cada vez mais do entendimento empírico da perspectiva enquanto

problema euclidiano — isto é, que tomava como ponto de partida o olhar do obser-

vador. Para os arquitectos do séc. XVI a perspectiva artificialis era, ainda, demasiado

naturalis. Nas palavras de Peter Eisenman:

«With the introduction of perspective, architecture was no longer merely a form of reality itself, but also imitated reality. The vertical plane as a surface for the representation of deep space necessarily forced architecture to become both reality and representation. Perspective also forced an explicit change in the relationship of the viewer to the object, from sequential, linear time to time understood as a particular place. This representation for the architects of the renaissance was al-ways related to “natural” space. (…) For Palladio, perspective was artificial and not natural; it could be used to break apart the relationship between man and na-ture. For Palladio, man becomes the new nature and perspective becomes trans-formed from a state of nature to a tool of representation — a technique in relationship to man.»208

Ao superar o «espaço natural» do primeiro Renascimento, a «perspectiva artifici-

al» de Palladio conduzirá ao advento de uma cultura arquitectónica plenamente

moderna, marcada pela cisão na «relação entre homem e natureza», em que o pri-

meiro domina a segunda através da sua representação.

Se o principal contributo renascentista havia sido explorar o problema segundo o

ponto de vista de quem olha — por oposição ao problema óptico na sua formulação

medieval —, agora avançar-se-ia “às arrecuas”, num esforço de des-subjectivação da

representação209; se, para mais, os pintores dos frescos de Assis haviam procurado

aperfeiçoar a representação de modo a articulá-la com a percepção do observador, o

que agora se pretendia, era, em certa medida, o inverso. Surgia, assim, um novo

208 EISENMAN, op. cit., p. 45. 209 Cf. LOTZ, op. cit., p. 32.

Page 90: A Imagem Construída

84

tipo de observador, mais impessoal, cujo olho se situava no infinito. Este olho ideal,

pertencia a um observador ideal que, infinitamente distante, já não subordinava a

representação ao artifício do naturalismo visual — o mesmo naturalismo que obri-

gava, por exemplo, a que o ponto de fuga coincidisse com o vértice do cone visual

(atribuindo à representação um único ponto de vista “correcto”). O resultado foi

uma perspectiva cada vez mais preocupada com a sua própria coerência interna, isto

é, com leis que procuravam não tanto representar o mundo como o vê o olhar hu-

mano, mas de acordo com parâmetros de verdade matemática e universal. E a pros-

secução dessa lógica, motivada pela busca de um rigor representacional cada vez

maior, levaria, enfim, à Geometria Descritiva de Gaspard Monge e à introdução

uma solução cabal para a representação bidimensional sistemática de objectos tri-

dimensionais. A experiência do artista tornava-se, cada vez mais, apanágio do cien-

tista.

A perspectiva esteve, pois, na origem de uma série de instrumentos geométricos

que permitiram à Arquitectura desenvolver uma notação científica de crescente so-

fisticação e, assim, emancipar-se, não só visual mas também tecnicamente. Ao “es-

pecializar” o desenho ao ponto de conseguir enunciar um projecto de arquitectura

de forma cada vez mais completa, estes desenvolvimentos arrancavam o projecto à

sua realidade construtiva e conferiam-lhe uma existência científica autónoma.

Não quer isto dizer, porém, que os arquitectos se tenham tornado, repentina-

mente, meros especuladores espaciais, renegando o vínculo umbilical ao saber cons-

trutivo — ou sequer que isso tenha, entretanto, vindo a acontecer. Durante séculos,

a Arquitectura visaria ainda (e sobretudo) a construção, o momento de teste e veri-

ficação das ideias do arquitecto210. Mais: a notação arquitectónica visava, precisa-

mente, a comunicação à obra. Mas o modelo do arquitecto como intelectual —

como alguém que pensa um problema e o resolve sobre um estirador, antes de se

lançar à acção — já tinha ganho forma. O desenho volvia-se numa «forma de pen-

samento». Já não era «somente uma forma de representação e de expressão, mas sim

a possibilidade de constituição e prospecção no presente da realidade futura. Sepa-

210 Com efeito, talvez só hoje se vislumbre a possibilidade de uma emancipação total da arquitec-tura face à construcão, imaginável com as possibilidades introduzidas pelas mais recentes tecnolo-gias digitais e holográficas.

Page 91: A Imagem Construída

85

ra-se assim o Projecto do acto físico da construção, transferindo a sua ênfase para a

manipulação de símbolos gráficos e da própria ideia de representação.»211

Independentemente de a Arquitectura ter estado, durante 500 anos, ligada à

construção, o que define a sua emancipação enquanto disciplina é a segregação en-

tre trabalho intelectual e trabalho construtivo. O facto de um conjunto de desenhos

elaborados por um arquitecto se destinar à construção, e dar efectivamente origem a

um edifício, não significa que o projecto não possua uma existência própria, a prio-

ri, expressa de forma (cada vez mais) rigorosa212. O projecto existe — e, por isso, o

edifício existe já também, “construído” em potência.

Conceptualmente, é a separação das águas — desenho e construção — que con-

fere à classe dos arquitectos a sua primeira e principal razão de existência. Eles re-

presentam o encontro entre a tradição teórica do desenho e a tradição prática da

construção. E, se se definir Arquitectura como o acto de construir segundo um de-

sígnio prévio, ou plano, é fácil ver que a sua emancipação teve início na longa (mas

definitiva) transformação histórica cujo perfil se procurou traçar.

211 SPENCER, op. cit., p. 52. 212 Goodman, ao analisar a natureza notacional dos desenhos arquitectónicos contemporâneos,

chega a uma conclusão semelhante: «We must not be misled by the fact that the compliance class of a set of plans happens so often to consist of but one building; or by the preeminent interest or value that a given instance of an architectural work may have; or by the emphasis sometimes laid upon immediate supervision, by the architect, of the process of construction. Many a [musical] composition is played only once; certain performances of other pieces have exceptional importance; and a build-ing or performance executed under the direction of the designer or composer, while a more personal product and perhaps much better (or much worse) than another building or performance from the same plans or score, is not therefore a more authentic or original instance of the work.» GOODMAN, Languages of Art, ed. cit., p. 220. Segundo este autor, os desenhos de Arquitectura, enquanto enun-ciados de disposições, representam já um projecto acabado. O autor relembra que, mesmo que um projecto só se concretize num único edifício — por oposição, por exemplo, a um projecto-tipo, como é muitas vezes o caso da habitação colectiva, em que o mesmo projecto é construído várias vezes —, esse edifício único é, por princípio, a concretização de um projecto anterior, que o “previa” e de que ele é uma cópia, ou sucedâneo. Goodman relembra ainda que, embora o acompanhamento à obra por parte do arquitecto possa conduzir a transformações no edifício, que o autonomizam e levantam o problema da autoria do projecto efectivamente construído — ou seja, comprometem a integridade do acto criativo cingido ao momento da elaboração do projecto — nada disso invalida o valor autónomo do projecto, expresso através do desenho. Para ilustrar esta ideia, o autor compara a notação arquitectónica à notação musical e contrapõe a construção de um edifício à execução de uma sinfonia. A analogia procura, mais uma vez, ilustrar a autonomia estatutária do desenho arqui-tectónico: tal como este, uma sinfonia existe anteriormente à sua execução, sob a forma de uma partitura, onde fica eternizada, à espera que alguém lhe venha dar vida. O ponto de vista de Goodman é o de um linguista lógico. E o ofício da Arquitectura conhece, evidentemente, infinitas variações e matizes. Mas o princípio enunciado pelo autor não é por isso menos pertinente.

Page 92: A Imagem Construída
Page 93: A Imagem Construída

87

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Europa medieval, a Igreja era um poder em ascensão, que se vinha consolidando

desde os primórdios da religião cristã. É natural, portanto, que as grandes empresas

artísticas da época lhe tenham estado associadas. Para o homem desse tempo, a pre-

sença de Deus no mundo revelava-se, antes de mais, através da palavra. Assim como

os monges copistas procuravam, iluminando textos sagrados, dar à palavra uma

equivalência visual, também os mestres construtores procuraram “transcrever” o

divino no âmbito da construção. A arquitectura medieval possuía, assim, uma voca-

ção essencialmente semiótica: a sua tarefa era tornar visível o invisível.

Se os mosteiros do sul da Europa abriram o caminho a este ambicioso projecto,

as catedrais do opus francigenum seriam um brilhante ponto de chegada. A arquitec-

tura que nos legou a época (em melhor ou pior estado de conservação), bem como

os documentos nela produzidos (mais frágeis ainda), permitem tirar conclusões im-

portantes sobre a forma como se comunicava e se representava a Arquitectura — e,

entre elas, a mais significativa tem que ver com a coerência entre o que era dito e a

forma como era dito.

Ao copiar estruturas arquetípicas, como o Santo Sepulcro, os construtores medi-

evais privilegiaram sobretudo elementos abstractos, evidentemente mais interessados

no seu valor simbólico do que na reprodução mimética das suas formas. Esta atitu-

de, também evidente nas representações arquitectónicas da época, é coerente com o

pensamento dominante de uma sociedade pré-moderna e é um dos traços que dis-

tingue, como se procurou mostrar, a cultura arquitectónica medieval da cultura

arquitectónica moderna.

O panfleto de Matthäus Roriczer permitiu reflectir sobre a oposição dialéctica

entre forma e conteúdo — ou entre representação e conhecimento. O documento,

pensado não como representação a posteriori, mas como instrumento de trabalho,

contém um esquema essencialmente abstracto. Ao propor uma regra universal, codi-

fica uma categoria formal e não apenas um conjunto de objectos singulares. Neste

sentido, representa uma proposta em linha com os princípios subjacentes à concep-

ção medieval da representação arquitectónica — e, até certo ponto, da própria ar-

quitectura da época.

Page 94: A Imagem Construída

88

Analisou-se, em seguida, o papel da produção artística no contexto religioso me-

dieval. Isolámos, a propósito da oposição entre o Abade Suger e Bernardo de Clara-

val, duas posições antagónicas, representativas de um debate teórico mais vasto. A

sociedade medieval começava, progressivamente, a encarar a vida terrena como par-

te do desígnio divino e os homens podiam agora confiar nos seus sentidos para

apreender — e compreender — o mundo à sua volta. Assim, a representação natu-

ralista da realidade veio contrariar tendências mais antigas da arte religiosa vigente:

a iconoclastia e a abstracção, por um lado, e uma “desatenção” à caracterização vi-

sual, preterida em favor das funções simbólica e pedagógica, por outro.

Esta nova curiosidade visual revelar-se-ia, ainda, no interesse da época (e dos

académicos, em particular) pela Psicologia. Era o reflexo, no pensamento medieval,

daquilo que também se observou a propósito da arte — em ambas as frentes se pro-

curava uma solução conciliadora para a oposição entre corpo e alma. Com efeito, o

reconhecimento do corpo como receptáculo vivo do espírito teria consequências

decisivas para a prática artística. Compreendê-las implicou uma reflexão, necessari-

amente breve, sobre o naturalismo na representação de formas humanas, sem a qual

não estaria completa uma análise do naturalismo representacional em geral.

A ideia da representação visualmente reconhecível cumpre-se, antes de mais (e de

modo exemplar) na imagem da figura humana. De facto, se o Homem reconhece o

seu mundo quando este lhe é devolvido de forma naturalista, mais ainda o fará em

presença de um retrato humano, que mostre uma pessoa semelhante a ele próprio. E

este movimento imediato de reconhecimento influenciou, naturalmente, o enqua-

dramento físico das figuras retratadas: foi também o desejo de prover estas novas

representações com um espaço virtual onde pudessem mover-se e interagir que mo-

tivou a busca de um espaço visual coerente.

O desejo de rigor visual na representação do espaço seria concretizado, progressi-

vamente, com a introdução da perspectiva como técnica representativa e como for-

ma de pensamento espacial. Depois de considerar os antecedentes históricos desta

evolução, analisaram-se os ensaios pictóricos inovadores levados a cabo na Basílica

de Assis — e, especificamente, a série de frescos dedicada à vida de S. Francisco.

Estas cenas, embora estejam ainda longe de revelar um domínio perfeito da perspec-

tiva linear, prefiguram no entanto uma nova concepção artística, que se caracterizou

pela imediatez visual e pela simplicidade do discurso. Para além da coerência espaci-

Page 95: A Imagem Construída

89

al e visual dos diferentes quadros da narrativa franciscana, a perspectiva visaria,

ainda, a coerência do próprio espaço da igreja. Por isso este estudo se deteve, em

particular, na perspectivação dos elementos arquitectónicos simulados na basílica.

Esta tentativa de articular a representação com o próprio espaço físico é reveladora

de uma simbiose ambígua, já que implicou a concretização espacial de uma técnica

representacional.

Restava formalizar, por escrito, a nova técnica, para que pudesse ganhar a legiti-

midade de uma teoria científica e circular enquanto tal pela Europa. Tal foi levado

a cabo por Alberti, no seu tratado sobre pintura. A presente análise fixou, assim,

como ponto de chegada simbólico, a invenção da perspectiva linear (independente-

mente dos nexos que se estabeleceram com períodos posteriores), porquanto assina-

la, mais do que qualquer outro fenómeno, a concretização da transformação cultural

em análise.

Em jeito de conclusão, procurou traçar-se o perfil de uma “imagem construída” e

das transformações a que ela deu origem, em vários planos. Reflectiu-se sobre as

implicações da representação perspectivada, que nos interessou não tanto nos seus

aspectos técnicos (que interessarão mais ao geómetra ou ao matemático) mas como

ponto de chegada histórico e como ponto de partida metodológico. Com vista a

realçar o carácter simbólico da perspectiva, discutiu-se o valor da representação do

infinito, em termos metafóricos (culturais) e em termos pragmáticos (científicos).

O que esteve em causa na introdução da perspectiva foi, sobretudo, a subjectiva-

ção da representação espacial. Num sistema de representação que toma o observador

como referente, a realidade é necessariamente subordinada ao ponto de vista de

quem observa. Assim sendo, procurou-se compreender o modo como essa subjecti-

vação se relaciona com uma forma de ver mais abstracta e mais próxima da oralida-

de medieval. Desta comparação é possível inferir, enfim, que não se trata de

reconhecer na perspectiva uma forma mais rigorosa e do que a representação menos

visual de outras épocas ou enquadramentos culturais. Por outras palavras, a con-

quista da precisão visual, assente em critérios científicos, não equivale à Primavera

depois de um longo Inverno histórico, porque “rigor”, no sentido lato do termo,

não significa o mesmo que precisão visual. À cosmovisão enunciada pela sociedade

medieval, fixada através de um determinado modo de representar, a Idade Moderna

Page 96: A Imagem Construída

90

opôs uma outra, assente sobre códigos representativos diferentes. Que a primeira

gerou a segunda é uma evidência não só cronológica como cultural. Mas é-o tam-

bém que ambas, nas suas cristalizações mais perfeitas, enunciaram princípios anta-

gónicos sobre os quais se procurou aqui reflectir.

A vocação do acto representacional baseado num sistema visual naturalista é am-

biciosa. Ela releva da crença implícita na possibilidade de representar o mundo de

forma rigorosa e global. Esta premissa comporta uma tomada de posição teórica que

excede, em muito, a sua concretização prática. Independentemente de se proceder,

ou não, à tarefa hercúlea de representar o mundo na sua totalidade, o princípio

dessa possibilidade permanece enunciado. E essa enunciação implica, por seu turno,

um modo radicalmente novo de encarar o mundo natural: por um lado, é porque

existe como um sistema ordenado que o mundo pode ser representado de modo

científico; mas por outro, é o acto de representar em si que converte o mundo num

lugar ordenado e globalmente coerente.

Finalmente, reflectiu-se sobre as consequências culturais desta transformação.

Sob o epíteto de “racionalização da vista”, procurou-se mostrar que o naturalismo

na representação formal (e o recurso à perspectiva na representação espacial) não

correspondeu, apenas, a uma inovação confinada ao campo das artes visuais, mas

operou uma revolução na própria forma de ver o espaço. Esta reflexão é indestrin-

çável da operacionalização da vista (ou da sua cientifização) — isto é, a vista como

operador científico e como instrumento de trabalho. E só neste contexto mais vasto

se explica o seu alargamento a outros domínios da vida social e cultural. Assim, sob

o epíteto de “racionalização do trabalho”, procurou-se averiguar as implicações,

para a actividade científica, do advento de um paradigma representacional iminen-

temente visual.

A transformação cultural que nos propusemos analisar está na base da grande

revolução científica que tem início no séc. XVI (e sem a qual não eram imagináveis

os desenvolvimentos industriais do séc. XIX, que, de modo muito geral, conferiram

ao mundo a aparência que hoje tem). Estas “racionalizações” abriram um novo

campo de trabalho científico e permitiram um domínio cada vez maior sobre o

mundo natural. Neste percurso evolutivo, a Geometria ocupou um lugar de cres-

cente destaque, como mecanismo regrador que decompõe a realidade em elementos

inteligíveis e manipuláveis.

Page 97: A Imagem Construída

91

Daí decorreram, logicamente, implicações para a prática da Arquitectura en-

quanto forma de manipulação do espaço. Assim como o cientista disseca a realida-

de, o Arquitecto disseca o espaço. E, por isso, o acto de observar, para o cientista,

assemelha-se ao acto de propor, para o Arquitecto: ambos descrevem um mundo que

existe, antes de mais, sub specie repraesentationis (ou sob a forma de representação).

O estudo termina com um regresso ao âmbito restrito da prática arquitectónica.

A partir do Renascimento, a Arquitectura não mais se cingirá exclusivamente ao

edifício construído, mas abarcará também o processo de desenho de que ele é o

ponto de chegada. As obras arquitectónicas adquirem uma existência virtual ante-

rior à sua existência física e o desenho assume, assim, um papel central na noção

moderna de projecto: é através dele que se inventam formas, definem usos e tomam

decisões. O autor deste exercício especulativo já não é o mestre construtor medieval,

detentor de um saber fundamentalmente empírico, mas o arquitecto moderno, um

intelectual que testa hipóteses sobre o estirador. No primeiro caso, os meios con-

ceptuais e os respectivos fins são indestrinçáveis, tomando forma, simultaneamente,

na obra construída; no segundo, porém, o desenho assume uma existência própria,

independente do estaleiro de obra e do seu resultado final. Este desenvolvimento

histórico vem introduzir, pois, uma assimetria na relação entre edifício e projecto:

sem desenho não haverá edifício, mas o contrário deixa de ser verdade, já que o

desenho pode ser compreendido, apreciado e transaccionado, antes de — ou sem

chegar nunca a — converter-se em obra construída.

Page 98: A Imagem Construída

92

SELECÇÃO BIBLIOGRÁFICA ACKERMAN, James S. Origins, Imitation, Conventions: Representation in the Visual

Arts. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002; ALBERTI, Leon Battista. Della Pittura. Ed. Luigi Mallè. Florença: G. C. Sansoni,

1950; ———. On Painting. Revised Edition. Trad., ed. John R. Spencer. New Haven:

Yale University, 1966; ANDERSEN, Kirsti. The Geometry of an Art: The history of the mathematical theory of

perspective from Alberti to Monge. Nova Iorque: Springer, 2007; ANTONIU, Manuela. “Fugitives in Sight: Section and Horizon in Andreas Vesalius’s

De Humani Corporis Fabrica” in PÉREZ-GÓMEZ, Alberto; PARCELL, Stephen (eds.). Chora: Intervals in the Philosophy of Architecture, Vol. 5. Montreal: McGill-Queen's University Press, 2007. pp. 1-20;

ANTONSSON, Erik K.; CAGAN, Jonathan (eds.). Formal Engineering Design Synthe-

sis. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. BARASCH, Moshe. Theories of Art: from Plato to Winckelmann. Nova Iorque:

Routledge, 2000. BAXANDALL, Michael. Giotto and the Orators: Humanist observers of painting in Italy

and the discovery of pictorial composition, 1350-1450. Oxford: Clarendon Press, 1971;

———. Painting and Experience in Fifteenth-Century Italy: A primer in the social

history of pictorial style. Second Edition. Oxford: Oxford University Press, 1988; BELTING, Hans. A Verdadeira Imagem. Trad. Artur Morão. Porto: Dafne, 2011; ———. Florence & Baghdad: Renaissance art and arab science. Trad. Deborah Lucas

Schneider. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2011;

Page 99: A Imagem Construída

93

BERNARDO de CLARAVAL. Œuvres Complètes, Vol. III: Lettres II (42-91). Eds. Jean Leclerq; Henri Rochais (texto latino). Trad. Henri Rochais. Paris: Cerf, 2001;

BLAU, Eve; KAUFMAN, Edward (eds.). Architecture and Its Image: Four centuries of

architectural representation, Works from the collection of the Canadian Centre for Ar-chitecture. Montreal: Centre Canadien d'Architecture, 1989;

BRAUNSTEIN, Philippe. “Abordagens da intimidade, séculos XIV-XV” in ARIÈS

Phillipe; DUBY, Georges (coords.). História da Vida Privada, Vol. 2: Da Europa feudal ao Renascimento. Trad. Armando Homem. Porto: Afrontamento, 1991. p.526-619;

BURCKHARDT, Jacob. The Civilization of the Renaissance in Italy. New Ed. London:

Penguin Classics, 1990; CAMEROTA, Filippo. La Prospettiva del Rinascimento: Arte, architettura, scienza.

Milão: Electa, 2006; CARPO, Mario. Architecture in the Age of Printing: Orality, Writing, Typography and

Printed Images in the History of Architectural Theory. Trad. Sarah Benson. Cam-bridge, Mass.: MIT Press 2001;

———. “How Do You Imitate a Building That You Have Never Seen? Printed

Images, Ancient Models, and Handmade Drawings in Renaissance Architectural Theory” in Zeitschrift für Kunstgeschichte, 64. Bd., H. 2, 2001. pp.223-233;

———. The Alphabet and the Algorithm. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2011; COLDSTREAM, Nicola. Medieval architecture. Oxford: Oxford University Press,

2002; CROSBY, Sumner McKnight [et al.]. The Royal Abbey of Saint-Denis in the time of

Abbot Suger (1122-1151). Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 1981; DAMISCH, Hubert. The origin of perspective. Trad. John Goodman. Cambridge,

Mass.: MIT Press, 1995;

Page 100: A Imagem Construída

94

DAVIS-WEYER, Caecilia. Early Medieval Art, 300-1150: Sources and Documents. Toronto: Medieval Academy of America, University of Toronto Press, 1971.

DOW, Helen J. “The Rose-Window”, in Journal of the Warburg and Courtauld Ins-

titutes, Vol. 20, No. 3/4 (Jul.-Dez., 1957). pp. 248-297; DUBY, Georges. O Ano Mil. Trad. Teresa Matos. Lisboa: Edições 70, 1980; ———. O Tempo das Catedrais: a Arte e a Sociedade, 980–1420. Trad. José

Saramago. Lisboa: Editorial Estampa, 1993; ———. São Bernardo e a Arte Cisterciense. Trad. Pedro Barbosa; António Vicente.

Porto: Edições ASA, 1997; ECO, Umberto. O Nome da Rosa. 17.ª edição. Trad. Maria Celeste Pinto. Lisboa:

Edifel, 1991; EDGERTON, Samuel Y. The Heritage of Giotto's Geometry: Art and science on the eve

of the scientific revolution. Ithaca: Cornell University Press, 1993; ———. The Mirror, the Window, and the Telescope: How Renaissance linear perspec-

tive changed our vision of the universe. Ithaca: Cornell University Press, 2009; EISENMAN, Peter. “The Representations of Doubt: At the sign of the sign” in TOY,

Maggie [et al.]. Re:working Eisenman. London: Academy Editions, 1993. pp. 45-49;

EVANS, Robin. The Projective Cast: Architecture and its three geometries. Cambridge,

Mass.: MIT Press, 1995; ———. Translations from Drawing to Building and other essays. Cambridge, Mass.:

MIT Press, 1997; FERGUSON, Wallace K. “Humanist Views of the Renaissance” in The American

Historical Review, Vol. 45, n.º 1, Outubro 1939. pp. 1-28; FOCILLON, Henri. Fotog. Pierre Devinoy. Peintures romanes des églises de France.

Paris: Flammarion, 1967;

Page 101: A Imagem Construída

95

FORTY, Adrian. Words and buildings: A vocabulary of modern architecture. Londres: Thames & Hudson, 2000;

GIEDION, Sigfried. Space, Time and Architecture: The growth of a new tradition. 5th

Ed. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1967; GOMBRICH. Ernst. Art and illusion: a study in the psychology of pictorial; Londres:

Phaidon, 1996; GOMBRICH. Ernst; HOCHBERG, Julian; BLACK, Max. Art, Perception, and Reality.

Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1973; GOODMAN, Nelson. Languages of Art: an approach to a theory of symbols. Indiana-

polis: Bobbs-Merrill, 1968; GOODMAN, Nelson. “How Buildings Mean” in Critical Inquiry, Vol. 11, n.º 4,

Junho 1985. pp. 642-653; HEERS, Jacques. O mundo medieval. Trad. Pedro Moacyr Campos. Lisboa: Ática,

1976; HOLT, Elizabeth Gilmore (ed.). A Documentary History of Art, Vol. 1: The Middle

Ages and the Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1981; IVINS, William M. Art & Geometry. Nova Iorque: Dover, 1964; ———. On the Rationalization of Sight. New York: Da Capo Press, 1973; ———. Prints and Visual Communication. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1992; JONES, Alexander (ed.). Ptolemy in Perspective: Use and criticism of his work from

Antiquity to the nineteenth century. Nova Iorque: Springer, 2010; KATZENELLENBOGEN, Adolf. “The Central Tympanum at Vézelay: Its encyclopedic

meaning and its relation to the First Crusade” in The Art Bulletin, Vol. 26, No. 3 (Set., 1944). pp. 141-151.

———. The Sculptural Programs of Chartres Cathedral: Christ, Mary, Ecclesia. Nova

Iorque: W. W. Norton & Company, 1964;

Page 102: A Imagem Construída

96

KEMP, Martin. The Science of Art: Optical themes in western art from Brunelleschi to

Seurat. New Haven: Yale University Press, 1990; KESSLER, Herbert L. “Gregory the Great and Image Theory in Northern Europe

during the Twelfth and Thirteenth Centuries” in RUDOLPH, Conrad (ed.). A Companion to Medieval Art: Romanesque and Gothic in Northern Europe. Malden: Blackwell Publishing, 2006. pp. 151-172;

KIDSON, Peter. “Panofsky, Suger and St Denis” in Journal of the Warburg and

Courtauld Institutes, Vol. 50, 1987. pp. 1-17; KOEHLER, Wilhelm. “Byzantine Art in the West” in Dumbarton Oaks Papers, Vol. 1

(1941). pp. 61-87; KOSTOF, Spiro (ed.). The Architect: Chapters in the history of the profession. No-

va Iorque: Oxford University Press, 1977; KRAUTHEIMER, Richard. “Introduction to an ‘Iconography of Medieval Architectu-

re’” in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, n.º V, 1942. pp. 1-33; ———. Early Christian and Byzantine Architecture. 4th ed. New Haven: Yale Uni-

versity Press, 1986; LECLERCQ, Jean. “Influence and noninfluence of Dionysius in the Western Middle

Ages” in PSEUDO-DIONYSIUS. The Complete Works. Trad. e ed. Colm Luibheid. Nova Iorque: Paulist Press, 1987. pp. 25-32;

LEROI-GOURHAN, André. Le Geste et la Parole, Vol. 1: Technique et language. Paris:

Albin Michel, 1964; ———. Le Geste et la Parole, Vol. 2: La mémoire et les rythmes. Paris: Albin Michel,

1965; ———. Milieu et Techniques: évolution et techniques. Paris: Albin Michel, 1973; LINDBERG, David C. Theories of Vision from Al-Kindi to Kepler. New edition. Chi-

cago: University of Chicago Press, 1981;

Page 103: A Imagem Construída

97

LOTZ, Wolfgang. Studies in Italian Renaissance Architecture. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1977;

MARCUSE, Herbert. The Aesthetic Dimension: Toward a critique of marxist aesthetics,

Boston: Beacon Press, 1979; MARTIN, Henri-Jean; FEBVRE, Lucien. L'Apparition du Livre. Paris: Albin Michel,

1999; MCLUHAN, Marshall. The Guttenberg Galaxy: The making of typographic man. To-

ronto: University of Toronto Press, 1962; ———. Understanding Media: The Extensions of Man. Cambridge, Mass.: MIT

Press, 1994; MCLUHAN, Marshall; MCLUHAN, Eric. Laws of Media: The new science. Toronto:

University of Toronto Press, 1992; MILLION, Henry A.; LAMPUGNANI, Vittorio Magnago. The Renaissance from Brune-

lleschi to Michelangelo: the representation of architecture. London: Thames and Hudson, 1994.

MITCHELL, William J. “Vitruvius Computatus” in PREISER, Wolfgang F. E. (ed.).

Environmental Design Research, Vol. 2: Symposia and Workshops. Stroudsburg: Dowden, Hutchinson & Ross, 1973. pp. 384-386;

———. The Reconfigured Eye: Visual Truth in the Post-photographic Era. Cambrid-

ge, Mass.: MIT Press, 1992; ———. “Vitruvius Redux: formalized design synthesis in architecture” in

ANTONSSON, Erik K.; CAGAN, Jonathan (eds.). Formal Engineering Design Synthe-sis. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. pp. 1-19;

MOMMSEN, Theodore E. “Petrarch’s Conception of the ‘Dark Ages’” in Speculum,

Vol. 17, n.º 2, Abril 1942. pp. 226-242; MORAND, Kathleen. Claus Sluter: Artist at the court of Burgundy. Fotog. David

Finn. Austin: University of Texas Press, 1991;

Page 104: A Imagem Construída

98

NORBERG-SCHULZ, Christian. Il significato nell’architettura occidentale. Quinta edizione. Milão: Electa, 2006;

PANOFSKY, Erwin. Architecture Gothique et Pensée Scolastique. 2éme Éd. Trad. e

posf. Pierre Bourdieu. Paris: Les Éditions de Minuit, 1967; ———. Meaning in the Visual Arts. Middlesex: Penguin Books, 1970; ———. Renaissance And Renascences In Western Art. New York: Harper & Row,

1972; ———. Gothic Architecture and Scholasticism. Nova Iorque: Meridian, 1985; ———. Perspective as Symbolic Form. Trad. Christopher S. Wood. Nova Iorque:

Zone Books, 1991; PEREIRA, Paulo. A “Fábrica” Medieval: Concepção e construção na arquitectura portu-

guesa (1150-1550). Lisboa: Universidade Técnica de Lisboa, 2011. Texto polico-piado. Tese de doutoramento;

PÉREZ-GÓMEZ, Alberto. Architecture and the crisis of modern science. Cambridge,

Mass.: MIT Press, 1983; ———. “The Revelation of Order” in RATTENBURY, Kester (ed.). This Is Not Ar-

chitecture: Media constructions. Londres: Routledge, 2002; PÉREZ-GÓMEZ, Alberto; PELLETIER, Louise. Architectural Representation and the

Perspective Hinge. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2000; PTOLEMY. Geography: An Annotated Translation of the Theoretical Chapters. Trad. e

ed. J. Lennart Berggren e Alexander Jones. Princeton: Princeton University Press: 2000;

RATTENBURY, Kester (ed.). This Is Not Architecture: Media constructions. Londres:

Routledge, 2002;

Page 105: A Imagem Construída

99

RORICZER, Matthäus. On the Ordination of Pinnacles (1486). Trad. J. W. Papworth (1853), in HOLT, Elizabeth Gilmore (ed.). A Documentary History of Art, Vol. 1: The Middle Ages and the Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1981. pp. 95-101;

ROSET, Clément. Le Réel et son Double. Paris: Gallimard, 1984; RUDOLPH, Conrad. The “Things of Greater Importance”: Bernard of Clairvaux's Apo-

logia and the Mediaeval Attitude Toward Art. Philadelphia: University of Pennsyl-vania Press, 1990;

———. Artistic Change at St-Denis: Abbot Suger's Program and the Early Twelfth-

Century Controversy over Art. Princeton: Princeton University Press, 1990; ——— (ed.). A Companion to Medieval Art: Romanesque and Gothic in Northern

Europe. Malden: Blackwell, 2006; RUSSELL, Bertrand. An Essay on the Foundations of Geometry. (Original 1897) Nova

Iorque: Dover Publications, 1956; RYKWERT, Joseph. The First Moderns: The architects of the eighteenth century. Cam-

bridge, Mass.: MIT Press, 1983; ———. “On the Oral Transmission of Architectural Theory” in AA Files, n.º 6,

Maio 1984. pp.14-27; RYKWERT, Joseph; ENGEL, Anne (eds.). Leon Battista Alberti. Catálogo da exposição

no Palazzo Te. Milão: Olivetti/Electa, 1994; ———. The Dancing Column: On order in architecture. Cambridge, Mass.: MIT

Press, 1999; SCHOLDERER, Victor. Johann Gutenberg: The Inventor of Printing. 2nd ed. London:

The Trustees of the British Museum, 1970; SHELBY, Lon R. “Mediaeval Masons’ Templates” in Journal of the Society of Ar-

chitectural Historians, Vol. 30, No. 2 (Maio, 1971). pp. 140-154;

Page 106: A Imagem Construída

100

———. “The Geometrical Knowledge of Mediaeval Master Masons” in Speculum, Vol. 47, No. 3 (Jul., 1972). pp. 395-421;

SIMSON, Otto von. The Gothic Cathedral: Origins of gothic architecture and the me-

dieval concept of order. Expanded 3rd ed. Princeton: Princeton University Press, 1988;

SPENCER, Jorge. Aspectos Heurísticos dos Desenhos de Estudo no Processo de Concepção

em Arquitectura. Lisboa: Universidade Técnica de Lisboa, 2000. Texto policopia-do. Tese de doutoramento;

SPENGLER, Oswald. O Homem e a Técnica. 2.ª ed. Lisboa: Guimarães Editores,

1993; SUGER. On the Abbey Church of St.-Denis and its art treasures. Trad. e ed. Erwin

Panofsky. 2nd. Ed. Princeton: Princeton University Press, 1979; VESELY, Dalibor. Architecture in the Age of Divided Representation: The question of

creativity in the shadow of production. New Ed. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2006;

VITRÚVIO. The Ten Books on Architecture. Trad. Morris Hicky Morgan. Ilust. Her-

bert Langford Warren. New York: Dover Publications, 1960; ———. Tratado de Arquitectura. Trad. M. Justino Maciel. Ilust. Thomas Noble

Howe. Lisboa: IST Press, 2006;

WADDELL, Chrysogonus. “The Reform of the Liturgy from a Renaissance Perspec-

tive” in BENSON, Robert L.; CONSTABLE, Giles; LANHAM, Carol D. (eds.). Renais-sance and Renewal in the Twelfth Century. Toronto: Medieval Academy of America, University of Toronto Press, 1992. pp. 88-109;

WITTKOWER, Rudolf. Architectural Principles in the Age of Humanism. Nova Ior-

que: W. W. Norton, 1971.

Page 107: A Imagem Construída

ANEXO DOCUMENTAL

Page 108: A Imagem Construída

102

LISTA DE IMAGENS

Fig. 1. A construção da Torre de Babel. Iluminura da Bíblia Maciejowski (pormenor). Paris, c.1240. The Morgan Library, Nova Iorque.

Fig. 2. Exemplos de réplicas do Santo Sepulcro, em planta.

Igreja de São Miguel, Fulda; Igreja do Santo Sepulcro, Paderborn; Igreja do Santo Sepulcro, Cambridge; Rotunda do Templo, Lanleff. (in KRAUTHEIMER, “Introduction to an Iconography”, op. cit.)

Fig. 3. Representação do Santo Sepulcro no Sacramentário de Henrique II.

Abadia de St. Emmerano. Ratisbona, c.1002-14. Bayerische Staatsbibliothek, Munique (cód. lat. 4456).

Fig. 4. As Santas Mães.

Escultura em pedra calcária. Coimbra, c.1450-75. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa (1045 Esc).

Fig. 5. Nossa Senhora da Misericórdia e os Santos João Baptista e João Evangelista.

Jacobello del Fiore, c.1415-1420. Gallerie dell'Accademia, Veneza (cat. 13).

Fig. 6. Das Büchlein von der Fialen Gerechtigkeit (dois fólios).

Matthäus Roriczer, 1486. Universitätsbibliothek, Wurtzburgo (I.t.q. XXXX, fols. 3v-4, 9v-10).

Fig. 7. Variações sobre a planta do panfleto Roriczer (2001).

(in MITCHELL, “Vitruvius Redux”, ed. cit.) Fig. 8. Variações sobre a planta do panfleto Roriczer (2001).

(in MITCHELL, “Vitruvius Redux”, ed. cit.) Fig. 9. Rosácea sul do transepto.

Catedral de Chartres. c.1225–30. Fig. 10. A Missa de Santo Egídio.

Mestre de Saint-Gilles, c.1500. National Gallery, Londres.

Fig. 11. Pórtico com tímpano esculpido.

Basílica de Sta. Maria Madalena, Vézelay. c.1120-32.

Page 109: A Imagem Construída

103

Fig. 12. Cristo. Tímpano esculpido (detalhe). Pórtico da Basílica de Sta. Maria Madalena, Vézelay.

Fig. 13. Figura do Antigo Testamento.

Pórtico central da fachada principal. Catedral de Chartres.

Fig. 14. Figuras do Antigo Testamento,

Flanco esquerdo do portal central, fachada principal, c.1150-70. Catedral de Chartres.

Fig. 15. Santos Simão, Mateus, Tomás, Filipe, André e Pedro.

Flanco esquerdo do portal central, fachada sul, c.1205-40. Catedral de Chartres.

Fig. 16. Catedral de Chartres.

Fachada poente. Fig. 17. Portal esculpido.

Cartuxa de Champmol, Dijon. Claus Sluter, c. 1385-93.

Fig. 18. Martírio de São Lourenço.

Fresco, início do séc. XII. Château des Moines, Berzé-la-Ville.

Fig. 19. Henrique I outorgando privilégios a St.-Martin-des-Champs.

Iluminura, c.1079-96. British Museum, Londres (MSS Add. 1162, fol. 5v).

Fig. 20. Filipe I outorgando privilégios a St.-Martin-des-Champs.

Iluminura, c.1250. Bibliothèque Nationale, Paris (MSS, Nouv. Acq. 1359, fol. 6)

Fig. 21. Basílica de São Francisco, Assis.

Igreja superior, vista interior. Fig. 22. Basílica de São Francisco, Assis.

Igreja superior, alçado interior (pormenor). Fig. 23. Basílica de São Francisco, Assis.

Igreja superior, alçado interior (pormenor). (in EDGERTON, The Heritage of Giotto's Geometry, ed. cit.)

Fig. 24. Lenda de S. Francisco: O sonho do Palácio.

Fresco, c.1297-9. Igreja superior, Basílica de São Francisco, Assis.

Page 110: A Imagem Construída

104

Fig. 25. Lenda de S. Francisco: Papa Inocêncio III confirmando a Regra Franciscana. Fresco, c.1297-9. Igreja superior, Basílica de São Francisco, Assis.

Fig. 26. Lenda de S. Francisco: A morte do cavaleiro de Celano.

Fresco, c.1297-1300. Igreja superior, Basílica de São Francisco, Assis.

Fig. 27. Friso (pormenor).

Igreja superior, Basílica de São Francisco, Assis. (in CAMEROTA, La Prospettiva del Rinascimento, ed. cit.)

Fig. 28. Trinità.

Masaccio, 1425. Fresco. Santa Maria Novella, Florença.

Fig. 29. Virgem na igreja.

Jan van Eyck, c. 1438–40. Gemäldegalerie, Berlim.

Fig. 30. Casamento da Virgem.

Rafael, 1504. Pinacoteca di Brera, Milão.

Fig. 31. A secção da pirâmide visual.

Jean Dubreuil, La perspective pratique, 1642. Fig. 32. Reconstrução dos processo perspéctico de Alberti (excerto).

(in EDGERTON, The Mirror, the Window, and the Telescope, ed. cit.) Fig. 33. Projecto para Basílica de S. Pedro, Vaticano.

Baldassare Peruzzi, c.1534–5. Uffizi, Florença (2Ar).

Fig. 34. Perspectiva pictorum et architectorum (fólio).

Andrea Pozzo, 1700. Fig. 35. Efígie tumular de Hugues Libergier, c.1263.

Catedral de Reims.

Page 111: A Imagem Construída

105

Fig. 1. A construção da Torre de Babel. Bíblia Maciejowski (detalhe). Paris, c.1240.

Page 112: A Imagem Construída

106

Fig. 2. Exemplos de cópias do Santo Sepulcro, em planta. Igreja de São Miguel, em Fulda; Igreja do Santo Sepulcro, em Paderborn; Igreja do Santo Sepulcro, em Cambridge; Rotunda do Templo de Lanleff.

Page 113: A Imagem Construída

107

Fig. 3. Representação do Santo Sepulcro no Sacramentário de Henrique II. Ratisbona, c.1002-1014.

Page 114: A Imagem Construída

108

Fig. 4. As Santas Mães. Coimbra, c.1450-75.

Page 115: A Imagem Construída

109

Fig. 5. Nossa Senhora da Misericórdia e os Santos João Baptista e João Evangelista. Jacobello del Fiore. Veneza, c.1415-1420.

Page 116: A Imagem Construída

110

Fig. 6. Das Büchlein von der Fialen Gerechtigkeit (dois fólios). Matthäus Roriczer. Ratisbona, 1486.

Page 117: A Imagem Construída

111

Fig. 7. Variações sobre a planta do panfleto Roriczer. William Mitchell, 2001.

Page 118: A Imagem Construída

112

Fig. 8. Variações sobre a planta do panfleto Roriczer. William Mitchell, 2001.

Page 119: A Imagem Construída

113

Fig. 9. Rosácea sul do transepto, c.1225–30. Catedral de Chartres.

Page 120: A Imagem Construída

114

Fig. 10. A Missa de Santo Egídio. Mestre de Saint-Gilles, c.1500.

Page 121: A Imagem Construída

115

Fig. 11. Tímpano do pórtico da Basílica de Santa Maria Madalena. Vézelay, c.1120-32.

Page 122: A Imagem Construída

116

Fig. 12. Cristo. Tímpano do pórtico. Basílica de Santa Maria Madalena, Vézelay. Fig. 13. Figura do Antigo Testamento. Pórtico central da fachada principal. Catedral de Chartres.

Page 123: A Imagem Construída

117

Fig. 14. Figuras do Antigo Testamento. Flanco esquerdo do portal central da fachada principal. Catedral de Chartres, c.1150-70.

Page 124: A Imagem Construída

118

Fig. 15. Santos Simão, Mateus, Tomás, Filipe, André e Pedro. Flanco esquerdo do portal central, fachada sul, c.1205-40. Catedral de Chartres.

Page 125: A Imagem Construída

119

Fig. 16. Fachada poente. Catedral de Chartres.

Page 126: A Imagem Construída

120

Fig. 17. Portal, Cartuxa de Champmol, Dijon. Claus Sluter, c.1385-93.

Page 127: A Imagem Construída

121

Fig. 18. Martírio de São Lourenço. Château des Moines, Berzé-la-Ville. séc. XII.

Page 128: A Imagem Construída

122

Fig. 19. Henrique I outorgando privilégios a St.-Martin-des-Champs. Iluminura, c.1079-1096.

Page 129: A Imagem Construída

123

Fig. 20. Filipe I outorgando privilégios a St.-Martin-des-Champs. Iluminura, c.1250.

Page 130: A Imagem Construída

124

Fig. 21. Basílica de São Francisco, Assis. Vista interior da igreja superior.

Page 131: A Imagem Construída

125

Fig. 22. Basílica de São Francisco, Assis. Alçado interior (pormenor).

Page 132: A Imagem Construída

126

Fig. 23. Basílica de São Francisco, Assis. Alçado interior (pormenor). (Samuel Edgerton, 1993)

Page 133: A Imagem Construída

127

Fig. 24. Lenda de S. Francisco: O sonho do Palácio. Basílica de São Francisco, Assis. c.1297-9.

Page 134: A Imagem Construída

128

Fig. 25. Lenda de S. Francisco: Papa Inocêncio III confirmando a Regra Franciscana. Basílica de São Francisco, Assis. c.1297-9.

Page 135: A Imagem Construída

129

Fig. 26. Lenda de S. Francisco: A morte do cavaleiro de Celano. Basílica de São Francisco, Assis. c.1297-1300.

Page 136: A Imagem Construída

130

Fig. 27. Friso (pormenor). Igreja superior, Basílica de São Francisco, Assis.

Page 137: A Imagem Construída

131

Fig. 28. Trinità. Masaccio, 1425. Santa Maria Novella, Florença.

Page 138: A Imagem Construída

132

Fig. 29. Virgem na igreja. Jan van Eyck, c. 1438–40.

Page 139: A Imagem Construída

133

Fig. 30. Casamento da Virgem. Rafael, 1504.

Page 140: A Imagem Construída

134

Fig. 31. A secção da pirâmide visual. La perspective pratique, Dubreuil, 1642.

Page 141: A Imagem Construída

135

Fig. 32. Reconstrução dos processo perspéctico de Alberti (excerto). (Samuel Edgerton, 2009)

Page 142: A Imagem Construída

136

Fig. 33. Projecto para Basílica de S. Pedro, Vaticano. Baldassare Peruzzi, c.1534–5.

Page 143: A Imagem Construída

137

Fig. 34. Perspectiva pictorum et architectorum (fólio). Andrea Pozzo, 1700.

Page 144: A Imagem Construída

138

Fig. 35. Efígie tumular de Hugues Libergier, c.1263.