A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

23
39 Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009. A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem Cibele Elisa Viegas Aldrovandi* ALDROVANDI, C.E.V. A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009. Resumo: O artigo aborda e discute algumas das principais perspectivas teóricas elaboradas pela Arqueologia da Imagem, que fornecem importantes fundamentos para a análise e a interpretação dos repertórios iconográficos do passado. Palavras-chave: Arqueologia – Imagem – Iconografia – Semântica – Intericonicidade. compreender os aspectos sociais, econômicos, políticos e religiosos que propiciaram sua criação. Nesse sentido, além da necessidade de evidenciar os conteúdos presentes num deter- minado repertório iconográfico, a análise arqueológica fornece um embasamento teórico capaz de interpretar a relação entre a produção imagética e o contexto histórico em que esses elementos formais e temáticos se desenvol- veram. A identificação e interpretação desse tipo de conjunto vestigial, se tratadas a partir dessas perspectivas, permitem a elaboração de um quadro analítico e contextual capaz de fornecer resultados mais objetivos que aqueles encontrados na abordagem puramente estética. As teorizações elaboradas pela Arqueologia da Imagem fornecem, por sua vez, respostas distintas daquelas elaboradas pela História da Arte. A História da Arte realiza estudos cuja perspectiva está, muitas vezes, voltada à estética e à evolução estilística da obra de arte de períodos e escolas artísticas específicas. Assim, sua preocupação está fundamentalmente centrada no objeto artístico propriamente dito. (*) Pós-doutorado pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. [email protected] Introdução s principais perspectivas de análise e interpretação da imagética pretérita pertencem ao campo da chamada Arqueologia da Imagem, desenvolvida principalmente a partir da década de 1970, por arqueólogos franceses e pautada ora pelo formalismo descritivo e pelo estruturalismo, ora pela influência da linguística e da semiótica. As questões sobre as quais a Arqueologia da Imagem se debruça não envolvem apenas o levantamento e a análise dos elementos iconográficos presentes no repertório dos esquemas formais, tratados a partir da elaboração de um corpus documental. Essa disciplina volta-se essencialmente à análise dos conteúdos temáticos presentes no conjunto imagético e, além disso, busca inseri-los em seu contexto de surgimento e desenvolvimento no intuito de reconstruir e A

Transcript of A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

Page 1: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

39

Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

A imagética pretérita:perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi*

ALDROVANDI, C.E.V. A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologiada Imagem. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

Resumo: O artigo aborda e discute algumas das principais perspectivasteóricas elaboradas pela Arqueologia da Imagem, que fornecem importantesfundamentos para a análise e a interpretação dos repertórios iconográficos dopassado.

Palavras-chave: Arqueologia – Imagem – Iconografia – Semântica –Intericonicidade.

compreender os aspectos sociais, econômicos,políticos e religiosos que propiciaram sua criação.

Nesse sentido, além da necessidade deevidenciar os conteúdos presentes num deter-minado repertório iconográfico, a análisearqueológica fornece um embasamento teóricocapaz de interpretar a relação entre a produçãoimagética e o contexto histórico em que esseselementos – formais e temáticos – se desenvol-veram. A identificação e interpretação dessetipo de conjunto vestigial, se tratadas a partirdessas perspectivas, permitem a elaboração deum quadro analítico e contextual capaz defornecer resultados mais objetivos que aquelesencontrados na abordagem puramente estética.

As teorizações elaboradas pela Arqueologiada Imagem fornecem, por sua vez, respostasdistintas daquelas elaboradas pela História daArte. A História da Arte realiza estudos cujaperspectiva está, muitas vezes, voltada à estéticae à evolução estilística da obra de arte deperíodos e escolas artísticas específicas. Assim,sua preocupação está fundamentalmentecentrada no objeto artístico propriamente dito.

(*) Pós-doutorado pelo Museu de Arqueologia e Etnologiada Universidade de São Paulo. [email protected]

Introdução

s principais perspectivas de análise einterpretação da imagética pretérita

pertencem ao campo da chamada Arqueologiada Imagem, desenvolvida principalmente apartir da década de 1970, por arqueólogosfranceses e pautada ora pelo formalismodescritivo e pelo estruturalismo, ora pelainfluência da linguística e da semiótica.

As questões sobre as quais a Arqueologia daImagem se debruça não envolvem apenas olevantamento e a análise dos elementosiconográficos presentes no repertório dosesquemas formais, tratados a partir da elaboraçãode um corpus documental. Essa disciplina volta-seessencialmente à análise dos conteúdos temáticospresentes no conjunto imagético e, além disso,busca inseri-los em seu contexto de surgimento edesenvolvimento no intuito de reconstruir e

A

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1039

Page 2: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

40

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

A célebre formulação teórica desenvolvidapor Panofsky (1955: 47-87), por exemplo, estabele-ceu três níveis distintos a agir na obra de arte. Naterminologia do estudioso, o primeiro nível édenominado Tema Primário ou Natural e constituí-do pela descrição pré-iconográfica, a identificaçãodas formas puras do objeto. O segundo, o TemaSecundário ou Convencional, envolve o mundo dasimagens, histórias e alegorias e é chamado peloestudioso de Análise Iconográfica. O terceiroestágio, o Significado Intrínseco ou Conteúdo éconstituído pelo mundo dos valores simbólicos edenominado Interpretação Iconológica.

Assim, nesta disciplina, a Iconografiaenvolve a descrição e classificação das imagens eembora sob certos aspectos possua limitaçõesmetodológicas, se adequadamente embasada,fornece elementos importantes para o estabele-cimento de datas, origem e, por vezes, autentici-dade das peças, assim como fornece as basesnecessárias às interpretações ulteriores. Comolembrou o estudioso, esse tratamento quecoleta e classifica a evidência, não está capacita-do a investigar a gênese e significação damesma e, por essa razão, constitui somenteparte dos elementos que compõem o conteúdointrínseco de uma obra de arte e que precisamtornar-se explícitos para que a percepção desseconteúdo venha a ser articulada e comunicável.

É importante pontuar que muitas vezes oestudo iconográfico efetuado tradicionalmentepela História da Arte tratou os problemas deinteração cultural em termos predominantemen-te estéticos, o que sempre promoveu abordagensrestritivas e uma propensão à apreciação oudepreciação da obra, de acordo com o gosto daépoca, historicamente determinado. Assim,embasada por uma perspectiva históricaEvolucionista e Difusionista, essa disciplinaconferiu à Arte Grega a condição de paradigma,que, contraposto às manifestações artísticas dasdemais civilizações, procurou relegá-las ao campodo primitivismo (ver Sparkes 1997: 130-155).

1. O esquema e o tema em Bruneau

Entre as principais linhas teóricas queabordam a Imagem na Arqueologia francesa

destaca-se a teoria imagética de P. Bruneau(1986). Nela, o autor expôs inicialmente adiferença entre imagem e referente. Em suaspalavras: “a imagem serve para mostrar ouniverso das coisas numa relação não idêntica,mas análoga ao referente”. A partir dessepostulado surgem dois aspectos inerentes àimagem: o tema, que é relacionado ao referente,e o esquema, relativo à técnica, à ordenação deelementos formais com intuito de produziruma aparência ilusória do referente. Assim, aimagem compreende a reprodução do referencialou tema por meio de um esquema (Bruneau1986: 256-259).

Na concepção de Bruneau (1986: 250,268), as imagens são definidas como “obrasque têm por fim produzir uma representaçãonatural e, especialmente aqui, entre elas,aquelas que têm por objetivo imitar a realidadevisível”. Ao qualificar a imagem, o autor ainclui na categoria mais ampla de produtos datécnica, que resulta de uma conduta por meioda qual os meios necessários são fornecidospara sua produção. Como lembrou o estudioso,logo no início de seu artigo:

A imagem não é uma necessidadeuniversal, ela pode não existir, sejaergologicamente, em razão do savoir-faire,seja, mais frequentemente, axiologica-mente, em razão do desejo ou direito deproduzi-la; mas quando há a imagem, seencontram, obrigatoriamente, osprocessos próprios à técnica e à repre-sentação – o modelo encontra umavalidade geral no fato de incluirmos oétnico que tem como efeito particulari-zar toda produção (Bruneau 1986: 249).

Bruneau criou uma teoria própria daImagem. O estudioso discordou dos três níveisestabelecidos pela teoria de Panofksy, descritosacima. Segundo o arqueólogo, “a boa tradiçãoda História da Arte, que se interessa quase queexclusivamente pela estética, considera a obraartística um mero jogo de formas” (Bruneau1986: 250). Ao arqueólogo da imagem cabe,então, “revelar a identidade dos processos sobrea diversidade infinita de realizações” presentesno conjunto imagético (Bruneau 1986: 252-256)

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1040

Page 3: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

41

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

Nesse sentido, a construção de um modeloteórico do referencial visual pertinente à Arqueo-logia tem como ponto de partida aquilo que oestudioso considerou definidor de toda aimagem e de toda obra e sem o qual ela nãopode existir, justamente aquilo que, de acordocom ele, o “pan-semioticismo reinante”, muitasvezes, negligenciou: sua “tecnicidade”. Emseguida, explicou a escolha do termo genéricode referente:

Definida, a grosso modo, comoimitante, a imagem é, por sua vez,necessária à coisa imitada. É preciso umtermo para designar genericamenteaquilo que, na imagem, a técnica usacomo trajeto, o que ela tem por fimmostrar o aspecto. A palavra modelotornou-se uma concepção muitoparticularizada das ciências humanas e,sobretudo, supõe que a imagem devarepresentar, sempre, uma realidadepreviamente sensível, o que não é ocaso. Acho mais cômodo o termoreferente, mas se fiz aqui esse empréstimoda linguística, não é devido à atualmania de encontrar em tudo a semânti-ca, nem por confusão induzida da arte eda linguagem. É porque, precisamentenesse ponto, a imagem, que serve paramostrar o universo das coisas, está paraele não numa relação idêntica, masanáloga àquela da palavra, que serve aodizer (Bruneau 1986: 256-257).

Assim, o estudioso verificou que a técnicaestá duplamente associada ao princípio daimagem, tanto na própria imagem quanto emseu referente, mas que isso não modifica emnada a sua relação com a referência. Bruneau(1986: 257) citou o caso extremo da réplicadefinida como algo dotado da mesma eficáciaergológica que seu referente, mas que não temem comum o mesmo status sociológico. Emsuas palavras:

A referência não supõe, de modoalgum, a realidade da percepção, é porisso que preferi qualificar a imagemcomo referencial ao invés de imitativa. O

referente muitas vezes não é mais queperceptível e nem efetivamente percebi-do. O referente pode não ser perceptívelpela simples razão de ser destituído detoda realidade sensível, ele surge do queos franceses precisamente chamam aimaginação. A imagem não serve apenaspara reproduzir com maior ou menorexatidão os aspectos do sensível de umreferente, mas para dar um aspectosensível aos referenciais dos quais elessão desprovidos, dentro da realidadenão imagética. Porque a imagem é umproduto necessariamente técnico emrelação a um referente, é precisodistinguir aquilo que nela cabe aoreferente, e que chamo de tema; e aquiloque cabe à técnica e que eu chamo deesquema. Em outros termos, o tema nãoé, cabe entender, o próprio referente,mas sua marca na imagem, que visamostrar seu aspecto; o esquema é aordenação dos pontos, linhas, superfíci-es ou volumes, próprios a produzirilusoriamente a aparência do referente,resultante do modo como os meios sãoordenados final e reciprocamente(Bruneau 1986: 257-258).

As estruturas teóricas propostas para aanálise imagética por Panofsky (1955) eBruneau (1986) são apresentadas na Tabela 1.

De acordo com a teorização de Bruneau(1986: 259), as imagens ou “todas as obras” podemser classificadas temática ou esquematicamente.Essa distinção entre “esquema e tema é funda-mental à análise imagética, pois todo estudo daimagem supõe a escolha de um ou outro pontode vista, uma vez que tais realidades distintas,mas dialeticamente solidárias, estão mescladasde modo concreto na imagem” (Bruneau (1986:261). Essa concepção da imagem é essencial,uma vez que se opõe a outras propostas quetendem a confundir a imagem com o referencial– o esquema com o tema. Muitos equívocosinterpretativos residem, justamente, na ausên-cia de distinção entre esquema e tema. Issoocorre, segundo Bruneau (1986: 266, 268),devido ao esquecimento da formalização

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1041

Page 4: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

42

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

técnica; da interposição do esquema entre arepresentação não imagética – o referencial e aimagem, “uma prática costumeira entre osarqueólogos” que conceberam a imagem comouma simples ilustração dos textos ou aindaatribuíram-lhe o papel de transcrição exata evisível daquilo que representa.

A noção de esquema e sua função mediado-ra foi também discutida por Sartre (1987: 64-65), que o chamou “imagem abreviada, inter-mediária entre o puro sensível individual e opuro pensamento”, a estabelecer uma continui-dade entre dois tipos de existência que, emúltima análise, são inconciliáveis, ele “supera eresolve em seu seio os conflitos entre imagem epensamento”.

A função mais evidente da imagem, nateorização de Bruneau (1986: 269) é a deproduzir uma imitação da realidade percebidae, nesse sentido, ela é qualificada pelo pesquisa-dor como mimese. Ocorre que o tema implica

não apenas na mimese, mas também em algoque ele denominou o grama – as inscrições queacompanham a imagem. Nas suas palavras:

Tais inscrições nominais, que apare-cem na imagética grega, não são maisque a tecnicização facultativa de umcomponente constitutivo da imagem. Sea imagética recorre, tão frequentemente,à escrita, que tem por fim tecnicizar alinguagem, é de se esperar que umatenha qualquer coisa a ver com a outra.Na falta de inscrições inclusas, a imagemquase sempre possui um título constituí-do por palavras, por vezes, inscrito,posteriormente, sobre uma etiqueta demuseu. Em suma, está claro que aimagem não passa de uma única mimese,resultante da representação visual doreferente; ela também resulta de suarepresentação verbalizada, aculturadapela linguagem. Aquilo que, no tema

A Imagem de acordo com Panofsky e Bruneau

Tabela 1

História da Arte(Panofsky)

Arqueologia da Imagem(Bruneau)

Mimese e Grama

Imagem

ESQUEMAFormalização técnica Ordenaçãodas Unidades Formais Mínimas

Análise IconográficaDescrição / Classificação

Referente

TEMAMundo Real ou Imaginário

Análise InterpretativaSignificação Fontes

arqueológicas e textuais

Tema Primárioou Natural

Forma Pura

Descrição Pré-Iconográfica

Tema Secundárioou Convencional

Mundo das Imagens

Análise IconográficaDescrição / Classificação

Significado Intrínsecoou Conteúdo

Mundo dos ValoresSimbólicos

Interpretação IconológicaSignificação simbólica

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1042

Page 5: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

43

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

participa, não mais do universo percebi-do, mas do universo dito e, portanto,conhecido. O grama designa todo sinalde implicação verbal. A imagem temalgo comum com a escrita e não nossurpreendemos que ela seja frequente-mente epigráfica. A inclusão, constante enecessária, do grama, como componenteconstitutivo na imagem, não tem nadade misterioso, a imagem carrega simples-mente a impressão daquilo que tem porobjetivo tecnicizar (...). Em poucaspalavras, a imagem não mostra apenasaquilo que vemos do referente, mastambém aquilo que dizemos dele. Ograma importa, portanto, à teoria daimagem e, por ser passível de sermarcado tecnicamente contribui,consequentemente, na sua produção. Aimagem não faz ver aquilo que é visívelna percepção do referente, mas aquiloque somente é acessível por meio dalinguagem. Para fazer ver o dificilmentevisível, a imagem explora a polisemia deuma palavra; ela mostra aquilo quesugere uma das acepções da palavrautilizada (Bruneau 1986: 272-273).

Steiner (2001: 3-5), por sua vez, observouque a eficácia das estátuas, um tipo específicode imagem, depende de uma construçãoespecífica de ligação entre o sujeito e a figura-ção, um laço que não precisa se apoiar emnenhuma semelhança mimética, mas numanoção de substituição, equivalência ou concor-dância – uma relação metonímica – de aproxima-ção, contigidade e não similaridade.

Como observou Vernant (1990: 75), acapacidade de o objeto instar, não tanto aaparência física do modelo, mas suas proprieda-des e valor, permite à imagem assumir umpapel em uma dinâmica mais extensa de troca:

Sem se parecer com ele, o equivalenteé capaz de apresentar alguém, de tomarseu lugar no jogo de trocas sociais. Ele ofaz, não por uma questão de similarida-de com o aspecto externo da pessoa(como num retrato), mas por meio deum compartilhamento de valor, uma

concordância na questão das qualidadesassociadas ao prestígio (Vernant 1990: 75).

2. A Imagem e o poder do discurso imagético

Outro ponto importante, discutido porBruneau (1986) e outros estudiosos, é quesempre faltará à Imagem parte do que existe emseu referente, ou, pelo contrário, pode haver algoincluído na imagem que não faz parte de seureferencial original. Assim:

A imagem é incapaz de ser equivalen-te ao referente, ela reduz o referente aoessencial. (...) A imagem tem por fimreproduzir o aspecto da realidadepercebida e, exatamente como a lingua-gem, é essa, entre todas as suas caracte-rísticas, que nós retemos mais esponta-neamente: sua capacidade de dizer omundo, ao invés de sua incapacidade deo dizer, em toda sua propriedade(Bruneau 1986: 268, 278-282).

A função semântica da imagem foi original-mente debatida por C. Dugas (1936: 440) que,antes mesmo de Panofsky (1939), havia elabora-do a distinção entre iconografia e iconologia(Dugas 1937). Esse estudioso atribuiu aoconteúdo narrativo um papel preponderante eao qual a qualidade estética da imagem estásubordinada.1 Trata-se, portanto, de um

(1) O estudioso analisou um grande conjunto de imagenspresentes nos vasos cerâmicos gregos, ao qual atribuiuautonomia e valor formativo próprios, decorrentes defatores fundamentais da cultura — imagens que até entãoeram consideradas apenas em seu caráter decorativo oucomo ilustrações derivadas da tradição literária. Ele foiprovavelmente o primeiro a observar a função ativa dasimagens e a re-valorizar seu papel social e educativo — suamissão e ensinamento, entre as diferentes camadas dasociedade grega. Ver, ainda, Lissarrague e Schnapp (1981:281); e Sarian (1987: 17), sobre a imagem como instrumen-to da memória. Sobre a história semântica do significado,ver Hoffmann (1988: 144) para quem os objetos não têmsignificação em si próprios e os símbolos só funcionam emconjunto; e, é claro, Gombrich (1960; 1972) sobre amultiplicidade de significados atribuído a uma imagem, deacordo com o contexto.

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1043

Page 6: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

44

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

conteúdo fundamentalmente distinto que,condensado em um episódio ou episódios,possui um caráter eminentemente associado àlinguagem. Ao evidenciar essa característicanarrativa e não apenas estética da imagem, elerevelou seu caráter “comunicativo e capaz deestabelecer modelos culturais na sociedade.Assim, a contemplação destes paradigmasfigurativos sugestiona e estimula o indivíduo e,portanto, pode instruí-lo por meio de mensagensdirigidas à coletividade” (Dugas 1936: 440).

Como observou mais tarde Molyneaux(1997a), muitos acadêmicos pensam serimpossível que as imagens existam sem alinguagem. No entanto, compreender umaimagem requer educação e direção da atençãopara seus aspectos significativos. Assim, paraesse arqueólogo, revelar a vida cultural dasimagens significa expor seu poder e influênciacomo afirmação direta das idéias e relaçõessociais – “mensagens visuais que podem ser tãofortes e distintivas quanto aquelas expressas nostextos” (Molyneaux 1997a: 1).

Essa longa discussão sobre a relação entre aarte, a linguagem e o mundo, discutida tam-bém por Bruneau, foi retomada por Molyneauxque observou existir, do ponto de vista analíti-co, um problema em relação à integraçãoperceptível da imagem:

O uso de imagens naturalísticasimplica, supostamente, numa relaçãodireta com a representação do mundo –transparente e sem obstáculos inter-pretativos. As idéias representadasreivindicam uma verdade natural. É porisso que espectadores e leitores sesentem confortáveis diante de imagensde elementos naturais: na arte, taisrepresentações não requerem muitaintervenção textual. Uma imagem deum humano pode ser reconhecida forado domínio relativístico da linguagem,quer alguém fale hindi, inglês, etc. asações humanas e objetos familiarespodem ser detectados sem um guia. Aidéia de que representações de elemen-tos naturais fornecem informaçõessimples, diretas e seguras, como a

própria natureza, é muito sedutora. Nãoé de surpreender que o naturalismo(definido, aqui, como uma adesãomuito aproximada da natureza ourealidade – como a natureza parece ser)é um instrumento importante depropaganda, tanto política, religiosa oude divulgação, uma vez que dá crédito àsafirmações (Molyneaux 1997a: 2).

Sobre a primazia do naturalismo noesquema imagético, Sartre (1987) ofereceu,uma década antes, um precioso questionamento:

Tendes – dizeis – presentemente, naconsciência, uma representação abrevia-da, muito concreta para ser pensamento,muito indeterminada para ser assimilávelàs coisas que nos cercam; e denominaisessa representação um esquema. Masporque não seria simplesmente umaimagem? Não confessais, assim, constitu-indo para essas representações abreviadasuma classe à parte, que reservais o nomede imagem a cópias fiéis e exaustivas dascoisas? Mas, talvez, as imagens não sejamnunca cópias de objetos. Talvez nãosejam mais do que procedimentos paratornar presentes os objetos de uma certamaneira. Neste caso, o que é que passa aser o esquema? Não é mais do que umaimagem como as outras, pois o quedefinirá a imagem será a maneira pelaqual ela visa o objeto e não a riqueza dosdetalhes por meio dos quais o tornapresente (Sartre 1987: 65).

Ressaltamos que se a imagem tem porfunção o discurso, diferente do texto escrito,que possui maior flexibilidade no que dizrespeito à sua extensão, ela precisa ser concisa edireta, uma vez que está circunscrita ao espaçoformal da obra. Nesse sentido, esta propriedadeda imagem, aqui chamada sintética e seupróprio caráter visual propiciam uma difusãomais ampla e, portanto, também mais direta,ágil e persuasiva do discurso que engendra.Como observou Shapiro:

Artistas pictóricos vêem o mundo demodo distinto dos poetas, que recorrem

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1044

Page 7: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

45

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

às palavras. Nós não podemos maisreconstruir a experiência de ouvir umaperformance de Homero ou Stesícoros,ou assistir a uma peça de Ésquilo, comoos atenienses do século V o fizeram. Aoolhar o vaso grego, no entanto, pode-mos ter certeza de que estamos vendo omesmo objeto que o comprador originale seus amigos viram. Nesse sentido, asartes visuais dos gregos, nos falam maisimediatamente e diretamente do que apoesia poderia. No entanto, existe aí,também, um perigo, pois nós estamosolhando os objetos com olhos distintose pressupostos culturais, estéticos eperceptivos diferentes (Shapiro 1994: 10).

Como observou Bérard (1974, p. 46-47),em relação à qualidade semântica dos vasos,não se trata de negar o valor artístico dos vasosno plano da História da Arte, mas de verificaruma outra importante função da imagem: “aimagética retém o tema – a história narrada quepretende transmitir, assim, enquanto a históriafaz os tipos evoluírem, o estilo de cada época osmodifica”.

Não é nenhuma novidade que o acesso aostextos escritos na Antiguidade era muito maisreduzido e limitado às elites do que as imagens.A linguagem escrita requer um conhecimentoanterior, bem mais específico e vagaroso, paracompreensão efetiva do discurso. A leitura daimagem, por sua vez, também exige um conhe-cimento prévio, mas este se dá de mododistinto daquele que é necessário à leitura dotexto. Como recordou Sparkes (1997: 132), nassociedades iletradas ou parcialmente letradas,as imagens têm um papel importante. Entre osgregos, observou o estudioso, o grande impulsoverificado na oratória e nas imagens indica queo ouvir e o olhar eram mais influentes na vidacotidiana do que o ler. Na atualidade, isso seconfirma quando observamos que a populaçãotem acesso muito mais facilitado às formas deexpressão visual que literárias, ou constatamossua utilização indiscriminada na mídia, pormeio de agentes do discurso verbal invariavel-mente congregados ao discurso visual. Ainfluência da imagem nos meios de comunica-

ção de massa foi tema exaustivamente tratadopor estudiosos da semiótica.

Ao mesmo tempo, esta função sintética foiinterpretada, por Molyneaux, como a inércia daimagem:

O fortalecimento de idéias emalgumas imagens é muito poderoso.Representações históricas ou religiosasde indivíduos, episódios ou eventosimportantes, fornecem um resumointenso, denso e engajado de erasinteiras e situações bastante complexas.Cada imagem captura literal ou figurati-vamente, um momento congelado notempo, mas que pode eventualmentedurar uma eternidade. Trata-se de umconceito estranho: a compressão detempo e espaço em uma única imagem.O problema é que a imagem supera otempo e a academia, ao capturar aessência imaginada de um evento deforma facilmente lembrada, replicada etransportada. Se for um evento huma-no, é ainda mais resistente à mudança.Nós tendemos a descartar ferramentas etecnologias que não são mais necessári-as, mas preservamos a arte, comosímbolos que ainda são válidos à experi-ência humana. Imagens e outrasrepresentações visuais possuem, portan-to, uma inércia tremenda, um poder depermanência, que pode persistir pormuito tempo, após as idéias por trásdelas saírem de moda. Essa persistênciae, frequentemente, anacronismo, podeser observado na arte ao longo dahistória (Molyneaux 1997a: 6).

A continuidade ou capacidade de perma-nência da imagem foi abordada por Shanks(1997) a partir do conceito de retórica do discursoimagético engendrado pelas fotografias,geralmente consideradas um poderoso instru-mento retórico para estabelecer objetividade.

Elementos de retórica incluemtécnicas de persuasão, estilos de apresen-tação, formas de argumentação earquivos para referência e apoio. Assim,

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1045

Page 8: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

46

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

em Arqueologia, uma afirmação ou umaimagem do passado arqueológico, não éforte e boa porque é verdadeira ouobjetiva, mas porque congrega e fazsentido, porque, quando interrogada, éconsiderada objetiva. Em que casosentão uma afirmação ou imagem possuiforça, se não na objetividade? Pode nãohaver resposta, ou elas podem sermuitas. Uma imagem objetiva, umaverdadeira representação da realidade, éaquela conectada a algo mais sólido queela mesma, de forma que, se for considera-da não-representativa, tudo aquilo a queela está conectada fica ameaçado de ruir.Retórica é a arte e a ciência de fazer taisconexões e persuadir as pessoas de suaforça. Uma foto possui uma multiplicidadede conexões possíveis que fazem parteda heterogeneidade do trabalho fotográ-fico. A objetividade de um registroarqueológico, sua força, é uma realizaçãoretórica, mas nem por isso é real.(Shanks 1997: 81-82).

Shanks também afirmou que aquilo queconsideramos realidade objetiva é umaconstrução retórica, uma vez que a objetivida-de e a verdade não se sustentam em si mes-mas. Elas devem ser argumentadas e, assim, aforça da objetividade advém, em parte, daretórica. Isto é, para fazer sentido, umaimagem precisa ter conexões e contextosestabelecidos que operem dentro e além daimagem, de forma que o espectador possareconhecer ali relações sociais específicas. Issopode ocorrer tanto com seu tema quanto coma composição, o esquema.

Muitos estudiosos, nas décadas passadas, sevoltaram para a análise da produção artística edos artistas, em detrimento da influência docontexto na produção das imagens e da obrados artistas, de acordo com as diferentesrealidades regionais. Bandinelli (1961: 43-44)foi um dos pioneiros nessa abordagem, aoobservar que o repertório imagético é adaptadoa um discurso figurativo referente à realidadelocal e que a imagem possui uma funçãoeducativa e, portanto, social.

A análise estilística tradicional não favorecea aproximação da situação de produção dasimagens, isto é, do contexto material e socialem que o artista trabalhou, e nem mesmo dosindivíduos e da sociedade que os produziu.Estilo, como lembrou Molyneaux (1997b: 109),presume diferenças individuais e isso encorajaos analistas a generalizar. A alternativa, segun-do o estudioso, é olhar para as referidasimagens como:

Ambientes materiais que contêmvárias áreas de atividade material eideológica, locais onde indivíduos,imbuídos das atitudes de seu tempo,marcaram as superfícies das paredes.Pois, apesar da noção abrangente deobras de arte, como elemento raro evalioso, imagens são, geral e simples-mente, áreas contendo informação deum tipo (e densidade) diferente dasparedes ou outras superfícies ao seuredor. Cada imagem registra traços dasituação da produção artística, queinclui aspectos do estado físico eintelectual do artista, traduzido pormeio de um pincel, cinzel ou outroinstrumento, em feições materiais nasuperfície da imagem. Imagens terão,portanto, evidências visíveis das atitudesimplícitas e explícitas do artista, ou daposição que eles tomam, diante do seutema (Molyneaux 1997b: 109).

As representações surgem e permaneceminseridas em circunstâncias temporais específi-cas, condicionadas pelas pressões sociais,econômicas e políticas de um determinadomomento. A sucessão do poder por novosgrupos étnicos, sociais, religiosos estabelecedemandas precisas que, por sua vez, condicionamo desenvolvimento do programa iconográfico.Nesse sentido, as observações de Molyneauxsão bastante pertinentes:

Imagens são particularmente eficien-tes para reforçar poder e ideologia. Avisibilidade das imagens como formasmateriais emprestam força a qualquermensagem que elas expressem. Esse

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1046

Page 9: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

47

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

estímulo perceptivo descreve a alteraçãode algum aspecto do ambiente percebi-do, de modo a ampliar a probabilidadede que ele seja digno da atenção de umadiversidade de espectadores. A manipu-lação da atenção para chamar a atençãopode ser intencional. O esforço pelo efeito,frequentemente, responde ao declíniode um estilo ou moda nas coisasculturais. O que sugere que a análise doconteúdo possui um papel potencial-mente significante no estudo dasimagens, no estudo das variações daforma do significado, uma vez que este éafetado pela variação do estímuloideológico. Estímulo perceptivo tambémé um atributo essencial, pois sugere nãoapenas que as imagens têm existênciaalém da linguagem textual, mas queimagens e artistas não podem estartotalmente circunscritos pelo relativismocultural, social ou perceptivo. O uso deestímulos visuais intensos ajuda a geraro poder de persuasão utilizado tãoeficazmente hoje na publicidade. Énecessário examinar tanto os atributosmateriais como sociais das imagens(Molyneaux 1997a: 4-5).

A arte, conclui Molyneaux (1997a: 5-6), éuma fonte lógica para o estudo do poder emuma sociedade, uma vez que é essencial aoaparato que reforça a ideologia para as massas.Assim, para examinar os efeitos do estímulometafórico e perceptivo, que esse estudiosoconsiderou a essência do poder das imagens, énecessário estudá-las em seu contexto deprodução.

Artistas e espectadores se conectam aum discurso já em progresso, e nóspodemos conhecer melhor as forçassociais que geram as imagens dentrodesse discurso a partir das variaçõesformais nas imagens individuais que,como elementos de informação, sãomanipulados como parte do estímuloperceptivo e metafórico (Molyneaux1997a: 5-6).

Esse arqueólogo lembrou, ainda, que épossível identificar a posição do artista sem,necessariamente, conhecer o seu significadopreciso em pelo menos um aspecto da arte: aforma e distribuição das figuras humanas e arepresentação de cenas e eventos sociais. Assim:

Representações de paisagens sociaissão bastante sensíveis às situaçõesideológicas contemporâneas e, é claro,suscetíveis a uma variedade de leiturasmodernas, porque elas estão parcial-mente preocupadas com o reconheci-mento e apresentação do status socialdos indivíduos. As variações e diferen-ças no tamanho relativo e na orienta-ção de figuras individuais em umacena, que a análise estilística tornaclara, são nossas principais preocupa-ções. Elas podem ser resultado devariações simples do esboço. Mas, elastambém podem expressar uma atitudeconsciente ou inconsciente do artistadiante do tema. Ao tomar o tamanhorelativo como forma de representarsignificação, uma técnica comum empinturas sem perspectiva, o artistaprovavelmente pintará a figura maisimportante, ou as cenas, maior que asdemais. Mesmo que nós desconheça-mos mais ou menos os temas, significa-dos, ou detalhes iconográficos dapintura, nós podemos observar aimagem e ao menos compreender aorganização da significação na mesma.Se, nós observamos que tal padrãorecorre em uma quantidade de pinturasde diferentes artistas, podemos especu-lar que ela reflete uma atitude socialmais predominante. (...) Dessa posição,nós podemos ser capazes de ver odinamismo escondido nas imagens, quena superfície parece tão controlado econsistente — diferenças formais surgemde variações situacionais, refletem averacidade da obra representacional doartista influenciada por circunstânciaspsicológicas e práticas mutáveis, no localde trabalho (Molyneaux 1997b: 111-112).

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1047

Page 10: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

48

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

Se o a rtesão é tanto fator causal quantoresultado da evolução artística, social e religiosade sua época e se cada contexto propicia eresulta da interação desses diferentes fatores,eles não podem ser desconsiderados numaanálise efetiva. Como lembrou Hoffmann:

A mera idéia, de que as imagensindividuais nos vasos geométricos sãoimbuídas de significados diretos e mono-semânticos que o artista tinha emmente, é baseada em um equívocoprofundo do que são símbolos e decomo eles funcionam, e na crençaerrônea de que a expressão simbólica seopõe, de alguma forma, à expressãodireta ou representacional. O pensamentosimbólico se torna coerente, e seuestudo interessante, quando os símbolosempregados são examinados em conjun-tos e quando a relação entre símbolos econjuntos de símbolos é estudadadentro do contexto cultural como umtodo (Hoffmann 1985/6: 62).

Por outro lado, uma observação essencialfeita por J. P. Vernant refere-se à incerteza queenvolve decifrar uma imagem. Nas suas palavras:

Nenhum sistema figurativo é asimples ilustração do discurso – oral ouescrito –, nem a reprodução fotográficado real. A imagética é uma construção,não um decalque; é uma obra cultural, acriação de uma linguagem que comotodas as outras línguas comporta umelemento essencialmente arbitrário. Apalheta de formas figuradas, que cadacivilização elabora e organiza, a seumodo e estilo, sobre uma determinadasuperfície, surge como um produtofiltrado, uma codificação do real a partirdas modalidades que lhe são próprias.Tal arbitrariedade social é que explica adificuldade em decifrar as imagens ejustifica o projeto de buscar, por meiodelas, os traços específicos de umacultura (Vernant 1984: 5).

Nesse sentido, Bérard e Durand lembra-ram que:

A leitura de uma imagem exige doobservador moderno uma ginásticaintelectual que não é complicada, masque precisa de um treino progressivo; ésempre preciso considerar que nósestamos distanciados das condições queexistiram durante sua elaboração. Nemos textos, literários ou epigráficos, nemas escavações em campo, nem o conjun-to imagético permitem reconstituirtotalmente a conjuntura histórica quetorna compreensível o documento emquestão (...). É na análise das regras queestruturam a combinação que o sentidoda cena aparece progressivamente. Odocumento deve ser inserido em umasérie de imagens e a estas devem sercomparadas às diferentes combinaçõesque regem a nova imagem. Umaimagem isolada tem grandes chances depermanecer muda; uma rede de ima-gens, pelo contrário, quer pelas seme-lhanças ou diferenças que apresentamsuas combinações, começam a forneceras significações. É ai que reside a maiordificuldade da interpretação: para podermedir os desvios diferenciais quedistinguem as imagens e, assim, estabele-cer as regras compositivas obedecidaspelos artesãos, aquele que deseja asdecifrar deve ter, constantemente, emmente o conjunto imagético; essaginástica mnemônica se torna o melhormeio de se abordar as antigas condiçõesde criação (Bérard e Durand 1984: 19, 21).

Algumas vezes, um repertório artísticointervém sob a forma de um programaiconográfico preciso e doutrinário, como nocaso da arte religiosa. Como observou T.Champion:

As representações do passado, quecompreendem a pintura e a escultura, sãocategorias complexas. Elas promovemindagações a respeito do poder de transmi-tir uma mensagem; tais imagens podempermear a sociedade e se tornarem dura-douras se forem continuamente projetadas,repetidas e renovadas, se tiverem a capacida-

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1048

Page 11: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

49

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

de de exercer uma influência e deixar umlegado para além do tempo e espaço, ou daesfera cultural restrita em que foramoriginalmente criadas (…). O foco primordi-al está na produção e disseminação dasimagens, embora isso não possa estardissociado de uma consideração sobre ocontexto político e ideológico (Champion1997: 213).

Como havia notado Hoffman anteriormen-te em relação ao papel da imagética:

Primeiro, e antes de mais nada, existea questão da visualização em geral. Areligião não é uma simples questão dever e acreditar. Ela é mais como umaenciclopédia, na qual certas visões demundo são validadas e preservadas degeração em geração. O mundo invisíveldo mito é compartilhado por meio deimagens, especialmente entre as pessoasque não podem ler. A função daimagem é materializar, equilibrar eestabelecer a ideologia no tempo e noespaço (Hoffmann 1988: 153).

Nesse sentido, Steiner, que pesquisou asesculturas gregas arcaicas e clássicas, propôs que:

Como artefatos-chave na paisagemcultural, as imagens também se desenvol-vem junto das mudanças e desenvolvimen-tos no tempo e espaço. Colocar asimagens nesse contexto mais amplo nospermite recuperar muitas atitudes ecrenças acerca das mesmas, e algumas dasrespostas que elas teriam suscitado.Nenhuma escultura foi erigida sem umafunção a realizar. Seja com intençãoapotropaica, talismânica, admonitória,consoladora, votiva ou comemorativa,estátuas eram, primeiramente e acimade tudo, vistas, não como objetosrepresentacionais ou estáticos (embora suabeleza e qualidade fossem geralmentecruciais ao desempenho de seu papel), mascomo agentes performativos e eficazes,capazes de interagir em uma variedade demaneiras com aqueles que as patrocina-ram e veneraram (Steiner 2001: xii).

Esses eram elementos conhecidos e,certamente, empregados pelos patrocinadoresda arte e das imagens, na difusão dos ideaiscontemporâneos vigentes, quer políticos oureligiosos.

3. O texto e a imagem, a imagem e o texto

Uma outra questão importante e ampla-mente discutida pelos estudiosos da Imagem,diz respeito à confrontação entre as fontestextuais e visuais da Antiguidade.

Ao longo do século XIX, as pesquisasiconográficas foram desenvolvidas sob umaperspectiva que tendeu associar ou submeter aimagem ao texto. Baseada na abordagemfilológico-histórica, na qual a Arqueologia eraconsiderada subordinada à Filologia, a imagemera concebida como mera ilustração das fontesescritas. Se os estudiosos não encontrassemrespostas nas imagens, procuravam-nas nostextos e, se estes não as fornecessem, imagina-vam uma fonte literária perdida.

Nessa época, os arqueólogos imputavamaos atributos um papel determinante nasimagens. Mas, o avanço das pesquisas revelou quenão havia uma relação direta entre imagem etexto e que os atributos não eram determinantes,pois existiam outros fatores envolvidos nainterpretação da imagem, que até então,tinham sido ignorados.

O valor absoluto do atributo que recebeuprimazia entre os eruditos foi discutido porMetzger (1985: 173-179), que resumiu aquestão ao postulado: “a imagem, para aqueleque a produz e para aquele que a recebe,possui necessariamente um sentido preciso einequívoco”. Por vezes, tal sentido escapa àperspicácia do erudito moderno e, nesse caso,o tema permanece desconhecido. Para esseestudioso, diante de um jogo de imagens emque a composição parece clara, mas a sintaxepouco evidente, o arqueólogo encontra-se nasituação do linguista, procurando decifraruma língua morta transcrita em caracteresconhecidos ou, ao encontrar uma linguagemiconográfica incerta, na situação do viajante,cujos interlocutores falam uma língua total-

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1049

Page 12: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

50

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

mente desconhecida. O arqueólogo dosregistros figurativos, que não dispõe de umcódigo de tradução infalível, procede a fazeraproximações e, por vezes, até regredir. Assim,um documento isolado pode não ser compre-endido, mas o surgimento de outro podeampliar a certeza. No entanto, é semprepreciso atentar para a ambiguidade de umatributo e, portanto, na visão desse estudioso,é necessário reduzir o número de seus signifi-cados e reagir com prudência diante damultiplicidade de significantes.

Outro problema interpretativo queexistiu nesse período foi a suposta igualdadeentre documentos imagéticos mais antigos emais recentes, como se estes constituíssemuma mera genealogia iconográfica. Sob ainfluência do Evolucionismo, a Antropolo-gia, a História das Religiões e a ArqueologiaClássica demoraram a perceber que existemmarcos importantes na constituição daimagem e que, muitas vezes, não é possívelinstituir uma filiação direta.

Houve, ao mesmo tempo, um exagero naatribuição da influência da Grande Arte nasartes menores. Toda vez que uma pintura eraestudada em vaso cerâmico, imaginava-se umoriginal escultórico ou uma pintura que teriaservido de modelo, mas que se perdera notempo. No entanto, as pesquisas mais recen-tes verificaram que não se podem compararde forma direta produtos provenientes deproduções intelectuais distintas, muitas vezesproduzidos e dirigidos a diferentes camadasda sociedade. Clermont-Ganneau (1878;1880) foi o primeiro a discutir essas questõese chamar a atenção para a proeminência daimagem ao cunhar o termo mitologia iconográficae iconológica. Mais tarde, o próprio Dugas(1937) redigiu um artigo em que contrapôs atradição literária à gráfica, no qual abordou aimagem como forma de expressão particulare independente da produção textual, cadaqual com modos de produção diferenciados.

O positivismo engendrado pela iconografiadescritiva durante o século XX e que deu ênfaseao formalismo de inspiração estruturalista foi,mais tarde, confrontado a abordagens de cunhoantropológico e semiológico. O componente

social também passou a ser consideradofundamental para análise da imagética grega.Assim, os estudiosos passaram a se interessarpela descoberta dos níveis semânticos por trásdo fenômeno descritivo.2

Nas palavras de Lissarrague e Schnapp:

As imagens não são mera decoração,arbitrária ou gratuita; elas não podemser um produto cultural insignificante(...). As imagens não são o complemen-to figurado de uma realidade social queos textos, mais ou menos, nos revelam.Não há imagem que seja, em si mesma,um documento sociológico; identificarum artesão, um escravo, um meteco,por exemplo, não basta. O que éapresentado são as várias categorias:velhos, mulheres, cavaleiros, hoplitas,por exemplo, que na imagem sãoagentes narrativos, não dados estatísti-cos. Para evidenciar as regras funcio-nais da imagem, único passo possível,devemos utilizar a obra dos linguistas edos teóricos da arte, para tentarconstruir uma semântica da imagemvisual. (...) Tal análise do sistemaicônico conduz ao reconhecimento dotrabalho do imaginário social, o modocomo os gregos se viam. Forneceracesso às representações mentais não éo menor paradoxo dessa pesquisa(Lissarrague e Schnapp 1981: 281).

Nesse sentido, como observou Gombrich(1960: 388-389), a arte “não é apenas uminstrumento de informação, mas também ummeio de expressão”. Entre a língua falada efigurada, sempre haverá essa diferença, umarecorrerá aos signos arbitrários, a outra àsformas que, “por serem simbólicas ou convenci-onais não têm menos fundamento na realida-de, mesmo que já filtradas por representaçõesmentais”.

(2) A partir da década de 80 é que os estudos iconográficostomam novo fôlego. Para uma historiografia ver Lissarraguee Schnapp (1981); Hoffman (1985/6: 61-66) e a chamadaiconologia interpretativa; e também Sarian (1987: 15-48).

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1050

Page 13: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

51

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

A antiga suposição de que as fontesescritas teriam invariavelmente originado orepertório imagético não se confirmoudurante as análises da iconografia grega, e aexistência de uma tradição figurativaindependente da tradição literária,consequentemente, foi atestada. Embora emalguns casos a literatura tenha servido deponto de partida ou fio condutor na produ-ção figurativa, tal premissa revelou-sefalaciosa, pois negligenciava toda a inf luên-cia que não fosse literária.

A pesquisa realizada por Moret (1975),por exemplo, conduziu a essas constatações.Quanto mais se escrutinaram os documentos,menos transpareceu a idéia geralmente aceitade uma primazia absoluta do texto como fontede inspiração da imagem. Ao demonstrar queos pintores trabalharam a partir de fórmulaspreestabelecidas, o estudioso pôde verificar asproporções da suposta influência literária erestituir a parte de criação que coube àtradição figurativa. O fato de elementosintercambiáveis condicionarem a formaçãodas representações lendárias modificousensivelmente a idéia que se fazia da mitologiafigurada. Seu estudo mostrou-se extremamenteinteressante ao verificar que certos procedi-mentos de composição ali analisados revela-ram um modo particular de transmissão eevolução dos mitos em uma zona periférica domundo grego.

No caso da Grécia, cabe lembrar, essadissociação e autonomia entre imagem etexto esteve possivelmente associada ao fatode a religião grega não possuir uma doutrinacanônica rígida. Embora o panteão grego sejao mesmo, a fragmentação política permitiu acada região, seja na Grécia ou em suascolônias, apresentar variações na naturezadas divindades e lhes imprimir característicasregionais próprias e, por vezes, distintas. Talespecificidade acabou por se refletir na artegrega, na qual mestres e artesãos, favorecidospor essa ausência dogmática, puderamexercer uma liberdade criativa e expressivaúnica, que apenas se tornaram cânonesformais durante o período Clássico e Helenístico.No entanto, é preciso lembrar que se tratava

de cânones artísticos, de caráter estético enão-religioso.3

O conhecimento dos textos é indispensá-vel, mas como demonstrou Panofsky (1939: 25-27), não podemos aplicar qualquer texto aqualquer imagem. O fato de um determinadotexto fornecer a melhor chave para interpreta-ção de uma cena não implica necessariamenteque o pintor o tenha utilizado como inspiraçãopara compor sua cena. Além disso, a compara-ção entre imagens e textos serve para evidenciara independência das duas tradições, que semedem, nesse caso, em termos de desviosdiferenciais.

Como observou Bruneau (1986: 266, 174),o problema de considerar a imagem como ailustração dos textos decorria da crença tácitana transparência da imagem, como se ela fossea cópia fiel das coisas que mostra e a transcri-ção visível exata da representação mental queela informava com toda segurança. O estudiosolembrou que nas civilizações sem texto, o gramada imagem é esquecido, mas a Arqueologia,desenvolvida a partir das civilizações com texto,o privilegia a tal ponto que a imagem não passade uma ilustração, um reflexo, um substitutodo texto e, assim, deduz-se que a imagemprocede apenas da linguagem:

A imagem pode proceder tão bemmimeticamente, de um perceptível quenão pode ser concebido, de um vistoque é sempre dizível, e, gramaticamente,de um conhecido que podemos tornarperceptível, de um dito visualizável,porque imageável, portanto, imagético.

(3) Nesse sentido, Shapiro (1994: 7) observou que aimagética do mito grego nunca foi constituída por umdogma religioso como foi a iconografia cristã e, por issopôde ter muito mais liberdade, tanto na escolha do temacomo na forma de representação: “se os gregos escolheramse cercar de imagens, foi mais por uma razão estética quereligiosa”. Como também verificou Meneses (1967: 35), aodiscutir o uso da perspectiva na imagética Clássica, nãohavia na Grécia, como em outra civilizações, entraves a essabusca, pois “o individualismo da vida religiosa grega evitoua formação de cristalizações formais e não pôs obstáculos àespeculação que fazia da natureza, para um grego, e sobtodos os seus aspectos, fundamentalmente e antes de maisnada, um objeto para um exercício da razão humana”.

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1051

Page 14: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

52

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

Ela imita tão bem o visto, que visualizao dito. Se a técnica for colocada de lado,as representações visuais e verbalizadassão, na realidade concreta, muitointimamente mescladas, para que umapreceda ou domine a outra. Por outrolado e, sobretudo do ponto de vista quenos importa, a técnica, sem a qual nãohaverá imagem, pode indiferentementeservir à mimese e ao grama. O esquemanão distingue imagens realistas e imaginá-rias (Bruneau 1986: 175).

Em relação à análise imagética e textual,Steiner propôs uma reconciliação:

Os textos são necessários porqueapenas as fontes literárias contemporâ-neas são capazes de nos fazer entendercomo os gregos conceituavam a escultu-ra; e, as imagens são necessárias aostextos porque, sem elas, não podemoscompreender o papel da escultura –como uma classe de objetos. E, emcertos casos, como um instrumentoliterário utilizado na poesia, retórica efilosofia. A escultura é uma tipologiaúnica, a sua tridimencionalidade, aocupação do mesmo espaço real que oespectador habita, e seu lugar centralnas práticas sociais, políticas, religiosase mágicas, imbuem-na de facetasúnicas. Os textos contemporâneosfornecem informações a respeito daspráticas rituais e tradições anedóticas arespeito das imagens antigas. Textosposteriores possuem mentalidades eprogramas diferentes. Por isso, existe anecessidade de uma abordagem maisampla, em que o todo gere umanarrativa mais coesa e completa dopapel das estátuas na vida cotidiana,nos pensamentos e práticas dos antigosespectadores (Steiner 2001: xiv).

A análise de Shapiro (1994: 6), da mesmaforma, demonstrou que o repertório dopintor possuía um fluxo constante que eraem parte uma resposta ao estímulo externo,como as novas obras literárias ou, mais tarde,

representações teatrais, mas que ao mesmotempo era um reflexo da dinâmica internadessa forma de arte.

Outro estudioso a fornecer uma importan-te teorização sobre a linguagem imagética foiSnodgrass (1982: 5; 1987: 11, 13) que tambémtrabalhou com a linguagem narrativa dasimagens. O autor identificou quatro tiposprincipais de métodos narrativos – sinótico,monocênico, cíclico e contínuo – utilizados noprocesso de construção da imagética grega.Esses modos de narração também são encontra-dos nos repertórios imagéticos das demaissociedades antigas.

O método sinótico é uma convenção pormeio da qual se representa, em um campodelimitado, uma narrativa de episódios quesão sucessivos nas versões orais ou literárias;porém, (condição muito importante) semque uma figura individual apareça duasvezes (o protagonista é apresentado umaúnica vez na cena). Ele envolve a combina-ção de diferentes momentos ou episódios deuma história em uma única representação,na qual não existe unidade temporal oumesmo espacial. A ação é articulada emdiferentes momentos e lugares, exprimindorelações de espaço e tempo com grandeeconomia de meios, mas dotada de riquezasemântica, capaz de garantir articulação ecompreensão. A imagem corresponde a ummomento impossível que não poderia serfotografado.

O método monocênico, por sua vez, é arepresentação de um episódio isolado epreserva a unidade de tempo e espaço, nomomento culminante da ação, tambémchamado fotográfico.

Em seguida, no método cíclico, a narraçãodos episódios se dá por meio de quadrossucessivos, separados fisicamente, com arepetição da figura do protagonista e outrospersonagens em cada cena.

Finalmente, o método contínuo é umavariante do cíclico, no qual não há limitesfísicos entre os episódios individuais. Ele nãofoi uma invenção grega, mas do OrientePróximo e reaparece, por exemplo, na ArteRomana (ver Moret 1975: 299).

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1052

Page 15: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

53

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

4. O tipo de suporte e a linguagem imagética

Embora existam estudos que concebem aanálise imagética como um campo de pesquisaindependente, não necessariamente associadoao seu suporte, cabe notar que os vasos cerâmicosgregos são objetos arqueológicos portadores deimagens (ver Lissarrague e Schnapp 1981: 275; eSarian 1987: 15) e que esse repertório seexpressou e evoluiu de acordo com o suporteque lhe serviu de apoio. Assim, o tipo desuporte em que um conjunto imagético foicriado também merece atenção e sua análisedeve considerar a especificidade de cada tipo deobjeto, edifício, etc.

Como observou Bérard (1974: 47, 51, 163),diferentes da obra de arte que encerra umaqualidade estética de criação original, os vasoscerâmicos na Grécia – objeto principal daspesquisas imagéticas francesas – possuem umaqualidade primária de cunho discursivo – sejaessa de temática mítico-religiosa ou secular. Osceramistas, por sua vez, tinham um repertóriorelativamente limitado de unidades formaismínimas, para transcrever temas muito variados.Essa conceituação, mais tarde, foi explicitadada seguinte maneira:

Os elementos constitutivos daimagem são, portanto, estáveis econstantes. É este que chamamos orepertório de unidades formais mínimas;este repertório é comum a todos osartesãos e conhecido de todos osclientes. Por outro lado, as combina-ções variam. É no nível combinatórioque se obtém o sentido da imagem(...). As unidades figurativas combi-nam-se, entre si, de modo quasemecânico, a fim de produzir umsentido livre, o mais possível, deambiguidade. Nessa perspectiva, arelação de referência com a realidadeimporta menos que a relação designificação. O imagista constrói suaimagem por aproximação à imagética enão em obediência fiel às leis dareprodução, quase fotográfica, da vidacotidiana (Bérard e Durand 1984: 23).

Assim, enquanto os artistas buscavamescapar dessa limitação esquemática do sistemaimagético, renunciando ao procedimentoicônico e recorrendo aos comentários de tipolinguístico, os melhores artesãos eram aquelesque conseguiam, como explica Bérard, bricolaras unidades formais mínimas num esquema,por meio de combinações variadas, até manifes-tar claramente a intenção de comunicação, quedeveria ser o menos ambígua possível. Aexpressão que, nesse sentido, é mais próximada linguagem do que da arte, é obtida a partirde um conhecimento anterior do repertóriodas unidades formais utilizadas pelos artesãospara compor suas imagens.

Bérard (1974: 47, 165) observou que a“estabilidade formal do esquema fixado pelatradição permanece e, mesmo que novassituações surjam, os elementos figurativosconstitutivos provêm de um patrimôniocomum”. Se o artesão suspeitava da ambiguidadede uma interpretação, ele a remediava por meiodo acréscimo de um signo adequado e conheci-do, que chamamos aqui recognitivo, ou seja, quepermitia a leitura correta da imagem. O únicomeio de se chegar a esse objetivo é utilizar asunidades figurativas estáveis combinadassistematicamente.

Assim, para Berárd (1985: 164-166, 168-169), a principal chave de decifração, tanto nonível de criação das imagens quanto no de sualeitura, reside na inclusão de certo número deunidades formais que permitam ao leitoroperar a passagem do esquema ao tema. Osdetalhes das cenas eram, segundo o pesquisa-dor, os detentores do sentido da imagem. Ofuncionamento das unidades formais mínimasdepende do conhecimento prévio do especta-dor – a população precisa conhecê-los paraidentificá-los e, assim, compreendê-los, paraque possa então reconhecer a cena. Taisunidades, que incluem os personagens, seusatributos e gestos, depois de um longo tempo,se tornavam parte da bagagem de toda acoletividade. Um enorme conjunto de imagensdifundiu-se por todas as camadas sociais e aleitura dessas cenas era feita por qualquer umadelas, mesmo sem requinte erudito.

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1053

Page 16: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

54

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

Em alguns casos, as unidades não ocorremem número suficiente para permitir que o temasurja claramente a partir do esquema, ou seja, deforma que a imagem possa ser identificada. Asdificuldades provêm precisamente, acredita oestudioso, das tendências erradas adotadaspelos arqueólogos que procuram descreverapenas aquilo que está relacionado às imagens– o esquema –, ao passo que são as unidadesformais mínimas que criam os elementosdiferenciais geradores dos temas – o sentido.Assim, diferente do sistema linguístico, osistema iconográfico é fechado porque a imensamaioria das unidades formais mínimas,suscetíveis de combinação, não é arbitrária.

A mesma idéia foi compartilhada porMoret (1975: 4), outro estudioso da Imagem,pois “longe de ter um papel passivo o especta-dor também constrói a cena que tem diante dosolhos em função dos esquemas preexistentes”.O conhecimento que ele tem do mito ou que,em alguns casos precisamente, não tem, dita oseu comportamento diante da imagem: eleprojeta sobre a mesma aquilo que já sabe,aquilo que espera encontrar. Nos vasos, oobservador não saberá o sentido se nãoconhecer antes o tema e entender de mitologiagrega para decifrar o conteúdo das representa-ções. Mesmo o especialista, diante de uma cenaque não é descrita nos textos ou cujas fontesnão fornecem um testemunho correspondente,será incapaz de encontrar a chave para ainterpretação. Para esse arqueólogo:

O elemento visual é, sem dúvida,primordial, mas é apenas um modo derepresentação. A imagem tem umasemântica de segundo grau. A leitura ésempre referencial, ou seja, ela remete aum dado que não está inteiramentecontido na imagem. O termo leitura é,nesse sentido, mais que uma metáforana medida em que há uma assimetriaentre a leitura e a visão (Moret 1975: 299).

Tal fenômeno foi explicitado por Barthes,que observou:

A imagem se torna escrita no instanteem que se torna significativa, ao ser

atravessada pelo olhar que se carrega desentido é aniquilada enquanto imagempelo olhar-leitor. No significante mítico,a forma é vazia, mas presente, o sentidoestá ausente e, portanto, pleno. Aimagem tem, de alguma maneira, opapel de catalisador, despertando noespírito mecanismos reminiscentes eassociativos que fazem com que oespectador conecte a cena que temdiante dos olhos a um contexto familiar(Barthes 1970: 195, 209).

Nesse sentido, Sarian observou que:

Na narração e na transmissão demitos e ritos, o pintor imprime nasimagens uma versão que corresponde àscrenças coletivas, aquelas que se cristali-zaram na aceitação popular. O universoimagético tinha, por isto, um grandealcance: inspirado na tradição e voltadopara o grande público estava na conflu-ência dessas direções, o meio propulsore o meio receptor. A tal ponto que parao grego antigo, identificar imagemmítica ou religiosa era reconhecer o seupróprio patrimônio espiritual (Sarian1987: 48).

5. A semântica imagética: continuidade einovação na imagem

O modo como o repertório imagéticoevolui, seja na forma ou significado, sincrônicaou diacronicamente, é algo extremamentepertinente e abordado de modo recorrentepelos estudiosos da Imagem. Assim, a verifica-ção dos elementos intrínsecos ou extrínsecosque condicionam a estabilidade ou as modifica-ções esquemáticas e temáticas e que afetamdiretamente a semântica imagética merecemalgumas considerações.

Como observou Focillon, pode-se concebera iconografia de muitos modos:

Seja como a variação das formassobre um mesmo sentido, seja como avariação dos sentidos sobre a mesma

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1054

Page 17: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

55

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

forma. Um método ou outro traz,igualmente, à luz a independênciarespectiva dos dois termos. Tanto é quea forma exerce uma espécie de magne-tismo sobre os diferentes sentidos, oumais que isso, ela se apresenta comouma concha oca, na qual o homemderrama, de vez em vez, matérias muitodiferentes que se submetem à curvaque as comprime e, assim, obtém umasignificação inesperada. Logo, a rigidezobsessiva do mesmo sentido se apropriade experiências formais que ela nãonecessariamente provocou. Aconteceque a forma se esgota completamente,ela sobrevive por um longo tempo àmorte de seu conteúdo, mesmo que elase renove de uma estranha riqueza(Focillon 1970: 6).

Alguns conceitos da linguística, emparticular as teorias saussurianas, foramutilizados por Moret (1975: 293) comoempréstimos comparativos para análise dalinguagem iconográfica nas cenas presentes emum conjunto imagético. O primeiro deles serefere à diacronia e sincronia. O estudiosoobservou que o arqueólogo tem a sua disposi-ção um material que se estende por muitosséculos e pode, portanto, englobar, em um sóolhar, toda a história de um tema iconográficoe, assim, conhecer não apenas os anteceden-tes, mas também as transformações ulterioresdas cenas que estuda.

A situação dos antigos, no entanto, eraoutra. O costume de enterrar os vasos juntocom os mortos e mesmo o caráter friável daspeças de uso cotidiano as colocava logo forade circulação (ver Hoffman 1985/6: 64;1988: 151-152). Nesse sentido, as geraçõessucessivas de pintores e clientes puderamconhecer somente uma porção ínfima daimensa produção que as escavações recupera-ram. Assim, segundo o Moret (1975: 293),não é adequado lhes emprestar uma visãoque só o erudito de hoje pode ter graças aodistanciamento e à documentação da qualdispõe. Essa é uma observação importante,pois embora o arqueólogo trabalhe com um

registro fragmentário do passado, este mesmooferece, certamente, possibilidades analíticasinteressantes.

A abordagem diacrônica que a Arqueologiautiliza é, portanto, consideravelmente relevantepara evidenciar a criação e evolução do esque-ma, bem como do tema, no conjunto imagético.De início, é necessário pormenorizar a origemdo motivo iconográfico e, em seguida, descre-ver sua aplicação temática. Tal análise permiteesclarecer a relação entre o sentido original deum motivo e as diferentes aceitações que elerecebeu ao longo da evolução. Como lembrouMoret:

A significação de um motivo, emum determinado momento de suaevolução, não depende apenas de suahistória, mas deve ser estabelecida apartir dos documentos contemporâ-neos. A dimensão histórica, por outrolado, permite compreender como ascenas se constituem em seu estadopresente e como atuam sobre asdemais. Muitas vezes, existe umarquétipo, uma representação-modelo, a partir da qual a inf luênciase difundiu e que originou as demaisdentro de sua órbita. Algumas sãoderivadas da primeira. Esse ponto devista genealógico não tem sentido,entretanto, no plano horizontal ousincrônico. Dizer que um motivo estáesvaziado de sentido, ou que seuemprego é inapropriado em determi-nado contexto, só é concebível emuma perspectiva histórica; na ótica dopintor e de sua época, uma asserçãodesse tipo seria imprecisa ou mesmoerrônea (Moret 1975: 294).

Nesse sentido, como lembra Shanks (1997:102), é necessário conceber texto e imagemdialéticos como tangenciais ao passado — umvetor (do presente) que toca o passado noponto do sentido e depois se move paraexplorar seu próprio curso, compartilhando daatualidade, a temporalidade da memória.

Outro conceito proveniente da linguística,emprestado por Moret (1975: 295), diz respeito

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1055

Page 18: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

56

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

às transformações analógicas.4 O princípio daanalogia é aquele que rege a maior parte dastransformações iconográficas. Na própriaimagem deve haver uma afinidade iconográficaque facilite a evolução analógica das duascenas. Essa semelhança pode ocorrer no níveldo mito, como um paralelismo de situação quepermita a convergência das representaçõesfiguradas. Para o estudioso, o caso mais fre-quente é o da associação de idéias – temas –,algumas vezes, no entanto, a similitude formal– o esquema – é suficiente para justificar apassagem de um motivo de uma cena a outra.

Ocorre que a analogia é tanto um fator detransformação e renovação quanto podedesenvolver uma tendência à simplificação e àbanalização, uma vez que opera em favor daregularidade e unificação dos procedimentos deformação e flexão. Nesse caso, ela “remodela,sobre um mesmo paradigma, cenas de origensdiferentes” (Moret 1975: 296). Mas, muitasvezes, também pode empobrecer a linguagemiconográfica, mais que a enriquecer. À medidaque seu emprego se torna mais frequente, ovalor original do motivo se altera. De modoinverso, essa atenuação do sentido originalpermite que ele se adapte a cenas mais numero-sas. Para o pesquisador:

As transformações funcionais podemser explicadas tanto como inovações ouconservadorismo iconográficos: em umsintagma icônico (...) intervêm relaçõescontextuais tão complexas que parecedifícil distinguir entre elas as unidadespertinentes de variantes facultativas, asvariantes facultativas se tornam traçospertinentes e vice-versa, de acordo como código decidido pelo desenhista, oscódigos frágeis fazem parte dos códigosicônicos (Moret 1975: 296).

Assim, de acordo com Barthes, podeacontecer de uma cena lendária ser destituídade seu sentido original para tornar-se apenasum quadro vivo suscetível a receber o conteúdode um outro mito. Aquilo que ele chamou“permutação paradoxal das operações deleitura, a regressão anormal do sentido àforma” (Barthes 1970: 203).

Todavia, Moret (1975: 296) observou que,“de forma geral, é mais fácil constatar oresultado da ação analógica que determinar osmecanismos dessa ação isolando um fenômenopreciso da mutação”. A partir da intençãoestilística inerente à arte, o pesquisadorconsiderou ser difícil conceber que os pintoresda Antiguidade não fossem sensíveis aosimperativos decorativos, pois, segundo ele, épossível demonstrar, em exemplos precisos, quesão justamente as pesquisas ornamentais queconduziram às transformações iconográficas.Embora seja exemplo de inovações individuali-zadas, a cerâmica antiga, justamente por serproduzida em série, esteve exposta, mais quequalquer outro gênero artístico, aos fenômenosde contaminação.

Em relação ao conceito de sinonímia ehomonímia, também emprestado da linguística,Moret (1975: 296-297) observou que o únicotermo de referência que pode ser contraposto àimagem não é a palavra e nem a frase, mas otexto inteiro. Assim, se quisermos seguir acomparação entre linguagem iconográfica elinguagem comum (sic), existe uma dificuldadeque advém do fato de os sinônimos na lingua-gem existirem no nível das palavras ou, nomáximo, das frases. Não é possível dizer quedois textos são sinônimos, mas podem-seimaginar dois textos que exprimem a mesmaidéia ou que contam a mesma história comfrases e palavras diferentes.

No caso da iconografia, o estudioso defineos sinônimos como: “as representações de ummesmo episódio lendário em esquemas gráficosdiferentes” (Moret 1975: 297). Contudo,lembra que é preciso atentar para o fato de quetoda modificação formal – em nível da compo-sição – quase que necessariamente causa umamodificação no sentido da imagem. Assim, no

(4) O estudioso lembrou que Panofsky [“zum Problem derBeschreibung und Inhaltsdeutung von Werken der bildendenKunst” in Aufsätze zu Grundfragen der Kunstwissenchaft, 1964:90-91] já havia demonstrado que a ação da analogia naimagética antiga foi mais marcante que a de qualquer fonteliterária.

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1056

Page 19: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

57

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

jogo de ações e reações exercidas pelo mitosobre a imagem, e da imagem sobre o mito,ocorre a metamorfose de duas entidades. É porisso que o estudioso afirma que na iconografiasó se pode falar de sinonímia em sentidofigurado, situando essa identidade de significa-ção para além da cena representada. A escolhados temas responde a um plano premeditado eas cenas lendárias, em vez do valor em simesmas, convergem em direção a uma mesmaidéia, na qual o sentido se manifestará apenasna unidade do programa ao qual ela serásubordinada.

Em relação ao fenômeno da homonímia,Moret (1975: 298) o descreveu como “asimagens de aspecto idêntico, ou quase idêntico,às quais são atribuídos sentidos distintos”. Oequivalente linguístico seria o da poesia ou dosesquemas métricos fixos, sobrepostos aoscódigos comuns e suscetíveis a receber conteú-dos semânticos diferentes. Na expressão escrita,a precisão não é a mesma, os sentidos secristalizam com a ajuda de elementos ou designos secundários. Na iconografia esses traçosprecisos também existem: são os elementosdecorativos, os atributos ou elementos secundá-rios que permitem estabelecer a situaçãolendária em questão.

Assim, pode-se falar de determinaçãocontextual. Do mesmo modo que na linguagemo sentido de uma palavra depende do contextoem que aparece, na iconografia, um motivopode mudar de acepção de acordo com a cenaem que é empregado. O contexto deve indicarcom clareza sem que reste qualquer dúvida. Acena deve ser lida em sua totalidade para poderprecisar o valor do motivo e determinar aquele,entre os sentidos, que convém à ocorrência. Docontrário, a ausência de todo traço pertinenteconduzirá a uma ambiguidade irredutível.

No momento em que o pintor esboça acena, lembrou Moret, ele também se refere aomito específico, do qual tem um conhecimentomais ou menos preciso. A menos que ele copieuma outra representação figurada, ainda assim,trata-se de uma transcrição por referência: “asinovações ocorrem, quase sempre, nos detalhes,mesmo no caso de uma situação inteiramentenova e, até então, desconhecida, não podemos

provar que o pintor não se inspirou em umatradição literária que não chegou até nós”(Moret 1975: 301). Como vimos, uma origemnas fontes textuais é apenas uma das diferentespossibilidades existentes para a gênese de umarepresentação, prová-la ou não nem sempre estáao alcance do pesquisador.

Autônoma, a tradição figurativa evoluiuindependentemente da tradição literária. Essaliberdade não causou, imediatamente, adesintegração dos tipos nem a ruína da imagéticalendária, mas, nesse processo de fusão epadronização, as cenas foram banalizadas. Orepertório de temas representados torna-sesempre mais restrito em meios novos deexpressão. Aí reside a razão do emprego deesquemas iguais para temas diferentes. Assim,segundo Moret, o fenômeno de sobrevivênciada forma apesar da morte do conteúdo origi-nal, descrito por Focillon, era impossível deacontecer no período de formação da mitologiafigurativa:

Forma e conteúdo ainda não eramelementos independentes, associadosocasionalmente, mas componentesindissociáveis de uma mesma e únicarealidade: a representação. Inseparáveis,os dois termos eram função um dooutro, a significação do episódio eraamplamente condicionada pela maneiracomo era representado e, inversamente,o meio de expressão era ditado por seutema. (...) A variação dupla só é viávelem um estado avançado de evolução, emque os dois termos em jogo, tipo formalde um lado, situação lendária de outro,adquiriram uma rigidez suficiente(Moret 1975, p. 305).

A abordagem de Lissarrague e Schnapp(1981: 285), por sua vez, seguiu outra direção.Para os autores, a imagem não pode ser lidacomo uma mera ilustração – de um texto, deum ritual ou de um evento político –, mascomo um conjunto de signos com sua lógicaprópria. Por isso, lhes interessam as fórmulas,as repetições, mais que os detalhes, ou assingularidades. Assim, o lugar da imagem novaso e sua relação com as demais cenas figura-

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1057

Page 20: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

58

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

das no mesmo vaso, remetem a uma significa-ção tão importante quanto a evolução ou adifusão da própria imagem.

Essas questões remetem aos conceitos deintertextualidade e, por conseguinte, deintericonicidade. A intertextualidade, termocunhado por Kristeva (1967: 438-465), foiutilizada pela linguística para designar ainfluência ou a utilização de um texto, ou deuma multiplicidade de textos, ou excertos detextos preexistentes, que são utilizados comomodelo ou ponto de partida e cuja interaçãoresulta na elaboração de um novo textoliterário. A intericonicidade, por extensão designificado, remete aos processos de produçãode uma imagem, a partir da reutilização deoutra imagem preexistente, ou dos elementosformais de uma imagem na elaboração de umanova imagem. Assim, uma imagem, ou ima-gens, é transportada para outro contextoimagético diferente daquele original e taisrepresentações podem até, nos casos maisextremos, adquirir uma outra significação. Aintericonicidade está, portanto, associada nãoapenas ao contexto de produção artística, noqual se deu sua aplicação, mas também remetea todos os aspectos da dinâmica social, políticae ideológica do período em que se desenvolve.

Nesse sentido, o conceito de intericonicidaderefere-se à assimilação de diferentes padrõesiconográficos, de origem autóctone ou estran-geira, anterior ou contemporânea, em umadeterminada representação ou conjuntoimagético, capaz de criar diálogos distintos dosoriginais e favorecer o desenvolvimento denovos esquemas iconográficos.5

6. Visibilidade e proporcionalidade imagética:a análise proxêmica

Algumas teorias da percepção aplicadas àimagem consideram-na um processo de varre-dura visual que envolve atenção seletiva sobreelementos informativos específicos. Assim,quanto mais visível está um elemento em uma

representação em relação aos demais, maior aprobabilidade de ele ser encontrado e observa-do pelo espectador. A distribuição e visibilidaderelativa dos elementos materiais dessa informa-ção representada podem, portanto, ter umarelação demonstrável com a sua significânciacomunicativa (cf. Molyneaux 1997b: 112).

Acontece, como observou Molyneaux(1997b: 103, 114-115), que a representação dainformação em si é sensível ao estímuloideológico durante a situação da produção.Assim, as forças ideológicas atuantes em umasociedade afetam a posição que o artista tomaem relação a temas específicos e, portanto,influenciam a organização da significação socialnas representações. As representações ampliame reforçam mensagens existentes que aparecemem outras formas. A análise da paisagem social,apresentada pelo autor, decorre do estudo dainteração social e das relações de status presen-tes nas representações visuais, por meio dasquais o artista consegue comunicar o statusindividual das figuras utilizando a forma. Isto é,o esquema formal é utilizado como um instru-mento de estímulo na paisagem metafórica daimagem, como meio de chamar a atenção paraseus aspectos significantes.

O artifício compositivo mais direto ainformar o status e poder da realeza é avisibilidade, pois esta é representada emescala monumental para chamar, numprimeiro momento, a atenção doespectador. Mas o artista recorre aestratégias mais sutis que a escala, paradirigir o olhar do espectador a outroselementos compositivos: o movimento(Molyneaux 1997b: 116-117).

Assim, as diferenças nas relações ideológi-cas presentes no âmbito social são sinalizadaspelas distinções na visibilidade dos respectivosindivíduos ou elementos no campo da arte.Uma análise dos fatores informacionais, externosao significado, favorecem a verificação dosajustes visuais presentes em diferentes situaçõesideológicas, num longo período de tempo.

Segundo Molyneaux (1997b: 122-123), épossível analisar e interpretar a visibilidade relativadas figuras de uma maneira neutra e objetiva,(5) Para uma aplicação dessas teorias, ver Aldrovandi 2006.

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1058

Page 21: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

59

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

simplesmente ao medir e comparar os váriosatributos proxêmicos, ou seja, as representaçõesespaciais das relações sociais das figuras — comoaltura, distância entre uma figura e outra, postura eposição dentro das cenas. A análise proxêmica é oestudo das distâncias físicas que as pessoas estabele-cem espontaneamente entre si no convívio social edas variações dessas distâncias de acordo com ascondições ambientais e os diversos grupos ousituações sociais e culturais em que se encontram,aqui aplicada às representações imagéticas.

A premissa básica dessa análise é que oartista representa a significação de várias pessoase objetos em uma imagem, por meio do aumen-to da sua visibilidade de algum modo material, afim de dirigir a atenção do espectador. Assim, épossível ter uma idéia da mudança de significa-ção ideológica por meio da visibilidade —literalmente medindo e comparando a quantida-de de informação devotada aos indivíduos destatus diferentes em uma determinada cena(Molyneaux 1997b: 125-126). Nos casos em quea cronologia dos conjuntos imagéticos é maisprecisa, esse tipo de análise torna ainda maisclara as variações nas relações sociais impressasnas imagens, pois é possível observar as mudan-ças ocorridas ao longo dos períodos históricos.

7. Considerações finais

As abordagens teóricas apresentadas aolongo deste artigo fornecem uma ampla gamade instrumentos para a análise e interpretaçãodos repertórios imagéticos das mais diferentessociedades antigas. Apesar de formulados, emsua quase totalidade, a partir de estudosrealizados sobre conjuntos iconográficos deorigem grega ou mediterrânea, estes fundamen-tos teóricos podem ser aplicados a qualquerrepertório destas ou de outras civilizações dopassado. A análise imagética possibilita a compre-ensão de aspectos intrínsecos ao modo como essassociedades se auto-representavam. Isto porque,apesar das diferenças e idiossincrasias que cadasociedade pretérita possuiu, as imagens legadaspor estas mesmas obedecem a uma linguagemcujos discursos, se devidamente fundamenta-dos, podem certamente ser evidenciados edecifrados.

Agradecimentos

Ao labeca pelo apoio constante. À FAPESPpelo financiamento da pesquisa.

BANDINELLI, R.B.1961 Archeologia e Cultura. Milano-Napoli.BARTHES, R.1970 Mythologies. Paris: Éditions du Seuil.

ALDROVANDI, C.E.V. Past imagery: theoretical perspectives on the Archaeology ofImage. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

Abstract: Some theoretical perspectives developed by the Archaeology ofImage are presented and discussed in this article, providing a valuable basis foranalyzing and interpreting past iconographic repertoires.

Keywords: Archaeology – Image – Iconography – Semantics – Intericonicity.

Referências bibliográficas

BÉRARD, C.1974 Anodoi – Essai sur l’Imagerie des

Passages Chthoniens. Institute Suissede Rome, Bibliotheca Elvetica

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1059

Page 22: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

60

A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a Arqueologia da Imagem.Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 39-61, 2009.

Romana, XIII. Switzerland: PaulAttinger S.A.

1985 Modes de formation et modes de lecturedes images divines: Aphrodite et Isis à lavoile. In Giraud, E. (Ed.) Eidolopoiia, Actesdu Colloque sur les problémes de l’image dansle monde méditerranén classique, 1982 –Château de Lourmarin en Provence.Rome, Giorgio Bretschneider Ed.:163-71.

BÉRARD, C.; DURAND, J.-L.1984 Entrer en imagerie. In Nathan, F. (Ed.)

La Cité des Images: Religion et Société enGréce Antique. Lausanne, Editions de laTour: 20-34.

CHAMPION, T.1997 The Power of the Picture: the Image of

the Ancient Gaul. In Molineaux, B.L.(Ed.) The Cultural Life of Images – culturalrepresentation in archaeology. London,Routledge: 213-229.

CLERMONT-GANNEAU, C.1878 Mythologie iconologique chez lês Grecs.

Revue Critique, 215-223 et 232-230.1880 L’Imagerie phénicienne et la Mythologie

iconologique chez les Grecs. Paris: ErnestLeroux.

BRUNEAU, PH.1986 De L’Image. Ramage, 4: 249-95.

DUGAS, C.1936 Décoration et imagerie dans la céramique

grecque. Revue des Études Grecques, 49:440-64 [reeditado em Recueil C. Dugas,Paris: Éditions E. de Boccard, 1960].

1937 Tradition litéraire et tradition graphiquedans l’antiquité grecque. L’AntiquitéClassique, 6: 5-26.

FOCILLON, H.1939 La Vie des Formes. L’éloge de la main. Paris:

Denöel.GOMBRICH, E. H.

1960 Art and Illusion: a study in the psychology ofpictorial representation. Bollingen SeriesXXXV: 5. Princeton University Press.

1972 Symbolic Images: Princeton UniversityPress.

HOFFMANN, H.1985/6 Iconography and Iconology. Hephaistos,

7/8: 61-6.1988 Why did Greeks need Imagery? An

anthroplogical approach to the study ofGreek vase painting. Hephaistos, 9: 143-162.

KRISTEVA, J.1967 Bakhtine, le mot, le dialogue et les

roman. Critique, XXIII, 239: 438-65.

LISSARRAGUE, F.; SCHNAPP, A.1981 Imagerie des Grecs ou Grèce des

Imagiers? Le Temps de la Reflexion. Paris,Gallimard, v. 2: 275-97.

MENESES, U.B.1967 Imagem Conceitual e Representação:

observações sobre o mundo da imagemvisual na Grécia antiga. Dédalo – Revista deArte e Arqueologia, Ano III, 5: 26-39, SãoPaulo: Museu de Arte e Arqueologia, USP.

METZGER, H.1985 Sur le valeur de l’attribut dans

l’interprétation de certaines figures dumonde éleusinien. In Giraud, E. (Ed.)Eidolopoiia, Actes du Colloque sur les problémesde l’image dans le monde méditerranén classique,1982 – Château de Lourmarin en Provence.Rome: Giorgio Bretschneider Ed.: 173-9.

MOLYNEAUX, B.L. (Ed.)1997a The Cultural Life of Images: cultural

representation in archaeology. London:Routledge.

1997b Representations and reality in privatetombs of the late eighteenth dynasty,Egypt. In Molyneaux, B.L. (Ed.) TheCultural Life of Images – cultural representationin archaeology. London, Routledge: 108-29.

MORET, J.-M.1975 L’Ilioupersis dans la Céramique Italiote – Les

Mythes et leur Expression Figurée au IVeSiècle. Tome I, Institute Suisse de Rome,Switzerland, Univ. de Genève.

PANOFSKY, E.1939 Studies in Iconology. New York: Harper

Torchbook.1955 Significado nas Artes Visuais. São Paulo:

Editora Perspectiva.SARIAN, H.

1987 A expressão imagética do mito e dareligião nos vasos gregos e de tradiçãogrega. Cultura Clássica em Debate, 6, Anaisdo I Congresso Nacional de EstudosClássicos, UFMG: 15-48.

SARTRE, J.-P.1987 A Imaginação. Coleção Os Pensadores.

São Paulo: Editora Nova Cultural.SHANKS, M.

1997 Photography and Archaeology. InMolyneaux, B.L. (Ed.) The Cultural Life ofImages – cultural representation in archaeology.London, Routledge: 73- 107.

SHAPIRO, H.A.1994 Myth into Art, Poet and Painter in Classical

Greece. London: Routledge.

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1060

Page 23: A imagética pretérita: perspectivas teóricas sobre a ...

61

Cibele Elisa Viegas Aldrovandi

SNODGRASS, A.M.1982 Narration and Allusion in Archaic Greek

Art. J.L. Myres Memorial Lectures.London: Leopard’s Head Press.

1987 La naissance du récit dans l’art grec. InBérard, C.; Bron, Ch.; Panari, A. (Eds.)Images et Société en Grèce Ancienne,L’Iconografie comme Méthode d’Analyse,Actes du Colloque International, Lausanne1984. Institut d’Archéologie et d’HistoireAncienne, Université de Lausanne,Lausanne: 11-18.

SPARKES, B.A.1997 Some Greek images of others. In

Molyneaux, B.L. (Ed.) The Cultural Life ofImages – cultural representation in archaeology.London, Routledge: 130-55.

STEINER, D.T.2001 Images in Mind, Statues in Archaic and

Classical Greek Literature and Thought.Princeton: Princeton University Press.

VERNANT, J.-P.1984 Preface. In Nathan, . (Ed.) La Cité des

Images: Religion et Société en GrèceAntique. Lausanne, Editions de laTour: 4-5.

1990 Figures, idoles, masques. Paris: Julliard.

Recebido para publicação em 25 de maio de 2009.

39-62.pmd 21/04/2010, 17:1061