A importância do álbum "Feminina" de Joyce no cenário das cantora, compositoras e instrumentistas...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA CURSO DE MÚSICA POPULAR LUISA DE ATHAYDE MEIRELLES A IMPORTÂNCIA DO ÁLBUM “FEMININA” DE JOYCE NO CENÁRIO DAS CANTORAS – COMPOSITORAS – INSTRUMENTISTAS BRASILEIRAS

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Tese de conclusão de curso (graduação) de Luisa Meirelles. Referente ao álbum feminina de Joyce e sobre as cantoras, compositoras e instrumentistas brasileiras do final da década de 70.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAESCOLA DE MSICACURSO DE MSICA POPULAR

LUISA DE ATHAYDE MEIRELLES

A IMPORTNCIA DO LBUM FEMININA DE JOYCE NO CENRIO DAS CANTORAS COMPOSITORAS INSTRUMENTISTAS BRASILEIRAS

Salvador

2013

LUISA DE ATHAYDE MEIRELLES

A IMPORTNCIA DO LBUM FEMININA DE JOYCE NO CENRIO DAS CANTORAS COMPOSITORAS INSTRUMENTISTAS BRASILEIRAS

Trabalho de concluso de curso, pr-requisito para a concluso do Bacharelado em Msica Popular, fazendo juz ao ttulo conferido pela Escola de Msica da Universidade Federal da Bahia.

ORIENTADOR: Prof. Pedro Augusto Dias

Salvador2013

RESUMOO final da dcada de 70 no Brasil foi marcado por alguns avanos em relao ao direito das mulheres, o que acabou refletindo no surgimento de diversas cantoras-compositoras e instrumentistas. Contudo a que mais se destacou em relao a apropriao do termo CCI foi Joyce no lbum Feminina. Nesse lbum a artista demonstra habilidade nos trs aspectos (compor, tocar e cantar), e alm disso traz nas letras das msicas novas vises sobre o comportamento da mulher. O presente artigo pretende demonstrar a importncia desse lbum no cenrio de surgimento de novas CCIs e o seu significado para uma nova viso da mulher da poca. A abordagem inclui anlises das composies e arranjos do lbum, alm de Joyce enquanto instrumentista.

Palavras chave: cantoras-compositoras-instrumentistas, novas vises sobre a mulher, lbum Feminina, bandleader, eu lrico feminino.

ABSTRACTIn the second half of 70s decade in Brazil, There was many advancements related to Womans rights, which led in the emergence of several female singers-songwriters-instrumentists (CCI). Although the one that stood out the most regarding to the appropriation of the term CCI was Joyce in her album Feminina. On this album, the artist demonstrates skill in three aspects (Compose, play and sing); besides this, she brings in the lyrics of the songs new perspectives about womans behavior. This article intends to demonstrate the importance of this album in the scene of new CCIss appearance and his meaning to a new perspective about the women of that time. The approach includes analysis of the compositions and arrangements of the album, as well as Joyce as an instrumentist.

Key words: singers-songwriters-instrumentists, womans new perspectives, album Feminina, bandleader, female speaker.

Sumrio1.Introduo62.Biografia de Joyce73.1979: apogeu das cantoras-compositoras-instrumentistas no Brasil104.O conceito do lbum Feminina134.1 A bandleader144.2 A influncia bossanovista164.3 O violo de Joyce19Representao da mulher violonista19Violo e arranjos no lbum Feminina21Temticas das letras e a mulher como eu lrico265.Concluso33Lista de figurasFigura 1 Revendo Amigos....................................................................................................... 17Figura 2 Mistrios.....................................................................................................................17Figura 3 Da cor brasileira.........................................................................................................17Figura 4 Clareana..................................................................................................................... 21Figuras 5 e 6 Mistrios............................................................................................................. 22Figura 7 Feminina.................................................................................................................... 23Figuras 8 Essa Mulher..............................................................................................................24Figura 9 Mistrios.....................................................................................................................24Figuras 10 e 11 Corao de criana..........................................................................................25

1. IntroduoO presente artigo tem por objetivo demonstrar os motivos pelos quais o lbum Feminina (1980), de Joyce Moreno, se destaca no cenrio das outras cantoras - compositoras - instrumentistas do Brasil nas dcadas de 70 e 80. Isto ser feito atravs de anlises musicais e uma breve investigao acerca da imagem da mulher enquanto instrumentista/compositora.

Inicialmente abordarei um pouco da biografia de Joyce Moreno me referindo especificamente ao perodo de incio da carreira da cantora at o lanamento do lbum Feminina. O interesse aqui evidenciar o processo que levou a compositora a produzir esse disco, com foco tambm nas influncias e pensamentos incorporados no seu jeito de compor cantar e tocar. Depois tratarei do contexto histrico/social vivido pela mulher da poca demonstrando como o ano de 1979 pode ser considerado o apogeu das cantoras - compositoras - instrumentistas (CCIs a partir de agora) e quais foram as CCIs que lanaram disco nesse ano.Em seguida explicarei o conceito do lbum em questo, explicitando os motivos pelos quais ele foi escolhido: a presena de Joyce como bandleader em todo o disco, ou seja, assumindo os arranjos de base e a direo musical; a influncia da bossa nova sobre a compositora, o que se revela tambm no lbum; uma viso da mulher violonista/instrumentista no Brasil do sculo XIX; a importncia do violo nos arranjos de base feitos por Joyce e em relao ao arranjo como um todo; e finalmente o tratamento do eu lrico: de que forma Joyce trata a mulher nas letras das msicas presentes no lbum, algumas em primeira pessoa do feminino, traando um comparativo com alguns sambas das dcadas de 30 e 40. 2. Biografia de JoyceJoyce nasceu no Rio de Janeiro em 1948, filha de Zemir Silveira Palhano de Jesus e do dinamarqus Helge Arvid Johnston. Foi criada juntamente com seus outros irmos, frutos do primeiro casamento da sua me, entre eles Newton, treze anos mais velho que Joyce e amigo de grandes nomes da bossa nova, como Roberto Menescal e Eumir Deodato. A partir dos encontros realizados por esses msicos em seu apartamento Joyce, ento com quatorze anos, comeou a tocar os primeiros acordes no violo. Uma das primeiras influncias da compositora foi a bossa nova.

(...) aprendi a tocar violo vendo o meu irmo que era colega do (Roberto) Menescal. A turma do Menescal ia l pra casa, ficavam tocando, e quando saa eu pegava o violo e tentava copiar os acordes. (Joyce, 2000)

Essa influncia se faz presente na sua forma de tocar violo, cantar, compor, e arranjar as msicas, com acordes tpicos da bossa nova. A partir dessa conexo com Roberto Menescal, a cantora participou pela primeira vez de uma gravao em estdio, interpretando a msica Olhos feiticeiros (Pcfico Mascarenhas) no LP do grupo Sambacana de 1964. Nessa mesma poca, com dezesseis anos, Joyce comeou a compor.

Aos dezoito anos, em 1966, iniciou o curso de jornalismo na PUC do Rio de Janeiro e comeou a estudar msica de maneira oficial, com Jodacil Damaceno (violo clssico) e com Wilma Graa (teoria e solfejo).

Em 1967, com 19 anos, Joyce inscreveu sua msica Me Disseram no II Festival Internacional da Cano do Rio de Janeiro. A repercusso da cano foi bastante polmica, principalmente devido ao verso: J me disseram que o meu homem no me ama, o que era incomum pra poca, quando nenhuma compositora havia utilizado a primeira pessoa do singular no feminino dessa forma, como eu lrico em uma cano. A expresso meu homem, poderia inclusive ser tomada como uma expresso utilizada por prostitutas.

Eu apareci num festival em 67, cantando: J me disseram que meu homem no me ama..., essa expresso "meu homem" - que eu j tinha visto tantas vezes em Billie Holiday e Edith Piaf - causou uma celeuma. (...) Srgio Porto, o homem das Certinhas do Lalau, me meteu o pau: "Isso msica de bordel!" Das pessoas da velha gerao, s Fernando Lobo me defendeu. No festival, tomei uma vaia poderosssima.(Ibidem)

Essa msica assinala como, desde ento, Joyce tentava incluir a mulher na msica como personagem atuante e no simplesmente passivo nas letras das canes. Joyce estava disseminando a ideia da mulher atuante, a mulher que compe sua prpria msica, toca e canta, e que pode ser o eu lrico da sua prpria cano. Em 1968 gravou seu primeiro LP pela Philips, Joyce. Esse disco continha msicos ainda pouco conhecidos no cenrio musical brasileiro, mas que viriam a se destacar mais tarde, como Paulinho da Viola, Marcos Valle, Francis Hime, Caetano Veloso, Jards Macal, Toninho Horta e Ronaldo Bastos. O disco contava com seis composies da cantora, uma delas, No Muda No, com msica e letra compostas por ela:Se eu quisesse arranjar um maridoNo tinha escolhido de te adorarIa ser mais castigo que prmioUm homem bomio pra eu sustentarMas por favor, eu no quero te mudarNo muda, noDeixa assim que t bom, deixa ficarEu sozinha na minha cozinhaEsperando a vizinha pra conversarE voc t desaparecidoCom algum amigo em qualquer barMas por favor, eu no quero te mudar (...) (Joyce, 1968)

A msica no atingiu grande sucesso, mas possvel notar que a letra extremamente subversiva para a dcada de 1960, quando, de maneira geral, a mulher exercia o papel de dona-de-casa e seu maior objetivo era se casar. Essa foi uma das primeiras msicas da cantora, e j traz a marca que culminaria no disco Feminina, anos mais tarde: a mulher falando como mulher, mostrando seus desejos e receios sem nenhum medo de desafiar a sociedade.Em 1975, a cantora substituiu o violonista Toquinho em uma turn com Vincius de Moraes. Mesmo aps a volta de Toquinho, ela continuou fazendo parte da turn. Joyce, alm de j ser reconhecida como cantora e como compositora, comeou a ser reconhecida tambm como instrumentista, ou seja, ela no apenas se acompanhava, como tambm era capaz de acompanhar outros cantores.A partir de 1979 artistas importantes comearam a gravar msicas de Joyce, como Elis Regina, Milton Nascimento, Boca Livre, Maria Betnia, Quarteto em Cy e Nana Caymmi. Em seguida a cantora gravou a maioria dessas msicas de sucesso no seu prximo LP, Feminina. importante perceber que Joyce se destacava no somente como cantora, mas tambm como compositora e violonista; sendo assim ela um timo exemplo de CCI bem sucedida, e alm de tudo, traz um novo olhar sobre a atitude feminina, que pode tambm ser a de quem atua como produtora de ideias compositora e de quem se coloca como prprio agente da ao, atravs do eu lrico feminino.

3. 1979: apogeu das cantoras-compositoras-instrumentistas no BrasilO cenrio poltico-cultural na dcada de 1970 no Brasil, ainda mais do que hoje, era dominado pela presena masculina; contudo, nessa mesma poca, houve o apogeu do movimento feminista, deflagrado na dcada de 1960 em todo o mundo. No final dos anos 1960, com fatores como o avano tecnolgico e a criao dos anticoncepcionais, a mulher ganhou maior liberdade sexual e passou-se a discutir mais amplamente a questo da virgindade, tema ainda polmico para a poca. Segundo Faour (2006), existiam dois tipos de mulher, a que era virgem e preservava a sua virgindade e a que cedia mais facilmente s investidas dos namorados.

(...) a mulher ainda era vista como uma casta e tinha de ser preservada at o casamento. Se alguma delas cedesse a uma cantada mais pesada, servia pra transar, mas no pra casar, ou seja, o dilema da santa para o lar e da puta para a rua que ainda hoje persiste no imaginrio masculino. (p.135.)

Na dcada de 1970, em plena ditadura militar, o movimento feminista tomou maiores propores. Em 1975 foi criado o Centro da Mulher Brasileira (CMB), rgo responsvel por intermediar e articular os objetivos feministas em forma de aes coletivas. O CMB incentivou seminrios e pesquisas sobre a condio da mulher, o que resultou em publicaes de artigos e livros sobre o tema. Em 1977 foi instaurada uma CPI dirigida a investigar a situao dos direitos trabalhistas para as mulheres, que sofriam pela falta de condies de trabalho e recebiam salrios muito inferiores aos dos homens.

Entre as dcadas de 1960 e 1980, surgiram algumas CCIs, principalmente cantoras-compositoras, que agora j se utilizavam da linguagem em primeira pessoa do feminino sem maiores problemas, como Joyce e Vanusa. importante ressaltar que at ento a maioria das letras das msicas, feitas inclusive por mulheres, eram extremamente machistas e colocavam a mulher sempre como a culpada de uma separao, ou ento como objeto de desejo do homem. Este tpico ser abordado mais adiante, quando falarei sobre o disco Feminina.

Contudo, como demonstrarei, o ano de apogeu das cantoras-compositoras-instrumentistas foi o de 1979. As razes para essa culminncia so diversas; entre elas o fato de que o AI-5 (Ato Institucional n 5), que implantou a lei de censura, foi encerrado justamente nesse ano, ampliando a liberdade de expresso no meio cultural. Outro grande marco para a tomada de uma nova viso da mulher foi a srie televisiva Malu Mulher, transmitida pela Rede Globo de Televiso a partir de maio de 1979. Nessa srie, o personagem Malu, interpretado pela atriz Regina Duarte, uma mulher que decide se separar do marido e retomar a sua vida, seu trabalho, sua independncia, e acima de tudo, se redescobrir. Nessa srie so abordadas questes polmicas, como divrcio, aborto, homossexualidade, e at mesmo a representao do orgasmo feminino. Ainda segundo Faour (2006), nessa poca o divrcio continuava sendo algo mal visto pela sociedade uma espcie de derrota, j que o papel da mulher ainda era o de manter o casamento. Um exemplo ilustrativo o da cantora-compositora Vanusa, que enfrentou dificuldades logo aps se separar do cantor e compositor Antnio Marcos, e no conseguiu alugar um apartamento, pois era desquitada (Faour, 2013).

Foram muitas as CCIs lanando discos nesse ano de 1979: Angela Ro ro, Ftima Guedes, Rita Lee, Marina Lima, Luli & Lucinha e Sueli Costa. Com exceo de Sueli Costa e Rita Lee, esses foram os primeiros discos de todas elas. Contudo, veremos adiante as caractersticas que resumem o motivo da escolha do disco Feminina de Joyce, entre outros discos.

Segue tabela dos discos lanados por algumas das CCIs citadas acima:

CCIAnoDiscoN de faixas em que tocouN de faixas que arranjou N de faixas autoraisN total de faixas

Ftima Guedes1979Ftima GuedesNoNo1010

Joyce 1980Feminina10101010

Marina Lima1979Simples como fogo5No610

Sueli Costa1979Loua FinaNoNo1212

Rita Lee1979Rita Lee3No88

Tabela 1 Discos de CCIs lanados em 1970/1980.

4. O conceito do lbum Feminina

A respeito das CCIs do final da dcada de 1970 e dos seus respectivos discos, possvel afirmar que o disco Feminina foi justamente a culminncia de todos os aspectos que caracterizam uma CCI e incentivam uma maior independncia e afirmao da mulher no campo musical e social. Seguem os pontos que levaram escolha desse lbum.

Feminina foi o quinto lbum da carreira de Joyce Moreno; contudo, segundo ela mesma, foi visto como o seu lbum de estreia pelo pblico: esse disco foi um divisor de guas na minha histria, Embora eu tenha comeado a carreira nos anos 60, muita gente pensa que esse o meu primeiro trabalho (apud Casaletti, 2010). Feminina foi o disco mais autoral da compositora e do qual ela participou de forma mais ativa em relao aos anteriores, j que alm de compor todas as msicas tambm cantou, tocou e fez os arranjos de base todo o disco. Alm disso, o lbum revelou os maiores sucessos da carreira de Joyce; algumas msicas j tinham sido gravadas por grandes nomes da msica brasileira: Essa Mulher, gravada por Elis Regina em 1979, Da Cor Brasileira, gravada por Maria Bethnia em 1979, Mistrios, lanada por Milton Nascimento em 1978 e regravada pelo Boca Livre em 1979. Outras canes que no haviam sido gravadas alcanaram grande sucesso aps o lanamento do disco, como Feminina e Clareana (o primeiro grande sucesso da artista).

A temtica das letras do disco gira em torno principalmente da mulher, da feminilidade, das novas caractersticas no comportamento da mulher, da liberdade sexual, da redescoberta do que ser feminina. Estes aspectos esto presentes tanto nas letras das msicas feitas em primeira pessoa do feminino quanto no prprio posicionamento de Joyce enquanto CCI, como veremos em seguida. A ideia de um disco tratando sobre a questo da mulher, de como ela mesma se via e de como era vista pela sociedade, era algo novo para poca. certo que, como se v na tabela acima, muitas CCIs lanaram discos em 1979, mas nenhuma delas ousou tanto quanto Joyce em Feminina, ao contemplar o lbum com a temtica da mulher e adotar uma nova postura como mulher dentro do universo musical: a de bandleader.4.1 A bandleaderComo vimos, uma das caractersticas principais que levou escolha do lbum em questo a participao de Joyce como instrumentista e como arranjadora de base (violo, baixo e bateria). Esse um aspecto importante, pois revela que Joyce era de fato instrumentista e no apenas se acompanhava e compunha com o violo, como tambm participava efetivamente das gravaes como violonista. Segundo o compositor Mrio Adnet, Joyce e o seu violo eram inseparveis:

Ela aprimorou muito essa coisa de tocar e cantar junto. um violo bem elaborado, s vezes complexo sim. Mas ela fez essa caixinha de msica, essa coisa de tocar e cantar uma coisa inseparvel, tanto que quando ela grava, ela grava sempre violo e voz junto; Joo Gilberto tambm, uma coisa inseparvel o violo da voz. (Adnet, 2012).

O papel de bandleader, ou seja, aquele responsvel pelas decises musicais da banda, tem sido na maioria das vezes delegado aos homens, aos compositores, instrumentistas, cantores, arranjadores. Ter uma mulher frente da banda, como lder, ainda algo novo e ousado. Muitos msicos inclusive duvidavam da capacidade da prpria Joyce nesse papel:[...] a mulher instrumentista, aquela que toca, compe msica, faz arranjo, lidera banda, est de certa forma se apropriando da batuta (coisa mais flica) masculina, e isso, diante dos msicos, homens na grande maioria, tambm sempre incomodou bastante. Durante muitos anos, essa foi outra questo com a qual precisei lidar, e custou muito para que eu pudesse trabalhar com msicos que aceitassem normalmente essa liderana. Foi preciso provar muita coisa no dia-a-dia, por anos e anos, at que isso passasse a ser encarado de forma natural. (Joyce, apud Faour, 2006.)

Outras CCIs citadas acima tambm tocaram em seus lbuns, como Rita Lee e Marina Lima; contudo elas no tocaram em todas as faixas nem assinaram como arranjadoras dos seus discos. Joyce demonstrou, atravs de Feminina, que a mulher tambm capaz de assumir o papel de bandleader, de arranjadora e diretora musical.

4.2 A influncia bossanovistaDesde o incio da sua carreira musical Joyce conviveu de perto com participantes da primeira e da segunda gerao da bossa nova. Vincius de Moraes, Tom Jobim, Roberto Menescal, Eumir Deodato, Toquinho, Chico Buarque, entre outros msicos, faziam parte da sua convivncia diria (Joyce, 1997). Esse foi um dos fatores que a influenciou e a levou a compor e tocar dentro do gnero bossa nova. Assim como no Jazz americano ou na msica impressionista, a harmonia bossanovista utiliza um sistema de substituio de acordes mais simples (trades), por acordes mais modernos, dissonantes (Gava, 2002). Essa foi uma caracterstica bastante utilizado por Joo Gilberto, um dos cones da bossa nova, em canes da dcada de 30 no Brasil. Se em questo interpretativa e em modo de cantar podemos identificar tendncias precursoras da BN nos anos 30, o caso da harmonia no seria de antecipao precursora, mas sim de preservao, por parte da BN, de tendncias harmnicas originais ampliadas, modernizadas por notas acrescentadas (quartas e stimas, aumentadas e diminutas, e/ou maiores e menores), pelo uso mais frequente de subdominantes substitutas e pela ampliao das harmonias acrdicas das dominantes (nona, dcima primeira e dcima terceira maiores e menores), uma camuflagem das funes bsicas pela adio de notas e acordes desdobrados (...)(Duprat, apud Gava, 2002. p. 16 )No lbum Feminina podemos apontar algumas canes em que h utilizao desse tipo de harmonizao bossanovista, tais como: Feminina, Da Cor Brasileira, Mistrios e Revendo Amigos. Em todas essas faixas h acordes com o baixo alterado, dominantes substitutos, acordes com extenses alteradas e/ou notas acrescentadas (alm da ttrade). A seguir (figuras 1 a 3) alguns trechos de msicas que se utilizam desses elementos mencionados acima.

Figura 1 Revendo Amigos. Compassos 5-7.

Figura 2 Mistrios. Compassos 1-4.

Figura 3 Da cor brasileira. Compassos 6-9.

A importncia dos elementos violo (harmonia e conduo rtmica) e voz tambm evidente no lbum em questo, j que, mesmo com a presena de outros instrumentos nos arranjos, esses fatores esto sempre interligados e dependentes um do outro. Este conjunto era de grande importncia para Joo Gilberto:Com a anlise da arquitetura sonora de Joo Gilberto, por exemplo, v-se que o cantar baixinho respondia a exigncias do prprio relacionamento voz/violo, uma vez que ritmo e harmonia, muito mais elaborados e complexos, levavam a um cantar bem mais controlado e preciso, j que o que importava ressaltar era o conjunto, as relaes timbrsticas, rtmicas e de contraponto. (Gava, 2002, p. 91)

Joyce menciona a importncia de Joo Gilberto e do seu jeito de cantar/tocar para a sua carreira musical, o que demonstra a grande influncia que a compositora sofreu da bossa nova: Joo era meu guru, minha Pedra da Roseta, meus Dez Mandamentos. Mas era tudo isso de longe. Dediquei anos de minha vida a decifr-lo e aprend-lo, e consegui. (Joyce, 1997, p. 172).Vale ressaltar aqui a complexidade da harmonia nas msicas do lbum, que se revela atravs do uso de extenses (alteradas ou no) ou uso de modos e acordes de emprstimo modal, acordes alterados e dominantes substitutos. Isso corrobora a ideia de que Joyce no s tocava, cantava e compunha, como tambm utilizava recursos harmnicos relativamente avanados.Essa harmonia um pouco mais elaborada tambm diferencia Feminina dos outros lbuns da tabela 1. Das CCIs listadas, talvez a nica a utilizar esse tipo de harmonia foi Ftima Guedes, em canes como Mais Uma Boca, Onze Fitas, Meninas da Cidade, entre outras. Contudo, como veremos a seguir, Existem outros fatores que diferenciam o lbum Feminina.4.3 O violo de Joyce Representao da mulher violonistaAqui vale ressaltar o que representava, do ponto de vista social, uma mulher violonista, tendo como referencial o sculo XIX no Brasil. Esse um ponto relevante na medida em que valida a representatividade de Joyce enquanto violonista, em um meio que ainda hoje carece de representatividade feminina. Durante o sculo XIX no Brasil a educao musical das mulheres era voltada quase absolutamente para o instrumento piano. Esse era um smbolo de status e refinamento social. (...) o piano era o centro dos saraus domstico-familiares, onde as moas luziam seus dotes cantando, tocando piano e recitando poesias, preferencialmente em francs. (...) (Porto et Nogueira, 2007, p. 4).Mulheres violonistas, contudo, no eram bem vistas pela sociedade. O violo por si s era um instrumento malvisto, quase sempre nas mos de negros e mulatos, e smbolo de boemia e malandragem: No entanto, observamos distintas consideraes, representaes e simbolismos frente prtica musical realizada por mulheres pianistas e mulheres violonistas. Se observamos que as primeiras associavam sua imagem a um instrumento bem aceito e valorizado socialmente, as ltimas conviviam com os ecos da associao do violo como instrumento menos reconhecido, instrumento de malandro. (Ibidem, p. 4)

At ento o violo era tido como um instrumento totalmente voltado para a msica popular; talvez tambm por isso, era renegado pela elite. No entanto, a imagem do instrumento comeou a ser redefinida com a chegada ao Brasil da violonista espanhola Josefina Robledo, aluna do compositor Fernando Trrega. O curioso que essa modificao se deu atravs de uma mulher. Robledo trouxe um outro significado ao violo no Brasil, que passou a ser visto como instrumento concertista, digno da ateno dos intelectuais.

Referimo-nos festejada virtuose espanhola, Exma. Sra. D. Josephina Robledo, violonista de raro valor e que, no dizer do Jornal do Comrcio do Rio de Janeiro, de uma virtuosidade brilhante, de extraordinria nitidez de execuo, conquistando para o violo uma ateno digna, uma considerao elevada e uma nobre hierarquia". (...) V-se ento que os dedos finos de sua mo aristocrtica parecem asas que farfalham e adejam, comunicando hino de amor e emoes de vida, nas cordas de um instrumento vulgar, que ela nobilita... (...) (Jornal O Rebate, em 28 de setembro de 1918. apud Porto, Nogueira, 2007.)Atravs deste trecho da matria do Jornal O Rebate, a ressignificao do violo feita atravs de adjetivos ligados intrprete, Josefina Robledo. Os smbolos usados so extremamente ligados ao feminino - (...) os dedos finos de sua mo aristocrtica, parecem asas que farfalham e adejam , referindo-se delicadeza com que tocava o violo, que era tido como um instrumento vulgar, que ela nobilita. Ainda segundo Porto e Nogueira, - as damas representavam o que de mais elegante e delicado havia na sociedade (...), o que nos leva a considerar que a elevao do status do violo se relaciona diretamente com o papel da mulher na sociedade. O fato de essa ressignificao ser feita atravs de uma mulher, no entanto, no implicou em uma mudana total na perspectiva da sociedade em relao mulher violonista. Desde ento muitos violonistas importantes surgiram no Brasil com o passar do tempo, contudo poucas mulheres se destacaram no meio como, Rosinha de Valena, Badi Assad e Helena Meirelles (viola caipira), entre outras. Nesse contexto, Joyce se apresenta como uma das poucas mulheres que na poca (dcada de 80), podiam ser consideradas instrumentistas. As CCIs citadas na tabela 1 so consideradas instrumentistas na medida em que tocaram em seus discos; contudo, no que se diz respeito ao histrico de carreira de cada uma delas, Joyce foi sem dvida a que mais se destacou nesse sentido, pelos motivos j listados. A importncia de Joyce enquanto instrumentista ser demonstrada a seguir.

Violo e arranjos no lbum FemininaUm dos traos mais marcantes do disco o fato de que os arranjos de algumas msicas so derivados do arranjo primrio feito no violo. Em algumas faixas do disco, o riff criado no violo por Joyce seria suficiente para caracterizar a cano, sem necessidade de componentes adicionais. Esse o caso principalmente das msicas Clareana, Mistrios e Feminina. Em Clareana, a melodia abaixo (figura 4) se repete diversas vezes, na introduo, e sempre no refro:Figura 4 Clareana. Complementando o arranjo, uma segunda e terceira vozes so adicionadas melodia gradualmente ao longo da cano, alm de um outro violo realizando uma segunda melodia na regio mais aguda do instrumento. Em Mistrios, o arranjo do violo est presente em toda a msica de diferentes formas. Na introduo, o violo executa a mesma melodia que a voz enquanto a guitarra pontua os acordes da passagem (figura 5):Figura 5 MistriosNa parte A e suas variaes (A, A, A, A), os acordes so realizados sempre da mesma forma, na regio intermediria do violo. Contudo, na coda se d a maior parte do arranjo feito para o violo, que novamente acompanhado da voz na linha meldica (figura 6):Figura 6 MistriosEm Feminina, o violo no delineia nenhuma linha meldica, mas a nfase repetida da mesma clula rtmica/harmnica na parte A da cano denuncia o arranjo do violo:

Figura 7. FemininaOs arranjos das msicas no lbum so de certa maneira minimalistas, no sentido de que utilizam poucos elementos, ou utilizam alguns elementos de forma pontuada e sucinta. Como j dito, os arranjos de base foram feitos pela prpria Joyce; as flautas e as cordas foram arranjadas por Fernando Laporace e Gilson Peranzzetta. Nas faixas em que h presena de cordas de orquestra, o arranjo realizado de modo com que a orquestra no se sobressaia em relao melodia principal. O que acontece, na maioria das vezes, a presena de uma cama harmnica; ou seja, no h contraponto meldico, apenas a sustentao dos acordes, como acontece por exemplo em Revendo Amigos. Em Essa Mulher, o arranjo de cordas surge como elemento surpresa, j na segunda metade da cano, realizando uma cama harmnica (figura 8):Figura 8 Essa Mulher. Esse arranjo possui uma caracterstica acumulativa, ou seja, os elementos so adicionados aos poucos e retomados quando necessrio. Esse um trao presente em algumas canes ao longo do disco. Em Mistrios, o mesmo acontece, os elementos so adicionados aos poucos. As cordas aparecem no meio da msica, fazendo algumas linhas meldicas e logo depois desaparecem, retornando apenas no final:

Figura 9 Mistrios. Para as flautas h um tratamento diferenciado nos arranjos, mas que em algum momento aparece tambm como cama harmnica. As flautas incluem elementos alusivos algumas vezes aparecem para ressaltar alguma temtica, como por exemplo em Banana e Aldeia de Ogum, que acentuam uma caracterstica indgena, j em Corao de Criana criam um elemento infantil. Alm disso, h canes em que as flautas apresentam partes especficas em um arranjo instrumental, como em Corao de Criana:Figura 10 Corao de Criana. Compassos 1-4.

Figura 11 Corao de Criana. Compassos 43-50.

Em outras msicas h apenas o arranjo de base, como em Feminina, Clareana e Aldeia de Ogum. Todos feitos exclusivamente por Joyce. Temticas das letras e a mulher como eu lricoFazendo uma retrospectiva das letras do cancioneiro da Msica Popular Brasileira, veremos que de uma forma geral, o papel da mulher na sociedade estava muito bem estabelecido. Como ressalta Faour (2006), At a dcada de 60, antes do movimento feminista, a mulher era a responsvel pelo lar, pelo bem-estar do seu marido e dos seus filhos, e quando desviava um pouco do seu papel, seja se interessando por outro homem ou reclamando sobre a situao de explorao a que estava submetida, era tratada como perdulria ou at prostituta. No existia voz para a mulher, que tinha que se resignar sua condio e ao seu marido.A cano Cozinheira Gr-Fina, de S Roris, retrata com preciso a situao da mulher na dcada de 40, vista como empregada do seu marido:

A minhas condies agora vou dizerPrimeiramente aviso, no quero saberDe lavar panelas e varrer cozinhaNo sou uma qualquer e guardo certa linhaE louca por cinema eu sou de naturezaE gosto de um moreno que um colossoAdoto o sistema da semana inglesa Aos sbados eu saio depois do almooSou empregada sindicalizada E quero frias, quero os meus papisNo sou nada exigente, trezentos mil-ris Vou querer de ordenado, pago adiantado!-- Ento eu lhe fao uma contrapoposta? mais negcio eu me casar consigoQue a senhora trabalha pra mim de graa!(S Rris, apud Faour, 2006)

Ou ainda a cano Emlia, de Wilson Batista e Haroldo Lobo, que traz a perfeita representao do que se esperava de uma mulher na poca: Quero uma mulher que saiba lavar e cozinharE de manh cedo me acorde na hora de trabalharS existe uma e sem ela eu no vivo em pazEmlia, Emlia, Emlia...no posso mais(Wilson Batista e Haroldo Lobo, apud Faour, 2006)

Novamente segundo Faour (2006), as letras dos sambas mais famosos eram machistas e refletiam o comportamento da sociedade da poca. As msicas e as letras eram escritas em sua grande maioria por homens, e muitas vezes cantadas por mulheres, que se sujeitavam situao pelo fato de no existir um repertrio que estivesse atento perspectiva feminina, ou mesmo que no fosse to machista.Essa realidade foi se modificando aos poucos. Durante as dcadas de 40, 50 e 60 as letras passaram a ser menos machistas e um pouco mais solidrias com as mulheres. Contudo, no existia o costume de uma mulher compor uma msica com a letra em primeira pessoa do feminino. Alguns compositores trouxeram a perspectiva da mulher em suas msicas como Milton Nascimento e Fernando Brant Maria, Maria e Chico Buarque Olhos nos Olhos, contudo, no temos indcios de que isso havia sido feito por uma mulher. Como j dito, Joyce foi pioneira em escrever letras com o eu lrico feminino, j em 1968. O lbum Feminina retomou essa caracterstica composicional da artista, alm de trazer um novo olhar sobre a mulher, que ainda na dcada de 80 enfrentava dificuldades em relao a sua liberdade de expresso e de como era vista pela sociedade como visto no tpico 3. necessrio enfatizar que a importncia do disco se d no s pela nova perspectiva em si, mas tambm pelo fato de a perspectiva ser autenticamente de uma mulher. Uma mulher escrevendo no feminino ainda era algo ousado para poca, apesar de j ter sido feito antes, pela prpria Joyce e por outras compositoras, como Vanusa (Faour, 2006). O prprio ttulo do lbum em questo uma homenagem mulher e ao mesmo tempo uma provocao a respeito do que ser feminina. A primeira msica do disco, homnima ao ttulo, traduz essa questo:

- me, me explica, me ensina, me diz o que feminina?- No no cabelo, no dengo ou no olhar, ser menina por todo lugar.- Ento me ilumina, me diz como que termina?- Termina na hora de recomear, dobra uma esquina no mesmo lugar.Costura o fio da vida s pra poder cortarDepois se larga no mundo pra nunca mais voltar- me, me explica, me ensina, me diz o que feminina?- No no cabelo, no dengo ou no olhar, ser menina por todo lugar.- Ento me ilumina, me diz como que termina?- Termina na hora de recomear, dobra uma esquina no mesmo lugar.Prepara e bota na mesa com todo o paladarDepois, acende outro fogo, deixa tudo queimar

Essa uma das letras mais significativas do lbum nesse sentido. Podemos inferir dela diversos elementos o que acontece uma discusso entre me e filha sobre o que ser feminina. Nessa discusso a prpria me, figura mais velha, portanto mais experiente, admite que o ser feminina no relativo ao esteretipo imaginado No no cabelo no dengo ou no olhar, figuras relacionadas aparncia (cabelo). Outro elemento presente na letra a constatao de que o ser feminina um ciclo que passa por geraes (me e filha) e continua a mesma coisa Termina na hora de recomear, dobra uma esquina no mesmo lugar. Joyce conta sobre a sua experincia pessoal em relao vaidade e ao que seria ser feminina:(...) Eu passei a infncia ouvindo a minha me dizer: Joyce, voc no feminina, vai se arrumar minha filha, vai botar um batomzinho, vai pintar sua unha, tira esse jeans, tira esse tnis. E a vida inteira era isso voc no feminina. Mas acontece que ento, de certa forma, foi uma maneira de eu dizer a ela que os parmetros, a construo da identidade feminina no era o cabelo ou o dengo ou o olhar, era outra coisa. (Joyce, 2010)Outro ponto que merece ateno o fato de que, apesar de defender um novo posicionamento da mulher, a autora no apoia um ponto de vista totalmente feminista, na medida em que mantm, em parte, o comportamento que se esperava da mulher prepara e bota na mesa com todo paladar, depois acende outro fogo, deixa tudo queimar, insinuando que logo depois de cozinhar (tarefa domstica), a mulher se entregaria ao prazer.Outra cano de destaque no disco a faixa Essa Mulher - gravada por Elis Regina antes mesmo de Joyce, em 1979, tambm ttulo do lbum da cantora. De manh cedo essa senhora se conformaBota a mesa, tira o p, lava a roupa, seca os olhosAh. como essa santa no se esquece de pedir pelas mulheresPelos filhos, pelo poDepois sorri, meio sem graaE abraa aquele homem, aquele mundoQue a faz assim, felizDe tardezinha essas menina se namoraSe enfeita se decora, sabe tudo, no faz malAh, como essa coisa to bonitaSer cantora, ser artistaIsso tudo muito bomE chora tanto de prazer e de agoniaDe algum dia qualquer diaEntender de ser felizDe madrugada essa mulher faz tanto estragoTira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o barAh, como essa louca se esqueceQuanto os homens enlouqueceNessa boca, nesse choDepois parece que acha graaE agradece ao destino aquilo tudoQue a faz to infelizEssa menina, essa mulher, essa senhoraEm que esbarro toda horaNo espelho casual feita de sombra e tanta luzDe tanta lama e tanta cruzQue acha tudo natural.(Joyce e Ana Terra. Essa Mulher. 1980)

O eu lrico, atravs do uso potico da terceira pessoa, conta sobre as diversas personalidades vividas por ela. A primeira personalidade a de uma senhora, uma dona-de-casa, responsvel pelo bem-estar dos filhos e do marido. Ela est conformada com a situao de explorao em que vive e tambm smbolo de mulher crist Ah, como essa santa no se esquece de pedir pelas mulheres, pelos filhos, pelo po. Ou seja, essa primeira imagem nos remete uma mulher santificada, devota ao lar, o padro exato de comportamento esperado pela sociedade. Conforme vai passando o dia, essa mesma figura se transforma em uma menina, vaidosa e sonhadora, que almeja uma vida mais feliz - De tardezinha essa menina se namora, se enfeita, se decora, sabe tudo, no faz mal. Essa personalidade se mostra um pouco diferente da primeira, pois ousa sonhar com algo diferente da sua realidade, no entanto entende-se que durante essa parte do dia ela estaria sozinha e no se expondo para os outros, o que seria uma total subverso. A terceira personalidade, a mulher age de uma forma totalmente diferente da primeira figura. Ela parece uma pessoa despudorada e bomia De madrugada essa mulher faz tanto estrago, tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar. Essa terceira figura parece no ter medo ou vergonha de se expressar tirando a roupa, ou virando a mesa do bar, mais que isso, ela incita o desejo de outros homens que no seu marido Ah como essa louca se esquece quantos homens enlouquece nessa boca, nesse cho. A letra de Essa Mulher, escrita por Ana Terra, traz uma mulher real, ou seja, uma mulher capaz de ser santa e puta ao mesmo tempo. A primeira personalidade, a da senhora, um exemplo do que a mulher deveria ser para a sociedade. As outras duas figuras, a menina e a mulher, so extenses da personalidade da senhora. importante entender que apenas a primeira personalidade era adequada para a sociedade da poca final da dcada de 1970, quando o lbum foi produzido portanto, nesse sentido, a letra de Essa Mulher pode ser considerada vanguardista.A prxima cano que retrata o ponto de vista feminino Da cor Brasileira tambm letra de Ana Terra, gravada por Maria Bethnia em 1979.De quem falo me acha direitaSe casa comigo, se rola e se deitaMe namora quando no deviaE quando eu queria me deixa na mesaDe quem falo me fala macioE finge que entende o que nem escutouMe adora e me quer to somenteEnquanto o que mente o que acreditouEsse homem que passa na ruaQue encontro na festa e me vira a cabea aquele que me quer s suaE ao mesmo tempo que eu seja mais umaDe quem falo ele feio e bonitoMais velho e menino, meu melhor amigo o homem da cor brasileiraA loucura e besteira que dorme comigo(Joyce e Ana Terra. Da cor brasileira. 1980)

Essa letra retrata o olhar de uma mulher sobre o homem brasileiro. Trata-se de um ponto de vista feminino em relao ao que ela espera daquele homem, como ela o enxerga; a mulher, personagem da letra, mostra seus desejos Esse homem que passa na rua, que encontro na festa e me vira a cabea (...) e como desejada pelo homem aquele que me quer s sua e ao mesmo tempo que eu seja mais uma. Apesar de denotar um certo machismo da poca, esse verso nos permite deduzir que a mulher em questo aceita ser s mais uma, ou seja, no precisaria se casar para ter relaes com um homem. importante perceber que o principal desejo do eu lrico em questo se relacionar com esse homem, o casamento e a fidelidade, at ento objetivos principais das mulheres, no esto presentes no texto.

5. ConclusoTendo em vista todos os fatores expostos acima, pude concluir que a importncia de Joyce e do lbum Feminina no cenrio das CCIs das dcadas de 70 e 80 se deu por alguns fatores principais: o fato de que a cantora se destacou tambm como compositora e principalmente como instrumentista; digo principalmente como instrumentista, pois esse foi o grande diferencial de Joyce em relao s outras CCIs, que apenas acompanhavam algumas de suas canes em seus discos. Em Feminina, a violonista demonstrou como o instrumento era um elemento importante no disco, j que foi um dos fatores principais na elaborao dos arranjos. Outro motivo para a escolha foi a complexidade musical com que Joyce compunha suas msicas, que como demonstrado, sofreram grande influncia da bossa nova. O terceiro motivo foi o fato de que a concepo do disco est ligada ao feminino. Um dos fatores que me fez escolher esse tema foi justamente a escassez de CCIs na msica popular brasileira; ou seja, a questo de gnero est explcita na pesquisa que realizei. O fato de Joyce ter se utilizado da primeira pessoa do feminino em suas msicas, e alm disso ter abordado vrias questes ligadas a uma nova imagem da mulher, sugeriu a importncia desse disco para as mulheres, compositoras, instrumentistas, artistas da poca, que ainda enfrentavam desafios em relao liberdade de expresso.A postura de Joyce foi a de quebrar certos paradigmas sobre o que a mulher representava para a sociedade da poca e de que forma ela deveria se comportar. Seja no campo musical ou atravs das letras das msicas, Joyce provocou um enfrentamento dos padres vigentes. Demonstrei por exemplo que o papel de bandleader, quase sempre ligado ao masculino, foi incorporado por Joyce no lbum em questo. possvel listar alguns nomes de CCIs no cenrio musical atual. O nmero de CCIs cresceu bastante com o passar do tempo; contudo, ainda no chega perto do nmero de CCIs homens. Atravs desse artigo pretendi resgatar a importncia de um lbum relativamente esquecido e que marcou uma gerao de CCIs justamente pela postura de Joyce em relao mulher musicista, a mulher no papel comumente visto como pertencente ao universo masculino. Alm disso, demonstrar a complexidade musical do lbum, seja em relao originalidade dos arranjos e do tratamento da harmonia.

Referncias bibliogrficas

FAOUR, Rodrigo. Histria sexual da MPB: a evoluo do amor e do sexo na cano brasileira. [s.l.] Editora Record, 2006.JOYCE. A mulher da transio. Revista Bundas, [s.l.], n.30, 2000. Entrevista concedida a Ziraldo.GAVA, Jos Estevam. A linguagem harmnica da Bossa nova. So Paulo, Editora Unesp. 2002PORTO, Patrcia Pereira; NOGUEIRA, Isabel Porto. IMAGEM E REPRESENTAO EM MULHERES VIOLONISTAS: algumas reflexes sobre Josefina Robledo. [s.l]. 2007.JOYCE. Disco Feminina, lanado por Joyce h 30 anos, ganha verso em CD. Revista poca, [s.l], 2010. Entrevista concedida a Danilo Csalletti.JOYCE. Fotografei voc na minha rolleyflex. Rio de Janeiro, MultiMais Editorial, 1997.

MsicasNo muda no (Joyce). Gravao de Joyce no LP Joyce (Philips/1968).

LP Feminina (EMI Odeon/1980):Revendo amigosMistriosDa cor brasileiraClareanaEssa MulherCorao de crianaBananaAldeia de Ogum

Cozinheira granfina (S Rris). Gravao de Carmen miranda no 78 RPM 11.777-a (Odeon/1939).

Emlia (Wilson Batista e Haroldo Lobo). Gravao do 78 RPM 55.302-a (Columbia/1941).

VdeosEntrevista com Mrio Adnet ao programa O som do vinil:SOM do vinil. Produo do Canal Brasil e Bravo Produes. Canal Brasil, 31/05/2012. Disponvel em: http://globotv.globo.com/canal-brasil/som-do-vinil/v/joyce-e-o-album-feminina/1972662/. Acesso em: 16/07/2014.HISTRIA sexual da MPB. Produo de Rodrigo Faour. Canal Brasil, 10/06/2013. Disponvel em: http://canalbrasil.globo.com/programas/historia-sexual-da-mpb/videos/2626378.html. Acesso em: 22 de abril de 2014. Referncia discogrficaConjuto Sambacana. Sambacana. (Odeon), 1964.GUEDES, Ftima. Ftima Guedes. (EMI/Odeon), 1979.LIMA, Marina. Simples como fogo. (WEA), 1979.COSTA, Sueli. Loua Fina. (EMI/Odeon), 1979.LEE, Rita. Rita Lee. (Som Livre), 1979.