A Importância Do Símbolo Para a Compreensão Da Religião e Da Arte Segundo Carl Gustav Jung
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Transcript of A Importância Do Símbolo Para a Compreensão Da Religião e Da Arte Segundo Carl Gustav Jung
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Universidade Federal de Juiz de Fora
Ps-Graduao em Cincia da Religio
Mestrado em Cincia da Religio
Hermenegildo Ferreira Giovannoni
A IMPORTNCIA DO SMBOLO PARA A COMPREENSO DA RELIGIO E DA
ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG
Juiz de Fora
2009
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Hermenegildo Ferreira Giovannoni
A IMPORTNCIA DO SMBOLO PARA A COMPREENSO DA RELIGIO E DA
ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio, rea de concentrao: Filosofia da Religio, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Sidnei Vilmar No
Juiz de Fora 2009
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Giovannoni, Hermenegildo Ferreira.
A importncia do smbolo para a compreenso da religio e da arte
segundo Carl Jung / Hermenegildo Ferreira Giovannoni. 2010. 116 f.
Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio)Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.
1. Religio. 2. Smbolos bblicos. I. Ttulo.
CDU 2
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Hermenegildo Ferreira Giovannoni
A IMPORTNCIA DO SMBOLO PARA A COMPREENSO DA RELIGIO E DA
ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio, rea de Concentrao em Filosofia da Religio, do Instituto de Cincias Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Religio.
Aprovada em 31 de agosto de 2009.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Gross
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________ Prof. Dr. Paulo Afonso Arajo
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________ Prof.dr. Maria Glria Dittrich Universidade do Vale do Itaja
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AGRADECIMENTOS
Agradeo ao CNPQ pela bolsa concedida, a qual me permitiu realizar as disciplinas do curso de mestrado e a pesquisa para esta dissertao. Meus sinceros agradecimentos ao professor Afonso Rodrigues, do IAD, que desde o incio do meu curso de graduao forneceu-me incentivo e orientao fundamentais para prosseguir nos estudos paralelos sobre arte, religio e simbolismo. Agradeo tambm aos amigos que me apoiaram de diversas maneiras durante a realizao deste trabalho: Juliane, Isabella, Wanessa, Tatiene, Patrcia, Alexandro, Lcia Helena, Rosani e Schubert. Agradeo tambm de forma especial aos amigos Maryanna, Ioneide e Guimares, que me ajudaram de forma decisiva, providencial e abnegada na realizao deste trabalho. Meus agradecimentos aos professores do PPCIR, com os quais cursei as disciplinas que me propiciaram os fundamentos tericos necessrios para efetuar esta pesquisa. Sou grato aos psiclogos Paulo Bonfatti e Snia Regina, que se disponibilizaram prontamente a esclarecer diversas dvidas referentes psicologia analtica. Agradeo especialmente ao meu orientador Dr. Sidnei Vilmar No, pela ateno conferida minha pesquisa e pelo interesse e dedicao em solucionar minhas dvidas e em esclarecer meus questionamentos. Agradeo pelo incentivo a prosseguir sempre nas minhas hipteses, a despeito de prejulgamentos, e por sempre confiar em meu potencial, mesmo nos momentos em que tal confiana mostrou-se imerecida.
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RESUMO
Partindo da hiptese de uma fundamentao comum entre religio e arte no mbito da vida
anmica do ser humano, esta dissertao pretende realizar um estudo do conceito de smbolo
na psicologia analtica, desenvolvida por Carl Gustav Jung, na medida em que esta considera
tanto os fenmenos artsticos quanto os religiosos como simblicos. O primeiro captulo
fornece uma anlise dos principais conceitos indispensveis compreenso da idia de
smbolo, partindo das primeiras formulaes tericas e chegando at seu delineamento final.
O segundo captulo discorre sobre a aplicao do conceito de smbolo anteriormente analisado
aos aspectos psicolgicos da criao e da fruio artsticas e da experincia religiosa.
Palavras-chave: smbolo, inconsciente, arte, religio, psicologia analtica, C. G. Jung.
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ABSTRACT
Starting with the hypothesis of a common foundation for religion and art in the context of the
psychical life of human beings, this dissertation intends to realize a study of the concept of
symbol in the analytical psychology developed by Carl Gustav Jung, to the extend that it
regards both the artistic and the religious phenomena as symbolical. The first chapter provides
an analysis of the main concepts needful to the understanding of the idea of symbol,
beginning with primary theoretical formulations and coming to their final delineation. The
second chapter deals with the application of the previously analyzed concept of symbol to the
psychological aspects of artistic creation and fruition, and of religious experience.
Keywords: symbol, unconscious, art, religion, analytical psychology, C. G. Jung.
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SUMRIO
1 INTRODUO ..................................................................................................... 07
2 ASPECTOS TERICOS DO SMBOLO NA PSICOLOGIA ANALTICA.. 14
2.1 O CONCEITO DE SMBOLO NA TEORIA DOS COMPLEXOS....................... 14
2.2 PENSAMENTO DIRIGIDO E NO-DIRIGIDO.................................................. 20
2.3 O CONCEITO DE SMBOLO E AS FUNES PSQUICAS............................. 25
2.4 O CONCEITO DE SMBOLO E PONTO DE VISTA ENERGTICO ................ 40
3 O SMBOLO NA RELIGIO E NA ARTE ...................................................... 61
3.1 SMBOLOS E CRIAO ARTSTICA ................................................................ 61
3.1.1 Arte e teoria dos complexos .................................................................................... 61
3.1.2 Pressupostos fundamentais da abordagem psicolgica: arte .................................. 63
3.1.3 Os gneros das obras de arte ................................................................................... 69
3.1.4 Arte simblica na psicologia analtica .................................................................... 75
3.2 SMBOLO E EXPERINCIA RELIGIOSA .......................................................... 84
3.2.1 Pressupostos fundamentais da abordagem psicolgica: religio ............................ 84
3.2.2 Simbolismo e experincia religiosa ........................................................................ 85
3.2.3 Religio e conceitos fundamentais de psicologia analtica ..................................... 89
3.2.4 O simbolismo religioso e o processo de individuao ............................................ 98
4 CONCLUSO ....................................................................................................... 105
REFERNCIAS .............................................................................................................. 113
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1 INTRODUO
amplamente reconhecida a linha de continuidade histrica e terica entre a
psicanlise de Freud e a psicologia analtica de Jung. A teoria freudiana constitui o quadro de
referncia inicial para o desenvolvimento do pensamento do jovem Jung; alm disso, Freud
foi comentador de seu trabalho clnico e terico: em 1906, Jung enviou-lhe um exemplar de
seu Studies in Word Association, fato que iniciou uma ampla e importante troca de
correspondncia entre ambos (SAMUELS, 1988, p. 165). reconhecido tambm que,
inicialmente, Freud considerou Jung no somente como seu discpulo mais bem-dotado,
como tambm o mais importante, seu prncipe coroado, o homem destinado a levar sua obra
adiante no futuro (PALMER, 2001, p. 118). A ruptura entre ambos ocorreu somente em
1912, ano em que Jung publica o seu Wandlungen und Symbole der Libido (posteriormente
intitulado Smbolos da Transformao), trabalho no qual explicita pontos definitivamente
divergentes em relao psicanlise e que constituram o ncleo da nova cincia denominada
psicologia analtica.
A teoria de Jung, portanto, herdeira direta da de Freud, devido ao pioneirismo deste
na explorao do mbito psquico denominado inconsciente. Segundo Jung (1995, p.524), a
pesquisa de Freud acerca dos complexos conjuntos autnomos de contedos psquicos com
forte carga emocional representou a verdadeira descoberta do inconsciente. Mas, apesar dos
fundamentos bsicos de ambos serem compartilhados, a psicologia de cada um seguiu
caminhos diversos e muitas vezes opostos. Smbolos da Transformao , sob muitos
aspectos, a obra decisiva no desenvolvimento da psicologia junguiana e, portanto, de uma
nova compreenso da mente consciente (PALMER, 2001, p.125).
O primeiro e mais importante ponto de divergncia entre os autores refere-se crtica
de Jung em relao ao papel central que Freud concedia ao instinto sexual, ou pulso sexual, e
s experincias sexuais infantis. As reservas de Jung em considerar as neuroses como devidas
unicamente questo sexual j aparecem em artigos e cartas anteriores a 1912 (ibid., p. 123).
Mas nesta data que Jung elabora explicitamente um novo conceito de libido, que no se
refere mais a uma energia de carter sexual, sendo uma energia psquica de carter muito
mais amplo, podendo assumir aspecto sexual, mas tambm muitos outros, to ou mais
importantes quanto esse. Portanto, Jung abandona a teoria sexual de Freud e adota um
modelo energtico, que tornou possvel identificar a expresso energia psquica com o
termo libido (JUNG, 1986b, p. 122-123), que se refere agora a um impulso no-especfico,
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um valor energtico que pode transmitir-se a qualquer rea, ao poder, fome, ao dio,
sexualidade, religio, etc. (JUNG, 1986b, p. 124).
O ponto de vista energtico da libido empregado por Jung, segundo ele, permite uma
abordagem do funcionamento da psique em termos finalistas, e no causais, como na
psicanlise de Freud. Nos termos de Jung (1984, p. 22):
A concepo finalista v as coisas como ordenadas a um fim. Um exemplo muito fcil o da questo da regresso: causalmente, a regresso condicionada pela fixao na me, por exemplo. Finalisticamente, entretanto, a libido que regride imago da me, para a descobrir as associaes da memria, atravs das quais a evoluo pode passar de um sistema sexual, por exemplo, para um sistema espiritual.
nesse sentido que Jung denomina o mtodo causal freudiano de redutivo, enquanto
ao seu prprio mtodo finalista denomina sinttico ou construtivo. Referindo-se ao aspecto
causal, ele afirma que jamais explicaremos exaustivamente por ele a psicologia do
indivduo, tambm por ele nenhum fato psicolgico poder ser explicado, pois como
fenmeno vivo, est sempre umbilicalmente vinculado continuidade do processo vital, de
modo que sempre algo realizado, mas tambm algo a se realizar, algo criador (JUNG,
1991, p. 410). Todas essas transformaes da energia e dos contedos psquicos, segundo o
aspecto finalista, devem-se justamente ao dos smbolos, que assim despem-se de seu
determinismo sexual.
Por outro lado, no mbito da psicologia, o termo smbolo constitui tradicionalmente
sinnimo de signo, indicando uma expresso ou contedo que posto no lugar de outro, o que
lhe confere, primordialmente, uma funo apenas substitutiva. A partir desta acepo
alegrica, o smbolo passa a ocupar freqentemente uma posio rebaixada em relao aos
outros signos, a linguagem simblica seria expresso de um pensamento primitivo - no
sentido pejorativo - ainda no desenvolvido, permeado de analogias estticas e elementos
afetivos, tal como aparece no mito, sendo este entendido como tentativa frustrada de
explicao objetiva dos fenmenos. J o pensamento racional seria expresso por uma
linguagem composta por signos abstratos, depurados de quaisquer elementos que possam
comprometer sua lgica intrnseca.
A psicanlise freudiana, de certa forma, adotou esta concepo substitutiva e
depreciativa do smbolo sua teoria, conferindo-lhe um papel apenas defensivo e
dissimulador, constituindo-se ento de uma representao indireta, destinada a ser superada e
ultrapassada em favor de uma representao superior. De fato, Freud utiliza mais o termo
sintoma do que propriamente smbolo, ele prioriza o adjetivo simblico para caracterizar as
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formas de representao indireta tpicas do sistema inconsciente, regidas pelos mecanismos de
deslocamento, condensao, sobredeterminao e figurabilidade (LAPLANCHE, 1992, p.
483). Esses mecanismos atuam sobre as representaes de pulses sexuais recalcadas,
deformando-as para que se tornem compatveis com o ego; so, portanto, formaes
substitutivas que ocultam elementos inconscientes. Ao sentido manifesto, portanto, ope-se
um sentido latente, e a tarefa do analista ser decodificar esses simbolismos por meio de uma
interpretao retrospectiva. Afinal, o smbolo na psicanlise considerado mormente em seu
aspecto patolgico ou regressivo.
A abordagem de Jung, por outro lado, ao considerar o inconsciente como uma forma
ativa e autnoma de pensamento, confere ao smbolo no um significado preciso e consciente,
mas uma forma prpria de constituir significao. Os smbolos adquirem grande importncia
na economia psquica do indivduo, pois so capazes de ativar e transformar grande
quantidade de energia. Eles no constituem apenas formaes substitutivas, que esto no lugar
de um contedo original, mas possuem uma legitimidade prpria, ou seja, a funo simblica
segue leis especficas de elaborao de contedos no inconsciente, ao mesmo tempo em que
estabelece uma ponte com os contedos da conscincia, os signos. Para Jung, os smbolos so
elementos muito mais abrangentes, em termos de significao, que os signos; estes so
cristalizaes de um aspecto daqueles, tendo em vista que a conscincia opera por
diferenciao e excluso, enquanto o inconsciente opera por conjuno e unificao. Os
smbolos atuam promovendo sentido vida humana, proporcionando motivaes e
convices especialmente frente aos sofrimentos, morte e s contradies. Se for possvel
afirmar, de maneira geral, que o smbolo a forma de expresso da psique inconsciente, ou
seja, constitui a linguagem prpria do pensamento simblico, torna-se evidente a extrema
importncia do estudo dos smbolos para a compreenso da dinmica geral da psique, tanto
em pessoas normais quanto em neurticos, e para a compreenso dos distrbios psquicos e da
teraputica em geral.
De acordo com Jung a religio, enquanto um fenmeno psquico, deve ser
considerada segundo a acepo original do vocbulo latino religere; uma acurada e
conscienciosa observao daquilo que Rudolf Otto (...) chamou de numinoso (JUNG, 1980,
p. 3). Dessa forma, a religio seria a atitude do esprito humano caracterizada por uma
considerao e observao cuidadosas de certos fatores dinmicos concebidos como
potncias (ibid., p. 4).
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Essas potncias correspondem, de acordo com Jung, aos arqutipos, estruturas
fundamentais caractersticas, sem contedo especfico e herdadas desde os tempos mais
remotos (JUNG, 1980, p. 524). So, portanto, padres inconscientes de estruturao de
contedos psquicos, em si mesmos irrepresentveis, tornando-se evidentes apenas em suas
manifestaes, sendo por esse motivo que, inicialmente, Jung faz referncia aos arqutipos
pelo termo imagens primordiais. De acordo com Jung (1986b, p. 49), o fato psquico Deus
um tipo autnomo, um arqutipo coletivo (...). Por isso no s existe em todas as formas
superiores de religio, mas aparece tambm espontaneamente em sonhos individuais. J o
arqutipo constituiria uma formao psquica inconsciente, mas que tem existncia real,
independentemente da posio tomada pelo consciente, uma existncia anmica, que como
tal no pode ser confundida com o conceito de um Deus metafsico (loc. cit.). Para Jung,
portanto, a imagem de deus produzida, na psique, pela libido (energia psquica) atravs de
modelos arquetpicos, gerando a experincia de uma fora anmica to poderosa que leva
reverncia. Essa energia, por ser inerente ao arqutipo, isto , ao inconsciente, no est
nossa disposio (ibid., p. 75), disposio do ego consciente.
Por isso, as estruturas arquetpicas que constituem o inconsciente coletivo so
experienciadas como um agente externo conscincia, fogem ao seu controle e possuem uma
forte carga emotiva que sobrepuja a vontade do ego. Por isso, a experincia dos arqutipos
corresponde experincia do numinoso, do divino. Segundo Jung (ibid., p. 74), os seres
oriundos dessa estrutura arquetpica sempre foram qualificados como divinos, deuses.
Para Samuels (1988) os deuses podem ser considerados comometforas de comportamentos
arquetpicos e mitos como encenaes arquetpicas.
Por outro lado, a experincia dos arqutipos s se d atravs dos smbolos. De fato,
os smbolos refletem a dinmica do inconsciente, em especial a do inconsciente coletivo, o
smbolo no uma alegoria nem um semeion (sinal), mas a imagem de um contedo em sua
maior parte transcendental ao consciente (JUNG, 1986b, p. 67). Assim, o smbolo formula
um fator essencialmente inconsciente, ou ainda operacionaliza a participao do
inconsciente (idem, 1991, p. 446). Justamente por constiturem a linguagem tpica da psique
inconsciente, os smbolos possuem uma significao extremamente rica e abrangente, que
nunca se deixa exaurir ou definir com exatido (Idem, 1998, p. 189). A compreenso racional
no capaz de definir um smbolo de maneira completa. Por outro lado, os sinais ou signos
apontam diretamente para uma idia consciente, dessa forma, um
sinal sempre menos do que a coisa que quer significar, e um smbolo sempre mais do que podemos entender primeira vista. Por isso no
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nos detemos diante de um sinal, mas vamos at o objetivo para o qual aponta; no caso do smbolo, porm, ns paramos porque ele promete mais do que revela (JUNG, 1997, p. 215).
De fato, Jung faz uma diferenciao entre o modo de pensamento no-dirigido e o
dirigido. Este movido por motivos conscientes e voltado para a adaptao realidade
objetiva. A linguagem correspondente a esse pensamento a dos signos, pois seu sentido
determinado de forma consciente, por conveno. J o pensamento no-dirigido, ou
pensamento-fantasia, pertence esfera do inconsciente, e sua forma de expresso a
linguagem simblica, que traduz diretamente sentimentos e emoes. Assim, os smbolos so
antes uma realidade vivencial, e no um conceito ou abstrao tpicos do signo; deve-se viver
os smbolos, e no refletir sobre eles. Para Jung (1991, p. 117), as funes racionais so, de
acordo com sua natureza, incapazes de criar smbolos, so capazes de criar apenas signos ou
sinais. Por outro lado, o smbolo no deixa de ser tambm racional, pois se compe de dados
de todas as funes psquicas, tanto as racionais (pensamento e sentimento) quanto as
irracionais (sensao e intuio), o que caracterstico do mbito indiferenciado do
inconsciente. O smbolo possui um lado que fala razo e outro inacessvel razo, pois no
se constitui apenas de dados racionais, mas tambm de dados irracionais (ibid., p. 447).
Ainda de acordo com Jung, a arte mobiliza na psique humana os mesmos
mecanismos simblicos, ele considera uma obra de arte simblica cuja origem (...) deve ser
procurada naquela esfera da mitologia inconsciente, cujas imagens primitivas pertencem ao
patrimnio comum da humanidade (idem, 1985, p. 68). Dessa forma, no processo criativo, o
artista atualiza de forma plstica ou literria as estruturas arquetpicas do inconsciente
coletivo. Nesse sentido, pode-se afirmar que Jung prioriza, em sua investigao psicolgica,
no tanto o artista enquanto indivduo, mas o processo criador. Se o fundamento psquico da
criao artstica est no impulso que brota do inconsciente, tal procedimento mostra-se
coerente, e todo o tratamento consciente ao qual o artista submete sua obra (no descartado,
obviamente, os aspectos conscientes da criao artstica), como acrscimos, subtraes,
substituies, efeitos ou observaes de determinadas leis de estilo, reveste-se de importncia
secundria. De acordo com Jung (ibid., p. 65), nas obras de arte, sua linguagem prenhe de
sentido grita para ns que elas significam muito mais do que dizem. Podemos indicar o
smbolo de imediato, muito embora no sejamos capazes de desvendar seu significado para
nossa plena satisfao, o smbolo na arte, assim como no mito, sempre um desafio nossa
reflexo e compreenso.
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Por isso, o processo criativo consiste em uma ativao inconsciente do arqutipo e
numa elaborao e formalizao na obra acabada (JUNG, 1985, p. 71). A obra de arte, em
Jung, reveste-se de um carter eminentemente simblico, a atividade artstica possui como
caracterstica principal o fundamentar-se na fantasia (ou imaginao ativa), ou seja, uma
atitude orientada para a percepo de contedos inconscientes (idem, 1991, p. 407), o que
caracteriza a funo intuitiva. Por isso Jung afirma que o artista no mero apresentador,
mas criador e, por isso, educador, pois suas obras tm valor de smbolos que prefiguram as
linhas do desenvolvimento futuro (ibid., p. 411). Assim, o conceito de smbolo tal como
formulado pela psicologia analtica, no mbito da psique humana, se relaciona tanto ao
fenmeno religioso quanto ao artstico, tornando-se um elemento essencial no
desenvolvimento da anlise psicolgica desses fenmenos culturais. Entre arte e religio
estabelecida uma relao originria, pois tanto a linguagem religiosa quanto a artstica devem
ser entendidas e analisadas enquanto linguagens simblicas, de origem inconsciente.
Percebe-se, portanto, o lugar de destaque conferido ao pensamento simblico em
Jung. Segundo ele, a energia psquica resultante da represso dos smbolos pode se tornar
muito prejudicial ao equilbrio psquico. Jung chega a afirmar (1997, p. 260), de forma oposta
a Freud, que o pensamento racional, em sua pretenso de constituir a totalidade da psique,
nossa iluso dominadora. Segundo ele, as grandes religies do mundo ajudam os homens e
mulheres a realizarem o seu pleno desenvolvimento psquico, isto , o processo de
individuao. Elas atuam como base segura e orientao para que o indivduo possa ativar
essa poderosa fonte de energia psquica, o numinoso, sem ser consumido por ele. Por isso, a
atuao dos smbolos, atravs das experincias religiosa e artstica, fundamental para o
pleno desenvolvimento psquico do indivduo e da coletividade. Ao contrrio, em Freud, a
presena do smbolo indica desequilbrio e conflito, pois, segundo ele, a defesa somente se
torna patolgica quando sujeita aos mecanismos do inconsciente, ou seja, quando se torna
simblica. J para Jung justamente a ausncia da funo simblica no indivduo, devido a
uma atitude unilateral da conscincia, que provoca todo tipo de distrbios e complicaes.
Dessa forma, a viso positiva de Jung em relao ao papel da religio e da arte no
desenvolvimento humano geral incontestvel. Mais uma vez, pode-se contrap-lo a Freud,
j que este afirma serem religio e arte satisfaes substitutivas, construdas pelo psiquismo
humano para suportar os problemas da vida e lidar com o desamparo, determinadas
principalmente pelo mecanismo da sublimao. Assim, ambas estariam reduzidas, no contexto
da psicanlise, a uma questo dos destinos da pulso sexual. Enquanto satisfaes
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substitutivas elas so consideradas iluses em contraste com a realidade. A arte seria, para
Freud, uma iluso incua e benfica, ou seja, no representa perigo por no possuir a fora
necessria para invadir o mbito do real; e a religio uma iluso de imenso poder, mas
destinada ao desaparecimento conforme o avano da cincia. Por isso, a psicologia analtica
foi, e ainda permanece sendo, uma fonte de influncia para artistas, estudiosos e crticos de
arte; como afirma Souriau (1995, p. 917), a psicologia junguiana recobre mais amplamente o
domnio da arte e explica melhor a grande diversidade dos artistas do que outras abordagens
psicolgicas.
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2 ASPECTOS TERICOS DO SMBOLO NA PSICOLOGIA ANALTICA
2.1 O conceito de smbolo na teoria dos complexos
As primeiras consideraes de Jung acerca do conceito de smbolo se do no
contexto de sua teoria dos complexos. Segundo ele (1999, p. 55-56), o modo tpico de
expresso de todo complexo autnomo simblico, pois devido a uma srie de fatores, o
complexo capaz de pensar e organizar seus contedos apenas de maneira simblica. Assim,
toda a atividade da fantasia, como os sonhos e os sintomas, cuja origem atribuda ao
complexo (JUNG, 1984b, p. 54), constituda essencialmente por smbolos, e deve ser
examinada e interpretada enquanto tal.
O complexo com carga emocional (idem, 1995, p. 81), tambm chamado de
complexo de tonalidade afetiva (idem, 1999, p. 31), caracteriza um determinado conjunto
de idias ou imagens que se referem a uma carga emocional especfica e que por esta so
mantidas unidas. Desse modo, a argamassa que mantm coeso o complexo a carga
emocional comum a todas as ideias isoladas (idem, 1995, p. 336); o complexo, portanto,
pode ser considerado, de maneira abrangente, como um conglomerado de contedos
psquicos, caracterizados por uma carga emocional peculiar (idem, 1997, p. 65).
Estabelecendo uma analogia com a qumica, Jung afirma que todos os contedos da
vida psquica, sejam eles sentimentos, idias ou sensaes, agrupam-se na forma de unidades,
tal como as molculas. Cada unidade possui trs elementos distintos: percepo sensorial, os
componentes intelectuais (representao, imagens de memria, juzos, etc.), tonalidade
afetiva (idem, 1999, p. 31-32), sendo que todos esto fortemente unidos, de forma que uma
percepo sensorial referente ao complexo, por exemplo, evoca imediatamente os
componentes intelectuais e a tonalidade afetiva. Essas unidades psquicas no permanecem
isoladas umas das outras, elas se agrupam em um corpo maior, de acordo com uma
determinada tonalidade afetiva comum. Desse modo, o complexo uma unidade psquica
mais elevada (ibid., p. 33).
Os termos carga emocional e tonalidade afetiva podem ser considerados como
sinnimos, uma vez que Jung (1997, p. 42) d o mesmo significado tanto ao afeto quanto
emoo, so a mesma coisa que nos afeta, que interfere em ns. Jung utiliza o conceito de
afetividade no sentido atribudo por Eugen Bleuler, como o elemento fundamental que
subjaz e condiciona todas as nossas reflexes lgicas, pensamentos, aes ou inaes, e que
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designa no apenas os afetos no sentido prprio, como tambm as leves sensaes e
tonalidades afetivas de prazer e desprazer (BLEULER, 1906, p. 6 apud JUNG, 1999, p. 31,
nota 93). A partir da, Jung emprega de forma mais especfica o conceito de afeto ou
tonalidade afetiva como um estado de sentimento caracterizado por inervaes corporais,
ou seja, que possui tambm manifestaes fisiolgicas correlatas aos contedos psquicos. ,
portanto, constitudo por um estado psquico de sentimento e por um estado fisiolgico de
inervaes, tendo cada qual efeito cumulativo e recproco sobre o outro (JUNG, 1991, p.
388).
Dessa maneira, se os contedos da vida psquica so organizados na forma de
complexos, h um destes que constitui o centro de nossa personalidade e identidade
conscientes, o chamado complexo do eu, tambm denominado simplesmente ego ou
eu. O complexo do eu a base da psique consciente, tanto um contedo quanto uma
condio da conscincia (ibid., p. 406), uma vez que qualquer elemento psquico somente se
torna ou pode ser considerado consciente enquanto estiver relacionado diretamente ao
complexo do eu. Portanto, aquilo que no se relacionar com o eu no consciente, assim
como a conscincia pode ser definida como a relao dos fatos psquicos ao eu (idem, 1997,
p. 29). O complexo do eu formado principalmente pelos registros da memria pessoal e pela
tonalidade afetiva de todas as sensaes corporais, da percepo geral do prprio corpo (loc.
cit.). Consequentemente, exceto em casos de graves distrbios psquicos, o complexo do eu
o mais estvel e importante dentre todos os complexos que formam a totalidade da psique,
constituindo o cerne indispensvel da conscincia (loc. cit.).
Portanto, exceo do complexo do eu, que constitui a esfera consciente da psique, e
de outros complexos a ele assimilados, todos os outros complexos constituem a esfera
psquica do inconsciente. Consoante Jung, psique no deve ser confundida com conscincia,
j que nem todos os contedos psquicos, e nem mesmo a maior parte deles, esto
necessariamente vinculados ao eu. Por conseguinte, deve haver um grande nmero de
complexos inconscientes, ou seja, no associados ao eu; e outros complexos, a princpio
conscientes, que, por alguma razo, dissociam-se do complexo do eu, tornando-se ento
inconscientes.
Dessa forma, os complexos podem ser considerados como aspectos parciais da
psique dissociados (idem, 1984a, p. 100), e surge aqui a questo acerca da origem de tal
separao. Conforme Jung, ela deve ser atribuda, algumas vezes, a um trauma, um choque
emocional (...) que arrancou fora um pedao da psique (loc. cit.). Na maioria das vezes,
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porm, devido a um conflito moral cuja razo ltima reside na impossibilidade de aderir
totalidade da natureza humana (JUNG, 1984a, p. 100). A partir da, o complexo pode ser
mais precisamente definido como a imagem de uma determinada situao psquica de forte
carga emocional e, alm disso, incompatvel com as disposies ou atitude habitual da
conscincia (ibid., p. 99). Assim, por causa desse conflito ou incompatibilidade intrnsecos,
os complexos so dissociados da conscincia, tornando-se fragmentos psquicos
desprendidos (ibid., p. 106); eles se encontram em um estado de represso, ou inibio
emocional (idem, 1999, p. 37), isto , sua carga emocional, devido incompatibilidade,
reveste-se de um aspecto negativo, sendo ento inconscientemente inibida e separada da
conscincia. Nesse sentido, o termo represso ainda usado com referncia explcita
psicanlise de Freud; conforme Jung (1995, p. 203, nota 101): usamos o termo represso
sempre no sentido de Bleuler e Freud, a cujo trabalho Studien uber hysterie devemos valiosos
incentivos para as nossas pesquisas
H, portanto, uma inconscincia pronunciada a respeito dos complexos (idem,
1984a, p. 101), eles determinam a estrutura do inconsciente, cuja existncia e organizao
somente podemos deduzir atravs deles, as unidades vivas da psique inconsciente (ibid., p.
104), que constituem a via regia que nos leva ao inconsciente, pois so os responsveis
pelos sonhos e sintomas (loc. cit.). Dessa forma, a psique no mais pode ser considerada uma
unidade nem ser identificada apenas com a conscincia. Alm disso, deve-se atentar para as
perturbaes que os complexos podem causar na esfera consciente, comprometendo assim o
desempenho da vontade. De fato, a principal caracterstica dos complexos a sua autonomia,
pois eles no esto totalmente sujeitos ao controle das intenes conscientes, podendo alterar
o curso normal de nossa volio, memria e outras disposies conscientes. O complexo atua,
na esfera do consciente, como um corpus alienum [corpo estranho], animado de vida
prpria (ibid., p. 99), podendo tambm ser chamado de alma fragmentria (ibid., p. 100),
segunda conscincia (idem, 1995, p. 275) ou uma psique dentro de outra psique (ibid., p.
524) .
Essa autonomia do complexo devida, como foi visto, sua constituio semelhante
ao complexo do eu. Sua forte carga emocional pode, em determinadas ocasies, a despeito da
inibio da conscincia, adquirir um valor que supera a coeso do eu, perturbando sua
atividade. Pode-se dizer que o complexo, devido a sua tonalidade afetiva, tende a formar uma
personalidade parcial, dotada de uma frao mais ou menos significativa de vontade prpria
(Idem, 1997, p. 86), no havendo, portanto, diferena marcante entre o complexo do eu e um
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complexo autnomo, sendo ambos os contedos psquicos dotados de carga afetiva e vontade
prprias (JUNG, 1997, p. 87). Por isso o complexo pode ser comparado a uma
personalidade fragmentria (Idem, 1984a, p. 100), que atua em diversos distrbios da
conscincia, como os da memria e das associaes. Pode atuar tambm em forma
personificada (loc. cit.), nos personagens da mitologia, da arte em geral e nas vozes e vises
da religio ou psicopatologia; pode, alm disso, devido a uma represso excessiva que o
fortalece ainda mais, assimilar at mesmo o eu, provocando uma modificao momentnea e
inconsciente da personalidade, chamada identificao com o complexo (ibid., p. 101), como
nos fenmenos de possesso na Idade Mdia. Essa relativa independncia do complexo na
estrutura psquica evidenciada quando Jung enfatiza que no se deve apenas dizer que temos
complexos, mas tambm que os complexos podem ter-nos (ibid., p. 98).
A teoria dos complexos comeou a ser formulada por Jung no mbito de suas
primeiras pesquisas em psicologia experimental, atravs do teste de associao de palavras.
Tal experimento consistia em se pronunciar, uma a uma, determinada lista com
aproximadamente cem palavras pessoa experimental, que deveria responder a cada uma com
a primeira palavra que lhe ocorresse como reao palavra estmulo. O tempo de reao era
cronometrado e seguia-se imediatamente o experimento de reproduo, que consistia em
averiguar se a pessoa testada era capaz de se lembrar das prprias reaes anteriores. O
objetivo inicial do teste, j conhecido na psicologia experimental, era o estudo de possveis
leis gerais de associao mental e a determinao de tipos intelectuais particulares.
Jung acrescentou ao teste o objetivo de se averiguar a influncia do fator da ateno
no mecanismo das associaes mentais, propondo, para isso, o teste de associao com
distrao, ou seja, perturbaes propositais na ateno da pessoa testada. Tal experimento
gerava diversos distrbios associativos, comparados aos resultados da mesma pessoa sem o
emprego da distrao, como o prolongamento do tempo de reao, falhas na reproduo,
repetio da palavra-estmulo e aumento das associaes superficiais, como as associaes
por semelhana de som. Assim, o que anteriormente eram consideradas falhas no experimento
passou a ser sistematicamente observado.
Entretanto, o mais surpreendente foi a constatao de que tais distrbios no
ocorriam somente no experimento com distrao, mas tambm muitas vezes nos experimentos
normais, em determinadas palavras-estmulo. A partir da anlise desses distrbios, das
conexes entre as palavras que os suscitavam e de determinadas informaes ou omisses
que os indivduos testados forneciam que Jung formulou sua hiptese da existncia dos
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complexos com carga emocional, os quais perturbavam o desempenho normal da ateno
consciente nas associaes.
Jung considera a ateno como um mecanismo psquico que liga com inmeros fios
o processo associativo a todos os outros fenmenos representados na conscincia (JUNG,
1995, p. 14), ela pode ser considerada como um foco visual da conscincia (loc. cit.), fator
especfico e ao mesmo tempo condio desta. O mecanismo da ateno atua de duas formas
distintas: promovendo todas as idias associadas, principalmente todas as que esto
associadas com direo, e tambm inibindo todas as idias no associadas, especialmente as
no associadas com direo (ibid., p. 144). Essa coeso diretiva na associao de contedos
psquicos acompanhada por um correlato fsico, uma tenso que fornece sua base
psicofsica (loc. cit.). De fato, seguindo mais uma vez Bleuler, Jung afirma que a ateno
um tipo especfico de tonalidade afetiva, capaz de promover certos contedos e inibir outros
(BLEULER, 1906, p.031 apud JUNG, 1999, p. 33, nota 99), estando diretamente relacionada,
portanto, ao mecanismo da apercepo, ou seja, o processo particular atravs do qual
qualquer contedo psquico alcana uma compreenso clara (WUNDT, 1902, p. 249 apud
JUNG, 1999, p. 9), isto , uma compreenso consciente, o que evidencia a correlao entre a
ateno e o complexo do eu. Ateno e apercepo estruturam, segundo Jung, um
desempenho psquico que permite a adaptao ao meio ambiente e s condies novas,
estando, nesse sentido, tambm relacionadas ao conceito de funo do real (fonction du rel)
de Janet (JUNG, 1999, p. 8, nota 33).
Assim, quando um complexo inconsciente ativado por determinada palavra-
estmulo, ele promove um desvio da idia diretiva, ou seja, impede o funcionamento normal
do mecanismo da ateno. Na verdade, o complexo atrai para si a tonalidade da ateno, mas,
devido ao estado de represso no qual se encontra, esta tambm inibida, o que impede que o
complexo venha tona e se torne consciente. Por outro lado, como foi visto, o complexo,
devido sua carga emocional prpria, atua como um ser independente no mbito da psique,
possui autonomia e pode ser comparado a uma personalidade separada. Por isso, embora no
possua o domnio da ateno, o complexo determina o curso das associaes psquicas atravs
de sua tonalidade prpria, que atua de forma diversa daquela da tonalidade da ateno.
Conforme Jung, na atividade normal do complexo do eu, ou seja, da conscincia, os demais
complexos devem ser inibidos, pois, do contrrio, a funo consciente capaz de dirigir a
associao seria impossvel (ibid., p. 55). Falta aos complexos, portanto, o domnio da
ateno, que sempre conseguido atravs do complexo do eu (loc. cit.), o que lhes permite
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um modo de expresso indireto, no explcito, ou seja, suas associaes possuem um carter
mais ou menos simblico (JUNG, 1999, p. 55).
O smbolo, portanto, est associado ao modo de expresso tpico do inconsciente, ao
qual falta o controle da ateno, dessa forma, a represso do complexo nada mais do que a
subtrao do domnio da ateno, ou seja, da clareza (ibid., p. 57). A atividade consciente,
regida pelo mecanismo da ateno, caracterizada pela diretividade, pela clareza de ideias e,
portanto, pela sensibilidade para a diferena. J o modo de funcionamento do pensar
inconsciente se processa de forma oposta, pois se caracteriza pela no-diretividade e pela
deficincia de sensibilidade para as diferenas (ibid., p. 54), o que implica em uma
diminuio da clareza das idias (loc. cit.). Isso ocorre porque a diferena funo
unicamente da ateno ou da clareza (loc. cit.), mais precisamente, da conscincia.
Por conseguinte, o modo de expresso simblico no se pauta pela diferenciao,
mas pela semelhana, pelas analogias. As associaes simblicas se revestem de
semelhanas verbais (sonoras) ou das imagens visuais (ibid., p. 46), dessa forma elaboram
as produes inconscientes, seja nos sonhos, fantasias, sintomas ou reaes ao teste de
associao. O complexo inconsciente, portanto, se expressa de forma simblica, por
semelhanas de imagens ou sons, o que confere ao conceito de expresso por semelhana de
imagens (ibid., p. 49) uma grande importncia no estudo das manifestaes do inconsciente,
ou seja, dos smbolos. Estes, atravs do concretismo das conexes imagticas ou sonoras,
podem constituir-se atravs das mais variadas combinaes analgicas ou metafricas (ibid.,
p. 47), o que evidencia uma forma de configurao que no leva tanto em considerao as
diferenas de sentido abstratas entre os contedos psquicos, mas a sua semelhana de sentido
concreta. Essa no-difereniao do simbolizar inconsciente permite tambm a configurao
de imagens que possuem diversos significados aglutinados, como ocorre nas produes
onricas. Essa multiplicidade de sentidos das imagens isoladas (ibid., p. 54) conseqncia
natural da falta de sensibilidade para as diferenas, ou falta de clareza do pensar simblico.
Nessa concepo de smbolo formulada por Jung, ainda h grande influncia e
referncias explcitas s idias de Freud e o termo simblico usado em sentido anlogo ao
de sintomtico (ibid., p. 55). Nesse contexto, as associaes simblicas so consideradas
como qualitativamente inferiores e s quais falta algo, no caso o domnio da ateno, da
diretividade e diferenciao de idias. Citando Madeleine Pelletier, Jung afirma que o
smbolo uma forma muito inferior de pensamento, e que poderia ser definido como a
percepo falsa de uma relao de identidade ou de analogia muito grande entre dois objetos
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que na realidade s apresentam uma vaga analogia (PELLETIER, 1903, p. 128 apud JUNG,
1999, p. 56). Ele prope uma diferenciao entre os conceitos de alegrico e simblico: a
alegoria seria uma interpretao intencional do pensamento intensificada por imagens
(JUNG, 1999, p. 56), ou seja, uma operao consciente, j os smbolos seriam associaes
subsidirias, obscuras de um pensamento que vela bem mais do que revela (loc. cit.),
associaes de um complexo inconsciente.
Apesar dessa perspectiva a princpio negativa em relao ao conceito de smbolo, a
descrio que Jung elabora do modo de expresso inconsciente dos complexos j aponta para
elementos que podem revestir-se de um aspecto extremamente positivo, o que de fato ocorre
em seus escritos posteriores. A riqueza de imagens e analogias do pensar simblico possui um
paralelo evidente com as caractersticas do pensamento mitolgico (ibid., p. 54); assim, o
smbolo caracteriza tambm as produes da mitologia, seja em seu contexto folclrico ou
religioso. Da mesma forma, os smbolos podem ser comparados, como foi visto, s analogias
e metforas, figuras de linguagem tpicas da poesia e outras formas de arte; de fato, Jung
afirma que o modo de pensar simblico um modo de pensar inato num poeta, mas que
cuidadosamente evitado precisamente no pensar cientfico que deve ser constelado por idias
claras (idem, 1995, p. 305). Aqui est implcita a idia, que posteriormente ser desenvolvida
por Jung, de que a superioridade do pensar consciente e diretivo, uma superioridade relativa,
pois se refere a objetivos especficos. No mbito da religio e da arte reveste-se de maior
importncia justamente o pensar simblico inconsciente, que no deve ser considerado tanto
pelo que lhe falta no caso, a ateno mas pelo que ele torna presente e pelo que lhe
especfico. Ambos possuem modos de atuao e finalidades diferentes, mas no devem
sobrepor-se um ao outro, pois fazem parte da totalidade psquica do ser humano, a qual, para
entrar em um estado de equilbrio, deve alcanar a harmonia entre suas partes constituintes, e
no permanecer em um conflito improdutivo.
2.2 Pensamento dirigido e no-dirigido
A tendncia de atribuio de um valor positivo aos mecanismos simblicos do
inconsciente se confirma quando Jung prope a diviso das atividades psquicas em duas
formas distintas de pensamento e as examina de forma detalhada. H, portanto, um
pensamento consciente, com suas caractersticas prprias, e um pensamento inconsciente, cuja
forma de apresentao eminentemente simblica e que obedece a leis e propsitos
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totalmente diferentes da atividade psquica consciente (JUNG, 1986b, p. 9). Aqui o pensar
simblico ou inconsciente analisado em sua especificidade, como uma atividade plenamente
desenvolvida, um processo em si totalmente normal (ibid., p. 24), e no patolgico ou
infantil. As duas formas de pensar atuam segundo estruturas prprias, com objetivos
diferentes e em campos distintos. Portanto, uma no pode ser julgada segundo os critrios da
outra.
Jung denomina o pensar consciente de pensamento dirigido ou lgico (ibid., p. 9),
atravs dele nos adaptamos realidade e agimos sobre ela. Ele permite uma compreenso
objetiva da experincia, o que permite despoj-la de todo elemento subjetivo e encontrar
aquelas frmulas que conferem natureza e s suas foras a expresso melhor e mais
adequada (ibid., p. 17); nesse sentido que tal pensamento imita a realidade (ibid., p. 16).
Pode tambm ser chamado de pensamento com ateno dirigida (ibid., p. 10), sendo que o
termo ateno deve ser entendido no mesmo sentido anteriormente descrito, ou seja, como o
mecanismo tpico da conscincia, a tonalidade afetiva que acompanha e permite a apercepo;
ou seja, a compreenso de determinados contedos psquicos de forma clara. O pensamento
tpico da conscincia, portanto, caracterizado pela ateno ou clareza e pela diretividade,
aquele que permite a adaptao ao meio ambiente. Ele tambm pode ser distinguido por
provocar esgotamento e cansao mental.
Outra particularidade do pensamento dirigido dar-se atravs de palavras, na forma
de linguagem, o que devido, principalmente, a sua finalidade ltima de comunicao. Pode-
se afirmar, portanto, que a matria com que pensamos a linguagem e o conceito
lingstico, e que ao pensarmos de modo dirigido, pensamos para outros e falamos a outros
(loc. cit.). Por isso, outra denominao possvel do pensar dirigido pensamento lingstico
(ibid., p. 14), mas linguagem aqui deve ser entendida num sentido muito mais abrangente que
o das lnguas faladas, como uma organizao do pensamento de forma dirigida, de maneira
que este possa desenvolver-se de uma forma subjetiva e individual para uma forma objetiva e
coletiva, compartilhada (loc. cit.). Assim, esta linguagem ideal corresponde ao prprio
pensamento dirigido (ibid., p. 12), o que evidenciado pela evoluo da linguagem primitiva,
caracterizada por termos de sentido concreto e especfico para a linguagem atual, cujos termos
possuem sentido muito mais abstrato e geral (WUNDT, 1902, p. 365 apud JUNG, 1986b, p.
12). Pensamento e linguagem condicionam-se mutuamente, sendo a questo da primazia de
um sobre o outro alvo de especulaes diversas.
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O desenvolvimento do pensamento com ateno dirigida se deu de forma
relativamente recente na histria cultural. Na antiguidade grega ainda predominava um
pensamento mtico, somente alguns poucos indivduos comeavam a voltar seu interesse para
a realidade objetiva. A partir da o pensamento dirigido progrediu gradualmente, alcanando
elevado grau de desenvolvimento na poca contempornea. Atualmente as expresses mais
ntidas do pensamento dirigido so a cincia e a tcnica por ela alimentada (JUNG, 1986b, p.
16).
Anteriormente ao pensamento dirigido, portanto, prevalecia um pensar que se
aproximasse mais do tipo fantstico (...) impregnado de mitologia (ibid., p. 17). O
pensamento no dirigido ou pensamento-fantasia (ibid., p. 24), tambm chamado por
Jung de sonhar ou fantasiar (ibid., p. 15), aquele no qual no predomina o sentido de
direo de idias tpico do mecanismo de ateno consciente. Por outro lado, no possvel
um pensamento sem direo, pois os elementos psquicos devem possuir alguma conexo de
sentido entre si, mesmo que esta seja inconsciente, sem o que no haveria pensamento
propriamente dito. Dessa forma, o pensamento no dirigido, na verdade, dirigido por
motivos inconscientes (ibid., p. 15-16).
Esses motivos inconscientes coincidem com os mecanismos associativos do
complexo inconsciente descritos anteriormente. Destacam-se as associaes por analogia e
semelhana de imagens e sons entre os contedos, e no por leis abstratas ou conceitos
lingsticos gerais. Aqui termina o pensamento em forma de linguagem, imagem segue
imagem, sensao a sensao (ibid., p. 15). Os elementos de tal pensamento no se conectam
arbitrariamente ou absolutamente sem direo alguma, mas de acordo com uma diretividade
prpria, que no se estrutura segundo critrios abstratos e leis gerais que os delimitam e
diferenciam em categorias mais ou menos fixas. No pensamentofantasia, os elementos se
configuram consoante analogias concretas, sensveis, o que ocorre de modo espontneo e
involuntrio, ou seja, inconsciente, embora as configuraes finais apaream na conscincia,
exercendo grande influncia sobre ela, devido a sua forte tonalidade afetiva subjacente.
O pensamento no dirigido, portanto, motivado, sobretudo subjetivamente, e isto
menos por motivos conscientes do que inconscientes (ibid., p. 25). Por estar imbudo de
elementos subjetivos, falta-lhe a objetividade do pensar dirigido que permite a adaptao
realidade, ele afasta-se da realidade, liberta tendncias subjetivas e improdutivo com
relao adaptao (ibid., p. 16). Entretanto, essa improdutividade refere-se apenas
adaptao imediata, pois a longo prazo, justamente a fantasia despreocupada revela foras e
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contedos criativos, exatamente como os sonhos (JUNG, 1986b, p. 16, nota 22). Alm disso,
tal fantasia no deve ser considerada a princpio como to despreocupada, pois expressa
verdades psicolgicas e preocupaes fundamentais do ser humano.
Assim, as tendncias subjetivas que o pensamento no dirigido liberta geram os
smbolos que caracterizam o nosso sonhar e fantasiar atuais e toda a riqueza e expressividade
da mitologia dos povos antigos (ibid., p. 17). Tal atividade do esprito antigo agia de modo
essencialmente artstico. O alvo do interesse no parece ter sido compreender o como do
mundo real com a maior objetividade e exatido possveis, e sim adapt-lo esteticamente a
fantasias e esperanas subjetivas (ibid., p. 18). Por isso, a imagem do mundo gerada por tal
atividade determinada mais pelas fantasias subjetivas do que por critrios objetivos da
realidade, fato que, entrementes, no indica uma desvantagem ou desqualificao dessa forma
de pensamento, pois inteligncia no deve ser identificada com o pensar dirigido. Jung
ressalta que seria arrogncia ridcula e injustificada se afirmssemos que somos mais
energticos ou mais inteligentes que os homens da Antiguidade (ibid., p. 17), somente
podemos constatar que aumentou o nosso cabedal de conhecimento, (...) mas no a
inteligncia (ibid., p. 17). O potencial criador de ambas as formas de pensamento permanece
o mesmo, o que difere so seus mecanismos e focos de interesse especficos.
O simbolismo do pensar no dirigido, portanto, no caracteriza apenas o pensamento
dos povos primitivos e da Antiguidade, mas tambm os sonhos de todas as pocas, o
pensamento das crianas e os sintomas psicopatolgicos da esquizofrenia e da neurose. Isso
deu azo a uma srie de interpretaes relativistas e desfavorveis ao pensamento simblico,
tido como inferior, infantil ou patolgico, incapaz de promover uma adaptao satisfatria
realidade por distorcer a viso objetiva do mundo com elementos subjetivos fantasiosos. Tais
elementos subjetivos seriam tpicos da psique infantil e se manifestariam na vida adulta
apenas em estados de conscincia enfraquecida, como o sonho, ou em patologias, como no
auto-erostismo das neuroses e no autismo da esquizofrenia.
Entretanto, de acordo com Jung, as bases inconscientes dos sonhos e fantasias s
aparentemente so reminiscncias infantis, (...) trata-se se de formas de pensamento primitivas
ou arcaicas (ibid., p. 25). O fato de despontar com mais evidncia na infncia apenas
confirma a hiptese de que tambm na psicologia a ontognese corresponde filognese
(ibid., p. 20). Assim, o pensar simblico no deve ser entendido como um pensar dirigido que
ainda no se desenvolveu, infantil, mas como um pensar plenamente desenvolvido, afinal, o
mito o que h de mais adulto na produo da humanidade primitiva (...) no uma fantasia
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pueril, mas um dos requisitos mais importantes da vida primitiva (JUNG, 1986b, p. 21). O
pensamento simblico tambm no deve ser considerado como auto-ertico ou autista, mas
simplesmente como no determinado por motivos racionais e objetivos.
Mesmo essa no-objetividade do pensamento no dirigido pode ser questionada
considerando-se justamente que os motivos inconscientes que dirigem os processos da
fantasia se baseiam no instinto que, certamente, um fato objetivo (ibid., p. 25). O
pensamento-fantasia, refletindo a condio psquica de nossos ancestrais, corresponde a um
instinto herdado que repete o modo arcaico de pensar, assim, a base instintivo-arcaica de
nosso esprito um fato objetivo, preexistente, que no depende da experincia pessoal nem
de qualquer arbitrariedade subjetiva pessoal (loc. cit.). Portanto, as supostas tendncias
subjetivas liberadas pela fantasia correspondem, na verdade, a fatores psquicos bem
objetivos, que determinam amplamente o comportamento e o pensamento do homem
contemporneo, tanto quanto o pensamento dirigido mais recente. E isso ocorre no apenas no
mbito da vida onrica, da infncia e da psicopatologia, mas em todas as produes da fantasia
presentes na vida adulta desperta e nas manifestaes artsticas e religiosas das culturas em
geral.
Essa capacidade do esprito de manifestar-se simbolicamente (ibid., p. 24)
corresponde, portanto, ao modo de pensar do esprito primitivo, herdado pelos indivduos
atuais atravs de um instinto psquico. Isso possvel porque, segundo Jung, a psique, da
mesma forma que o corpo, conserva as marcas ou vestgios das etapas de desenvolvimento e
evoluo pelas quais passou (ibid., p. 25). Por isso, as manifestaes simblicas do
pensamento no dirigido constituem puras condensaes de motivos tpicos de mitos (ibid.,
p. 27), uma vez que, como foi visto, a mitologia a manifestao por excelncia da vida
espiritual primitiva. O pensar simblico, ao acessar as camadas mais antigas do esprito
humano (ibid., p. 25), configura-se segundo a estrutura de mitos tpicos, tambm chamados
de complexos psicolgicos dos povos (ibid., p. 28). Esses padres psquicos de estruturao
correspondem ao conceito de arqutipo posteriormente desenvolvido por Jung.
O pensamento dirigido se processa por motivos conscientes, de forma inteiramente
consciente, enquanto o pensamento-fantasia se configura de forma inconsciente e por motivos
inconscientes, pois seus produtos surgem na conscincia de forma espontnea e autnoma,
muitas vezes personificados nos sonhos e fantasias individuais e nos mitos coletivos.
Portanto, o modo de pensar simblico ou fantstico pode ser considerado como
correspondente ao pensamento do complexo autnomo, assim como o pensar dirigido pode
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ser entendido como correspondente ao modo de pensar do complexo do eu. Essas
equivalncias podem ser estabelecidas levando-se em conta, por um lado, as caractersticas de
diretividade, adaptao, objetividade e forma lingstico-abstrata do pensamento dirigido, e,
por outro lado, as caractersticas de ausncia de direo, no-adaptao, subjetividade e forma
imagtico-concreta do pensamento-fantasia. Tais caractersticas correspondem,
respectivamente, ao modo de funcionamento psquico do complexo do eu, regido pela
tonalidade afetiva da ateno, e atividade dos complexos inconscientes, dotados de
tonalidade prpria.
Assim como os complexos so constitudos por determinados contedos psquicos
dissociados da conscincia, devido a um conflito ou incompatibilidade gerados pela atitude
dirigida e exclusiva desta, o pensamento-fantasia decorre de certas tendncias da prpria
personalidade que ainda no foram reconhecidas ou no mais so admitidas (JUNG, 1986b,
p. 27). Ele revela tendncias e contedos excludos pela atitude consciente e dirigida, no de
forma velada ou indireta, mas configurados conforme o modo simblico de expresso tpicos
do mbito inconsciente da psique, o qual, como foi visto, estruturado por complexos de
tonalidade afetiva . Por isso os mitos, produtos tpicos do pensamento-fantasia, podem ser
comparados a complexos coletivos, assim como qualquer expresso deste pensamento em
indivduos isolados, pois sua configurao ocorre no mbito inconsciente psique.
2.3 O conceito de smbolo e as funes psquicas
Os modos de funcionamento da psique foram at aqui descritos, de maneira geral,
segundo dois aspectos distintos, o consciente e o inconsciente. Este seria constitudo pela
atividade dos complexos autnomos e do pensamento simblico ou fantstico, e aquele pela
atividade do complexo do eu e do pensamento com ateno dirigida. Posteriormente, no
entanto, estabelecida por Jung uma distino mais pormenorizada dos modos de
funcionamento psquico, que abrange certas particularidades ignoradas na classificao
anterior, indispensveis para um melhor entendimento da psicologia de cada indivduo e da
psicologia humana em geral (idem, 1991, p. 475). Assim, a atividade psquica subdividida
em diferentes funes e atitudes, que podem estar tanto sob o domnio da conscincia quanto
do inconsciente, adquirindo, em cada caso, caractersticas especficas.
A constatao da existncia de complexos inconscientes e sua atuao atravs de um
pensamento simblico no suficiente para esgotar a variedade dos fenmenos observados,
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especialmente no que se refere s peculiaridades das disposies individuais (JUNG, 1991,
p. 488), pois o mesmo complexo, como o complexo parental, por exemplo, pode gerar reaes
diversas em diferentes indivduos, mesmo que estes sejam irmos e tenham sofrido a mesma
influncia materna e paterna. Assim, o fator determinante a constituio psquica individual,
o modo especial como o complexo atua no indivduo, (ibid., p. 487) e no a existncia em si
do complexo, ou seja, a particularidade psquica que determina o complexo em si e seu
modo de atuao no sujeito, mesmo que, aparentemente, se trate do mesmo complexo em
diferentes indivduos. nessa distino que deve estar, segundo Jung, a resposta questo do
porque, numa famlia neurtica, uma criana reage com histeria, outra com neurose
compulsiva, uma terceira com psicose e uma quarta talvez com nada disso (ibid., p. 488).
O mesmo ocorre em relao conscincia, pois evidente a diversidade de formas
que pode assumir em cada indivduo a atividade do complexo do eu. A constituio psquica
individual determina o predomnio de uma funo especfica, gerando contedos equivalentes
e um modo prprio de adaptao. A funo psicolgica constitui uma forma psquica de
atividade que, em princpio, permanece idntica sob condies diversas (ibid., p. 412),
havendo ao todo quatro funes fundamentais: a sensao, o pensamento, o sentimento e a
intuio. A conscincia, enquanto um rgo de orientao em um mundo de fatos exteriores
e interiores (idem, 1984a, p. 127), pode dispor dessas quatro funes para se relacionar com
os dados provindos do meio ambiente e com os processos do prprio inconsciente.
A funo da sensao abarca todas as percepes atravs dos rgos dos sentidos, ou
seja, no se refere apenas a uma atividade especfica de qualquer um dos sentidos, mas da
percepo em geral (loc. cit. ). Atravs dela se d a percepo de estmulos fsicos, sejam
eles externos ou internos, isto , do prprio organismo; ela fornece a representao ou
imagem psquica dos objetos externos, dos instintos fisiolgicos e das transformaes
corporais, inclusive dos estados afetivos (idem, 1991, p. 438). Por isso os dados perceptivos
da sensao so os primeiros fornecidos psique, sendo posteriormente trabalhados por outras
funes, como o pensamento e o sentimento.
O pensamento, por outro lado a funo psicolgica que, de acordo com suas
prprias leis, faz a conexo (conceitual) de contedos de representao a ele fornecidos(ibid.,
p. 434). No um processo perceptivo, mas aperceptivo, ou seja, estabelece uma articulao
entre contedos novos e contedos relacionados pr-existentes, a fim de que aqueles possam
ser assimilados conscincia, sendo ento apreendidos e compreendidos (ibid., p. 393). O
pensar, portanto, submete os contedos psquicos de representao a um processo de
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comparao e diferenciao fundamentados na memria (JUNG, 1984a, p. 147),
estabelecendo conexes significativas que permitem o reconhecimento e o julgamento de tais
contedos, chegando assim a determinadas interpretaes e concluses.
A funo do sentimento tambm uma espcie de julgamento (idem, 1991, p.440),
mas distinto daquele operado pelo pensar. O sentimento julga a partir da carga emocional ou
tonalidade afetiva de certos contedos psquicos, estabelecendo assim o seu valor, em termos
de rejeio, prazer, desprazer, agrado ou desagrado. Entretanto, o sentimento no se confunde
simplesmente com o afeto ou sua percepo o que funo da sensao um processo de
julgamento, de avaliao, auxiliado tambm pela memria, que atribui aos contedos
psquicos valores emocionais especficos. Todo processo de percepo ou apercepo sempre
acompanhado de determinada carga emocional que provoca uma reao anloga no
indivduo; o sentimento , portanto, a funo que avalia essa reao emocional e nos informa
acerca de seu valor (idem, 1997, p. 30).
Atuando de forma relativamente distinta das demais funes h a intuio, a funo
psicolgica que transmite a percepo por via inconsciente (idem, 1991, p. 430). Portanto,
tambm possui um carter perceptivo, mas que se processa diferentemente daquele que ocorre
na funo da sensao. Nesta, os dados fornecidos pelos sentidos configuram-se a nvel
consciente, j na intuio a percepo registra-se ao nvel do inconsciente (idem, 1997, p.
32), a partir de dados perceptivos subliminares, ou seja, percepes sensoriais to sutis que
escapam nossa conscincia (ibid., p. 33). A intuio fornece conscincia, portanto, certas
percepes que, ao contrrio da sensao, foram elaboradas no mbito inconsciente, o que
torna muito difcil ou mesmo impossvel restabelecer os elos associativos utilizados no
processo, assim, qualquer contedo se apresenta como um todo acabado sem que saibamos
explicar ou descobrir como este contedo chegou a existir (idem, 1991, p. 430). A percepo
subliminar ou inconsciente no se fixa apenas em objetos isolados no espao e situados no
tempo presente, ela capaz de vislumbrar que, espacialmente, qualquer objeto est em
conexo ilimitada com uma multiplicidade de outros objetos (idem, 1984a, p. 127) e que,
temporalmente, o objeto representa apenas uma transio daquilo que ele era antes para
aquilo que ser posteriormente (loc. cit.). A intuio, portanto, permite a percepo das
infinitas possibilidades de relao entre os objetos no espao e no tempo, o que s possvel
porque ela atua segundo dados perceptuais inconscientes, muito mais vastos que os
conscientes e menos restritos em termos de possibilidades associativas. Por isso a intuio
chamada vulgarmente de palpite, adivinhao, anteviso, ou mesmo considerada como uma
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faculdade mgica ou miraculosa (JUNG, 1997, p. 31). importante ressaltar que a
intuio, enquanto percepo atravs do inconsciente, no se limita aos dados de percepo ou
sensaes subliminais, mas abrange tambm os pensamentos e sentimentos subliminais (idem,
1991, p. 431) o que amplia ainda mais as suas possibilidades associativas.
A descrio acima corresponde s funes de orientao da conscincia (idem,
1984a, p. 128), ou seja, do uso consciente das funes com a finalidade de adaptao ao meio
externo. Entretanto, nos indivduos isolados, as quatro funes bsicas ou fundamentais nunca
esto igualmente desenvolvidas, o que ocorre principalmente devido a uma constituio
psquica particular e inata. Esta determina um modo de adaptao conduzido essencialmente
por uma das quatro funes, sendo as demais meras auxiliares ou quase totalmente excludas
da atividade consciente. Essa funo que predomina, chamada de funo superior ou funo
dominante, aquela que d a cada indivduo a sua espcie particular de psicologia (idem,
1997, p. 34), estabelecendo assim certas disposies tpicas (idem, 1984a, p. 128), que
correspondem ao tipo pensamento, tipo sentimento, tipo sensao e tipo intuio, conforme a
predominncia das respectivas funes fundamentais.
A funo superior ou dominante aquela que est mais voluntariamente disponvel
ao eu, justamente por ser a funo mais conscientemente desenvolvida ou diferenciada,
enquanto as outras funes permanecem relativamente indiferenciadas e indisponveis
utilizao consciente. Em um sentido geral, diferenciao significa o desenvolvimento de
diferenas, a separao de partes de um todo (idem, 1991, p. 404), j no mbito da atividade
psquica, significa a capacidade que possui a conscincia de separar certas partes estruturais,
de modo a foment-las por meio da concentrao da vontade e conduzi-las ao mximo de
desenvolvimento (idem, 1984a, p. 126). Esse procedimento caracteriza uma unilateralidade
da atitude consciente diferenciadora, que favorece certas capacidades e negligencia outras,
seja por motivaes externas, sociais, seja por disposies subjetivas inatas. Assim, no que se
refere s funes fundamentais, a diferenciao consiste em separar as funes umas das
outras e seus elementos individuais um dos outros (idem, 1991, p. 404), o que est de acordo
com a atitude tpica da conscincia, uma vez que sem diferenciao impossvel a direo,
pois a direo de uma funo, ou sua orientabilidade, consiste em separar e excluir o que
irrelevante (...): somente a funo diferenciada prova ser capaz de direo (loc. cit.). Fica
evidente aqui a relao da funo dominante na conscincia, e sua caracterstica de
diferenciao e direo com o mecanismo da ateno do complexo do eu e a atividade do
pensamento dirigido descritos anteriormente.
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Em contrapartida, as funes psquicas que so negligenciadas ou excludas pela
atitude unilateral e diferenciadora da conscincia acabam tornando-se total ou parcialmente
inconscientes, ou seja, indiferenciadas. No inconsciente, uma determinada funo est
fundida em suas partes e com outras funes (JUNG, 1991, p. 404). A funo pensamento
no diferenciada, por exemplo, no pode pensar sem se mesclar a outras funes, como a
sensao ou a intuio; o mesmo ocorrendo com as demais funes. A funo no
diferenciada tambm se mistura em suas prprias componentes distintas, a funo sensao
no diferenciada, por exemplo, pode misturar as diferentes esferas dos sentidos (audio
colorida): um sentimento no diferenciado, (...) misturar amor e dio (loc. cit.). H, portanto,
uma oposio entre as atitudes consciente e inconsciente que se reflete no funcionamento das
funes fundamentais. As funes conscientemente desenvolvidas, ou diferenciadas, podem
tambm ser chamadas de funes dirigidas (ibid., p. 286), enquanto as funes
inconscientes no diferenciadas podem ser consideradas como no dirigidas, ou
inautnticas, uma vez que possuem elementos que no lhe pertencem necessariamente
(ibid., p. 479), ou seja, elementos de outras funes.
Como foi dito, os tipos psicolgicos, ou isto , os tipos pensamento, sentimento,
sensao e intuio, surgem quando h o predomnio das respectivas funes e, a partir do
momento em que uma funo predomina habitualmente surge uma atitude tpica (ibid., p.
397). Atitude deve ser entendida aqui no sentido de disposio, ou seja, a presena de
determinada constelao subjetiva, o que significa uma certa combinao de fatores
psquicos ou contedos que determinem o agir nesta ou naquela direo prefixada, ou que
concebam um estmulo desse ou daquele modo predeterminante (ibid., p. 395). Atitude,
portanto, pressupe uma combinao apriorstica de determinados contedos que vo
funcionar como um ponto direcional (loc. cit.) no processo de assimilao de novos
contedos, ou seja, no processo de apercepo. Nesse processo psquico, ocorre uma escolha
ou um julgamento que exclui os elementos irrelevantes. O que relevante ser decidido pela
constelao prvia dos contedos (ibid. p. 395-396). A atitude, por conseguinte, corresponde
a certa expectativa, que opera sempre de forma seletiva e direcionadora. A conscincia e
todos os seus contedos atuam como uma forte constelao subjetiva, o que significa que h
uma atitude, uma expectativa que fomenta a percepo e apercepo de tudo o que
homogneo e inibe as do heterogneo (ibid., p. 396). Tal processo constitui a base essencial
da unilateralidade da orientao consciente (loc. cit.). Assim, a funo dominante na
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conscincia, de acordo com a sua particularidade, determina certas constelaes de contedos,
que por sua vez determinam uma atitude correspondente.
Conforme Jung, poucos contedos efetivamente alcanam elevado grau de
conscincia e tambm poucos contedos podem estar presentes simultaneamente no campo
consciente. Disso resulta a unilateralidade da orientao consciente, sua atividade
selecionadora. A seleo exige direo. E direo exige excluso de todo o irrelevante
(JUNG, 1991, p. 399). A atitude geral da conscincia, portanto, levaria a um estado de total
desequilbrio, mas o aparelho psquico possui um mecanismo de auto-regulao, que equilibra
a unilateralidade da conscincia atravs da atividade do inconsciente. Justamente por abarcar
os contedos excludos pela atitude consciente, o inconsciente atua de maneira compensadora
em relao conscincia. Essa a funo compensadora (ibid, p. 479) do inconsciente, que
complementa ou corrige a orientao consciente fornecendo-lhe todos aqueles contedos que
no poderiam faltar no cenrio consciente, se tudo fosse consciente (ibid., p. 426). Assim, o
inconsciente atua atravs de sonhos e fantasias, por exemplo, a fim de equilibrar a
unilateralidade da atitude consciente, configurando os contedos por esta excludos, cujo
conhecimento seria indispensvel para a conscincia se adaptar plenamente (ibid., p. 400).
Normalmente, essa tenso ou oposio entre consciente e inconsciente equilibrada pela
funo compensadora deste, mas a conscincia pode acentuar ainda mais a sua
unilateralidade, inibindo a compensao pelo inconsciente. Desse modo a tenso entre os
contedos aumenta de tal forma que a compensao se manifesta em forma de funo
contrastante (loc. cit.), o que representa um caso extremo tpico das neuroses e outras
psicopatologias, quando o inconsciente, atravs de sintomas, no mais atua de forma a
complementar ou equilibrar a atitude consciente, mas estabelecendo um forte contraste que
gera a dissociao entre as partes.
Essa dinmica psquica de oposio e compensao entre consciente e inconsciente
manifesta-se de forma clara no mbito das funes fundamentais. funo superior ou
dominante, totalmente consciente e diferenciada, corresponde uma funo inferior especfica,
inconsciente e indiferenciada. Se o pensamento a funo superior, o sentimento ser,
necessariamente, a funo inferior e vice-versa, o mesmo ocorrendo com as funes que
formam o par da sensao e da intuio. Esses pares de funes se contradizem mutuamente
no mbito da conscincia, por isso um dos componentes excludo e cai sob o domnio do
inconsciente. O julgamento conceitual do pensamento e a avaliao emocional do sentimento
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se contrapem, assim como a percepo imediata e objetiva da sensao e a percepo de
possibilidades da intuio.
A funo superior corresponde ao mximo de diferenciao e disponibilidade
vontade consciente, enquanto a funo inferior mais indiferenciada e inconsciente. J as
funes do par secundrio, aquele que no corresponde s funes superior e inferior,
permanecem relativamente desenvolvidas ou diferenciadas, dependendo da constituio
psicolgica particular ou outros fatores. Seus componentes inconscientes vo se juntar
funo inferior, conferindo-lhe o carter de indiferenciao; j os componentes
conscientemente utilizados de uma ou outra dessas funes vai auxiliar a funo principal no
processo de adaptao, conferindo-lhe um carter particular. Esta a chamada funo
secundria ou auxiliar (JUNG, 1991, p. 382), que no est em oposio, como a funo
inferior, funo superior. Dessa forma, a cada tipo distinto podem se acrescentar dois
subtipos, no caso do pensamento, por exemplo, ao lado da forma pura, lgico-matemtica,
pode haver a forma indutiva e especulativa, mesclada funo da intuio, e a forma
emprica, baseada na percepo sensorial, ou seja, mesclada funo da sensao (ibid., p.
482). O mesmo processo vale para cada uma das outras trs possibilidades de funo
predominante, gerando ento doze tipos psicolgicos distintos.
Considerando-se ainda o caso do pensamento como funo dominante, ao compor-se
seja com a funo sensao ou intuio, ele perde parcialmente seu carter racional, tornando-
se tambm parcialmente irracional. Isso ocorre a partir do momento em que Jung estabelece
uma classificao das funes em racionais e irracionais: o par pensamento e sentimento
considerado racional, enquanto o par sensao e intuio, irracional. Racional tudo aquilo
que est em conformidade com a razo, sendo esta considerada uma atitude que tem por
princpio conformar a atividade psquica, o comportamento e a ao a determinados valores
objetivos, estabelecidos pela mdia das experincias de fatos psicolgicos que podem ser
externos ou internos (ibid., p. 437). a atitude racional, portanto, que permite a configurao
e a considerao de certos valores objetivos, ou seja, vlidos em geral, processo que ocorre no
mbito da histria humana, e no do sujeito particular. So as leis da razo, por conseguinte,
que designam e regulam a atitude mdia, correta e adaptada, pois so expresso da
adaptabilidade mdia das ocorrncias que se sedimentou aos poucos em complexos
firmemente organizados de representaes que constituem os valores objetivos (loc. cit.). O
pensamento e o sentimento so considerados como funes racionais na medida em que
efetuam sua finalidade quando concordam plenamente com as leis da razo (loc. cit.), e
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tudo o que concorda com as leis da razo racional, enquanto o que no concorda
irracional. Essas leis racionais ou valores, portanto, equivalem a complexos de representaes
psquicos pr-existentes que condicionam o pensar, o sentir e o agir. Percebe-se aqui a
analogia com o conceito de apercepo e atitude, uma vez que as leis da razo funcionam
como ponto de orientao no processo de aquisio de novos contedos, o que pressupe a
excluso de tudo que no-racional (JUNG, 1991, p. 437), ou seja, que no est em
conformidade com estas leis. Racionalidade, portanto, tambm pressupe a diferenciao,
direo e excluso do que considerado irrelevante.
J as funes da sensao e da intuio possuem justamente o carter oposto da
irracionalidade, no no sentido de anti-racional, mas extra-racional, isto , que no se pode
fundamentar com a razo (ibid., p. 431). So funes perceptivas, e no aperceptivas,
atingem sua plenitude na percepo absoluta do que se passa em geral (ibid., p. 432), seja
dos contedos em si ou de suas relaes no tempo e no espao. Seus contedos possuem
portanto, o carter de algo dado, e no de algo derivado ou produzido dos produtos das
funes racionais (ibid., p. 430), seu objetivo uma percepo completa, e no derivada de
certas leis pr-estabelecidas; por isso as funes irracionais no devem possuir uma direo
racional e nem operar por diferenciao e excluso. Dessa forma elas esto aptas a captar o
que irracional, ou seja, os fatos elementares, o acaso, enfim, tudo o que est relacionado
a um fator existencial (ibid., p. 432) que no pode ser racionalmente compreendido. A
completa explicao racional de um objeto que possui existncia real, que no um objeto
hipottico, algo impossvel, visto que apenas um objeto que foi suposto pode ter explicao
plena, pois nada existe nele alm do que foi suposto pelo pensar racional (loc. cit.). Por seu
carter de percepo absoluta, portanto, o modo de funcionamento das funes irracionais
deve ser no-diferenciado e no-dirigido, tpico dos processos inconscientes.
importante observar que, de acordo com Jung, tanto a sensao quanto a intuio
so a terra-me a partir da qual se desenvolvem o pensamento e o sentimento como funes
racionais (ibid., p. 431), estas ltimas desenvolvem-se ontogentica e filogeneticamente
(ibid., p. 439) a partir daquelas. Percebe-se aqui, portanto, o carter de derivao do racional
em relao ao irracional, da apercepo em relao percepo, do diferenciado em relao
ao indiferenciado e, em ltima anlise, do consciente em relao ao inconsciente.
Entretanto, a racionalidade e a irracionalidade no so qualidades necessrias,
respectivamente, do par pensamento e sentimento e do par sensao e intuio, correspondem
apenas a seu modo ideal de funcionamento. Uma funo racional, como o pensamento,
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atuando como funo superior pode assumir parcialmente aspectos irracionais ao mesclar-se
com uma funo irracional, como a intuio, relativamente consciente. Nesse mesmo caso a
funo inferior, o sentimento, apesar de ser a princpio racional, atua de forma
acentuadamente irracional, uma vez que est no inconsciente e mesclada com os elementos
tambm inconscientes de outras funes. J uma funo irracional, como a sensao, ao atuar
como funo principal, assume um carter racional, uma vez que cai sob o domnio da atitude
selecionadora e diferenciadora da conscincia, tornando-se uma percepo diferenciada ou
abstrata. H, por conseguinte, a possibilidade tanto de uma sensao quanto de uma intuio
abstratas, em oposio a uma sensao e uma intuio concretas, assim como pensamento e
sentimentos abstratos opostos a pensamentos e sentimentos concretos.
Abstrao consiste em se extrair determinado contedo especfico, como um
significado ou uma caracterstica, de seu contexto mais amplo, composto por outros
elementos que juntos formam uma totalidade nica, singular. Dessa forma, a abstrao
constitui uma forma de atividade mental que liberta o contedo ou o dado, tido como
essencial, de sua vinculao aos elementos irrelevantes, dele os distinguindo ou
diferenciando (JUNG, 1991, p. 386). Abstrao, portanto, pressupe a seleo de certos
elementos significativos e a extrao de outros elementos considerados significativamente
irrelevantes. Os conceitos ou leis que determinam a seleo e a excluso abstrativas j existem
na psique do indivduo, por isso abstrao um processo anlogo ao que ocorre na
apercepo e na razo. A atitude abstrativa (ibid., p. 387), portanto, aquela que assimila
novos contedos de acordo com contedos abstratos j existentes, que assimila apenas a parte
considerada essencial, segundo suas prprias leis racionais, do objeto. O que no se conforma
ao contedo abstrado excludo como irrelevante e no conscientemente levado em
considerao.
Por outro lado, concreto significa propriamente crescido junto (ibid., p. 400),
coincidindo com a qualidade de indiferenciado. As funes concretas so aquelas cujos
contedos esto unidos aos de outras funes. O termo usado, especialmente, referindo-se
ao caso das funes pensamento e sentimento fusionadas com a sensao. Dessa forma, o
pensamento concretista se movimenta dentro de conceitos e concepes exclusivamente
concretos, est sempre relacionado com a sensao, assim como o sentimento concretista
nunca est separado de seu contexto sensorial (loc. cit.). O concretismo caracteriza as
funes inferiores do indivduo contemporneo, assim como o funcionamento geral da psique
do primitivo, tal como descrita no conceito de pensamento-fantasia.
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A atitude geral da conscincia, portanto, pode ser caracterizada por seguir os
princpios acima descritos de diferenciao, direo, apercepo, racionalidade e abstrao,
todos inter-relacionados e referindo-se ao mesmo processo psquico. J o inconsciente, em
contrapartida, atua de forma indiferenciada, no-dirigida, perceptiva, irracional e concreta.
Nesse sentido, pode-se falar de uma atitude inconsciente (JUNG, 1991, p. 322), no como a
atitude unilateral consciente, mas uma atitude que segue leis especficas que permitem,
inclusive, manter uma relao compensatria com a conscincia. As duas atitudes podem
estar presentes nas quatro funes fundamentais, independentemente de seu carter racional
ou irracional, conforme a atuao destas ocorra de forma consciente ou inconsciente.
A funo principal est disposio da vontade do eu, opera segundo motivos
conscientemente escolhidos, enquanto a funo inferior, excluda da atitude consciente, no
est disponvel, atua de forma espontnea e autnoma, apenas seus produtos aparecem na
conscincia, seguindo uma intencionalidade prpria. Podem, portanto, ser comparados aos
complexos autnomos, pois atuam por estmulo inconsciente, constituem como que uma
contrapersonalidade (ibid., p. 479). Os complexos surgem no apenas devido a traumas ou
experincias desagradveis, mas da atitude consciente que exclui aquilo que considera
irrelevante, por isso, ter um complexo no significa logo uma inferioridade; mas apenas
que existe algo discordante, no assimilado e conflitivo (ibid., p. 487). Os complexos so o
oposto da atitude consciente, aquilo que foi excludo ou que no foi desenvolvido, justamente
por isso representam a possibilidade de uma compensao, de uma complementao dessa
atitude unilateral, so precisamente focos ou entroncamentos da vida psquica que no
gostaramos de dispensar, que no deveriam faltar, caso contrrio a atividade psquica entraria
em estado de paralisao fatal (loc. cit.).
Portanto, a atividade simblica do complexo em sonhos, fantasias ou mesmo
sintomas compensam os distrbios do equilbrio psquico causados pela atitude unilateral
consciente, levando at conscincia os contedos excludos. Da mesma forma, no mbito
das funes psicolgicas, cujos contedos formam os elementos especficos dos complexos,
h as funes menos desenvolvidas e inibidas, tornadas ento inconscientes. No entanto,
mesmo que os processos de determinada funo inferior sejam totalmente inconscientes, seus
resultados aparecem na conscincia, pois cada funo possui sua carga emocional prpria que
no pode ser eliminada; no possvel a algum optar, por exemplo, por no pensar, pensar
inevitavelmente (idem, 1997, p. 33), mesmo que por motivaes inconscientes. Dessa forma
a funo inferior, atravs de seu pensar, sentir, sensualizar ou intuir simblicos, que
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caracterizam a atitude inconsciente, compensam a atitude consciente regida pela funo
superior.
A atividade da funo inferior, devido a seu aspecto irracional e indiferenciado, ou
seja, mesclado a outras funes, possui um carter estranhamente fantstico (JUNG, 1991,
p. 480). De fato, de acordo com Jung, o modo de funcionamento geral do inconsciente o
fantasiar, uma forma especfica de atividade que pode apresentar-se em todas as funes
bsicas (ibid., p. 412). A fantasia constitui um complexo de representaes que se distingue
de outros complexos de representao por no lhe corresponder externamente uma situao
real (ibid., p. 407). Em ltima instncia, a fantasia recorre a elementos derivados de
vivncias reais, mas seu contedo nunca o equivalente de uma realidade externa, pois ela
fundamentalmente o escoamento da atividade criadora do esprito, uma ativao ou produto
da combinao de elementos psquicos (loc. cit.), provindos das diferentes funes
fundamentais. Enquanto manifestaes da atividade inconsciente da psique, as fantasias
podem ocorrer na forma de irrupo de certos contedos na conscincia ou atravs de uma
atitude intuitiva de expectativa da prpria conscincia. O primeiro caso corresponde s
fantasias passivas e o segundo s fantasias ativas (loc. cit.).
A funo compensatria do inconsciente em relao conscincia se d atravs da
atividade geral da fantasia, frequentemente em sua forma passiva, uma vez que os contedos
por ela constelados representam algo conflitante incompatvel com a atitude consciente. Dessa
forma, as fantasias inconscientes irrompem quando a ateno consciente se enfraquece,
durante o sono, por exemplo, atravs dos sonhos; ou quando uma atitude excessivamente
unilateral da conscincia configura uma disposio inconsciente igualmente forte capaz de se
opor a vontade do eu, tornando-se autnoma. Em ambos os casos, os smbolos, os produtos da
atividade da fantasia inconsciente, apesar de se manifestarem na conscincia, no so em
geral, assimilados de fato atitude consciente. Como foi visto na teoria dos complexos, esses
contedos so facilmente esquecidos, como os sonhos e as reaes de complexos no teste de
associao, so projetados em situaes ou indivduos externos ou mesmo assimilam o eu,
nos estados de identificao com o complexo. Por isso, apesar de influenciarem realmente o
comportamento e a ao, tais manifestaes no eliminam o estado de oposio ou
dissociao entre a conscincia e o inconsciente, o que impede a realizao plena da funo
compensatria, que ocorreria atravs de uma verdadeira cooperao entre as atividades
consciente e inconsciente.
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A unio das personalidades consciente e inconsciente do sujeito em uma
personalidade unificada, a unio dos opostos em uma unidade se torna possvel atravs da
fantasia ativa, de uma atitude orientada para a percepo de contedos inconscientes
(JUNG, 1991, p. 407). Ela expresso e ao mesmo tempo condio dessa unidade na
condio psquica do indivduo, por isso pertence, no raro, s atividades espirituais mais
elevadas do homem (ibid., p. 408). A fantasia passiva corresponde a um estado de acentuada
dissociao psquica, uma vez que a forte unilateralidade consciente gera uma oposio
inconsciente igualmente unilateral. J a fantasia ativa produto de atitude consciente no