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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03064 A IMPORTÂNCIA PEDAGÓGICA DOS POETAS HESÍODO E HOMERO NA EDUCAÇÃO DOS JOVENS NA GRÉCIA ANTIGA WIEZEL, Augusto Henrique Gaia (UEM-GTSEAM) MURARI, Juliana Cristhina Faizano (UEM-GTSEAM) CAPORALINI, José Beluci (DFL/UEM-GTSEAM) Introdução A primeira forma de educação na Grécia antiga, a do chamado período homérico, não possuía nenhuma organização institucional específica ou um método extremamente elaborado. Era uma educação que consistia essencialmente num treino de atividades práticas definidas. O treino para as necessidades mais humildes da vida era realizado em casa. Contudo, a educação homérica continha os germes da teoria do desenvolvimento da personalidade. Compreendia o duplo ideal do homem de ação e de sabedoria. Nos mitos tanto hesiódicos quanto homéricos encontramos personagens de extrema bravura, honestidade, sabedoria e um elevado senso de justiça. Esses heróis, como Aquiles, Ulisses e Heitor se tornaram arquétipos para os gregos, e esses tinham o dever de buscarem ser semelhantes aos seus heróis. O homem grego aprende desde pequeno a respeitar os deuses e a crer em seus mitos. Essas histórias ainda que fantásticas buscavam a formação de um cidadão ético, justo e sábio. Esse modo de educação pretendia educar a criança para viver em sociedade, era um educar para a boa convivência entre todos os cidadãos. Segundo Jaeger toda educação é o resultado da consciência viva de uma norma que rege uma comunidade humana. A educação participa da vida e do crescimento da sociedade, tanto no seu desenvolvimento exterior quanto no seu desenvolvimento espiritual 1 . 1 JAEGER, W. Paidéia, 1986, p.4.

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A IMPORTÂNCIA PEDAGÓGICA DOS POETAS HESÍODO E

HOMERO NA EDUCAÇÃO DOS JOVENS NA GRÉCIA ANTIGA

WIEZEL, Augusto Henrique Gaia (UEM-GTSEAM)

MURARI, Juliana Cristhina Faizano (UEM-GTSEAM)

CAPORALINI, José Beluci (DFL/UEM-GTSEAM)

Introdução

A primeira forma de educação na Grécia antiga, a do chamado período homérico,

não possuía nenhuma organização institucional específica ou um método extremamente

elaborado. Era uma educação que consistia essencialmente num treino de atividades

práticas definidas. O treino para as necessidades mais humildes da vida era realizado em

casa. Contudo, a educação homérica continha os germes da teoria do desenvolvimento da

personalidade. Compreendia o duplo ideal do homem de ação e de sabedoria.

Nos mitos tanto hesiódicos quanto homéricos encontramos personagens de extrema

bravura, honestidade, sabedoria e um elevado senso de justiça. Esses heróis, como Aquiles,

Ulisses e Heitor se tornaram arquétipos para os gregos, e esses tinham o dever de buscarem

ser semelhantes aos seus heróis. O homem grego aprende desde pequeno a respeitar os

deuses e a crer em seus mitos. Essas histórias ainda que fantásticas buscavam a formação

de um cidadão ético, justo e sábio.

Esse modo de educação pretendia educar a criança para viver em sociedade, era um

educar para a boa convivência entre todos os cidadãos. Segundo Jaeger toda educação é o

resultado da consciência viva de uma norma que rege uma comunidade humana. A

educação participa da vida e do crescimento da sociedade, tanto no seu desenvolvimento

exterior quanto no seu desenvolvimento espiritual1.

1 JAEGER, W. Paidéia, 1986, p.4.

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A história da educação está essencialmente condicionada pelos valores válidos em

cada sociedade. A Grécia ocupa uma posição singular, é ela que cria pela primeira vez um

ideal de educação que busca englobar o homem dentro de uma comunidade, formando

assim a idéia de cultura. Ao criar essa cultura própria, a educação grega elabora todo um

significado prenhe de sentidos que seriam absorvidos pela cultura ocidental.

A importância universal dos gregos como educadores deriva da sua nova concepção

do lugar do indivíduo na sociedade. A educação ocidental desde o seu nascimento até hoje,

recebe influências desse modo grego de educar.

Os gregos e a educação

Os gregos ocupam uma posição singular; em comparação com os povos do Oriente,

os gregos representam um progresso no que se refere à vida dos homens, principalmente a

vida pública, em comunidade. Os povos orientais se preocupavam em preservar as

tradições, em reproduzir o que era feito no passado, os gregos por sua vez procuravam

valorizar o desenvolvimento individual e inédito, dentro de um contexto da pólis, da

comunidade. O progresso das sociedades gregas se deu, sobretudo pela liberdade de

expressão e valorização das inúmeras formas de atividades; pelo cultivo e valorização do

novo.

A educação então vai se expressar em cada um de seus membros e acompanhar o

desenvolvimento dos valores característicos das comunidades, assim a formação social

depende desse desenvolvimento espiritual contido nos valores. A educação está integrada

na estrutura interna da comunidade, diz Jaeger. Desse modo, a estabilidade ou ruína2 da

mesma dependem da solidez dos fundamentos da educação. A ruína ocorre devido à

destruição ou decadência interna da tradição; como resultado disso surge na comunidade a

debilidade, a falta de segurança e até mesmo a impossibilidade absoluta de qualquer ação

educativa.

Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que rege uma comunidade humana, quer se trate da família, de uma

2 JAEGER, W. Paidéia, 1995, p.4.

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classe ou de uma profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado3.

Segundo Jaeger por mais elevados que julguemos as realizações artísticas,

religiosas e políticas dos povos anteriores, a história daquilo a que podemos com plena

consciência chamar cultura só começa com os gregos4. A Paidéia, em seu caráter

particular, é um esforço para gerar um elevado tipo de homem e com essa vontade de algo

sempre melhor. A noção de cultura que está a ser exposta é a de um ideal propriamente

grego de formação humana5. A educação se expressa na cultura, uma vez que essa

educação se dá em uma construção espiritual e também física, a cultura não era externa ao

homem, mas sim interna. Os gregos já eram criados desde criança na Paidéia, pois o

significado primitivo ou primordial é o de “criação dos meninos”6; então desde crianças

essa cultura está enraizada nelas, pois eram formadas pelos costumes e valores gregos.

Pode-se notar que a Paidéia entre os gregos era consciente e não ao acaso; essa aculturação

forma o ideal do que é o homem na Grécia.

Os gregos criaram o modelo de educação que nós hoje viríamos chamar de liberal.

Aquela educação em que o povo tem consciência de sua liberdade e faz uso dela. As

características educacionais gregas ajudaram, em muitos aspectos, a fundamentar o modelo

educacional moderno. A educação, a Paidéia grega, plantou suas sementes que floresceram

no modo de se educar nos séculos vindouros no Ocidente.

Os gregos foram os primeiros a elaborarem o conceito de liberdade dentro do

Estado; eles criaram a idéia de que a educação deve ser dirigida para a vida em sociedade,

criaram, ou ao menos preparam o que viria ser compreendido posteriormente como o

conceito de cidadania. Com a valorização do indivíduo as diversas personalidades tiveram

a chance de se desenvolverem, fazendo com que os jovens se inclinassem a interesses

também diversos dependendo de sua preferência. Segundo Monroe7 foram os gregos os

3Idem, ibidem. 4 JAEGER, W. Paidéia, 1986, p.5. 5 JAEGER, W. Paidéia, 1995, p.7. 6Idem, p.25. 7 MONROE, Paul. História da educação, 1979.

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primeiros a cumprir a missão de aplicar a inteligência a todas as fases da vida; foram eles

que primeiro lutaram por viver de acordo com a razão.

De acordo com a razão cada um tinha o direito de determinar o que seria melhor

para sua vida, cada indivíduo separadamente poderia escolher os motivos pelo qual a vida

vale a pena ser vivida. Valores como a arte, a política, a poesia, a ciência, a religião, etc.

eram cultivados e valorizados na sociedade grega de então. As pessoas tinham de maneira

autônoma e independente suas próprias razões de viver. E até hoje a educação procura

seguir essa idéia; educar a fim de que as pessoas por si mesmas encontrem suas razões de

viver. Os séculos posteriores consideraram sempre a Antiguidade clássica como um

tesouro inesgotável de saber e de cultura, quer no sentido de uma dependência material e

exterior, quer no de um mundo de protótipos ideais8.

A educação grega é dividida em dois períodos: o chamado período homérico e

período histórico. É no primeiro período que a sociedade passa por muitas transformações

e no qual se desenvolveram os sistemas educacionais. A educação relativa ao primeiro

período é a que seria herdada nas gerações posteriores. Nesta época a educação não

possuía nenhuma instituição específica, como uma escola, ou faculdade, não havia um

lugar no sentido de espaço físico, como um prédio ou uma sala onde as pessoas se

dedicassem ao estudo. A educação era voltada, sobretudo para a prática de atividades

físicas e não se dedicava a trabalhos literários. Os ensinamentos sobre aquilo que era

minimamente necessário para a vida era aprendido em casa, com a convivência da família

e com as pessoas próximas; os jovens tinham contato com aquilo que praticamente não

poderiam viver sem saber, quando adultos. Nas guerras e nos conselhos, nas assembléias

da cidade, da polis, os jovens aprendiam o que era preciso no que diz respeito à vida

pública.

Homero no dizer de Platão foi “o educador da Hélade” (thn Hlada pepaideuken)9.

De fato, Homero deu ao povo grego, juntamente com a paidéia, a língua, as artes e a fé

religiosa nos seus deuses olímpicos. A Ilíada e a Odisséia são os textos básicos da paidéia

grega.

8 JAEGER, W. Paidéia, 1986, p.19. 9 Platão, República, X, 606 e.

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Os pais dessa formação, como expressa Platão, foram sem dúvida os poetas. Uma

vez que os gregos nunca falaram da ação educadora da contemplação e da intuição das

obras de arte10, só aqueles que esculpem os homens vivos têm o direto a serem educadores.

Por exemplo, os poetas, os filósofos, os músicos, os retóricos e demais. A importância de

Hesíodo e Homero está em ajudar a fundamentar esses valores propriamente gregos e

passá-los de geração a geração pelas suas epopéias lendárias. Isto iria possibilitar a

abertura dessa educação individual, que se encontra no mundo contemporâneo.

Desse modo Homero, através de seus poemas acima mencionados, poemas esses

que eram transmitidos pela oralidade através das gerações criou um ideal de homem,

produziu uma espécie de arquétipo que deveria ser seguido por todos os homens gregos.

Nos mitos homéricos encontramos três personagens que deveriam nortear a educação dos

jovens na Grécia são eles: Aquiles, Heitor e Ulisses, que correspondem consequentemente

às duas obras atribuídas a Homero: Ilíada e a Odisséia. Esses três personagens

representavam um ideal de virtude, bravura, temperança, poder e sabedoria. A figura

desses heróis, muitas vezes comparados aos deuses, representava um modelo estereotipado

que deveriam ser seguidos por todos; os jovens deveriam procurar ser iguais aos seus

modelos e era principalmente nisso que consistia a educação homérica. Para Homero e

para o mundo da nobreza desse tempo, a negação da honra era, em contrapartida, a

maior tragédia humana. Os heróis tratavam-se mutuamente com respeito e honra

consoantes. Assentava nisso toda a sua ordem social11.

Esse ideal de um homem que age guiado pela razão, que é bravo, astuto, bondoso,

piedoso, continua mesmo depois que os ideais filosóficos estão inseridos no contexto

grego. Os gregos eram contra os excessos da vida; um bom homem deveria ser sempre

guiado pela temperança, isto é, pela exata medida, nunca errar pela falta ou pelo excesso,

tudo deveria ter uma exata medida entre os extremos; ao idealmente.

Podemos observar claramente essa noção de mediania em uma passagem de Os trabalhos e

os dias, escrito por Hesíodo, onde esse procurando alertar seu irmão diz: “Néscios, não

sabem quanto a metade vale mais do que o todo12.”

10 JAEGER, W. Paidéia, 1995, p.18. 11 JAEGER, W. Paidéia, 1986, p.31. 12 HESÍODO. Os trabalhos e os dias, 2002, p.25.

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Os gregos foram adquirindo gradualmente consciência clara do significado deste processo mediante aquela imagem do Homem, e chegaram por fim, através de um esforço continuado, a uma formação, mais segura e mais profunda que a de nenhum povo da Terra, do problema da educação13.

A educação homérica

É com Homero que temos os primeiros registros sobre educação; que começa

gradualmente as sementes da futura história da educação. O grande projeto educacional de

Homero estendeu-se sobre todo o território grego e depois sobre toda a cultura ocidental.

Homero teve a genial idéia de reunir as inúmeras histórias populares, que eram contadas de

geração após geração. Até ele essas histórias eram transmitidas oralmente e explicavam a

origem e o sentido das coisas, era um modo de explicação, de resposta aos

questionamentos aos diferentes aspectos da vida daquele povo. A essas histórias

denominam-se mitos.

Por mitos se entendem narrativas fantásticas, que contém uma certa sabedoria

popular, ensinam sobre a vida, sobre os fenômenos naturais e ilustram as crenças daquela

civilização. Os gregos realmente acreditavam em seus mitos; essas histórias faziam parte

daquela civilização, estavam intrínsecas a ela e constituíam o caráter básico daquela

cultura. Os gregos viam o sol, a chuva, ou se deparavam todos os dias com as pessoas

morrendo ou nascendo, ou ainda ficavam tristes, alegres, eram leais ou traídos e se

perguntavam “por quê?” Procuravam nos mitos explicações sobre todas essas coisas e

outras. Nessas narrativas os deuses são colocados como responsáveis das diversas

situações sejam elas ruins ou boas. Até mesmo porque, segundo o poeta Teógnis, “Nenhum

homem... é responsável pela sua própria ruína ou pelo seu sucesso: os deuses são os

doadores de ambas as coisas14.” São esses mesmos deuses que fazem o sol nascer e ir

embora todos os dias. Mesmo sendo histórias onde o sobrenatural impera elas já continham

embrionariamente o conhecimento que seria desenvolvido posteriormente, no chamado

pensamento filosófico. Nos mitos pode-se encontrar uma busca e preocupação com o

13 JAEGER, W. Paidéia, 1995, p.15. 14 Teógnis, 133-136. Apud DODDS, E.R.. Os gregos e o irracional, p. 38.

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racional, essa busca pela razão em tudo na vida, assim como as ações humanas e a vida em

sociedade é que irão se desenvolver como um modelo pedagógico posteriormente.

Os mitos eram uma forma de conhecimento, um meio pelo qual o homem

procurava entender o mundo que o rodeava. Essas lendas também tinham uma função

educativa na medida em que procuravam indicar o modo como o ser humano deveria se

comportar. Nas histórias encontravam normas de comportamentos, não como um manual

de instruções que diziam “faça isso ou faça aquilo”; através das aventuras dos heróis o

povo encontrava um modelo que deveria ser seguido, vendo a conduta do herói durante a

sua saga as pessoas buscavam ser como eles. Os heróis encontrados na Ilíada e na Odisséia

incorporam as características fundamentais de ser humano ideal, do seu ethos. De fato, em

Aquiles, Heitor, Ulisses e em outros heróis encontra-se um modelo, um arquétipo que

deveria ser imitado; neles encontram-se as virtudes que compõem o homem ideal, quase

perfeito.

Segundo Jaeger o coração do poeta está com os homens que representam a elevação da sua cultura e costumes, e isso se percebe passo a passo. A contínua exaltação que faz das suas qualidades tem, sem dúvida, uma intenção educativa. [...] A posição e o domínio preeminente dos nobres acarretam a obrigação de estruturar os seus membros desde a mais tenra idade segundo os ideais válidos dentro de seu círculo. A educação converte-se aqui, pela primeira vez, em formação, isto é, na modelação do homem integral de acordo com um tempo fixo.15

Por isso Homero é chamado de educador dos gregos, isso porque através de suas

histórias ele ditou o modo comportamental daquela época, os jovens eram educados tendo

em vista a figura do herói. Os homens deveriam, na medida do possível, possuir as virtudes

de Aquiles, Heitor ou Ulisses; cabia ao ser humano tentar se espelhar nesses heróis. Em um

tempo onde não havia leis, nem normas morais escritas, não havia outro modelo a ser

seguido, ao não ser o dos homens das tradições mitológicas. Nos mitos, geração após

geração, os pais ensinavam aos filhos que um comportamento digno de um homem de

verdade era um comportamento como o de Aquiles, Heitor ou Ulisses; esses ouviam as

histórias que eram contadas pelos seus antepassados e procuravam agir como agiram os

heróis.

15 JAEGER, W. Paidéia, 1986, p.44,45.

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Esse comportamento educacional transmitido de forma oral na época trazia consigo

uma série de ensinamentos que consistiam em honrar os deuses, honrar pai e mãe, respeitar

os estrangeiros e também uma série de preceitos sobre a moralidade externa e regras de

prudência para a vida. Segundo Jaeger essa educação se apresentou ainda como

comunicação de conhecimentos e aptidões profissionais que no conjunto os gregos

denominaram de techne16. Já o aspecto formativo encontrado em Homero se resume na

arete que é significativamente o atributo da nobreza; a vontade do poeta foi de formar um

tipo de homem aristocrático, nobre, dotado de excelência em uma imagem ideal de como o

homem deve ser. O que é fundamental nessa imagem é o kalóv, a beleza no sentido

normativo da imagem ideal. A arete é própria dos aristoi, mas esta palavra não é usada

pelos gregos para designar apenas a excelência dos melhores homens, mas também a

excelência dos deuses e a excelência dos animais. E além desse caráter de nobreza moral

que só é reconhecida uma vez nos livros finais por Homero a “arete” sempre teve uma

conotação de virtude guerreira, avaliando a força, a destreza e acima de tudo o heroísmo. A

força nesse sentido não está desligada do contexto moral de uso da força, mas ambas se

apresentam intimamente ligadas.

O adjetivo agathós que embora proceda de outra raiz, corresponde ao substantivo

“arete”; o significado de agathós continha em si a nobreza e a bravura, e este significado

variava nas situações, e poderia ser nobre, às vezes valente ou hábil. Este termo se

apresenta como unificador desde a perspectiva moral de ação e do ponto de vista do

guerreiro da ação; agathós aplicado ao guerreiro o torna não só um homem bravo, valente,

mas também um homem de deveres e feitos éticos e o mesmo ocorre ao nobre. A arete

possuía um componente de virtude moral em seu significado, mas nessa época agathós

ainda não o possuía; posteriormente viria a ter o sentido de bom. Esse ideal de homem

encontrado nas obras homéricas em ato é o Kalo9v kagaqo0v, que é semelhante nos dias de

hoje ao homem refinado; o Kalos kagathos era o nobre aristocrata de virtudes que as

epopéias de Homero visavam formar. A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual

nasce e se desenvolve a formação de uma nação17.

16 JAEGER, W. Paidéia, 1995, p. 23. 17 Idem, p. 24.

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Na arete então podemos encontrar essa formação cavalheiresca dos aristocratas,

mas não existia apenas a arete para a formação espiritual e física do masculino, mas

também para o próprio sexo feminino. A mulher possuía, nesse período homérico, a sua

própria formação particular que é a formosura. O culto do homem valoriza os méritos

corporais e espirituais e o culto da mulher valoriza a sua beleza e sua formação cortesã de

todas as idades cavalheirescas, o que seria para o homem ser o homem refinado,

cavalheiresco. As suas virtudes estão na modéstia e no desembaraço do lar. Entre os gregos

havia uma divisão de áreas entre os sexos e essa divisão era representada pelos deuses

Hermes e pela deusa Héstia. Hermes representava o mundo masculino que era na polis, a

vida pública, o comércio, o governo da cidade e Héstia representava a vida caseira, os

cuidados com o lar, com os filhos; governar a casa era tarefa da mulher. Penélope e Helena

são grandes exemplos do culto feminino; Helena na Ilíada é uma mulher de beleza

radiante, à qual os homens prestavam homenagens e Penélope, na Odisséia, esposa de

Odisseu, era muito louvada por sua moralidade rígida e virtudes caseiras. Helena na

Odisséia é apresentada como o protótipo de grande dama, modelo de distinta elegância e

de soberana forma e representação social. Helena em sua conversa com o hóspede

Telêmaco demonstra sua graciosa aparência familiar. Arete, esposa do príncipe Feace, é

venerada como uma divindade; sua presença acaba com disputas e ela intercede e

aconselha na decisão de seu marido. Para Jaeger o período nomeado de homérico foi o

período em que as mulheres melhor tiveram destaque e condições sociais na Grécia, e não

mais voltou a ser tão elevada quanto nesse período de cavalaria. Nessa época a mulher era

tratada com cortesia e esta é fruto de uma cultura antiga de elevada educação social; a

mulher era a mantenedora e guardiã dos mais altos costumes e tradições18.

No poema mais antigo a Ilíada, encontra-se predominantemente a força bruta e o

guerreiro é a figura central. O comportamento do homem não está voltado apenas para a

vida pública, em sociedade, mas para suas atitudes na guerra. A figura do herói, nesses

poemas, está sempre inserida em alguma batalha e o que determina suas virtudes é sua

bravura, lealdade para com o seu país, coragem e espírito de liderança. Segundo Jaeger

para o herói a luta e a vitória são a distinção mais alta e o conteúdo próprio da vida. Os heróis da Ilíada, que se revelam no seu gosto pela guerra e na sua aspiração à honra como autênticos representantes da sua classe, são,

18 JAEGER, W. Paidéia, 1995, p. 47.

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todavia, quanto ao resto da sua conduta, acima de tudo grandes senhores, com todas as suas excelências, mas também com todas as suas imprescindíveis debilidades. É impossível imaginá-los vivendo em paz: pertencem ao campo de batalha. Fora dele só os vemos nas pausas do combate, nas suas refeições, nos seus sacrifícios, nos seus conselhos.19

O cenário dos poemas é sempre composto por lutas onde o mais valente é aquele

mais respeitado por todos. Pode-se dizer que esse modelo é reflexo da vida daquele tempo,

corresponde historicamente a um período em que a civilização ainda não estava

consolidada; o homem dessa época se via constantemente em guerra, suas tribos migravam

sempre e lutavam entre si.

Na Odisséia encontra-se um cenário diferente; efetivamente, Ulisses aparece como

um rei, um marido e um pai que deseja regressar à sua casa. Nota-se o refinamento de

Ulisses e dos pretendentes de Penélope. Através das manifestações culturais como o

comer, o beber, o cantar ou celebrar, percebe-se o quanto o mundo grego já está

consolidado e o homem, e também a figura do herói, está muito mais centrada em sua casa

do que na guerra. Agora ele tem uma terra natal fixa e para ela vive envolto em muitos

costumes, como as libações que esse deve fazer aos deuses, ou o respeito à tradição, ou a

rainha que tem obrigatoriamente de escolher um novo rei já que Ulisses está ausente há

mais de vinte anos. O homem se vê dentro de uma cidade, de uma comunidade onde

prevalecem leis jurídicas e regras morais.

Na Ilíada há o herói na batalha, na Odisséia ele aparece após ela. Diz Jaeger:

A nobreza da Odisséia é uma classe fechada, com intensa consciência dos seus privilégios, do seu domínio e dos seus costumes e modos de vida refinados. Em vez das grandiosas paixões das figuras sobre-humanas e dos trágicos destinos da Ilíada, deparamos no novo poema com grande número de figuras de estatura mais humana.20

Nesses dois poemas vê-se claramente o que Homero concebia como expressão de

seu próprio pensamento conjugado com a realidade por ele percebida. Há aqui uma

passagem do “primitivo” para o já “civilizado”, onde o guerreiro é substituído pelo cidadão

polido. Homero ao ressaltar as características do herói, enquanto força bruta, na Ilíada, e

19 JAEGER, W. Paidéia, 1986, p.41. 20 Idem, p.43.

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astúcia na Odisséia, mostra sua preocupação e o objetivo da sociedade em dois momentos

diferentes. A clara mudança do predomínio da força para um aspecto mais humano revela

uma evolução e um progresso dentro de um determinado período histórico e aponta para

um diferente ideal de homem.

Homero, assim como afirmou Platão, foi o educador primeiro da Grécia. Ele guiou

durante muitos séculos o modo pelo qual os jovens deveriam se comportar e o que

deveriam aprender para estarem prontos para a vida dentro de um ambiente coletivo.

Mesmo depois de a Grécia procurar sobrepor ao pensamento mítico o pensamento

filosófico, as pessoas ainda recorriam aos poemas para idealizar modelos de virtude, justiça

e coragem. Quando se procura mostrar homens dignos e merecedores de glória, ontem

como hoje, recorre-se às figuras heróicas, como Aquiles, Heitor e Ulisses, no passado e às

personagens marcantes de hoje.

Hesíodo e seu papel pedagógico

Outro poeta importante para a história da educação é Hesíodo, que juntamente com

Homero, formou o ideal pedagógico da Grécia. Contudo, Homero se preocupa e ilustra a

vida dos heróis dentro de uma esfera urbana, participante de uma comunidade em

constante progresso, acentua os valores da nobreza, dos costumes, das tradições, no

refinamento dos heróis. Hesíodo, por outro lado, revela a realidade do campo, a vida rural

e mostra uma enorme preocupação com o conceito de trabalho e justiça. Há, pois, ênfase

diversa em um e outro poeta, quanto à sua preocupação formativa já que sublinham valores

educativos e culturais complementares, porém diversos.

Em Hesíodo revela-se a segunda fonte de cultura: o valor do trabalho. [...] O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exigem disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do homem.21

Hesíodo nasceu e viveu em Ascra no século VIII a.C. e dedicou-se ao cultivo da

terra, provável herança de seu pai. O próprio Hesíodo relata na sua obra Teogonia a

21 JAEGER, W. Paidéia, 1986, p.85.

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experiência mais importante de sua vida: diz que quando apascentava suas ovelhas

aproximaram-se dele as Musas e a voz delas despertou nele, o poeta, a inspiração e desse

modo sentiu-se chamado a cantar coisas passadas e futuras, reconhecendo assim sua

missão intelectual.

Na Teogonia, encontra-se uma tradição de procedência diversa, misturada de

maneira muito variada com aquilo que Hesíodo concebeu como expressão do seu próprio

pensamento. A Teogonia descreve um desenvolvimento, que vai do caos até o mundo

organizado; nesta obra há um esforço de pensamento pré-racional que é sustentado pela

causalidade mítica e isto abrirá caminho, posteriormente, para cosmogonias filosóficas.

Em seu primeiro poema Teogonia ele mostra como se deu a organização do mundo

e de suas partes naturais, dos deuses e sua criação. Em Os trabalhos e os dias, o poema que

mais interessa aqui, ele quer relatar como se deu a organização do mundo terreno, dos

mortais e como esses se diferenciam dos deuses. Nesta obra Hesíodo descreve como se deu

a organização e criação dos mortais e os fundamentos que englobam o ser humano.

Os trabalhos e os dias é composto por vários poemas que se ligam e dão

sustentação ao todo, englobam um problema crucial e que preocupa Hesíodo nesta época: a

justiça. Esta obra foi escrita em um momento em que Hesíodo passava por um problema

pessoal, a saber, seu pai havia feito a divisão de terras que havia deixado para ele e seu

irmão. Contudo, devido a uma trapaça de seu irmão este fica com a totalidade dos bens e

Hesíodo acaba pobre; sentindo-se profundamente injustiçado, em consequência disso, ele

invoca a justiça de Zeus para o seu caso pessoal e também para todos, já que não lhe é

possível confiar na justiça dos homens e expressa isto em Os trabalhos e os dias.

Assim como em Homero há a evolução de pensamento do primeiro poema para o

segundo, do mesmo modo na Teogonia encontra-se predominantemente o sobrenatural, o

mítico; no segundo, Os trabalhos e os dias, Hesíodo se revela um poeta muito mais

humano e humanizado. Em Os trabalhos e os dias ele quer mostrar um ideal de homem,

assim como na Odisséia de Homero e seu Ulisses, mas dessa vez Hesíodo ensina não pelo

que se faz mas sim dizendo aquilo que não se deve fazer. Ele mostra como as raças e povos

que se corromperam pelo ódio, pela cobiça e principalmente pela falta de justiça

sucumbiram, se autodestruíram.

Hesíodo clama a seu irmão Perses que abra os olhos para a justiça e para o trabalho, e diz

que se isso ele não fizer, a prosperidade e a sorte andarão sempre longe dele. Isso com

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certeza representa um modelo educacional, através do qual Hesíodo quer revelar o valor do

trabalho e da justiça, de certa forma preparando a mente dos jovens para seguir esse

caminho. Ele revela que se os jovens assim não forem a sociedade se destruirá. Hesíodo

aponta para um conceito de justiça, para a superioridade da Dixh0 sobre a Hubriv, ou seja,

da justiça sobre a injustiça, ou da medida sobre a desmedida. Essas duas forças estão

sempre dispostas igualmente para todos os homens, e esses têm que escolher.

Não há origem única de Lutas, mas sobre a terra duas são! [...] Pois uma é guerra má e o combate amplia, funesta! [...] A outra nasceu primeira da Noite Tenebrosa e a pôs o Cronida altirregente no éter, nas raízes da terra e para os homens ela e a melhor. [...] Ó Perses! Mete isso em teu ânimo: a Luta malevolente teu peito do trabalho não te afaste.22

Hesíodo formula um conceito que seria desenvolvido e usado até os dias de hoje, o

conceito de justiça. Ele procura mostrar o respeito pelo que pertence a outrem; aquilo que

não se adquire com o trabalho, não tem valor, de acordo com o pensamento hesiódico.

Trapacear, roubar ou manipular são situações inadmissíveis para o poeta; isto só prejudica

e mancha a sociedade. Hesíodo abordando a problemática da justiça foi assim o primeiro a

trazer à luz a questão do direito, que é até hoje em dia abordado nas leis contemporâneas.

Aquilo que é de direito, ou seja, que pertence a cada um de acordo com o seu valor deve

ser respeitado acima de tudo. Sem justiça a sociedade civilizada não é possível.

O papel pedagógico de Hesíodo consiste principalmente nisso, em mostrar à sociedade

grega valores sem os quais a vida em comunidade não pode prosseguir, porque não tem

sentido. Os jovens eram, portanto, educados dentro desses padrões; a poesia, com sua

sabedoria milenar dizia o que era correto fazer e o que não o era, mostrava o que era

preciso saber e ser para tornar possível a vida em coletividade.

A poesia como psicagogia

Jaeger nos abre os olhos para a fantástica visão de uma determinada poesia que é

um veículo estético, artístico e educativo. Na época dos antigos gregos e principalmente

22 HESÍODO. Os trabalhos e os dias, 2002.

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nos tempos homéricos a poesia se apresentava como unificadora de conceitos particulares

da própria experiência vivida e de conceitos universais conhecidos pelo intelecto. Mas essa

determinada poesia só poderia ser educativa se suas raízes mergulhassem nas camadas

mais profundas do ser humano e esta tem de visar um ethos, deve haver anseio espiritual a

formar uma imagem do humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever. Pode-se

constatar, nas obras homéricas, que é sempre evidente esse ideal de um homem guerreiro e

nobre que respeita a sua tradição e honra a sua palavra. A poesia só pode exercer uma tal

ação se faz valer todas as forças estéticas e éticas do homem.23

Os gregos chamaram essa educação dos valores elevados que se manifesta por meio

da expressão artística de psicagogia, essa arte tem o poder de conversão espiritual. Essa

forma de educar se compõem da validade universal e da plenitude imediata e viva, que

segundo Jaeger são condições importantes para a ação educativa.24 Dentro da poesia se dá

a plenitude dos sentidos que são compostas por experiências, mas essas carecem de valores

universais. Essas experiências, para alcançar o grau máximo de profundidade em seus

conceitos, acabam por sofrer muito a interferência dos sucessos acidentais, em outras

palavras, esses conceitos estão jogados ao acaso dessas interferências para se obter um

conhecimento concreto. Outro lado presente é o da reflexão, da filosofia que atinge a

essência das coisas, mas que atuam somente naqueles cujos pensamentos chegam a

adquirir a intensidade da abstração intelectual. Pela união dessas duas modalidades as

dificuldades de ambas são superadas tornando assim a poesia vantajosa sobre qualquer

ensino intelectual. Ressalta Jaeger que essas considerações não são de modo algum para as

poesias de todas as épocas25, nem mesmo para os próprios gregos. Homero foi grande

representante da cultura grega primitiva e suas cavalarias são reflexos involuntários da

realidade na arte e dessa realidade a poesia homérica se nutriu. A obra de Homero é

inspirada, na sua totalidade, por um pensamento “filosófico” relativo à natureza humana

e às leis eternas que governam o mundo. Não lhe escapa nada do essencial da vida

humana. O poeta contempla todo o conhecimento particular à luz do seu conhecimento

geral da essência das coisas.26

23 JAEGER, W. Paidéia, 1995, p. 63. 24 Idem. 25 Idem. 26 Idem, p. 77.

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A presença do mito dentro da poesia possui uma inseparável e necessária união, o

mito permite o reconhecimento dos grandes feitos passados. A possessão e o delírio das

musas apoderam-se de uma alma sensível e consagrada, despertam-se e extasiam-na em

cantos e em toda a sorte de criações poéticas; e ela, enquanto glorifica os inúmeros feitos

do passado, educa a posteridade27. Este pequeno trecho permite-nos perceber como é

intrínseca a presença do mito no papel pedagógico do poeta em suas poesias. O mito não

educa pela comparação dos acontecimentos da vida corrente, mas sim pela sua própria

natureza. Está na natureza do mito ser de instância normativa; em seu âmago algo tem de

validade universal, mesmo tendo um caráter fictício o mito é o sedimento de

acontecimentos históricos que alcançaram a imortalidade através da longa tradição e de sua

interpretação enaltecida pela posteridade.

Os deuses e a formação dos homens

Tanto em Homero quanto em Hesíodo o pilar central de sustentação das poesias

míticas educacionais são os deuses. São eles porque estes são os que trazem a ordem e as

boas leis aos homens e os homens lhes prestam honras. Em reconhecimento a isso,

honram-nos através das libações e dos sacrifícios. Os deuses estão presentes como

mediadores das ações humanas e dessa mediação surge então o que pode ser identificado

como aquilo que é bom, virtuoso. Didaticamente os poetas ensinam como encontrar essa

mediação nos homens, mas não em qualquer homem, mas sim nos heróis e nobres

apresentados pelas tradições míticas do passado. Fica claro, nesse período chamado

homérico, que os homens sabiam o que é algo bom e algo mal, de acordo com a

determinação divina que está presente nos grandes homens. Isto é apresentado, por

exemplo, por Hesíodo em Os trabalhos e os dias; lá, com efeito, ele mostra que até mesmo

o tosco camponês agricultor possui virtude, pois este, que trabalha, que derrama seu suor e

dá seu sangue, está agindo como pede a divina Éris (discórdia), em sua manifestação boa

nascida da tenebrosa Nix (noite). Vê-se que o agricultor é dotado de virtude porque ele age

como a divindade lhe estabeleceu que agisse; e essa virtude agrária se dá no trabalho, que é

o bom conflito entre o solo e o homem, e este o torna bom. Do contrário se fosse como o

27 Idem, p. 67.

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irmão preguiçoso de Hesíodo que contempla o conflito em prol de suas más ambições este

homem seria mal. Os deuses, conforme suas vontades, interferem pessoalmente na vida

humana. Eles delimitam suas ações, amaldiçoam, abençoam e condenam os homens

errantes a castigos; definitivamente os deuses são responsáveis, em boa parte, pelo destino

dos homens, apesar de eles também já terem seu próprio destino traçado, fazem com que

este se cumpra. Na Ilíada os deuses interferiam pessoalmente conforme sua vontade;

Poseidon mesmo contra a vontade de Zeus interferiu na guerra porque a sua vontade era a

de os Aqueus, que estavam sendo massacrados pelos troianos, ganhassem. Na Odisséia

Odisseu é castigado a vagar a esmo pelo oceano por ter desafiado Poseidon e lhe ser

ingrato com a ajuda na conquista de Tróia.

Pode-se observar que nos cantos dos dois poetas os deuses são pontos de

referências para a visão moral dos homens. Os deuses, de fato, são os juízes das ações de

tais homens e, se por ventura, algum homem tiver desonrado, roubado, caluniado etc., para

essas e quaisquer ações injustas há a intervenção divina para trazer novamente a

supremacia da justiça. Interessante notar que o homem causa a injustiça, mas só os deuses

podem restituí-la. Isto é muito evidente quando, na Ilíada, Aquiles pede à sua mãe, a deusa

Tétis, para que ela clame a Zeus para que este lhe estabeleça novamente a honra que lhe foi

tirada por Agamêmnon; em Os trabalhos e os dias o próprio poeta Hesíodo invoca a

justiça divina de Zeus, uma vez que este foi alvo das trapaças de seu irmão Perses, já que

este a própria justiça dos homens subornara; desde então o poeta só confia na justiça

divina.

Os deuses estão sempre interessados no jogo das ações humanas. Tomam partido

por este ou por aquele, conforme desejam repartir seus favoritos ou tirar vantagem. Todos

tornam o seu deus responsável pelos bens e pelos males que lhes acontecem. Toda

intervenção e todo êxito são obra dele. Também na Ilíada os deuses se dividem em dois

campos. Isto é crença antiga. Mas são novas algumas facetas da sua elaboração como o

esforço do poeta para manter, tanto quanto possível, na dissensão que a guerra de Tróia

provoca no Olimpo, a lealdade mútua dos deuses, a unidade do seu poder e a estabilidade

do seu reino divino. A causa última de todos os acontecimentos é a decisão de Zeus.

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Mesmo na tragédia de Aquiles, Homero vê o decreto da sua vontade suprema. Os deuses

intervêm em toda motivação das ações humanas28.

Conclusão

Pode-se concluir que Hesíodo e Homero apesar de suas diferenças estruturais,

formaram o ideal pedagógico da Grécia. Tal ideal que influiria em todo o pensamento

ocidental e se perpetuaria até a contemporaneidade. O modelo criado por esses poetas foi

usado para educar milhares de gregos ao longo dos séculos e até hoje os heróis presentes

nos mitos são buscados quando se precisa de um exemplo de homem completo, verdadeiro,

possuidor de todas as características que compõem o homem perfeito, ideal.

Pode-se notar que apesar das diferenças pedagógicas dos poetas, em que um trata os

problemas do homem camponês e o outro os problemas do homem cidadão, urbano, ambos

conseguiram desenvolver satisfatoriamente uma educação universal mítica que se

harmoniza com a Diké e se opõe à Hybris. Os modelos então se complementam, cada um

em sua região de ação específica. Ambos procuram se afastar dos excessos, dos extremos,

das desmedidas. Os mitos são então meios e modelos de ação eficientes que apresentam

questões fundamentais de comportamento social, de como agir virtuosamente entre os

homens e perante os deuses. Nos mitos os deuses se apresentam de forma a sustentar os

modelos de virtude expostos; não só sustentar, mas de transmiti-los para os homens através

da inspiração divina dos poetas rapsodos. Os deuses não são só importantes para a cultura

grega, mas são sim fundamentais, pois estes são os pilares morais que sustentam a Paidéia,

tanto homérica quanto a hesiódica. Pelos mitos os jovens gregos são inspirados a serem

heróicos como Heitor, a serem honrados como Ajáx e a não ser como o injusto irmão de

Hesíodo: Perses.

Os valores necessários que estavam contidos nos modelos de formação poética dos

gregos, que eram necessários para a vida em sociedade, não se encontram presentes na

formação dos dias de hoje. Ideais de virtude, temperança e justiça são atributos

fundamentais que os jovens deveriam aprender e que hoje faltam na educação. Esses

valores não são muito comuns nos dias de hoje; o ensino não é mais direcionado para a

28 Idem, p. 79.

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virtude e, às vezes, tem-se a impressão que esses valores, para muitos dos jovens de hoje,

não signifiquem muito, pois não são mais enfatizados no processo pedagógico e correm o

perigo de seu sentido esvair-se. Talvez seja o momento de se começar, ou melhor, se

continuar a repensar o ato pedagógico e não se esquecer de vinculá-lo a alguns valores

éticos. Tais valores, ao lado dos valores intelectuais, possam dar um fundamento mais

profundo e duradouro ao ato do conhecimento e da formação do futuro adulto que deve

sempre ser agente de ação propositiva na Sociedade.

REFERÊNCIAS

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