A imposição do catolicismo a alguns reis · PDF filenos, sua submissão...

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47 Antropólogo e professor da Universidade stadual da Bahia Patrimônio Cultural Afro-Brasileiro A imposição do catolicismo a alguns reis africa- nos, sua submissão aos portugueses; a negação de seus nomes; o esfacelamento de suas famí- lias; a política adotada pelos traficantes; a “árvore do es- quecimento”; a pratica da divisão do Condes dos Arcos; a demonização de suas culturas; a falta de amparo do Estado brasileiro Republicano, as políticas de embraquecimento; a “escola baiana de medicina” com suas teorias racistas a perseguição policial amparada pelo discurso preconceitu- osos da imprensa, não foram capazes de impedir que as di- versas culturas vindas do continente africano, não somente se perpetuassem mas também se recriassem. Neste cons- tante inventar, e em algumas vezes, por trás da “brinca- deira de faz de conta”, apenas para lembrar um expressão ainda hoje utilizada pelas nossas crianças negras, elemen- tos simbólicos foram juntados a outros que não paravam de chegar do continente africano. O encontro das chamadas culturas negras no Novo Mundo percorreu caminhos diversos e deu respostas im- previsíveis. No catolicismo, o artista negro inovou ao trazer modifi- cação na arte de talhar, não somente atribuindo sentimen- tos aos seres celestiais, mas lhes conferindo traços negros ou de mulheres negras, ou ainda, enriqueceu o ouro brasi- leiro com moedas africanas, os búzios. Na forma de trabalhar a terra, africanos, africanas e seus descendentes, não somente inventaram Palmares, uma sociedade real que conseguiu reunir brancos, negros e índios, em torno de um sonho: a liberdade. O Brasil co- nheceu através dessa experiência de homens e mulheres negras, a possibilidade de uma sociedade plural baseada na posse coletiva. No modo de organização, trouxeram um modelo antigo inspirado nas civilizações que os europeus esfacelaram a partir do contato com o Continente Africano e aqui que- ro evocar uma expressão a qual a professora Hildegardes

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Antropólogo e professor da Universidade stadual da Bahia

Patrimônio Cultural Afro-Brasileiro

A imposição do catolicismo a alguns reis africa-nos, sua submissão aos portugueses; a negação de seus nomes; o esfacelamento de suas famí-

lias; a política adotada pelos traficantes; a “árvore do es-quecimento”; a pratica da divisão do Condes dos Arcos; a demonização de suas culturas; a falta de amparo do Estado brasileiro Republicano, as políticas de embraquecimento; a “escola baiana de medicina” com suas teorias racistas a perseguição policial amparada pelo discurso preconceitu-osos da imprensa, não foram capazes de impedir que as di-versas culturas vindas do continente africano, não somente se perpetuassem mas também se recriassem. Neste cons-tante inventar, e em algumas vezes, por trás da “brinca-deira de faz de conta”, apenas para lembrar um expressão ainda hoje utilizada pelas nossas crianças negras, elemen-tos simbólicos foram juntados a outros que não paravam de chegar do continente africano.

O encontro das chamadas culturas negras no Novo Mundo percorreu caminhos diversos e deu respostas im-previsíveis.

No catolicismo, o artista negro inovou ao trazer modifi-cação na arte de talhar, não somente atribuindo sentimen-tos aos seres celestiais, mas lhes conferindo traços negros ou de mulheres negras, ou ainda, enriqueceu o ouro brasi-leiro com moedas africanas, os búzios.

Na forma de trabalhar a terra, africanos, africanas e seus descendentes, não somente inventaram Palmares, uma sociedade real que conseguiu reunir brancos, negros e índios, em torno de um sonho: a liberdade. O Brasil co-nheceu através dessa experiência de homens e mulheres negras, a possibilidade de uma sociedade plural baseada na posse coletiva.

No modo de organização, trouxeram um modelo antigo inspirado nas civilizações que os europeus esfacelaram a partir do contato com o Continente Africano e aqui que-ro evocar uma expressão a qual a professora Hildegardes

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Vianna se refere e dedica algumas linhas: “O Quin-tal de Nagô”, ou utilizando uma expressão bakongo: o futu; uma ordem diferente da privilegiada pela cultu-ra branca ocidental onde o forte não é separar, mas juntar. Para algumas tradi-ções bantu, o futu é isso. Diversas vezes já tivemos a oportunidade de ouvir Makota Valdina explicar: “ele é uma espécie de pa-cote onde Nganga Zambi colocou tudo... Tudo! A se-paração veio depois”.

A mão negra modificou não somente a arquitetura, mas a comida, a lingua-gem, introduzindo alguns provérbios, adivinhações, histórias que desde cedo fo-ram transmitidas através de uma oralidade que ao invés de concorrer com a escrita inventou outras escritas que podem ser encontradas gra-vadas no corpo de algumas

pessoas, em cada traço que compõe as tatuagens rituais e nas formas diversas que alternam-se entre as cores e linhas que marcam os ini-ciados nas religiões de ma-trizes africanas, mas tam-bém o silêncio, o não dito, o faz de conta...

Na religiosidade, estes homens e mulheres, pro-fundamente conhecedores de suas tradições, se não fizeram sínteses de mundos africanos, nos deixaram mundos construídos a par-tir de sínteses baseadas nas suas vivencias e nos seus sentimentos.

São, pois, estes univer-sos que estamos chaman-do de patrimônio, palavra emprestada do latim patri-moniu, com o significado de herança paterna, bens de família. Para as religi-ões tradicionais africanas este conceito é algo muito amplo, pois diz respeito ao

próprio mundo. O mundo é uma dádiva dos ancestrais e é da relação com estes que depende a harmonia das coisas. As cidades, os rei-nos, as pessoas, a natureza são pedaços do sagrado. Há mitos que falam exatamen-te isso como o que diz que “Olorum ia retirando partes do seu corpo e jogando so-bre as águas e as coisas iam se formando.”

O patrimônio cultural afro-brasileiro pode ser chamado também de ele-mento fundante da própria humanidade se assumirmos que o Continente Africa-no não somente nos legou as primeiras pessoas, mas também a medicina, a tec-nologia, as universidades, a filosofia, etc, diferentemen-te do que nos acostumamos a ouvir até certo tempo atrás. Portugal e Espanha, ao lado de outros países in-vasores se depararam com

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civilizações que já haviam tido contato com a Ásia e com as Américas. Esta é uma história que temos que contar mais.

Precisamos falar mais também sobre Chico Rei, Dom Obá, “o Cabra”, aquele artista que se pa-resentou no Cristo morto que esculpiu a pedido de um senhor, que represen-tou sua agonia nas pedras de rubi que em seguida colocou na obra. Nossas crianças precisam ouvir mais sobre a Zeferina do Quilombo do Urubu, Acotirene e tantas outras mulheres que começa-ram a história no Brasil.

A tradição institui um tempo, às vezes o recria, inventa. Ela faz isso atra-vés de ritos capazes de fazer, por exemplo, co-midas brasileiras serem apreciadas por ancestrais africanos. O rito muda até os tipos e as carac-terísticas das folhas. E quem tem esse saber não revela; quem sabe não conta porque o rito ao mesmo tempo que des-cobre, encobre uma série de coisas. E aqui quero evocar velhos tios e tias que não somente tinham o poder de “encantarem-se”, transformar-se em pedras, peixes, aves, mas também de estarem em dois lugares ao mesmo tempo.

Patrimônio tem a ver com Memória e esta se não

pode ser sempre algo viva, depende dos vivos para está sempre atualizada. Sem dú-vida alguma, o maior patri-mônio são as pessoas, ou trazendo presente o velho

provérbio, os que nascem é que são sempre vivos.

A fim de ilustrar este fato me permitam evocar o final de uma fala de uma sacer-dotisa jeje mahin da cidade de Cachoeira ao interrom-per a sua biografia. Após

quase duas horas de entre-vista, com a sua voz falhan-do por causa da sua idade, Luiza Franquelina da Ro-cha como ela costumava se apresentar ou Gaiaku Luiza

falou: É um pouco da mi-nha história. Se você qui-ser venha a noite. Gosto mesmo é de falar a noite. A Noite eu conto mais. Eu fico aqui em cima so-zinha...

Na maioria das vezes homens e mulheres ne-gras têm ficado sozinhos. Ainda está para ser feita a historia de Mãe Cecília do Bonocô, “a grande vi-dente da Rua da Liberda-de” a qual Edson Carnei-ro apenas se deu o traba-lho de escrever esta linha; Joãozinho da Goméia, Eduardo de Ijexá, Nezi-nho do Portão, Bernadi-no da Paixão, Tio Ana-cleto, Zé do Vapor, Dona Baratinha, Gaiaku Luiza e tantos outros. Pesso-as que vivem na memó-ria de seus filhos, filhas, amigos e amigas como verdadeiros Baba tundê. Pais e mães sempre pre-sentes, retornados.

Oxalá, a história des-tas pessoas, suas estra-

tégias de luta nos motive a fazer cada vez mais a fazermos um grande ajô, união, um encontro basea-do em caminhos baseados em relações mais justas que se efetivam em prati-cas políticas como estas.