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A inadimplência deliberada de tributos e a responsabilidade patrimonial dos sócios Max Möller [email protected]

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A inadimplência deliberada de tributos e a responsabilidade patrimonial dos sócios

Max Möller

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A inadimplência deliberada de tributos e a responsabilidade patrimonial dos sócios

Max Möller1

Introdução

Atualmente, verifica-se no âmbito jurídico um constante processo de mutação de fontes, práticas e atitudes dos operadores, internos e externos, que implicam na necessidade de revisão de vários conceitos e práticas por parte dos operadores do direito.

No campo da administração tributária, aí compreendida a Fazenda Pública, tanto no âmbito da fiscalização e autuação como em seu corpo jurídico, essas mudanças mostram-se também evidentes, principalmente ante a necessidade constante de recursos para atender políticas públicas ou mesmo ante a evidente de eficácia da execução fiscal.

De modo a afrontar a complexidade e a dinamicidade das relações econômicas atuais, bem como seus sucedâneos contábeis e jurídicos; faz-se necessário ao servidor público atuante em tais áreas o emprego de um dinamismo, atenção e criatividade que lhe permita estar preparado a enfrentar tanto as tentativas legítimas de escapar ao alcance da norma tributária, mas, principalmente, as manobras ilegítimas, ilegais e fraudulentas que possam tornar ineficazes a cobrança do crédito tributário não pago.

Atualmente verifica-se que, no âmbito estadual, as Procuradorias Fiscais lutam para atingir níveis de efetividade que, com sucesso, alcançam tristes percentuais de cinco por cento (5%) do passivo tributário. Evidentemente que, tal como apontam alguns poucos estudos sobre a matéria, os motivos para tais índices são vários e complexos.

Nossa intenção no presente texto será, portanto, tratar de um dos pontos que entendemos fundamentais ao aprimoramento das ações de cobrança e que, em nosso entendimento, refletem pontos essenciais de modernização de nossa atividade. São eles a necessidade de uma extrema atenção às decisões e, principalmente, aos fundamentos e lógica empregados pelos Tribunais Superiores

1 Procurador do Estado do Rio Grande do Sul e Doutor em Direito pela Universidade de Burgos – Espanha.

e uma atuação não pautada numa burocracia cega, mas atenta às conseqüências que a aplicação ou não aplicação do direito possam causar no plano fático. Evidentemente, por estarmos tratando do direito tributário, as conseqüências fáticas certamente estarão direcionadas à economia.

Assim, relacionando ao problema da eficácia da execução fiscal, buscaremos examinar o problema da conduta dos agentes econômicos que simplesmente ignoram o “dever de pagar tributos”, em nada se constrangendo com os lançamentos efetuados, mantendo postura de deliberada desconsideração com suas obrigações tributária, e que acabam acumulando significativos débitos fiscais, lesando não apenas o Fisco, mas todo o setor econômico do qual participam. Será analisada, portanto, a possibilidade de responsabilização dos sócios dessas empresas à luz do direito pátrio, mormente em relação à Súmula 430 do Superior Tribunal de Justiça, que afasta a responsabilização dos sócios nos casos de imposto informado não pago pontualmente.

Estariam essas condutas deliberadas protegidas pela Súmula 430 do Superior Tribunal de Justiça?

A partir dessa questão, passaremos a analisar a forma de construção da referida Súmula, a reação dos contribuintes a sua edição e a evolução da jurisprudência a partir de alguns problemas que lhe foram oferecidos envolvendo a responsabilidade dos sócios por débitos tributários.

1. Tema delicado

Da mesma forma que o tema da responsabilização dos sócios na execução fiscal constitua elemento absolutamente essencial à cobrança da dívida ativa, pode-se dizer, na mesma linha, que é matéria sobre a qual a doutrina tributária (leia-se, pro contribuinte) tem se dedicado bastante.

Como exemplos, podemos verificar a tentativa de alterar o entendimento consolidado no STJ, segundo o qual a responsabilização prevista no art. 135, III, do CTN subsidiária, e não pessoal.2 A prevalecer a natureza pessoal

2 Nessa linha, BECHO, RENATO LOPES: Desdobramentos das Decisões sobre Responsabilidade Tributária de Terceiros no STF: Regras-matrizes de Responsabilização, Devido Processo Legal e Prazos de Decadência e Prescrição. In Revista Dialética de Direito Tributário, Setembro-2012, p. 45-57. A Responsabilidade Tributária decorre do Descumprimento de “Deveres de Colaboração”?, In Revista Dialética de Direito Tributário, Julho-2012, p. 122-133. – A Responsabilidade Tributária dos Sócios tem Fundamento Legal? In Revista Dialética de Direito Tributário, Novembro-2010, p.107-126. – Direitos e Deveres da Administração Tributária à Luz dos Direitos Humanos. In Revista Dialética de Direito Tributário, Dezembro-2009, p. 93-109 – A Responsabilidade dos Sócios nas Sociedades Cooperativas. In Revista Dialética de Direito Tributário, dezembro-2007, p.97-103. – A Responsabilidade Tributária de Terceiros na Jurisprudência como Indicativo para a Necessidade de Revisão da Súmula 435 do STJ, In Revista Dialética de Direito Tributário, junho-2013, p. 126-139. – O Direito Sancionador e as Sanções Político-administrativas, In Revista Dialética de Direito Tributário, março-2014, p. 103-116. – A

da responsabilidade, estaria a pessoa jurídica livre da responsabilidade tributária, sendo esta da responsabilidade exclusiva do responsável pela infração. Neste caso, considerando a realidade fático-contratual de muitos contribuintes pessoas jurídicas, parece-nos que agravaria ainda mais o problema intermediários sem patrimônio que ocupam, juridicamente, posições de gerência nas pessoas jurídicas, ainda que sob o comando de outros. Para tais situações, a pessoa jurídica, embora destinatária do produto econômico, estaria desonerada de responsabilidade.

Outro exemplo é a tentativa de impor a necessidade do nome do sócio responsabilizado constar na CDA, sendo esta precedida de processo administrativo que lhe ofereça o direito de defesa. Essa alternativa, evidentemente é correta. Se há a inclusão diretamente na CDA deve ser oportunizada a defesa. Mas não pode ser considerada a única forma de responsabilização, vedando a responsabilização judicial; mormente quando se verifica a possibilidade de rediscussão judicial de todo o processo administrativo. Além de não ser este o correto comando do art. 135 do CTN, tal entendimento é diametralmente oposto à lógica da subsidiariedade consolidada nos tribunais. Sendo a responsabilização do sócio subsidiária, o momento de sua ocorrência somente poderia ser o da constatação da impossibilidade da pessoa jurídica, o que geralmente tem lugar no curso da execução fiscal, quando frustrada a cobrança.

Ademais, considerando que a grande parte dos casos de responsabilização decorrem de infração à lei, em razão de dissolução irregular da empresa; é somente no curso da execução a constatação da causa autorizadora de responsabilização de terceiro.3

Ante essa verdadeira cruzada envolvendo a responsabilização de terceiros na execução fiscal, faz-se necessário por parte das Procuradorias Fiscais que atuem não apenas com extremo cuidado em relação ao tema, mas com profundidade teórica4, visando chamar a atenção para equívocos que podem sempre ser cometidos pelos julgadores.

Um caso típico a ser evitado com a simplificação demasiada da matéria e uma atuação “mecanizada” é o que ocorreu com a interpretação ao art. 135, III, do CTN, em matéria de responsabilização dos sócios em relação ao inadimplemento de tributos. A repetição indiscriminada de tese acabou por gerar uma responsabilização quase plena do empresário em relação aos tributos

Responsabilização Tributária de Grupo Econômico, In Revista Dialética de Direito Tributário, Fevereiro-2014, p. 129-138. 3 Esse tema, diga-se, certamente ganhará muito em relevância se consolidado o processo de consolidação da execução fiscal “desjudicializada” ou “administrativa”.

4 Por “profundidade teórica” queremos ressaltar não apenas o rigorismo com os termos e técnica jurídicos empregados, mas também a conseqüência sistêmica e, principalmente, econômica, de eventuais alterações e interpretações diferenciadas.

informados e não pagos. Esse falta de sensibilidade ao tema, potencializada pela grave crise econômica pela qual passou o país no início dos anos 2000, acabou alterar consideravelmente o entendimento sobre a matéria, praticamente excluindo a responsabilização por imposto informado. E a interpretação da mesma forma – generalizada – do precedente, gerou o problema inverso.

Como tudo que é realizado sem equilíbrio ou conceitos sólidos, gerou uma reação também desproporcional em sentido oposto, presumindo-se o entendimento - também falso! – de que o não pagamento de tributo informado não enseja responsabilidade.

2. A lógica da pessoa jurídica

A realidade da pessoa jurídica não é tão antiga tanto para nosso ordenamento como para muitos outros. Ao menos no âmbito privado, a noção de um patrimônio desvinculado de seus sócios, adotando personalidade jurídica própria, mas também responsabilidade própria pelos seus atos demora a ser reconhecida de forma homogênea pelo direito.

Grandes civilistas, como Rudolf VON IHERING, não conseguiam atribuir à pessoa jurídica a qualidade de sujeito de direito, tal como seriam as pessoas naturais.

Sobre a pessoa jurídica, surgiram teoria chamadas negativistas, objetiva, materialista, individualista, da ficção (PONTES, SAVIGNY), organicistas. No Brasil, a teoria adotada a partir de CLÓVIS BELIVAQUA, conta já com um caráter mais avançado, contemplando a necessidade e a função social da pessoa jurídica no mundo econômico, no sentido de que é absolutamente necessário conferir-lhe a condição de sujeito de direito e independência para conduzir seu próprio destino.

A matéria é bem sintetizada por Alexandre Alberto TEODORO DA SILVA quando afirma que a personalidade jurídica nasce de uma criação do próprio ordenamento, quando se apercebe da necessidade humana de realizar determinadas atividades que, individualmente, seriam impossíveis. Assim, através de um processo técnico (previsão legal), possibilita a atividade social daqueles que se agrupam para exercê-la.i

O que se extrai disso é que o fundamento do ordenamento permitir a personalidade jurídica própria da empresa é fomentar a atividade econômica, fundamental ao desenvolvimento do país e à ordem econômica. Com a separação do patrimônio privado do patrimônio empresarial busca-se exatamente a proteção

daqueles que ousam empreender ao invés de optar pelo emprego, de terem resguardado seu patrimônio privado em caso de insucesso da empresa.

É a partir dessa lógica, portanto, que se deve sempre partir.5

3. A formação do entendimento do Superior Tribunal de Justiça resultante da Súmula 430

Talvez seja exatamente sensível a estes argumentos que o Superior Tribunal de Justiça acabou consolidando posicionamento contrário aos interesses da Fazenda – ou talvez se pudesse dizer contrário às práticas até então praticadas pela Fazenda Pública.

Como conhecido de todos os operadores com a matéria, até algum tempo atrás, era amplamente aceita nos tribunais a tese da Fazenda Pública segundo a qual o não pagamento de tributo no prazo estabelecido em lei implicaria, por si só, violação à lei prevista no art. 135, III, do CTN, ensejando a responsabilização pessoal dos sócios.

Essa responsabilização, diga-se, embora dita “pessoal” pelo comando legal, teve alteração jurisprudencial de sua natureza, entendendo o Superior Tribunal de Justiça que se trata de responsabilidade “subsidiária”. Tal matéria, como acima ressaltado, ainda rende boas discussões e, embora assente, há necessidade da Fazenda Pública estar atenta para articulação da doutrina na tentativa de alteração do entendimento de responsabilidade subsidiária, o que pode causar graves danos à recuperação do crédito público e ao trato com a matéria.

Mas retomando o tema de interesse desta exposição, pode-se dizer que restou assentado, em 2008, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em recurso representativo de controvérsia, julgado nos termos do art. 543-C, do CPC (REsp n. 1.101.728-SP), no sentido de que o não pagamento de imposto informado não implica em responsabilização dos sócios por infração à lei, nos termos do art. 135, III, do CTN.

Os fundamentos do recurso representativo de controvérsia, diga-se, foram bem singelos, confundindo-se praticamente com a ementa. Serviu, diga-se, muito mais para unificar o entendimento nos tribunais estaduais do que para

5 Lógica esta, diga-se, que vem consolidada no art. 170 da Constituição Federal, o qual trata da Ordem Econômica e Financeira, mais especificamente dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, verbis: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)”

sedimentar o entendimento na Corte especial, o que já havia ocorrido. Neste sentido:

“Conforme jurisprudência pacificada nesta Corte, para que se viabilize a responsabilização patrimonial do sócio na execução fiscal, é indispensável que esteja presente uma das situações caracterizadoras da responsabilidade subsidiária do terceiro pela dívida do executado, nos moldes das hipóteses previstas no art. 135 do CTN. A simples falta de pagamento do tributo não configura, por si só, nem em tese, circunstância que acarreta essa responsabilidade subsidiária dos sócios.”

Como sói acontecer em nosso ordenamento, o julgamento em recurso representativo de controvérsia, com ofício aos Tribunais comunicando o entendimento assente do Superior Tribunal de Justiça; não foi suficiente a pacificar a questão. A matéria, então, teve que ser objeto de Súmula por parte da Corte especial, qual seja a de número 430, de 24/03/2010.

Súmula 430. “O inadimplemento da obrigação tributária não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente.”

Aqui chamamos mais uma vez a atenção à natureza da responsabilidade que, embora não seja o objeto central aqui tratado, possui importância; porquanto evidencia que, embora a lógica adotada pela Corte especial seja muito clara, a técnica jurídica na utilização dos termos não o foi. Em vez de utilizar o termo “subsidiária”, como sempre faz, utiliza “solidária”. Já a lei traz o termo “pessoal”. E isso, certamente, sempre gera certa confusão.6

6 AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO FISCAL - SOCIEDADE – DISSOLUÇÃO IRREGULAR - FALÊNCIA SUPERVENIENTE - REDIRECIONAMENTO CONTRA O SÓCIO-ADMINISTRADOR À ÉPOCA DA DISSOLUÇÃO - EXCEÇÃO DE EXECUTIVIDADE - PRESCRIÇÃO - NÃO OCORRÊNCIA - RESPONSABILIDADE - SUBSISTÊNCIA. 1. PRESCRIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. 1.1 - Tendo havido parcelamentos prévios ao tempestivo ingresso da execução e despacho ordenando a citação, tudo antes de cinco anos, não há falar em prescrição face à contribuinte executada (CTN, art. 174, parágrafo único, I e IV). 1.2 - Também não se reconhece prescrição face ao responsável tributário (sócio-administrador), por dissolução irregular, uma vez que, relativamente a este, fazendo jus ao benefício de ordem, vale dizer, é imprescindível ao redirecionamento que primeiro seja exaurido o patrimônio social, o que afirma condição suspensiva (CC, art. 199, I). Aplica-se o princípio da actio nata. 1.3 - Ademais, se se entender não aplicável esse princípio, incide o art. 125, III, do CTN, pelo qual a interrupção da prescrição face a um devedor se estende aos demais. 2. RESPONSABILIDADE DO SÓCIO-ADMINISTRADOR À ÉPOCA DA DISSOLUÇÃO IRREGULAR. SUBSISTÊNCIA. 2.1 - Tendo o sócio-administrador programado a dissolução irregular da pessoa jurídica durante a sua gestão, inclusive com transferência a empresas estrangeiras, a ponto de num mês o faturamento ser de um milhão e cem mil reais, no seguinte ser de quinhentos e setenta e seis mil e, no subsequente, ser zero, com

Mas o que nos move na presente exposição talvez seja a necessidade de uma leitura dos sinais que o STJ coloca em relação à responsabilização do sócio no inadimplemento de imposto informado e que, em nossa opinião, não foram corretamente apreendidos no trato com a matéria. Assim, da mesma forma que houve uma equivocada simplificação por parte da Fazenda Pública em relação à responsabilidade do sócio com o entendimento do inadimplemento no prazo como infração à lei pudesse ser considerado – como o foi pelo STJ – um exagero; entendemos que também é equívoco afirmar que “o inadimplemento de tributo informado não gera responsabilização pessoal do sócio”.

Assim como não cabia a simplificação para um lado, não cabe a simplificação ao outro lado, simplesmente porque não parece ser esta a intenção do Superior Tribunal de Justiça.

Nossa afirmativa não parte, em absoluto, de uma mera vontade de um pronunciamento judicial distinto, mas de claros sinais de que tanto o recurso representativo de controvérsia e tampouco a Súmula 430 possuem a intenção ou o efeito de afastar peremptoriamente a responsabilidade dos sócios no imposto informado. Trazem, isto sim, claras mensagens aos operadores do direito, e principalmente, à Fazenda Pública.

No que se refere ao âmbito da interpretação jurídica, duas mensagens parecem bem claras.

A primeira é a de que a matéria de responsabilização de terceiro não pode ser simplificada ao ponto de fazer alguém responsável diretamente, através de uma quase presunção, sem exame da situação fática.

Acolhendo, de certa forma, o cenário econômico por detrás da empresa, parece restar claro que o STJ entende que há de ser preservada a regra geral da separação patrimonial da sociedade e do empreendedor. Somente nos casos onde demonstrada a infração ao ordenamento jurídico essa norma poderia ser excepcionalizada. E essa demonstração – que reste bem claro - não pode ser feita por mera presunção, mormente quando contrária ao ordenamento na parte em que protege o empreendedorismo e o próprio empresário contra as adversidades do mercado ou mesmo de sua própria incompetência. Há, isto é claro, uma proteção legal contra o insucesso do empreendedor, e esses casos não permitem

demissão de todos os empregados, não há como isentá-lo de responsabilidade por dissolução irregular (STJ, Súm. 435). 2.2 - É irrelevante para o fim de excluir sua responsabilidade, tanto sua posterior saída, com transferência das suas quotas a empresa estrangeira, quanto a falência superveniente. Noutras palavras: a falência superveniente de empresa já dissolvida irregularmente não isenta de responsabilidade o sócio-administrador. Precedentes. 3. Dispositivo. Recurso desprovido. (Agravo de Instrumento Nº 70057580565, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 11/06/2014)

que se desconstitua a barreira patrimonial legalmente constituída entre a pessoa jurídica e seus socios.

A segunda conclusão refere-se à clara mensagem contida em todos os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça e na Súmula 430, no sentido de qualificar o inadimplemento. Nos acórdãos analisados o inadimplemento é sempre qualificado como “simples inadimplemento” e, mais tarde, acompanhado da expressão “por si só”.

Dessa forma, parece evidente a necessidade de se trabalhar “FATOS”, ou seja, contar claramente a história que levou a esta situação de inadimplemento, mostrando como esta não decorre de uma situação normal de mercado. Em segundo lugar, há de qualificar esse inadimplemento, demonstrando que não é um “inadimplemento simples”, também demonstrando claramente a sua excepcionalidade ou o desbordamento de uma conduta regular de um administrador probo (ainda que não bem sucedido).

Tal mensagem, diga-se, vem reforçada em outros julgamentos envolvendo matérias afins, como, por exemplo, a negativa de conhecimento de recursos especiais que postulam a responsabilização de sócios, onde sistematicamente declarado que “o afastamento de tal conclusão pressupõe amplo revolvimento fático-probatório, procedimento que encontra óbice na Súmula 7/STJ.”(AgRg no Agravo em Recurso Especial n. 261.797-PE).

Da mesma forma no entendimento assente do descabimento da exceção de pré-executividade para discussão de legitimidade passiva do sócio responsabilizado, exatamente por entender a necessidade de ampla discussão fática.

Assim, temos que o afastamento da responsabilidade do sócio por imposto informado ocorre nos casos onde essa responsabilidade é “simplificada”, ou seja, para afastar a presunção anteriormente construída de que o não pagamento do tributo informado configura automaticamente a infração à lei prevista no art. 135, III, do CTN. Entretanto, isso não implica na generalização dos casos de inadimplemento, tal como se todos fossem idênticos e igualmente repelidos pelo ordenamento.

É exatamente disso que nos ocupamos agora.

4. Modalidades de inadimplemento e o inadimplemento como conduta empresarial

A questão que se coloca agora – absolutamente central para ideia aqui defendida - consiste no fato de perquirir sobre a possibilidade de considerar que o inadimplemento de tributo informado possa ser distinguido em modalidades. Ou seja, seria possível qualificar o inadimplemento? Se isso é possível, a conclusão é lógica no sentido de distinguir o “simples inadimplemento” colocado pelo STJ de um outro tipo de inadimplemento, que chamaremos “qualificado”.

Aqui, desde já adiantamos, que não apenas entendemos possível essa diferenciação, mas está presente na lógica dos acórdãos que fundamentam a Súmula 430, bem como em muitos julgados que, por exemplo, equiparam tais condutas à sonegação ou mesmo conferem-lhe efeitos diferenciados.

Inicialmente mostra-se importante destacar a questão jurídica posta em discussão nos julgados. Se parecer equivocado perante as normas que instituem a personalidade jurídica ou fundam a ordem econômica, punir com a responsabilização aqueles que – por dificuldades financeiras ou problemas negociais – não conseguem adimplir seus tributos no prazo; pode-se dizer que aqueles que se utilizam do tributo como forma de capitalização da empresa ou se utilizam da empresa para gerar riqueza através do recolhimento de tributos ou confusão patrimonial, também não estão agindo de acordo com o ordenamento jurídico. Isto porque, obviamente, não é finalidade do tributo financiar empresas (ao menos diretamente) ou finalidade da empresa encobrir um enriquecimento pessoal de alguns à custa de tributos.

Da mesma forma, se cabe a sociedade suportar, por algumas vezes, o prejuízo do empreendedor; o mesmo não se pode dizer que caberia à sociedade suportar aquele que planeja de forma deliberada a produção de um débito tributário, seja para capitalizar a empresa ou a si próprio. Outrossim, parece evidente a ausência do dever da sociedade em suportar aquele empreendedor que adota postura temerária, de acumulo desproporcional de débito tributário em relação ao patrimônio da empresa ou mesmo em relação aos demais credores que não possuem o privilégio do crédito fiscal.

Estes, onde o acúmulo do passivo tributário é deliberado, seriam, portanto, os casos que não se enquadrariam na inadimplência simples, decorrentes de fatores ordinários e corriqueiros no exercício de empresa e, conseqüentemente, da atividade tributária. Conforme interessante divisão sobre formas de inadimplência elaborada por JONI ADOLFO MÜLLER7, o inadimplemento pode ser subdivido em algumas categorias. A primeira, que pode ser denominada “geral” ou “simples”, quando decorre de:

Dificuldade financeira

Ocorrência inesperada (sinistro, clima, etc..)

Má-gestão

Concorrência (ex. China, ilegalidade (cigarros))

Crise econômica

Ao lado desta teríamos a “inadimplência planejada”, considerada “qualificada”, porquanto transbordariam o regular exercício de empresa e, em razão disso, não contariam com a proteção do ordenamento, porquanto incompatíveis e contrários a este como um todo. Seriam exemplos:

Inadimplência planejada

Financiamento com tributos

Apropriação indevida (confusão patrimonial)

Fraude ao fisco e à sociedade

Nesses casos, não somente a função do tributo é desvirtuada como também a função da empresa. Tributos não são forma de financiamento nem tampouco de acumulação patrimonial. Perde a proteção do ordenamento a empresa que não cumpre sua função social, tal como ocorre com aquelas direcionadas à acumulação deliberada de dívidas, mormente nos casos de impostos efetivamente cobrados do contribuinte de fato ou utilizados como diferencial de concorrência entre empresas.

Conforme estabelecido em voto do Ministro Luiz Fux em julgado paradigma adiante analisado, a sistemática do recolhimento do tributo devido, especialmente em se tratando de tributo indireto, pode ser considerado um meio

7 Subsecretario da Receita do Estado do Rio Grande do Sul, em palestra apresentada durante o I Encontro Nacional de Procuradorias Fiscais, Porto Alegre, 10 a 12 de abril de 2013.

arbitrário de lucros e de reocupar uma posição de maior vantagem no campo concorrencial.

Tais condutas não apenas podem ter vedações previstas no próprio ordenamento, caracterizando a ilicitude clássica (com tipo); mas inegavelmente constituem abuso de direito, no momento em que se utilizam da proteção do ordenamento para executar finalidade distinta ou contrária aos interesses previstos no ordenamento jurídico.

E se o direito é sistêmico, o exercício de um direito que viola frontalmente a outro, ocorre em inegável abuso de direito.

A ordem tributária, o dever de pagar tributos e a proteção à concorrência, por exemplo, possuem previsão normativa constitucional. Assim, evidentemente que o exercício do direito de empresa (também previsto e devidamente protegido) se direcionado a lesar a ordem tributária ou a livre concorrência ocorre em evidente abuso de direito. Isso, salvo se adotada uma visão absolutamente parcial ou que desconsidere as demais normas do ordenamento.8

Trazemos, portanto, a análise de alguns exemplos a fim de melhor ilustrar bem a tese por nós defendida, auxiliando na descrição do que poderia ser classificado como inadimplência qualificada.

5. Casos

A prática jurídica, mormente em campos do direito em que envolvam mais diretamente bens econômicos – como no direito econômico, tributário e empresarial – é pródiga em exemplos de abuso de direito ou, mais especificamente, do abuso do direito de empresa. Talvez porquanto em vigor o pensamento de que seria válido aproveitar-se do “sistema” para obter a vantagem para concorrer com os demais. Exemplo típico que representa bem essa “esperteza” – que em nossa visão é muito mais similar à falta de ética – resta

8 O que, diga-se, tem constituído prática comum em julgados parciais que procuram a aplicação de “princípios” sem uma visão sistêmica do ordenamento. Tal fenômeno é expressão da crise de técnica jurídica vivenciada pelo direito pátrio, que sequer considera que princípios ou normas protetivas são sempre parciais, encontrando limites nas demais normas do ordenamento. Em razão disso a noção de que todos os direitos são limitados. Essa falta de consideração ou compreensão sistêmica produz verdadeiros absurdos hermenêuticos, produzindo decisões claramente parciais, que assim podem ser classificadas porquanto fundamentadas exclusivamente em normas parciais, sem a consideração das demais normas afetadas no ordenamento. Mais sobre o tema em MÖLLER, Max. Teoria Geral do Neoconstitucionalismo, Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2011.

cristalizada em exemplo de relação não tributária trazido por ALEXANDRE TEODORO DA SILVA.9

No caso, três indivíduos venderam seus negócios a um terceiro. No contrato, restou estipulado que não poderiam abrir negócios similares, porquanto alienaram todo o estabelecimento ao terceiro. Concluído o negócio, com a intenção de burlar a vedação contratual, abriram uma sociedade, com personalidade jurídica própria, para exercer as atividades proibidas à pessoa física.

Tal como ocorre no plano do direito privado, no plano tributário abundam casos relativos ao abuso do direito de empresa, que podem ser configurados das mais diversas formas. O que nos interessa na presente análise são os casos onde esse abuso decorre de utilização da pessoa jurídica para assunção de obrigações que não serão solvidas, porquanto o proveito econômico da empresa é desviado, concentrando na pessoa jurídica apenas seu prejuízo, o que evidente constitui abuso de direito, já que não se imagina a proteção do ordenamento a uma pessoa jurídica constituída com o único propósito de acumular dívidas.

O caso mais claro dessa inadimplência planejada esteja nos devedores classificados como “devedores contumazes”. Vamos aqui considerar contumazes – inclusive para fins de apuração de dados – os assim classificados pela Lei Estadual n. 13.711/11, do RS, alterada pela Lei n. 14.180/12, a qual define como devedor contumaz – e, portanto, passível de ser incluído no Regime Especial de Fiscalização - aquele contribuinte que:

1 – deixar de recolher o ICMS declarado em 8 dos últimos 12 meses;

2 – possuir créditos tributários inscritos em valor superior a 38.500 UPFs-RS, decorrente de imposto não declarado;

3 – tiver créditos inscritos em dívida ativa que ultrapasse 30% do seu patrimônio conhecido ou 25% do faturamento anual declarado.

Chamamos atenção principalmente para os itens 1 e 3, que ilustram bem o que ora se procura tratar.

A sociedade empresária que, nos últimos 12 meses, deixou de recolher ao menos 8, dos tributos que gerou e informou à Fazenda, evidentemente transborda qualquer limite de crise ou má gestão. Nesses casos, o não pagamento de tributo acaba constituindo política da empresa, e que possui grande potencial de dano não apenas à possibilidade de recuperação do erário, mas à concorrência presente no mercado.

9 SILVA, Alexandre Alberto Teodoro da. A desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

Já o item 3, ou seja, quando o passivo tributário acumulado começa a tornar-se desproporcional ao patrimônio ou faturamento da empresa, a ação deliberada de não pagamento do tributo não apenas mantém os danos acima, mas também já reveste-se de fraude à ordem legal de satisfação de créditos, porquanto a empresa começa a colocar-se em um processo de insolvência que certamente iria implicar em privilégio de credores em detrimento de outros, quando não com desvio de patrimônio – como geralmente se verifica.

No Rio Grande do Sul, a partir de um monitoramento realizado desde abril de 2011, verifica-se que em média os chamados “devedores contumazes” são responsáveis por nada menos que 41,3% do inadimplemento geral. Entretanto, representam apenas 1,45% dos estabelecimentos comerciais do Estado.

Nessa linha, resta lembrar que a lei estadual que prevê o Regime Especial de Fiscalização foi declarada constitucional, com quórum vinculante, pelo Pleno do TJRS. Entretanto, os magistrados que não tiveram seus votos acolhidos continuam mantendo a liberação. Graças a eles, 40 empresas operam com liminares, e devem já acumulam débitos de nada menos que 439 milhões de reais.10 Dentre estas, por exemplo, destacam-se algumas práticas que passamos a descrever.

a) Tributos com fim de autofinanciamento e “filantropia”

Dentre essas 40 empresas, há duas, de um mesmo grupo econômico, que possuem situações bem típicas que entendemos possam ser enquadradas nos casos de responsabilização por imposto informado.

Um delas, por exemplo, em negociações com a Receita Estadual, afirmou peremptoriamente, inclusive com demonstrações contábeis, que tinha planos de aumentar consideravelmente seus lucros e que sua viabilidade econômica dependia de ampliação gradual de sua planta fabril – o que tornaria a empresa superavitária.

Assim, procurou a Receita para fins de celebrar moratória, a fim de que “pudesse utilizar-se do tributo informado para ampliação de seu parque fabril”, ou seja, utilizar-se do tributo como meio direto de autofinanciamento. Aqui, diga-se, não através de um programa de incentivos fiscais como meio de desenvolvimento, criado pelo Governo e aprovado pelo Legislativo – com todas as restrições previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse caso, a empresa criou seu próprio “programa de incentivos fiscais”.

10 Dados computados no exercício de 2013.

A questão que se coloca é: é legítima tal ação? Tal ação não constitui evidente abuso de direito na relação jurídico-tributária (mormente no caso da empresa que confessadamente esta buscando esses recursos do consumidor de fato)? Outrossim, não estaria a empresa burlando a legislação que institui os incentivos fiscais ou os meios regulares de acesso ao crédito? Não estaria, nesse caso, abusando do direito de empresa e da condição de sujeito passivo de relação tributária, uma vez que não existe a figura do “empréstimo unilateral”?

São esses questionamentos sobre a legitimidade da prática ante situações como essas que entendemos determinantes para a configuração do abuso de direito e da possibilidade de responsabilização dos gestores por atos temerários e lesivos à sociedade como este.

Vejamos que tais condutas não dependem de fórmula mágica, mas do exame detalhado do caso concreto, demonstrando em como a conduta deliberada foge das finalidades da empresa e não poderia ser estendida aos demais. E, por isso, constituem abusos.

b) Desconsideração das obrigações tributárias para aplicações distintas sequer necessárias

O segundo caso envolvendo o grupo econômico está em concomitante notícia amplamente veiculada na mídia no sentido de que o “proprietário do grupo econômico”, através de outras empresas que circundam e trocam freqüentes depósitos entre elas, haveria investido – de seu patrimônio pessoal – cerca de 30 milhões de reais em time da cidade. A notícia teve ampla divulgação em razão do sucesso alcançado pelo clube em evento esportivo e foi veiculada em meio às negociações com o grupo econômico.

À época, o débito de ICMS dessas duas empresas alcançava aproximadamente 160 milhões de reais. E ambas foram beneficiadas por decisões judiciais que as excluíam do Regime Especial de Fiscalização.

c) Pagamento desproporcional ao sócio

O último caso selecionado consiste na análise de declaração de IR de pessoa jurídica em processo de execução. A referida empresa, no caso, declara um prejuízo líquido superior a 5 milhões, enquanto seu “titular”, recebe a título de “remuneração do trabalho” (leia-se, efetua retirada) o valor de 600 mil reais. Assim, a empresa que acumula vultoso prejuízo, não honra com suas obrigações fiscais e com outros credores permite a retirada de relevante quantia por parte do sócio que compartilha seu nome com a empresa.

Estes são casos que ilustram evidentes abusos do direito de personalidade jurídica, ou seja, utilizar-se da empresa, do mercado e da atividade fiscal de forma “torta”, “desviada”, com a finalidade de lesar o erário e o mercado e tirar proveito próprio.

6. Teoria da desconsideração da pessoa jurídica

Muito provavelmente em razão da amplitude que sempre se teve em relação à responsabilidade dos sócios com base no art. 135, III, do CTN, a questão da desconsideração da personalidade jurídica tem tido aplicação muito tímida no âmbito do direito tributário, não obstante seja plenamente aplicável na cobrança dos haveres da empresa, sejam qual for sua natureza. Entretanto, as normas previstas no Código Civil que tratam da desconsideração da personalidade jurídica e do abuso de direito parecem absolutamente pertinentes ao exame do tema da inadimplência qualificada. Isto porquanto diretamente ligado ao abuso do direito de empresa e, em conseqüência disso, da separação da personalidade desta em relação a seus sócios.

Sobre o tema, pode-se dizer que a desconsideração da personalidade jurídica nasce quase que simultaneamente à separação da pessoa jurídica e seus sócios. Isto porque – em qualquer ordenamento jurídico – nenhum direito é conferido para que dele se faça uso abusivo. Assim, a lógica é bem simples. No momento em que nenhum direito é ilimitado, o abuso é limite que acompanha a própria criação do direito. Logo, nasce a limitação simultaneamente à criação do direito em questão.

Evidentemente que a teoria da desconsideração somente poderia ter origem em sistemas que prezam pela boa-fé e não toleram abusos, como é o caso do modelo anglo-saxão. Desde 1897 – e, portanto, muito perto da criação da personalidade jurídica – no célebre caso Salomon vs Salmon & Co. houve o reconhecimento judicial da desconsideração da personalidade jurídica.11

Essa intolerância ao abuso como elemento inato aos sistemas jurídicas é bem sintetizada por ALEXANDRE TEODORO DA SILVA quando afirma que:

11 Neste célebre caso, o comerciante Aaron Salomon resolveu tirar proveito da separação patrimonial entre a personalidade jurídica e a pessoa física do comerciante. Assim, constituiu empresa com 20.007 quotas, tendo reservado, para si, 20.002 e 1 para sua esposa e 1 para cada um de seus 4 filhos. Após, transferiu à empresa seu fundo de comércio, estabelecendo para si garantia com privilégio. Tendo a empresa acumulado dívidas, acabou frustrando seus credores pois Salomon exerceu seu privilégio e recebeu o fundo de volta para a pessoa física, frustrando o interesse dos credores. SILVA, Alexandre Alberto Teodoro da. A desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 65.

“(...) viu-se que sua (a personalidade jurídica própria) forma tem valor de uma realidade que a técnica jurídica reconhece. Pode-se afirmar, nesse contexto, segundo a ótica da jurisprudência dos valores, que a pessoa jurídica, enquanto sujeito de direito, dotada de personalidade jurídica própria, deve gozar de plena autonomia em relação à personalidade de seus sócios, mas, sua personalidade não pode servir para encobrir abusos daqueles que a controlam. Sendo assim, quando da prática de tais condutas abusivas, admite-se a relativização do princípio da separação patrimonial que baliza o instituto da pessoa jurídica.”12

Nesse contexto, a discussão jurídica e probatória relativa ao abuso de direito estará, portanto, em demonstrar a conduta regular protegida pelo direito (exercício regular) em contraste com seu abuso.

A norma civil, tal como mencionado, tem a simples finalidade de limitação do direito que é exercido de forma abusiva. Não precisaria sequer estar escrita, porquanto lógica imperante em todo o ordenamento, já que a limitação está imposta exatamente para possibilitar exercício de outros direitos e manter o direito como instrumento de solução de conflitos – e não de produção de conflitos, tal como seu uso irracional muitas vezes produz. Pois mesmo ciente disso, verificar-se que ainda há resistências por parte da doutrina em relação à aplicação do art. 50 do Código Civil e de toda a proteção da boa-fé e da lealdade. Isso como se no âmbito tributário não fosse necessário imperar a boa-fé e a lealdade.

Olvidam-se, parece, que toda a normativa de proteção da personalidade jurídica da empresa e da separação patrimonial está no Código Civil, e não nas normas tributárias. Logo, procuram convencer, através de uma “lógica” formalista e individualista há muito superada, sobre a possibilidade de afastar do exercício de um direito os seus limites inatos, que coíbem o abuso.

Reconhecer esse argumento consiste em reconhecer que o ordenamento permite e legitima atos abusivos, o que é absolutamente “incoerente na dimensão do sistema jurídico como um todo unitário”.13

O art. 50 do CC, aplica-se a qualquer ramo do direito que trate de pessoa jurídica, inclusive o tributário. Isso porquanto a proteção da personalidade também transita por todo o ordenamento. Logo, a vedação a seu exercício abusivo também a acompanha.14

12 SILVA, Alexandre Alberto Teodoro, op. cit., p. 67. 13 Alexandre ..op. cit. P. 28. 14 Uma das razões que pode ser atribuída à não utilização da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito tributário certamente sempre foi a interpretação extensiva conferida ao art. 135, III, do CTN, onde praticamente todos os casos de não pagamento acabam por levar à responsabilização dos sócios. Outrossim, verifica-se que questões como boa-fé e abuso de direito foram tardiamente

Outro elemento normativo importante a ser utilizado para classificar o inadimplemento qualificado como apto a ensejar a desconsideração da personalidade jurídica com base no art. 50 do Código Civil é a previsão de outra norma do direito civil, qual seja o art. 187 do mesmo código. Segundo reza:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Deixaremos de ingressar na ceara de determinação dos conceitos de boa-fé ou bons costumes, porquanto no direito pátrio vem se verificando uma utilização meramente casuística e subjetiva de tais conceitos, sem atentar às bases objetivas de sua determinação. Ficaremos, até porque mais específico, com o exame do “fim econômico e social da empresa”.

A função da empresa – e este o fundamento de toda a proteção que a circunda – é a produção de riqueza social. Evidentemente que esta riqueza produzida deve aproveitar a todos, principalmente aos empreendedores, que ali colocam suas idéias, seu capital e seu trabalho. Entretanto, aproveitar-se da

incorporadas em nosso ordenamento. Somente a partir do Código Civil de 2002 a questão passa a ser claramente incorporada. Não que a desconsideração não estivesse prevista no ordenamento, mas suas experiências anteriores geralmente apresentavam forma atécnica, e muitas vezes com alguns exageros, tal como a previsão de responsabilidade plena dos sócios, tal como ocorria no direito ambiental. Dentre as previsões, sempre em microssistemas, destacam-se:

Código de Defesa do Consumidor: Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Infrações contra a ordem econômica: Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (Revogado pela Lei nº 12.529, de 2011)..

Lei 9605 – Dispõe sobre infrações ambientais - Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

Enfim, da leitura das previsões verifica-se que acabaram não servindo de parâmetro ao ordenamento jurídico, exatamente por apresentarem um rigorismo excessivo, tal como a previsão da responsabilização pelo insucesso, que acaba confrontando com o estímulo ao empreendedorismo previsto na Constituição Federal. No caso do dano ambiental, a desconsideração chega a ser total, bastando a ocorrência do dano e a insuficiência de bens para indenizar por parte da pessoa jurídica.

riqueza não significa, em absoluto, produzir riqueza pessoal à custa do prejuízo social.

E é esta exatamente a conduta da empresa que acumula dívidas de forma desproporcional, simplesmente desconsiderando suas obrigações tributárias.15

Resta claro que a discussão jurídica que envolvem os artigo 50 e 187 do Código Civil em nenhum momento reclama a discussão de dolo, mas de estar ou não de acordo com a finalidade social e econômica da empresa.

Na feliz expressão de ORLANDO GOMES, abuso de direito é “um conceito amortecedor”. Isso significa que não existem direitos absolutos, permitindo frear o choque entre o formalismo e a realidade fática (econômica e concorrencial, por exemplo).

Assim, na configuração do abuso de direito não há fórmulas mágicas, modelos ou simplificações – que tanto pautam a advocacia de repetição que caracteriza os dias atuais. Aqui o que interessam são os fatos, os números, a lógica econômica e concorrencial, demonstração de incompatibilidades contábeis, etc.., tudo para demonstrar que determinado sujeito está amparando-se a uma leitura formal de seu pretenso direito para ir além do que a norma lhe alcança.

A norma relativa ao abuso de direito, por mais simples que pareça, é muito mais efetiva para afastar o tão combatido “formalismo” ou o “direito que ignora a realidade”, que todo o modismo de “direito de valores”, “principiologia”, “neoconstitucionalismo”, etc, mormente na forma que aplicados no direito pátrio. Consiste no mero uso da lógica e da coerência.

No caso do direito de empresa, a análise consistiria exclusivamente entre o exame da adequação da prática exercida pela empresa e as funções sociais

15 Nesse ponto, resta bem adequada a questão relativa ao “dever de pagar tributos”, o qual se estende a uma relação muito mais grave que a mera arrecadação de fundos para a promoção do bem estar coletivo. O interessante no âmbito tributário que essa relação de interface é muito mais complexa e muito mais grave que a máxima do direito privado de que a todo o direito corresponde um dever. Muito mais que isso. Ao dever do contribuinte corresponde o direito de beneficiários e de outros contribuintes.

Por isso diz-se que a tributação não envolve somente os interesses do erário ou do contribuinte, mas o interesse jurídico da coletividade que, com base na Constituição, determina que todos contribuam na sustentação dos gastos públicos conforme sua capacidade econômica.Isso, evidentemente, sem contar com outra relação de interface – e, portanto, bem mais complexa que a de credor x devedor – ainda mais direta, consistente nas relações de concorrência. Nesse âmbito – o econômico – o não pagamento do tributo como política econômica não apenas permite a frustração do custeio do Estado, das políticas públicas e dos direitos fundamentais dos demais, mas afetam diretamente a disputa de mercado, onerando ainda mais aqueles que pagam regularmente seus tributos. Tal fator apenas destaca ainda mais o dever de pagar tributos – evidentemente que garantido todo o direito à sua discussão – uma vez que a isonomia é ainda mais cara a este ramo jurídico. Aqui, diga-se, também ingressa de forma bastante importante o problema das decisões judiciais.

a esta estabelecida.16 O descompasso entre um e outro é o que produz a conduta abusiva, determinando a desconsideração da proteção do patrimônio do empreendedor; cuja regra é a proteção.

A questão é tão simples quanto a explica MARCOS BERNARDES DE MELLO:

“A atribuição da personalidade jurídica a certos entes, formados por agrupamentos humanos (entes estatais, sociedades, associações, e.g.) ou universalidades de bens (fundações), constitui solução técnica, ditada pela necessidade do tráfego social, que os torna indivíduos, portanto entidades autônomas, distintas das pessoas que as formam e integram, ou que as criam (princípio da inconfundibilidade das personalidades dos sócios e da sociedade). Esse princípio, erigido em dogma do legislador civil de 1916, está relativizado no direito nacional atual, como resultado da recepção de construção doutrinária e jurisprudencial que veio dos direitos americano, inglês e alemão, que admite (CDC art. 218 e Código Civil art. 50) possa o juiz desconsiderar a personalidade jurídica, responsabilizando os sócios e os administradores pelas obrigações das pessoas jurídicas, em havendo sua utilização indevida, que se tem por caracterizada quando há, grosso modo, uso da pessoa jurídica para fins ilícitos ou imorais, com desvio de finalidade, confusão de patrimônios, abuso de direito ou excesso de poder em detrimento de terceiros, inclusive o poder público.”17

Enfim, a configuração do abuso de direito é tão básica que demandaria tão somente o questionamento sobre a possibilidade da extensão do uso desse direito, nos limites questionados, pelos demais. Ou, em linguagem ainda mais simplificada, fazendo o clássico questionamento que se costuma utilizar na educação dos filhos em tenra idade: “gostaria que fizesse isso contigo?”

É, portanto, questão de atentar para a realidade para a definição dos limites de determinado direito, fazendo que o que o direito cumpra sua função de

16 Que, diga-se, facilmente poderia ser encontrada pelo exercício mental de extensão da conduta da empresa às demais. Exemplo. Empresa “X” há 8 anos não recolhe imposto informado. Suponhamos o que ocorreria se todas as demais empresas ficassem 8 anos sem recolher tributos. Facilmente verifica-se que tal conduta não é mais danosa e evidente porque, todos os demais – a sociedade -, estão respondendo pelo dano dessa empresa. Consideremos que o montante acumulado ainda é desproporcional ao patrimônio da empresa. Resta mais evidente ainda o abuso cometido. Veja-se que estamos aqui simplesmente no plano fático, sem sequer ingressarmos no plano normativo. Entretanto, essa conexão com a realidade – embora fundamental – parece ter se tornado fenômeno cada vez mais raro nos processos interpretativos. 17 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico- Plano da Eficácia, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 154-155.

solucionar problemas ao invés de criá-los, como se tem visto com muito mais freqüência do que desejável ultimamente.

7. Posicionamento do STF em relação ao inadimplemento planejado - RE 550.769 RJ

Para não ficar apenas no aspecto propositivo, pode-se dizer que a tese ora defendido possui – ao menos como lógica e coerência – acolhida em posicionamento recente do Supremo Tribunal Federal, em julgado de 22/05/2013 e acórdão publicado em 15/04/2014.

No caso, que abordou o Regime Especial de Fiscalização, há uma clara caracterização entre a repressão a abusos cometidos pelo Fisco (que fundaram as antigas Súmulas 70, 323 e 547 e o abuso do direito de não pagar tributos, este bem configurado no acórdão referido.

Interessante verificar na argumentação dos votos condutores o reconhecimento do inadimplemento qualificado como ilícito ou, no mínimo, como abuso do direito de empresa. Se de um lado o direito de empresa não pode ser interrompido com o inadimplemento circunstancial, por outro é clara a posição de repúdio da ordem jurídica ao inadimplemento deliberado.

Tal posicionamento é bem sintetizado pelo voto do Min. Joaquim Barbosa, quando afirma que:

“É inequívoco, contudo, que a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal não serve de escusa ao deliberado e temerário desrespeito à legislação tributária. Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial.”

Há, nessa linha, clara violação à ordem econômica, o que caracteriza conduta ilícita.

Na mesma, mas encorpando a argumentação relativa ao abuso de direito de empresa, o voto do Min. Ricardo Lewandovski cita trecho de parecer de José Afonso da Silva que bem ilustra a matéria:

“(...) a livre iniciativa só é juridicamente amparada quando legítima, e só é legítima quando seu titular a exerce com respeito aos ditames da ordem

jurídica na qual se inclui a concorrência desleal e o cumprimento da função social da empresa.”18

E explica:

“A sonegação, como contrabando, é um fato ilícito e, como tal, possibilita o exercício de concorrência desleal. As práticas ilícitas, em geral constituem formas de quebra do princípio da lealdade que se encontra na base da livre concorrência. Mas as práticas ilícitas que consistem em escapar-se de ônus tributários caracterizam, com mais efetividade, uma situação de concorrência desleal, (...)”

Já nas próprias palavras do Min. Lewandovski, “o descumprimento injustificado e reiterado de obrigações tributárias principais e acessórias por parte da recorrente acarreta notória distorção no sistema concorrencial do mercado tabagista, na medida em que lhe permite comercializar os seus produtos em patamar de preço inferior ao de seus concorrentes.”

Neste trecho, o julgador não apenas confirma a existência de um inadimplemento qualificado, ou seja, repudiado pela ordem jurídica; mas que também tal conduta é incompatível com o exercício do direito de empresa por afronta direta à ordem econômica e à livre concorrência.

Por fim, o reconhecimento da diferença desse inadimplemento qualificado é confirmado pelo Min. FUX, quando aponta, citando José Afonso da Silva, que:

“Não se trata, nesse caso, de mero inadimplemento de obrigação tributária(excluindo a Súmula 430 do STJ.) Mas, na verdade, o que se pretende, aqui, é assumir uma prática ilícita para obter uma vantagem concorrencial, porque, ditos de forma solta, pode-se imaginar que a interdição do estabelecimento deu-se por falta de pagamento de um crédito tributário qualquer. Não, aqui, há uma estratégia dolosa contra a administração tributária que já levou a empresa a um patamar de débito de dois bilhões de reais, que é efetivamente um capital irrecuperável pelo poder público...”

E isso, diga-se, que se está tratando de regime especial em medida que determina o fechamento da empresa. E resta claro pelo Min. BARBOSA, em seu voto, que a responsabilização pessoal dos sócios é medida bem mais branda, que somente após implementada justificaria o uso da “sanção política”.

18 Aqui, a substituição de livre iniciativa por separação patrimonial da empresa e seus sócios ilustra exatamente a questão do abuso do direito de empresa, no caso do devedor contumaz.

CONCLUSÕES

Ante o exposto, temos as seguintes conclusões que podem ser tiradas da argumentação apresentada:

1 – A Súmula 430 é certamente resultado de uma reação jurisprudencial a uma responsabilização indiscriminada dos sócios, decorrente de uma interpretação do art. 135, III, do CTN, relativamente desconforme com a necessária separação entre o patrimônio privado e o patrimônio social. Esse parece ter sido o caso da responsabilização do administrador por todo e qualquer passivo tributário. A lição deve ser aprendida, e o mesmo cuidado deve-se ter em relação aos casos de responsabilização por dissolução irregular;

2 – Com o advento do novo Código Civil, verifica-se um grande avanço em relação à responsabilidade dos sócios em razão de desrespeito ao regular direito de empresa. A separação patrimonial concedida à pessoa jurídica em relação aos seus sócios somente se sustenta em casos de seu exercício regular;

3 – O abuso do exercício de empresa, principalmente para fins de obter proveito à custa de tributos configura claramente o abuso de direito e tem como conseqüência clara a desconsideração da personalidade jurídica.

4 – O direito civil, através desses institutos (CC art. 50 e 187), traz importantes elementos que devem ser agregados à discussão da responsabilização dos sócios em relação aos tributos devidos, mormente nos casos onde configurado abuso do direito de empresa;

5 – A figura mais típica a configurar abuso do direito de empresa, bem como elemento dos mais importantes hoje em dia no combate à sonegação fiscal, está nos grupos empresarias que adotam postura deliberada de inadimplemento tributário;19

6 – Tais casos, não apenas constituem abuso do direito de empresa, determinando a desconsideração da personalidade jurídica; mas seu combate constitui dever fundamental do Fisco, porquanto além da função arrecadatória fundamental, realiza função essencial de garantia da livre concorrência.

19 Nas palavras de Alexandre Teodoro da Silva: “Estruturar uma pessoa jurídica com o objetivo de proporcionar uma economia fiscal para determinado grupo econômico, por exemplo, é uma atividade legítima na esfera de atuação individual das pessoas (naturais ou jurídica), mas que, no entanto, poderá ser questionada pelo Fisco, se houver comprovado abuso da personalidade jurídica em questão, desde que fique notadamente caracterizado o desvio de finalidade ou confusão patrimonial no uso da mesma. A sanção para a caracterização desse ilícito é a desconsideração da personalidade jurídica.” op. cit. p. 135.

Trecho para colocar em rodapé, mas que pode ser útil na conclusão:

Alexandre, p..

i AATEODORO DA SILVA, p. 51