A Incansável Denegação Do Genocídio e o Índio Inexistente. Entrevista Especial Com Moysés...

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 Foto: www.brasil.gov.br A incansável denegação do genocídio e o índio inexistente. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto e Helena Palmquist Entrevistas Terça, 12 de agosto de 2014 “Seja como for, o índio sempre sai perdendo: se for primitivo, a ‘locomotiva do progresso’ vai ‘tratorá-lo’ de qualquer modo; se não for, não é mais índio e, portanto, não tem direito a nada”, critica o pesquisador. “A pergunta não é ‘como os índios devem viver?’, mas sim ‘quando vamos parar de inventar pretextos para matar os índios?’. Não sabemos sequer como nós devemos viver. Aliás, é curioso que estejamos interessados em como os outros devem viver quando nos encontramos cada vez mais privados da esfera em que se debatem as formas de vida: a política”, reflete Moysés Pinto Neto  , em entrevista concedida por e-mail à IHU On- Line. De acordo com ele, “como o racismo contra índios não é percebido como racismo, sendo inclusive enunciado livremente na esfera pública, a tendência é que tudo que envolva os índios seja simplesmente considerado como irrelevante. Argumenta-se em torno do tema e as pessoas simplesmente fingem que ele não existe, fingem que os índios não existem mais. Assim, o ignorar o texto seria ele próprio parte do fenômeno do racismo”. Na avaliação do pesquisador, “um conjunto de naturalizações”  orientam ações individuais de racismo contra os indígenas  , o qual “não se percebe como racismo”. Ele esclarece: “A naturalização não foi abalada, ela segue sendo utilizada no discurso público como se fosse admissível. Creio que esse elemento de ingresso na esfera pública é importante: é diferente se afirmar, por exemplo, que a tortura é errada, mas não utilizamos tortura (hipocrisia)  , de explicitament e se afirmar que a tortura é admissível em certos casos. Quando o discurso ultrapassa esse ponto, estamos em um momento muito perigoso. É esse o momento que vivemos em relação aos índios e

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    A incansvel denegao do genocdio e o ndio inexistente.Entrevista especial com Moyss Pinto Neto e HelenaPalmquistEntrevistas

    Tera, 12 de agosto de 2014

    Seja como for, o ndio sempre sai perdendo: se for primitivo, a locomotiva doprogresso vai trator-lo de qualquer modo; se no for, no mais ndio e,portanto, no tem direito a nada, critica o pesquisador.

    A pergunta no como os ndios devemviver?, mas sim quando vamos parar deinventar pretextos para matar os ndios?. Nosabemos sequer como ns devemos viver.Alis, curioso que estejamos interessados emcomo os outros devem viver quando nosencontramos cada vez mais privados da esferaem que se debatem as formas de vida: apoltica, reflete Moyss Pinto Neto, ementrevista concedida por e-mail IHU On-Line.

    De acordo com ele, como o racismo contrandios no percebido como racismo, sendoinclusive enunciado livremente na esferapblica, a tendncia que tudo que envolva os ndios seja simplesmente consideradocomo irrelevante. Argumenta-se em torno do tema e as pessoas simplesmente fingemque ele no existe, fingem que os ndios no existem mais. Assim, o ignorar o textoseria ele prprio parte do fenmeno do racismo.

    Na avaliao do pesquisador, um conjunto de naturalizaes orientam aesindividuais de racismo contra os indgenas, o qual no se percebe como racismo.Ele esclarece: A naturalizao no foi abalada, ela segue sendo utilizada no discursopblico como se fosse admissvel. Creio que esse elemento de ingresso na esferapblica importante: diferente se afirmar, por exemplo, que a tortura errada, masno utilizamos tortura (hipocrisia), de explicitamente se afirmar que a tortura admissvel em certos casos. Quando o discurso ultrapassa esse ponto, estamos em ummomento muito perigoso. esse o momento que vivemos em relao aos ndios e

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    quilombolas.

    A jornalista Helena Palmquist, que tambm acompanha as questes indgenas,assinala que preciso reafirmar que o intento genocida e o racismo esto implcitosna forma mais frequente de relao do estado nacional brasileiro com os povosoriginrios dessa terra, que o assimilacionismo, forma essa que constava at 1989 naConveno n 107 da Organizao Internacional do Trabalho para Povos Indgenase Tribais. Contudo, enfatiza, particularmente no Brasil esse debate est toatrasado que na arena pblica o que vemos so polticos de todas as matizesideolgicas e autoridades dos trs poderes solapando sistematicamente o sentido daautodeterminao e inventando um pretexto aps o outro para o genocdio.

    Nesse sentido, acrescenta Moyss Pinto Neto, a esquerda brasileira, no entanto,continua majoritariamente eurocntrica e no consegue visualizar essa questo senona melhor das hipteses como de uma identidade minoritria a ser preservada. Aspossibilidades que o pensamento indgena oferece para a construo de uma novamatriz econmica e social, por exemplo, so amplamente subestimadas. O projeto daesquerda no poder simplesmente aderir ao modelo de desenvolvimento dos pasesdo Atlntico Norte e repeti-lo nos trpicos, mesmo que hoje o que se demande nessespases mesmos em termos de movimentos sociais seja a transformao dessemodelo.

    Moyss Pinto Neto graduado em Cincias Jurdicas pela Universidade Federal doRio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Cincias Criminais pela PontifciaUniversidade Catlica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutorando em Filosofianessa mesma instituio. Leciona no curso de Direito da Universidade Luterana doBrasil - Ulbra Canoas.

    Helena Palmquist jornalista.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line - Quais so os indcios de queos indgenas sofrem mais racismo do quequalquer outro grupo, no Brasil, comoapresenta em artigo recente?

    Moyss Pinto Neto - A pergunta permite quepossa esclarecer um possvel equvoco. O ttulodo artigo que escrevi sobre o tema visivelmente uma provocao que s se torna

  • compreensvel aps percorrida a totalidade do texto. A que equvoco me refiro? Umapossvel leitura, afastada explicitamente no primeiro e no ltimo pargrafo, queenvolveria a quantificao e minimizao do sofrimento das vtimas de outras formasde racismo. Em nenhum momento esse o objetivo do texto.

    Podemos separar, no entanto, um aspecto "objetivo" do fenmeno do racismo queconsiste em delinear como funcionam os mecanismos forjados nas interaesintersubjetivas e que operam como uma rede de palavras, gestos e smbolos, podendoocorrer inclusive sem a intencionalidade do agente (isto , inconscientemente), dosofrimento subjetivo de quem vtima, esse sim irredutvel, qualitativo eincomensurvel. Quando digo "objetivo" no estou me referindo a uma estruturaimutvel, mas sim a um conjunto de naturalizaes que orientam as aes individuaisno cotidiano. nesse sentido que afirmei serem os indgenas alvo de um racismoatroz porque ele no se percebe como racismo. Quer dizer: a naturalizao no foiabalada, ela segue sendo utilizada no discurso pblico como se fosse admissvel.Creio que esse elemento de ingresso na esfera pblica importante: diferente seafirmar, por exemplo, que a tortura errada, mas no utilizamos tortura (hipocrisia),de explicitamente se afirmar que a tortura admissvel em certos casos. Quando odiscurso ultrapassa esse ponto, estamos em um momento muito perigoso. esse omomento que vivemos em relao aos ndios e quilombolas.

    Por tudo isso que optei por esse ttulo "bomba". Como o racismo contra ndios no percebido como racismo, sendo inclusive enunciado livremente na esfera pblica, atendncia que tudo que envolva os ndios seja simplesmente considerado comoirrelevante.

    Argumenta-se em torno do tema e as pessoas simplesmente fingem que ele noexiste, fingem que os ndios no existem mais. Assim, o ignorar o texto seria eleprprio parte do fenmeno do racismo. Por isso e no para minimizar outrasformas de racismos (todas igualmente graves, esprias e operando estruturalmenteno Brasil; em particular, mencionaria ainda o genocdio da juventude negra daperiferia) optei por um ttulo bombstico, um chamariz provocador para a leitura.

    IHU On-Line - Quais as razes de considerar o ndio como algum que deve serincludo na cultura brasileira?

    Moyss Pinto Neto - Os ndios no "devem ser" includos na cultura brasileira, elesj so matriz dessa cultura ao lado dos negros e portugueses. Uma cultura fundadaem um genocdio recalcado e, como tal, evidentemente marcada por sintomas quereaparecem a todo instante. Como dizia Benjamin, todo "monumento de cultura"

  • tambm de barbrie. Nesse sentido, a ambivalncia da cultura "brasileira" (suspeitoum pouco desse rtulo unificador) em relao ao tema patente: de um lado, sem oelemento indgena ela no poderia ser o que , e mesmo os pensamentos maisunificadores e autoritrios reconhecem isso. De outro, a incansvel denegao dogenocdio que alcana os dias de hoje e, paradoxalmente, trata o ndio atual comoinexistente para no se ver com os problemas de um passado que no cansa de baterna nossa porta. Como acontece tantas vezes na Amrica Latina, trata-se de ummomento de luto que nos foi roubado e somente a partir do qual poderemos seguiradiante sem repetir os crimes do passado.

    IHU On-Line - Em artigo recente, o senhor menciona que boa parte da esquerda, eem especial a que hoje governa o pas, tenta incluir o ndio na cultura. Como aesquerda trata dessa questo? E o que poderia se esperar da esquerda em relao aisso?

    Moyss Pinto Neto - Esse um fato gravssimo. Sem que algum (digamos, a"esquerda") defina na esfera pblica o racismo contra indgenas como racismo,mantemos a porta aberta para que seja possvel o livre extermnio desses povos. A"esquerda" brasileira, no entanto, continua majoritariamente eurocntrica e noconsegue visualizar essa questo seno na melhor das hipteses como de uma"identidade minoritria" a ser preservada. As possibilidades que o pensamentoindgena oferece para a construo de uma nova matriz econmica e social, porexemplo, so amplamente subestimadas. O projeto da esquerda no poder simplesmente aderir ao modelo de desenvolvimento dos pases do Atlntico Norte erepeti-lo nos trpicos, mesmo que hoje o que se demande nesses pases mesmos emtermos de movimentos sociais seja a transformao desse modelo. como se o nosso"atraso" em relao aos pases do Norte fosse tomado como vantagem compensatriada nossa falta de imaginao poltica: podemos continuar repetindo o que se encontraquestionado mundo afora enquanto os outros pensam por ns o que fazer at osalcanarmos.

    IHU On-Line - Quais so as alternativas no incluso? Como os ndios deveriamviver?

    Moyss Pinto Neto - A pergunta por si s j problemtica. O que chamamos de"incluso" simplesmente o extermnio da cultura indgena para que o ndio sejacolocado s margens da nossa forma de vida baseada no trabalho e no consumo. Emoutros termos, a transformao do ndio em pobre, j que ele no "tem" coisas etampouco cultua o trabalho como quintessncia humana. Como ainda vivemos sob agide do racismo eurocntrico, muita gente acredita que uma forma de vida baseada

  • em outras relaes entre sociedade e natureza seja "atrasada" e por isso que normalao ndio ocupar o espao inferior da pirmide social, j que estaria atrs dos maisatrasados. A violncia desse "progressismo" patente e curioso que, depois de tudoque aconteceu no sculo XX, ainda haja quem considere a diferena como sinal deatraso na flecha da Histria.

    No cabe a ns dizer como os ndios devem viver. Perguntamos como os canadensesou japoneses devem viver? No. Logo, no faz sentido pensar dessa forma. Apergunta no "como os ndios devem viver?", mas sim "quando vamos parar deinventar pretextos para matar os ndios?". No sabemos sequer como ns devemosviver. Alis, curioso que estejamos interessados em como os outros devem viverquando nos encontramos cada vez mais privados da esfera em que se debatem asformas de vida: a poltica.

    IHU On-Line - Quando se trata dos direitos indgenas, h argumentos como o deque o ndio j aderiu cultura do branco ao utilizar celular, ter acesso internet,etc. Qual o limite ante a adeso parcial de outras culturas e a manuteno da suaprpria cultura?

    Moyss Pinto Neto - No existe esse limite. As culturas no so osis de pureza, maszonas de contaminao constante. O que no significa, por outro lado, a dissoluo detoda alteridade em um hibridismo generalizado. O mltiplo no um Um queainda no se realizou. Por isso, querer descaracterizar a cultura indgena pelaincorporao de tecnologia um exerccio da mentalidade genocida: ou os indgenasrejeitam toda transformao e mudana nas suas culturas, ou devem desaparecerenquanto cultura prpria. Em outros termos, ou voc segue "primitivo", ou no mais ndio. Seja como for, o ndio sempre sai perdendo: se for primitivo, a"locomotiva do progresso" vai trator-lo de qualquer modo; se no for, no maisndio e, portanto, no tem direito a nada.

    Isso piora se levarmos em considerao o que interessou a vrios pensadoresbrasileiros, Oswald de Andrade, por exemplo, que o papel da antropofagia nacultura indgena. A antropofagia o inverso da xenofobia do pensamento ocidentalde matriz grega. Ela a incorporao do outro como fratura do eu, um si-mesmo quenunca prprio, est em permanente transformao na medida em que se define emrelao a uma exterioridade (o inimigo, por exemplo, como nos mostrou oantroplogo Eduardo Viveiros de Castro). Ao contrrio da cultura ocidental, que um constante desejo xenfobo de plenificao do Um e erradicao da diferenaestrangeira, a cultura antropofgica somente faz sentido na relao com a alteridade.Por isso, imaginar que o contato com o outro descaracteriza a cultura um

  • pensamento duplamente viciado: pelo colonialismo da locomotiva do progresso e poruma xenofobia projetada.

    IHU On-Line - O que significa manter o modo de vida indgena?

    Helena Palmquist - Temos no mundo pelo menos 5 mil povos indgenas e s noBrasil mais de 240, com seus particulares modos de vida. Portanto no existe "o"modo de vida indgena a ser mantido e evidente que todos esses povos tm que terseus modos de vida respeitados, o que impossvel no cenrio de ordem e progressoj desenhado nas questes anteriores. Se existe algo de comum aos modos de vidaindgenas no territrio brasileiro a necessidade de manuteno das terras ancestrais,onde precisamente est a raiz da maior parte dos problemas. No toa que aConfederao Nacional da Agricultura lanou uma ofensiva miditica para tentardemonstrar que os ndios no precisam de terras e sim de sade e educao. Amensagem bem clara : agora que vencemos essa conversa de reforma agrria(Braslia se rendeu aos ruralistas nisso faz tempo), vamos avanar nas terras dosndios e assimil-los s periferias das cidades, onde podemos prometer a cada doisanos nas eleies que eles um dia tero melhores escolas e postos de sade.

    IHU On-Line - Quais so as principais dificuldades enfrentadas pelascomunidades indgenas em relao tentativa de manter seu modo de vida?

    Helena Palmquist - preciso reafirmar que o intento genocida e o racismo estoimplcitos na forma mais frequente de relao do estado nacional brasileiro com ospovos originrios dessa terra, que o assimilacionismo, forma essa que constava at1989 na Conveno n 107 da Organizao Internacional do Trabalho para PovosIndgenas e Tribais. Ento, manter e respeitar os vrios modos de vida indgenassobreviventes custa de muita resistncia, diga-se no como se fosse oterceiro segredo de Ftima. Porque o assimilacionismo foi ultrapassado formalmente,no marco do direito internacional, em 1989 com a Conveno n 169 da OIT, queconsagra o princpio da autodeterminao dos povos e o direito de que cadapopulao indgena ou tribal possa escolher seus prprios caminhos para o futuro.Esse princpio consta ainda na Declarao das Naes Unidas sobre os direitos dospovos indgenas e na Constituio Federal brasileira que, como todos deviam saber, uma carta guiada pelo sentido do multiculturalismo e da autodeterminao.

    Particularmente no Brasil esse debate est to atrasado que na arena pblica o quevemos so polticos de todas as matizes ideolgicas e autoridades dos trs poderessolapando sistematicamente o sentido da autodeterminao e, como se disse acima,inventando um pretexto aps o outro para o genocdio seja a necessidade

  • irracional de uma quantidade infinita de energia eltrica, seja o direito sagrado demineradoras multinacionais saquearem o subsolo, seja o dever cvico de grileiros deterra plantarem soja transgnica, dend ou qualquer outra commoditie nocomestvel em territrios indgenas.

    IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

    Moyss Pinto Neto - Outra dimenso do problema que o texto no aborda: acompleta ausncia de discusso sobre a cultura indgena no ensino superior, comexceo da antropologia, obviamente. estranho que o estudante de Direito, Filosofiaou Jornalismo, por exemplo, saia como um completo ignorante acerca dessasquestes a partir dos currculos das universidades que recebemos. Nas reas queconheo melhor, por exemplo, que so o Direito e a Filosofia, no h qualquer debatesobre o assunto. O estudante pode conhecer os detalhes do pensamento germnico,se quiser, mas nada da filosofia indgena. Nomes bsicos da antropologia culturalcomo Pierre Clastres e Lvi-Strauss so completamente desconhecidos nessescenrios.

    O resultado a repetio de um "universalismo" eurocntrico ou norte-americanfilode matrizes kantianas que desconhece totalmente outras tradies culturais,postulando-se como racional e necessrio e reconhecendo a diferena cultural nomximo como "exotismo". Extico sempre o outro, afinal. Normal basear omodelo poltico-econmico em um crescimento infinito que coloca em xeque oplaneta (includos os "exticos"), por exemplo. urgente revisar essas matrizes depura cpia de modelos tericos vindos das "potncias" do Atlntico Norte numarelao colonizada (nada contra ler autores estrangeiros, obviamente) que acaba porocultar os reais problemas vividos hoje em dia no Brasil.

    H, no entanto, iniciativas muito positivas vindas sociedade nos ventos de Junho,por exemplo, a campanha ndio Ns e uma forte solidariedade nas redes sociais eprotestos das ruas, sem esquecer que os prprios indgenas estiveram na vanguardadas mobilizaes do ano passado. Nesse sentido, parabenizo o trabalho do IHU portomar a violncia contra os indgenas como uma pauta constante em um cenrio ondeela geralmente ignorada, inclusive na Universidade.