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PÁGINA ABERTA A INDUSTRIA DA POBREZA Enquanto os pobres ficam mais pobres, profissionais que atuam em seu nome se saem muito bem. São parte de uma engrenagem cujo funcionamento depende da existência da pobreza VOLTEI POUCO de minha terceira visita ao Brasil em dois anos. Desta vez, o objetivo da viagem foi lançar a versão dublada em português de um documentário, Pobreza S.A. , que produzi. O título já revela a intenção do filme de mos- trar que alguma coisa está errada na forma como as socie- dades ajudam os que precisam. As boas intenções se per- deram e, em vez de contribuírem para acabar com a po - breza, em muitos casos, os esforços nesse sentido são ine- ficazes. Às vezes, até ajudam, isso sim, a piorar a situação dos mais necessitados. Ironicamente, como apontamos no documentário, en- quanto os pobres ficam mais pobres, uma legião de profis- sionais envolvidos em atividades em seu benefício e em seu nome tem se saído muito bem, obrigado. Eles fazem parte de uma indústria montada para acabar com a pobreza que, em vez disso, promove um incestuoso e interesseiro enlace entre instituições governamentais, não governamentais e corporativas cuja existência depende justamente da conti- nuidade da pobreza. Não conheço a fundo os programas contra a pobreza do Brasil, mas nesta última visita pude me familiarizar com al- guns deles, como o Bolsa Família. mérito nesse tipo de ação, principalmente no sentido de estabelecer uma política a ser seguida. Ele pode ter defeitos, mas, em minha opinião, é muito melhor do que a complexa rede de programas sociais em vigor nos Estados Unidos. Conheço bem o sistema de lá, e posso afirmar que ele fracassou completamente na tarefa de pôr fim, ou mesmo aliviar, à pobreza no país. Uma única estatística é suficiente para causar arrepio: os Estados Unidos gastam 1 trilhão de dólares por ano em vários programas sociais em todos os níveis de governo. Os mais pobres tiram pouquíssima vantagem desse enor- me investimento, que acaba engolido por centenas de mi- lhares de burocratas, esforços bem-intencionados, mas ineficazes, e benefícios não tributados que em nada aju- dam a promover a autossuficiência dos mais necessitados. Dividindo-se 1 trilhão de dólares pelo número de ameri- canos oficialmente pobres, resultam 20000 dólares para cada um por ano , ou 60000 para uma família de três pes- soas. Com sinceridade, acho que seria muito melhor sim- 54 4 DE JANEI R O, 2017 plesmente dar o dinheiro diretamente às famílias, como faz o Brasil, do que gastar 85% dele com intermediários. O debate sobre como prover os mais pobres parte de um princípio equivocado. Ver os pobres como simples ob- jeto de caridade é desprezar sua dignidade e sua inata e tremenda capacidade de suprir suas necessidades e as de sua família. Em uma passagem particularmente pungente de Pobreza S.A., um haitiano observa: "Ninguém quer ser pedinte a vida inteira". A maioria prefere não ter de depen- der dos outros para o pão de cada dia - precisa de uma chance para se integrar à economia. Mas são muitos os obs- táculos a essa inclusão. O papa Francisco já ressaltou que em grande parte do mundo se pratica a "economia de ex- clusão", que mantém os pobres à margem. Em outro trecho significativo do documentário, o economista peruano Hernando de Soto descreve uma experiência para testar como é difícil abrir um negócio. Ele contratou duas jovens bem preparadas para abrir uma oficina de costura em uma favela de Lima. Um advogado especialista em abertura de empresas lhes explicou, pas- so a passo, todos os requisitos para formalizar seu negó- cio. As duas gravaram tudo o que passaram para tentar superar a burocracia e reunir a documentação exigida. Conclusão: legalizar sua empresa no Peru custou o equi- valente a 300 dias de trabalho em período integral e 32 salários mínimos. Fica evidente que os obstáculos buro- cráticos praticamente inviabilizam a abertura de um pe- queno negócio pelos pobres e menos educados. Isso os condena a praticar seu empreendedorismo no mercado negro, no qual a informalidade os sujeita a roubos, fis- cais implacáveis e policiais corruptos. Melhor Que fazer o bem para nos sentirmos bem é ajudar as pessoas a ser donas de seu destino

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PÁGINA ABERTA

• A INDUSTRIA DA POBREZA Enquanto os pobres ficam mais pobres, profissionais que atuam em seu nome se saem muito bem. São parte de uma engrenagem cujo funcionamento depende da existência da pobreza

VOLTEI HÁ POUCO de minha terceira visita ao Brasil em dois anos. Desta vez, o objetivo da viagem foi lançar a versão dublada em português de um documentário, Pobreza S.A., que produzi. O título já revela a intenção do filme de mos­trar que alguma coisa está errada na forma como as socie­dades ajudam os que precisam. As boas intenções se per­deram e, em vez de contribuírem para acabar com a po­breza, em muitos casos, os esforços nesse sentido são ine­ficazes. Às vezes, até ajudam, isso sim, a piorar a situação dos mais necessitados.

Ironicamente, como apontamos no documentário, en­quanto os pobres ficam mais pobres, uma legião de profis­sionais envolvidos em atividades em seu benefício e em seu nome tem se saído muito bem, obrigado. Eles fazem parte de uma indústria montada para acabar com a pobreza que, em vez disso, promove um incestuoso e interesseiro enlace entre instituições governamentais, não governamentais e corporativas cuja existência depende justamente da conti­nuidade da pobreza.

Não conheço a fundo os programas contra a pobreza do Brasil, mas nesta última visita pude me familiarizar com al­guns deles, como o Bolsa Família. Há mérito nesse tipo de ação, principalmente no sentido de estabelecer uma política a ser seguida. Ele pode ter defeitos, mas, em minha opinião, é muito melhor do que a complexa rede de programas sociais em vigor nos Estados Unidos. Conheço bem o sistema de lá, e posso afirmar que ele fracassou completamente na tarefa de pôr fim, ou mesmo aliviar, à pobreza no país.

Uma única estatística é suficiente para causar arrepio: os Estados Unidos gastam 1 trilhão de dólares por ano em vários programas sociais em todos os níveis de governo. Os mais pobres tiram pouquíssima vantagem desse enor­me investimento, que acaba engolido por centenas de mi­lhares de burocratas, esforços bem-intencionados, mas ineficazes, e benefícios não tributados que em nada aju­dam a promover a autossuficiência dos mais necessitados. Dividindo-se 1 trilhão de dólares pelo número de ameri­canos oficialmente pobres, resultam 20000 dólares para cada um por ano, ou 60000 para uma família de três pes­soas. Com sinceridade, acho que seria muito melhor sim-

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plesmente dar o dinheiro diretamente às famílias, como faz o Brasil, do que gastar 85% dele com intermediários.

O debate sobre como prover os mais pobres parte de um princípio equivocado. Ver os pobres como simples ob­jeto de caridade é desprezar sua dignidade e sua inata e tremenda capacidade de suprir suas necessidades e as de sua família. Em uma passagem particularmente pungente de Pobreza S.A., um haitiano observa: "Ninguém quer ser pedinte a vida inteira". A maioria prefere não ter de depen­der dos outros para o pão de cada dia - só precisa de uma chance para se integrar à economia. Mas são muitos os obs­táculos a essa inclusão. O papa Francisco já ressaltou que em grande parte do mundo se pratica a "economia de ex­clusão", que mantém os pobres à margem.

Em outro trecho significativo do documentário, o economista peruano Hernando de Soto descreve uma experiência para testar como é difícil abrir um negócio. Ele contratou duas jovens bem preparadas para abrir uma oficina de costura em uma favela de Lima. Um advogado especialista em abertura de empresas lhes explicou, pas­so a passo, todos os requisitos para formalizar seu negó­cio. As duas gravaram tudo o que passaram para tentar superar a burocracia e reunir a documentação exigida. Conclusão: legalizar sua empresa no Peru custou o equi­valente a 300 dias de trabalho em período integral e 32 salários mínimos. Fica evidente que os obstáculos buro­cráticos praticamente inviabilizam a abertura de um pe­queno negócio pelos pobres e menos educados. Isso os condena a praticar seu empreendedorismo no mercado negro, no qual a informalidade os sujeita a roubos, fis­cais implacáveis e policiais corruptos.

Melhor Que fazer o bem para nos sentirmos bem é ajudar as pessoas a ser

donas de seu destino

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Esse pântano burocrático não é exclusividade do Peru. Experiências parecidas são relatadas em toda a América Latina, na África e na Ásia. Em uma visita anterior ao Bra­sil, eu mesmo tive a chance de conhecer a história de um pobre excluído da economia formal. Eu queria comprar uma rede para dar de presente a meu filho, mas que fosse um produto artesanal, feito a mão. Saí de carro com meu anfitrião, o deputado gaúcho Mareei van Hattem, e não demoramos a encontrar um senhor vendendo redes na beira da estrada. Ele nos contou que suas redes eram feitas por parentes no Norte e que viajava até lá com frequência para visitar a família e trazer o produto para vender na ci­dade grande. Era um homem decente e trabalhador. E um criminoso, já que operava um negócio ilegal.

Finalizamos a compra e Mareei lhe deu seu cartão. Antes de voltarmos para o carro, entramos em uma igreja próxi­ma. Quando saímos, lá estava o vendedor de redes. Aper­tando na mão o cartão de Mareei e com lágrimas nos olhos, ele pediu sua ajuda. Queria, mais que tudo no mundo, legali­zar seu negócio. Falou das dificuldades e vulnerabilidades de sua situação informal. Não pedia um favor do tipo que os políticos sempre ouvem, nem esmolas de programas sociais.

© ALPHADOG

KRIS MAUREN*

Simplesmente pedia a chance de ser incluído na economia formal. Infelizmente, dispondo de pouco estudo, pouco tempo e poucos recursos, não tinha condição de encarar a burocracia nem os custos que o mantinham, assim como a outros milhões, à'margem das oportunidades. Por que a po­lítica pública faz com que seja tão difícil para os mais pobres oferecer seu talento ao mercado de trabalho? Por que as leis e regulamentações fortalecem a exclusão social?

Há mudanças em andamento no Brasil. Como estran­geiro que visitou o país com frequência, eu talvez possa ver com mais clareza do que meus amigos brasileiros o poten­cial de melhoras nas discussões em curso sobre possibilida­des sociais e econômicas. Acima de tudo, saí dos debates de que participei com a convicção de que nós, ocidentais, te­mos de repensar a maneira como ajudamos nosso vizinho. Precisamos nos preocupar menos em fazer o bem para nos sentirmos bem e mais em ajudar aqueles que querem ser donos de seu destino. Isso requer humildade de nossa parte e coragem da parte deles. _

* Kris Mauren é diretor executivo do Acton Institute, um think tankglobal voltado para o estudo da religião e da liberdade

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