A INFLUÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO (?) NA ANCESTRALIDADE … · Palavras-chave: Migração. Rondônia....
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A INFLUÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO (?) NA ANCESTRALIDADE DO POVO
INDÍGENA PAITER1 SURUÍ
Catia Cristina da Silva2
RESUMO:O presente trabalho tem como objetivo analisar como o processo de colonizaçãoinfluenciou na tradição cultural dos hábitos e costumes do povo indígena Paiter Suruí, emespecial dos reflexos no ritual da pajelança, que é caracterizada como uma série de rituaisque o pajé3 realiza com o objetivo específico de cura e magia. Ao final, apresenta o Museu“Paiter A Soe”, construído há um ano na Aldeia G̃apg̃ir4, uma das mais populosas dessaetnia, com a finalidade de preservar a memória identitária da cultura Suruí. A metodologiautilizada foi pesquisa bibliográfica, estudo de campo nas Aldeias Amaral e Lapetanha nomunicípio de Cacoal-RO e entrevistas. O estudo demonstrou que, devido influência dasmissões religiosas, grande parte dos Paiter Suruí foi evangelizada e a ancestralidadeimaterial, especificamente os rituais de cura e magia realizados pelos pajés, foigradativamente extinta.
Palavras-chave: Migração. Rondônia. Indígena. Tradição. Suruí.
1 INTRODUÇÃO
O povo Paiter Suruí tem uma história ancestral bastante rica, permeada de
simbolismos e rituais. As danças, pinturas, confecção de artesanatos, caça, pesca, entre
outros, são hábitos e costumes típicos da cultura dessa etnia. Sua história foi
tradicionalmente transmitida de geração em geração, pelos anciãos, através de narrativas e
memórias preservadas pela tradição oral.
Em Cacoal, cidade localizada na região centro-sul do interior de Rondônia,
concentra-se o maior número de indígenas Paiter Suruí. O universo bastante rico e a
1 Paiter significa “Gente de Verdade” ou “Povo Verdadeiro”, autodenominação do povo Suruí.
2 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e mestranda em DireitosHumanos e Desenvolvimento da Justiça pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
3 Indivíduo responsável pela condução do ritualismo mágico a quem se atribui a autoridade xamanística deinvocar e controlar espíritos. Chefe de pajelança.
4 G̃apg̃ir é nome de um dos clãs originais do povo Paiter Suruí.
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2proximidade com a realidade cultural urbana gerou o interesse de realizar o presente
trabalho, que tem como objetivo apresentar elementos históricos da etnia Paiter Suruí e
abordar algumas mudanças culturais ocorridas após o contato e processo de colonização,
em especial, sobre a pajelança.
Neste sentido, apresento na segunda seção a contextualização histórica do processo
migratório no Estado de Rondônia e seu impacto no modo de vida desta etnia, cujo contato
oficial ocorreu em 1969 e destacou-se como um período de muitos conflitos e mortes na
região.
Na terceira seção destaco aspectos culturais da ancestralidade Paiter Suruí e
elementos históricos relatados pelos anciãos dessa etnia que encontram-se memorizados no
livro “Histórias do Começo e do Fim do Mundo”, obra publicada em 2016 e uma das
fontes de pesquisa deste trabalho, além do estudo de campo e entrevistas.
E por fim, na quarta seção, apresento o Museu Paiter a Soe, idealizado pelo jovem
Luíz Suruí e construído há aproximadamente um ano na Aldeia G̃apg̃ir, no município de
Cacoal. O objetivo do museu é manter viva a memória cultural dos hábitos e costumes do
povo Paiter Suruí.
2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA: MIGRAÇÃO E POVOSINDÍGENAS
No século XIX os acordos políticos entre fronteiras dos governos do Brasil e países
vizinhos foram firmados sem considerar os povos originários da amazônia ocidental, nos
quais “rios, montanhas, florestas, aldeias, povos indígenas foram divididos entre os países
como se fossem coisas, sem espírito, sem alma.” (SURUÍ et al, 2016, p. 241). A
administração laica e as missões eclesiásticas eram as principais formas de dominação do
território.
No começo do século XX, a construção da Ferrovia Madeira-Mamoré e a instalação
das linhas telegráficas chefiada por Marechal Cândido Mariano Rondon, que ligava o sul e
sudeste ao norte do país, provocou um intenso fluxo migratório na região, resultando em
graves conflitos e mortes de indígenas e colonizadores.
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3Os Suruí foram os que mais sofreram no processo de colonização em Rondônia, já
que ocupavam tradicionalmente as margens da BR-364, onde hoje é o município de
Cacoal. Nesse sentido, destaca-se a narrativa de G̃athag Suruí:
Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 74.
Bem depois de conviver com meu pai, dentro da tradição, bem depois disso eucomecei a perceber a mudança, o tempo do medo. Esse tempo do medo chegouquando outros povos indígenas nos perceberam. Os yara ey5 também nosperceberam. Eles trouxeram o medo […] Eu fui para ver como era. Era apenasum caminho largo, muito aberto, sem movimento, sem carro. O caminho seguia abeira do rio. Foi ali que ouvimos um barulho muito alto, assustador, que eununca tinha ouvido antes. Parecia até que fazia a terra tremer […] Então vimosum trator muito grande, derrubando as árvores, arrastando a floresta. Vimos umtrator abrir uma trilha muito larga. Nós ficamos muito assustados com aquilo. Foiassim que eu vi o trator abrindo o caminho para os carros, abrindo a BR 364.Nós vimos isso pela primeira vez. Eu e meus pais vimos os yara ey pela primeiravez (SURUÍ et al, 2016, p. 75 e 77).
O intenso fluxo de pessoas, advindas de diversas regiões do país, demandou a
necessidade urgente de proteção dos povos indígenas, criando-se em 1910 o Serviço de
Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais – SPILTIN que, oito anos
depois, passou a ser denominado Serviço de Proteção ao Índio – SPI. O principal objetivo
desse órgão era prestar assistência e promover a integração, cultura e respeito às terras dos
indígenas, mas sua atuação interferiu significativamente na tradição deste povo, de modo
que populações inteiras foram deslocadas para liberação de terras que seriam destinadas à
5 Yara é o não indígena, o branco. A forma yara ey é usada como plural.
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4colonização e infraestrutura. Um documento da época explica como se deu o contato com
os povos indígenas:
As táticas e técnicas de contato com povos indígenas, empregadas nas atividadesde atração e pacificação do SPI, foram paulatinamente desenvolvidas porRondon, no âmbito das Comissões de Linhas Telegráficas, desde o final doséculo XIX. Eram práticas filiadas a uma longa genealogia que tinha origem noscontatos dos jesuítas com os povos indígenas desde o séc. XVI.
Uma das principais táticas, em um cerco pacífico de povos indígenas (Lima,1995), era a de identificar-se como amigo, isto é, como um interlocutor deconfiança. Nas atividades de atração foram adotadas as seguintes técnicas:
1. A turma de atração deveria ser constituída por trabalhadores esclarecidos arespeito dos problemas de contato;
2. Chefe da equipe experiente no trato com os índios;
3. Participação de índios do mesmo tronco linguístico dos índios arredios paratrabalharem como guias e intérpretes;
4. Equipe de atração instalada dentro do território indígena;
5. Construção de um posto indígena protegido, além da plantação de roçado;
6. Exploração das redondezas do posto indígena protegido, conhecendo matas,rios e tapiris6;
7. Exibição de armas de fogo, diante de qualquer ataque de índios hostis,demonstrando que a equipe tinha poderio que não seria usado contra o grupo;
8. Instalação de tapiris com presentes, distribuindo-se os índios intérpretes pelasmatas. As trocas de presentes estabeleciam a fase inicial de “namoro” com osíndios arredios;
9. Após o contato inicial, a pacificação era consolidada com amplaconfraternização. Entretanto, se houvesse algum incidente grave, poderia ocorrero colapso da atividade de atração7.
Contato com o branco. Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/surui-paiter/846. Acesso em: 5 ago. 2017.
6 Tapiri é uma estrutura de abrigo com caráter provisório que serve tanto para se proteger da chuva, comotambém para breve permanência dos brancos para deixar os presentes.
7 Fonte: http://www.funai.gov.br/index.php/todos-presidencia/2164-o-servico-de-protecao-aos-indios?start=1
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5Contudo, devido graves problemas de corrupção denunciados na época, foi criada
em 1967 a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, em substituição ao SPI. Este tempo
ficou marcado como um período de muitas mortes de indígenas e não indígenas, noticiados
nos jornais que enfatizavam a necessidade de acelerar o processo de pacificação para evitar
que os indígenas fossem dizimados pelos milhares de garimpeiros que se encontravam na
região.
Nós não queríamos virar branco, yara. Mas não tivemos outra saída. Era a únicachance de ficar vivos, porque soubemos que esses yara ey estavam defendendonosso povo, davam roupa, comida, facão, remédios para as doenças. Eram maisamigos que os outros índios inimigos. Por causa do medo das guerras, tivemosque nos aproximar dos yara ey. Se nós tivéssemos bem, felizes, duvido quetivéssemos ido ao encontro deles, nós não iríamos usar roupas, chegar até osyara ey. (SURUÍ et al, 2016, p. 80)
A documentação sobre os massacres é escassa e são mais enfáticas quanto aos
ataques sofridos pelos não-índios do que os sofridos pela população indígena. Segundo
Mindlin (1985, p. 20), o serviço de proteção da FUNAI foi importante para defender o
povo indígena, mas não suficiente para conseguir conter os massacres. Embora os
documentos da época fossem enfáticos ao registrar os ataques violentos por parte dos
indígenas, estes sofreram violência muito maior, sendo que o trabalho de proteção
apontava mais à necessidade de acabar com os ataques dos índios que do desejo de evitar
seu extermínio (1985, p.19).
A partir das décadas de 60 e 70 o crescimento na região de Rondônia aconteceu de
forma bastante acelerada, época em que os incentivos fiscais e os grandes investimentos do
governo federal estimularam a migração. Disto, o acesso fácil e barato à terra atraiu muitos
empresários interessados em investir na agropecuária e indústria madeireira. A descoberta
do ouro e cassiterita também contribuiu significativamente para o aumento populacional,
sendo que entre 1960 e 1980 o número de habitantes passou de 70 mil para 500 mil, de
modo que em 1981 Rondônia ganha a condição de Estado.
Oficialmente, o primeiro contato com os Paiter Suruí ocorreu em 1969, através da
FUNAI, quando seus ancestrais migraram da região de Cuiabá para fugir dos yara ey. Esse
período ficou conhecido como o “Tempo das Correrias”.
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6O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, criado em 1970,
foi o executor dos projetos de colonização e responsável pela demarcação e distribuição de
terras para os colonos migrantes de diversas regiões do país que penetravam a floresta,
grande parte originária do Centro Sul.
Nesta época, a ocupação da área no entorno da Terra Indígena Sete de Setembro,
área tradicional dos Paiter Suruí, intensificou-se, dando origem ao assentamento dos
colonos na então chamada “vila de Cacoal”, região da amazônia ocidental.
Neste período os ataques se tornam mais raros e os indígenas passam a ser cada vez
mais colonizados e confinados às áreas reservadas. Segundo Mindlin, “os massacres
haviam passado a ser de outro tipo”. (1985, p.23)
Desde então, elementos da cultura indígena dos Paiter Suruí foram sendo
gradativamente influenciados por parte dos não indígenas, de maneira que muitos hábitos e
costumes tradicionais dessa etnia se perderam.
3 OS PAITER SURUÍ: HISTÓRIAS, RITUAIS E ESPIRITUALIDADE
A Terra Indígena Sete de Setembro, onde vivem os Paiter Suruí, está localizada em
uma região fronteiriça, ao norte do município de Cacoal-RO até o município de Aripuanã-
MT. O acesso à área se dá através das linhas8 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 14, pelo fato das aldeias
estarem distribuídas ao longo dos seus limites, tanto por questões de segurança quanto de
aproveitamento de antigas sedes de fazendas deixadas por invasores que se estabeleceram
dentro da área nas décadas de 70 e 80.
Abaixo, segue o mapa da localização da área:
8 A denominação de “linhas” é corrente na região, proveniente da marcação dos lotes dos projetos decolonização e expansão fronteiriça. Refere-se as estradas que dão acesso a lugares outrora inacessíveis, aomesmo tempo em que marcam geograficamente a área.
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Fonte: http://naturezadivina.org.br/textos/cultura-indigena/povos-surui/. Acesso
em 10 ago. 2017.
A homologação da terra ocorreu em 1983 e os Suruí, até então concentrados nessa
área, se dividiram por toda região. Até 2015, eram 25 aldeias espalhadas em uma área de
247.880 hectares demarcados e uma população aproximada de 1.350 pessoas. Atualmente,
segundo informação da FUNAI, são aproximadamente 1.500 indígenas localizados em 27
aldeias.
A cultura dos Paiter Suruí é riquíssima, com uma grande diversidade de rituais,
dentre eles o Mapimaí9, o Ngamangaré (roça nova), o Weyxomaré (pintura), o Hoeyateim
(festa em que o xamã controla os espíritos da aldeia), o Lawaãwewa (construção de casa
nova) e o Ytxaga (pesca com timbó). Entretanto, ao longo do tempo muitas festas e danças
tradicionais sofreram significativas alterações ou, até mesmo, foram abandonadas em
função dos conflitos ideológicos com as novas religiões introduzidas nas comunidades
indígenas. Disto, aspectos da cultura do não indígena foram gradativamente assimilados
pelos Paiter Suruí, dentre eles, datas comemorativas como natal, aniversários, etc.
(MARETTO et al, 2012)
9 Ritual da origem da humanidade, que reúne todas as pessoas da aldeia em torno da bebida, do alimento, decantos e danças, com trocas de presentes e favores.
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8A antropóloga Betty Mindlin, que viveu aproximadamente um ano nesta região com
os indígenas no início da década de 80, descreve que, apesar dos conflitos, as aldeias eram
permeadas por uma atmosfera de misticismo e espiritualidade, principalmente na época das
chuvas, momentos em que deitados em redes e aquecidos pelo fogo, os índios contavam
histórias e comiam iguarias típicas feitas de milho e caju. (Mindlin, 1985)
Maria do Carmo Barcellos, geóloga indigenista que reside em Cacoal há mais de
quarenta anos e conhecida como Maria dos Índios, conviveu desde o início dos nos 70 com
os Paiter Suruí nesta região. Em entrevista, ela apresentou um relatório de pesquisa
elaborado entre 2009 e 2010 pela Associação Metareilá, da qual fazia parte, onde constam
registradas muitas particularidades da história deste povo, como, por exemplo, a difícil
realidade vivida entre os anos 1971 e 1980, marcada como um período de mortalidade
extremamente alta devido a introdução de doenças desconhecidas, dentre elas o sarampo,
das quais o povo não teve resistência natural alguma e que quase dizimou essa etnia que
tinha uma população (estimada pelos próprios índios) de aproximadamente 5.000 pessoas.
O trabalho e convívio constante da geóloga com essa etnia contribuiu para a
elaboração do livro “Histórias do Começo e do Fim do Mundo”, publicado em 2016 e
lançado no mesmo ano na cidade de Cacoal. Esta obra, de conteúdo riquíssimo, retrata o
modo de vida dos Paiter Suruí através das narrativas dos anciãos, conforme relato de
G̃aami Anini Suruí:
Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 62.
À noite fazíamos festa. À noite o velho contava história, a história da origemdas gerações. Contava a história de Palob10, porque naquele tempo o velho jáfalava que existia deus. Ele não sabia ainda da existência de Jesus, mas falava
10 Palob é o grande pai criador.
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9que existia um criador que havia criado o céu e a terra, que havia criado oshumanos. Os velhos conheciam muitas histórias e aproveitavam o tempo paracontar essas histórias. Eles falavam também como se devia viver, porque pra nóstambém existem “pecados”. Ensinavam que não se deve matar o parente, pode-se matar o inimigo para se defender, mas não se pode procurar o conflito, fazer omal […] era a nossa lei: era proibido matar, proibido roubar, proibido mentir,acusar o outro, ter inveja. (SURUÍ et al, 2016, p. 65)
A cultura imaterial do povo Paiter Suruí, tema principal desta pesquisa, teve grande
influência dos primeiros missionários religiosos que se aproximaram da região norte a
partir da década de 70, através da missão evangélica americana Summer Institute of
Linguistics – SIL, que trabalha com traduções bíblicas para língua indígena. Contudo,
apesar do processo de evangelização dos povos indígenas iniciar-se nesta época, as
primeiras conversões ocorreram apenas dez anos depois, a partir de 1980, sendo que até a
década de 70, segundo Meireles (1983, p. 124), os Suruí “jamais se deixaram evangelizar
por missionários.” Hoje, a maior parte da população indígena Paiter Suruí converteu-se ao
cristianismo. Segundo G̃aami, o povo Suruí abandonou a dança, a cerimônia do pajé, o
mapimaí, e hoje tudo é considerado pecado. (2016, p. 172)
Abaixo, o indígena Itabira G̃apoi Suruí fala sobre a pajelança, principal ritual
religioso dessa etnia:
Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 110.
Como meu pai era pajé, ele fumava muito para se proteger, proteger a mãetambém. Eu peguei sarampo muito forte. Fui curado pelo espírito para estar vivoaté agora. Os espíritos ajudaram-me a me curar. […] Quando eu estava doente eusonhei. O irmão mais velho perguntava o que estava acontecendo comigo e eurespondia; “Eu estou morrendo”. Então eu vi uma mulher muito bonita, perto de
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10mim. Ela estava se escondendo, não mostrava o rosto. Ela tinha franja, oscabelos eram pretos e muitos longos. Ela ficou por trás de mim. Meu irmão nãotinha colar no pescoço, só colar na cintura e os objetos do pajé na mão. Ele ficouna minha frente, estava com o cigarro do pajé. […] No outro dia eu vi meu irmãoque estava ali me visitando. Perguntou-me como eu estava. Eu disse que estavacurado, porque o espírito havia me curado. Ele colocou em mim a pedra de cura,ysoah11, sinal do espírito em mim. Contei o meu sonho pra ele. Logo depois eledisse: Eu também estou ficando com febre, ficando doente. Ele piorou muitorápido, à noite estava muito mal, no outro dia estava morto. (SURUÍ et al, 2016,p. 114).
Na visita de campo que realizei na Aldeia Lapetanha, o ex-pajé Perpera Suruí (80
anos) relatou que já fez muitas curas através da pajelança. A conversa foi traduzida por um
jovem indígena residente na aldeia, pois Perpera tem dificuldade em falar nossa língua. Na
entrevista, ele contou uma história sobre o período em que ainda era pajé. Disse que certa
vez uma moça da aldeia estava praticamente morta, quando foi chamado pelos parentes
para fazer um rito de cura. Exemplificou, através de gestos, como se deu esse ritual: levou
as mãos justapostas até a boca, assoprou, esfregou e sobrepôs sobre o corpo da jovem
indígena, que retornou à vida.
Atualmente Perpera não realiza mais rituais de pajelança. Relatou que o motivo de
ter abandonado essa prática teria sido porque numa certa ocasião (não soube precisar há
quanto tempo) ele passou muito mal e achou que morreria, momento em que foi curado
através da oração de um parente que havia convertido-se ao cristianismo. Desde então,
decidiu abandonar os rituais da pajelança, “parô tudo, espíritu ruim”, e tornar-se cristão.
Hoje, ele é porteiro numa igreja evangélica localizada na sua aldeia, onde, de terno e
gravata, recebe os irmãos nos dias de culto.
Perpera relatou também que seu primeiro nome foi Yab-Lab, dado por sua mãe
desde a floresta. Após o contato com a FUNAI, passou a chamar-se Perpera Suruí, nome
que consta no seu documento de identidade. Hoje, é conhecido pelos irmãos da igreja
como Simão Pedro, que diz ser seu nome preferido.
O ex-pajé demonstra ter assimilado muito da cultura evangélica, assim como
grande parte dos indígenas da Aldeia Lapetanha, onde existem duas igrejas cristãs.
Segundo censo realizado pela Associação Metareilá (2010), esta aldeia conta com uma
população aproximada de 90 pessoas.
11 Ysoah é uma pedra usada em ritual de cura e proteção.
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11Na Aldeia Amaral, próxima a Aldeia Lapetanha, a maioria da comunidade indígena
também é evangélica. Segundo estimativa da geóloga Maria dos Índios, atualmente
existem, no mínimo, 20 igrejas espalhadas nas aldeias do povo Suruí, sendo a maior parte
de denominação evangélica. Abaixo, algumas fotos tiradas durante a visita de campo:
Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
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124 O MUSEU PAITER A SOE
Ainda que muitos elementos da cultura imaterial dos Paiter Suruí foram se
perdendo no decorrer dos anos, estes perseveram em manter viva a memória de alguns
hábitos e costumes do seu povo. Disto, buscando valorizar a cultura dos seus ancestrais,
construíram há um ano em Cacoal o Museu Paiter A Soe12, localizado na aldeia G̃apg̃ir.
Este projeto é um sonho antigo dos Paiter Suruí e foi idealizado pelo professor indígena
Luiz Wymilawa Suruí.
O museu é instalado em uma casa de modelo tradicional da aldeia, feita de palha de
babaçu e construída pelos indígenas jovens, que foram supervisionados pelos anciãos.
Expõe panelas de barro, cestos de palha, artesanatos e diversos utensílios de uso tradicional
do povo indígena, de modo os visitantes possam conhecer um pouco dos hábitos e
costumes dos Paiter.
O objetivo maior do museu é estimular a reflexão da comunidade acerca das
principais mudanças ocorridas na história da cultura indígena e preservar a memória dos
seus ancestrais. Segundo pesquisa realizada pela Associação Metareilá no ano de 2010, não
obstante as significativas perdas da tradição tribal sofridas nas últimas décadas, 79% das
famílias ainda produzem artefatos materiais, como colares, anéis, pulseiras, entre outros.
Mulher indígena confeccionando artesanato.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
12 Paiter A Soe significa “coisas de paiter”.
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Museu Paiter A Soe.
Fonte:http://acontecero.com.br/2016/07/20/primeiro-museu-indigena-de-rondonia-e-inaugurado-em-aldeia/. Acesso em: 05 ago. 2017.
Museu Paiter A Soe.
Fonte:http://acontecero.com.br/2016/07/20/primeiro-museu-indigena-de-rondonia-e-inaugurado-em-aldeia/. Acesso em: 05 ago. 2017.
A comunidade Paiter Suruí, ainda que tenha perdido muito da sua ancestralidade
imaterial desde a época do contato, persevera em manter alguns elementos de suas
tradições.
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145 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho apresentou alguns elementos da trajetória histórica do povo indígena
Paiter Suruí e buscou abordar os principais impactos sofridos por esta etnia desde o contato
com os não indígenas, em especial, acerca da cultura imaterial.
Disto, destaca-se que no início do processo de colonização de Rondônia houve
grande resistência dos povos indígenas Paiter Suruí para com as práticas religiosas trazidas
pelos missionários, porém, essa resistência não se perpetuou, pois a divisão em pequenas
aldeias acarretou no enfraquecimento cultural desses indígenas, de modo que parte da
cultura foi dizimada e que um dos seus principais ritos religiosos, a pajelança, foi extinto.
Neste sentido, embora a Constituição Federal de 1988 reconheça aos índios o
“Direito a Diferença”, assegurando-lhes o respeito a organização social, costumes, línguas,
crenças, tradições e direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
conclui-se que tal reconhecimento alcançou tardiamente os Paiter Suruí.
Do exposto, é possível afirmar que os direitos constitucionalmente garantidos não
foram suficientes para alterar o processo de desculturalização que influenciou hábitos e
costumes deste povo, haja vista que sua ritualística imaterial foi significativamente
influenciada pelas missões religiosas.
Neste contexto, pelo menos quanto a cultura material, o Museu Paiter A Soe se
mostra como um mecanismo de resistência contra o esquecimento das riquezas culturais
dos Paiter Suruí.
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15REFERÊNCIAS
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DECLARAÇÃO das Nações Unidas dos Povos Indígenas – 2007. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2017.
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IRMANDADE BENEFICENTE NATUREZA DIVINA – Disponível em: <http://naturezadivina.org.br/textos/cultura-indigena/povos-surui/>. Acesso em: 10 ago. 2017.
MARETTO, Luis Carlos; SURUÍ, Almir Narayamoga; SILVA, Adnilson de Almeida. Ritual Mapimaí – A Festa da Criação do Mundo dos Paiter Suruí. 2012. Disponível em: <www.revistas.ufg.br/atelie/article/download/31665/18596>. Acesso em: 9 ago. 2017.
MEIRELES, Denise M. Populações indígenas e a ocupação histórica de Rondônia. Monografia (Curso de Historia): Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 1993. Cacoal. (documento não publicado)
METAREILÁ, 2010. Plano de ação participativo para o desenvolvimento de uma economia racional e de manejo sustentável dos recursos naturais da terra indígena Sete de Setembro. Cacoal. (documento não publicado)
MINDLIN, Betty. Nós Paiter – Os Suruí de Rondônia. Rio de Janeiro, Editora: Vozes, 1985.
OLIVEIRA, Ovídio A. História Desenvolvimento e Colonização do Estado de Rondônia, 1 ed. Porto Velho: Geográfica, 2001.
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