A Influência da Commedia Dell' Arte na Dramaturgia do Seriado Chaves de Roberto Gómez Bolaños

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS Edmilson dos Santos de Almeida A Influência da Commedia Dell’Arte na Dramaturgia do seriado Chaves de Roberto Gómez Bolaños João Pessoa PB 2014

Transcript of A Influência da Commedia Dell' Arte na Dramaturgia do Seriado Chaves de Roberto Gómez Bolaños

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS

Edmilson dos Santos de Almeida

A Influência da Commedia Dell’Arte na Dramaturgia

do seriado Chaves de Roberto Gómez Bolaños

João Pessoa – PB

2014

Edmilson dos Santos de Almeida

A Influência da Commedia Dell’ Arte na Dramaturgia

do seriado Chaves de Roberto Gómez Bolaños

Monografia apresentada na Disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso como Requisito básico para a obtenção do Título de Conclusão do Curso de Bacharelado em Teatro. Orientadora: Lúcia Serpa

João Pessoa – PB

2014

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal da Paraíba.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Almeida, Edmilson dos Santos de.

A Influência da Commedia Dell’ Arte na Dramaturgia do

seriado Chaves de Roberto Gómez Bolaños / Edmilson dos

Santos de Almeida. - João Pessoa, 2014.

63f. : il.

Monografia (Graduação em Teatro) – Universidade Federal

da Paraíba - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Orientadora: Profª. Ms. Lúcia Gomes Serpa.

1. Commedia Dell Arte. 2. Crítica social. 3. Mimese. 4.Chaves. I. Título.

BSE-CCHLA CDU 792

Edmilson dos Santos de Almeida

A Influência da Commedia Dell’ Arte na Dramaturgia

do seriado Chaves de Roberto Gómez Bolaños

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado para obtenção do grau de Bacharelado em Teatro, pela Banca Examinadora formada por:

Orientadora: Ms. Lúcia Gomes Serpa

Profº Ms. Elias de Lima Lopes

Profº Ms. José Everaldo de Oliveira Vasconcelos

João Pessoa – PB

2014

DEDICATÓRIA

Dedico a todos os profissionais da Comédia Popular, atores e pesquisadores

que elevam seus cosmos ao infinito com o objetivo de resgatar a essência da

Commedia Dell’ Arte e seus personagens tipificados na sociedade.

E claro, dedico com muito carinho a todos os fãs e admiradores do seriado

Chaves e a seu criador Roberto Gómez Bolaños.

AGRADECIMENTOS

Quero agradecer primeiramente ao senhor Jesus por ter me dado o

sopro da vida e por ter a oportunidade de concluir esse trabalho de pesquisa,

na área que amo e mais me identifico.

Agradeço especialmente, aos meus pais pelo amor, educação e também

paciência, em relação a minha carreira artística. Minha namorada que me

ajudou bastante, sem a qual não poderia obter o mesmo êxito deste trabalho. E

claro, quero agradecer a instituição Universidade Federal da Paraíba (UFPB),

minha orientadora pela confiança e todos aqueles que contribuíram de alguma

forma, com o desenvolvimento deste trabalho monográfico.

RESUMO

A seguinte pesquisa apresenta a Commedia Dell’ Arte e seus principais elementos que influenciaram produções artísticas da modernidade. Para tal, investiga sua origem evidenciando possíveis contribuições no âmbito da comédia popular televisiva, tendo como objetivo principal destacar sua provável influência na dramaturgia do seriado televisivo El Chavo del Ocho (Chaves no Brasil), criado pelo mexicano Roberto Gómez Bolaños (Chespirito). Sendo assim, a pesquisa apoia-se de forma qualitativa em documentos bibliográficos e vídeos do seriado televisivo em questão. No percurso dessa pesquisa, é analisado primeiramente a mimese e a crítica social, presentes na Commedia Dell’ Arte. Em seguida, a apresentação do autor Roberto Gómez Bolaños e a dramaturgia do seriado Chaves. Partindo dessa investigação, é chegado o momento da relação das principais características dos personagens do seriado Chaves, com os tipos/personagens da Commedia Dell’ Arte, através da análise de cenas de episódios do seriado mexicano.

Palavras-chave: Commedia Dell’ Arte, Chaves, Chespirito, mimese, crítica

social.

RESUMEN

La siguiente investigación presenta la Commedia Dell’ Arte y sus principales elementos que influenciaron producciones artísticas de la modernidad. Para tal, investiga su origen evidenciando posibles contribuciones en el ámbito de la comedia popular televisiva, teniendo como objetivo principal destacar su probable influencia en la dramaturgia de la serie televisiva El Chavo del Ocho (Chaves en Brasil), creado por el mexicano Roberto Gómez Bolaños (Chespirito). Siendo así, el estudio se apoya de forma cualitativa en documentos bibliográficos y vídeos de la serie televisiva en cuestión. En el recorrido de esta investigación, son analizadas primeramente la mimese y la crítica social, presentes en la Commedia Dell’ Arte. En seguida, la presentación del autor Roberto Gómez Bolaños y la dramaturgia del seriado Chaves. Partiendo de esa investigación, se llega al momento de la relación de las principales características de los personajes de la serie Chaves, con los tipos/personajes de la Commedia Dell’ Arte, a través del análisis de escenas de episodios de la serie mexicana.

Palabras llave: Commedia Dell’ Arte, Chaves, Chespirito, mimese, crítica social.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 10

Capítulo 1: A essência da Commedia Dell`Arte ..................................................... 12

1.1 A Função da Mimese na Comédia Popular........................................................ 12

1.2 Crítica à Aristocracia ................................................................................................. 14

1.3 O Surgimento da Commedia Dell’ Arte ............................................................... 17

Capítulo 2: Chaves e a Comédia Popular Televisiva ........................................... 21

2.1 A Indústria Cultural e a Influência da Mídia Televisiva no comportamento

da sociedade ....................................................................................................................... 21

2.2 Chespirito - O pequeno Shakespeare .................................................................. 23

2.3 A Dramaturgia do seriado Chaves ........................................................................ 27

Capítulo 3: A Commedia Dell’Arte e o seriado Chaves – Relações que

atravessam o tempo ........................................................................................................... 31

3.1 O Estudo da Natureza do Homem ........................................................................ 31

3.2 Quadros comparativos entre as duas Expressões Artísticas: A Commedia

Dell`Arte e o seriado Chaves ......................................................................................... 33

3.2.1 A crítica das classes sociais ................................................................................. 33

3.2.2 Composição de Lazzi na dramaturgia do seriado Chaves .............................. 35

3.2.3 Comparação das características dos personagens/tipos ................................ 38

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 60

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 62

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Arlecchino anno 1671 - SAND Maurice. Masques et bouffons

(Comedie Italienne). ......................................................................................... 39

Figura 2 – Chespirito, no papel de “El Chavo” (Chaves) .................................. 39

Figura 3 - Brighella, século XVI. ....................................................................... 42

Figura 4 - Quico ................................................................................................ 43

Figura 5 - Colombina com trajes típicos do final do séc. XVII .......................... 46

Figura 6 - La Chilindrina (Chiquinha) ................................................................ 47

Figura 7 - Pantalone, 1550, por Mauricie Sand ................................................ 49

Figura 8 - Don Ramon (Seu Madruga) ............................................................. 50

Figura 9 - Scaramuccia em 1860 - SAND Maurice. Masques et bouffons

(Comedie Italienne) .......................................................................................... 51

Figura 10 - O Professor Girafales ..................................................................... 54

Figura 11 - Dottore de face corada ................................................................... 55

Figura 12 - Os Enamorados ............................................................................. 56

Figura 13 - Prof. Girafales e Dona Florinda ...................................................... 57

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INTRODUÇÃO

A partir do estudo de elementos da Commedia Dell’ Arte e do seriado

televisivo El Chavo Del Ocho (Traduzido para o Brasil como Chaves), criado

pelo dramaturgo mexicano Roberto Gómez Bolaños, foi possível notar

similitudes entre ambos. Desde então, surgiu o questionamento sobre a

possível relação dessa expressão artística com o seriado em questão. O passo

seguinte foi, assim, analisar o seriado Chaves a partir desta nova perspectiva.

Segundo os estudos do Grupo Teatral Moitará, podemos destacar vários

atores, diretores e dramaturgos que adotaram em suas obras, elementos

presentes nessa comédia popular, como exemplo temos Shakespeare,

Moliére, Carlo Goldoni, Jacques Lecoq, Meyerhold, Dario Fo, Marcelo

Moretti, Ariano Suassuna, entre outros.

A escolha do seriado Chaves ocorreu devido ao fato de acompanhar os

episódios desde a minha infância, tendo-o como um referencial no gênero da

Comédia. São mais de três décadas de exibições ininterruptas nos países

latino-americanos, sempre com muito sucesso de audiência, principalmente no

Brasil. Em nosso país, o seriado é exibido pelo Sistema Brasileiro de Televisão

(Sbt), desde 1984. Desta forma, novas gerações vão acompanhando as

peripécias dos personagens do seriado Chaves.

Por outro lado, tal seriado é bastante criticado por muitos, que o

consideram como um “mero” programa infantil e um “produto do mercado de

massa.” Fato este que despertou grande interesse, pois nesse contexto, essa

pesquisa busca demonstrar a qualidade de um programa considerado de baixo

teor artístico e intelectual por pertencer a esse mercado.

Sendo assim, esta pesquisa de caráter qualitativo tem por objetivo

identificar as possíveis influências da Comedia Dell’ Arte sobre o seriado

Chaves. Para tal, faz uso de quadros comparativos em relação às duas

expressões artísticas, destacando a crítica das classes sociais, os métodos de

utilização dos lazzi nas cenas e a comparação das características dos

11

personagens. Sendo assim, esta pesquisa encontra-se dividida em três

capítulos:

O primeiro capítulo intitulado “A essência da Commedia Dell’ Arte”,

destaca a arte da mimese, defendida por Aristóteles, e a ridicularização dos

aristocratas em apresentações na Grécia Antiga afim de expor elementos que

auxiliaram o surgimento da Commedia Dell’ Arte.

O segundo capítulo denominado “Chaves e a Comédia Popular

Televisiva” é voltado para a influência das produções do mercado de massa,

perante a sociedade. Ainda neste capítulo, destacamos o autor de Chaves,

pelo seu nome artístico: Chespirito, como escritor, ator, diretor e sua relação

com o teatro na adolescência. Então, adentramos em seu maior sucesso, o

seriado Chaves.

O terceiro capítulo chamado “A Commedia Dell’ Arte e o seriado

Chaves: Relações que atravessam o tempo” analisa alguns elementos que

compõem a Commedia Dell’ Arte e o seriado Chaves. São utilizados alguns

quadros comparativos e a análise de fragmentos de alguns episódios do

seriado, que são essenciais para relacionar as duas expressões artísticas.

Sabemos que se trata de uma aproximação, de uma forma de

comparação entre duas obras de veículos e épocas distintas. Muitas outras

análises podem ser possíveis. Mas foi interessante observar que a essência da

Commedia Dell’ Arte pode estar presente em outras formas de manifestação

artística.

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Capítulo 1: A essência da Commedia Dell’ Arte

No presente capítulo busco explorar a origem da Commedia Dell’ Arte e

destacar elementos que foram disseminados em épocas posteriores e,

também, em outros gêneros artísticos. Encontro, primeiramente, a contribuição

da arte mimética no âmbito da comédia popular, seguindo pelos conflitos

históricos entre a nobreza e o proletariado, que desencadeou na crítica da

aristocracia, tão bem expressada através da Commedia Dell’ Arte e que

influencia distintas gerações com culturas tão diversas.

Inicio então, este percurso, buscando as raízes da Commedia Dell’ Arte.

1.1 A Função da Mimese na Comédia Popular

A imitação é um elemento bastante utilizado no âmbito da comédia

popular, que a utiliza para satirizar ou parodiar o próprio homem ou a natureza.

Seguindo esta linha de pensamento, destaco o filósofo grego Aristóteles, por

este ter enfatizado em sua poética (século IV a.C), a importância de diferentes

tipos de efeitos da imitação e por ter contribuído para o conhecimento de

elementos da arte teatral.

Segundo a Arte Poética de Aristóteles:

A imitação se aplica aos atos das personagens, colocando que estas não podem ser senão boas ou ruins (pois os caracteres dispõem-se quase nestas duas categorias apenas, diferindo só pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas melhores, piores ou iguais a todos nós. (ARISTÓTELES, 2004, p.2)

Todavia, cada gênero artístico irá conter uma diferença no modo de

imitação em suas respectivas obras. É a partir disso, que Aristóteles enfatiza os

objetivos e diferenças entre a Tragédia e a Comédia: “É também essa

diferença o que distingue a tragédia da comédia: uma se propõe imitar os

homens, representando-os piores; a outra os torna melhores do que são na

realidade”. (ARISTÓTELES, 2004, p.3)

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A imitação para Aristóteles é uma tendência instintiva do homem desde

a infância e é esta aptidão que o distingue de outros seres vivos. Ele ainda

afirma que é através da imitação que adquirimos nossos primeiros

conhecimentos, “e nela todos experimentamos prazer”. (ARISTÓTELES, 2004,

p.4)

Se observarmos com atenção, a imitação está presente no nosso

cotidiano até mesmo em ações rotineiras. A última citação refere-se às ações

do cotidiano, que estão enraizadas no homem desde sua infância e que

acontecem através da imitação. A criança imita os pais, os irmãos mais velhos,

o mundo ao seu redor.

Em relação ao gênero da comédia popular propriamente dita, ela irá

representar a imitação de maus costumes, ou seja, seu objetivo é expor o

ridículo do homem e do próprio sistema em que ele vive. É a partir da

ridicularização que o gênero da comédia carrega a tendência da crítica. Ao

atentarmos para a evolução do gênero da comédia – nas diferentes épocas e

classes – veremos na maioria das vezes, o poder, ou seja, a “aristocracia” (a

nobreza, os ricos) sendo criticada, por meio de sua exposição ao ridículo.

A Commedia Dell’ Arte tem como essência justamente a imitação da

natureza do homem e do mundo. Todavia, a peculiaridade da Commedia Dell’

Arte é a de não seguir um modelo de representação Aristotélica1, ou seja, ela

rompe com a linearidade contida na Poética Aristotélica.

Isso permitiu que os atores da Commedia Dell’ Arte tivessem liberdade

na construção dramatúrgica de seus personagens, ao fazerem paródias e

críticas sociais, a partir da observação do comportamento da sociedade.

Portanto, observaremos a presença da imitação que Aristóteles enfatiza

em sua poética na busca das principais contribuições da Commedia Dell’ Arte

para a comédia popular televisiva, tendo como objeto, o seriado Chaves.

1 Segundo o modelo Aristotélico, a peça teatral era dividida de acordo com a cronologia dos

fatos: Prólogo (Início), Episódio (Meio) e Êxodo (Fim). (ARISTÓTELES, 1997).

14

1.2 Crítica à Aristocracia

Esta pesquisa não tem o objetivo de enfatizar e analisar todos os

aspectos que envolvem um conflito histórico entre o sistema aristocrático e o

democrático. O intuito central do presente tópico é de identificar os primeiros

indícios que destacaram os conflitos entre as classes sociais e a relação da

crítica à Aristocracia com a Commedia Dell’ Arte.

Aristocracia é uma palavra que vem do grego e que, literalmente,

significa "poder dos melhores". É uma forma de governo na qual o poder

político é dominado por um grupo da classe “dominante”. A palavra Democracia

também tem origem no grego e significa “poder do povo” e se estabelece como

um sistema em busca de direitos iguais na sociedade. Ela abrange as

condições sociais, econômicas e culturais que permitem o exercício livre e igual

da determinação política.

Foi exatamente esta divisão que gerou conflitos intelectuais e políticos

na Grécia Antiga. Aristófanes, teatrólogo cômico grego, defendia o Partido

Aristocrático, em oposição aos democratas, que defendiam os valores do povo

e era oposto a qualquer doutrina filosófica que surgisse.

Aristófanes, apesar de ter sido radicalmente conservador, filho de um

intelectual da Aristocracia e de ter apoiado o Partido Aristocrático, destacou-se

por fazer sátiras sociais em seus textos teatrais e não poupava nenhuma

classe social, instituição e até mesmo os próprios deuses.

Com o passar do tempo, a Grécia foi dominada pela religião do Estado

de Roma, que havia tomado posse da hierarquia dos deuses gregos, inclusive

do Teatro. A partir de então Roma instaurou o Teatro da Res Publica2, que era

fundamentado na política do Estado.

Desse modo é importante observar a presença do sistema aristocrata no

desenvolvimento do Teatro de Roma, pelo favorecimento da política do estado.

Em outras palavras, a sociedade romana era oprimida e menos favorecida,

diante da política do Estado de Roma. BERTHOLD (2000) enfatiza sobre os

2 Res publica é uma expressão latina que significa literalmente "coisa do povo", "coisa

pública". É a origem da palavra república.

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principais motivos que levaram os romanos a conquistarem a hierarquia de

outros povos e a função do teatro na política do Estado:

Desde o mais remoto início, a habilidade política de Roma se expressou no oferecimento, aos povos conquistados, da oportunidade de promover seus talentos e manter boas relações com seus próprios deuses. Os romanos anexaram a propriedade espiritual, tanto quanto a terrena, daqueles que conquistaram, juntamente com o direito de exibi-la em público, para o prazer de todos e para maior glória da res publica. Dessa forma, o teatro romano também era um instrumento de poder do Estado, dirigido pelas autoridades. (BERTHOLD, 2000, p. 140)

Portanto as representações teatrais eram utilizadas a favor das

autoridades políticas e a democracia vivia a mercê delas. Principalmente

porque Roma havia tomado posse da essência do teatro grego, mas o intuito

principal era a alegria do Estado e não da sociedade em si.

Contudo é importante destacar que, até então, a interpretação ainda não

era um dos principais elementos do teatro, e sim a representação. Como por

exemplo, na Grécia, o desenvolvimento das tragédias e comédias, era

direcionado às festividades das Dionisíacas3. Já em Roma, o teatro era

instrumento dos jogos nomeados como Ludi Romani (Jogos Romanos), sempre

a favor do Estado.

Todavia, pouco tempo depois, nascia um dos principais dramaturgos

romanos, responsável por inspirar os tipos da Commedia Dell’ Arte e os futuros

escritores, por utilizar a interpretação teatral e a mimese, ao destacar a

sociedade em suas obras: Plauto (254-184 a.C).

Nascido em Sarsina, na Itália, costumava andar com uma troupe de

Fábula (ou Farsa) Atelana, que foi uma expressão artística da cidade de Atela

na Grécia, considerada ancestral da Commedia Dell’ Arte, já que foram

identificadas algumas semelhanças com o gênero e seus tipos.

3 Havia na Grécia Antiga três grandes festivais em homenagem a Dionisio: as Dionísias Rurais,

que se celebrava a meio do inverno e que se destinava a solicitar os favores de Dionisio à fertilidade das terras; o Festival de Lenaea, que decorria em janeiro, devotado aos casamentos; e o principal festival para o qual as peças gregas que chegaram aos nossos dias foram escritas: a Grande Dionísia ou Dionísia Urbana, celebrada em Atenas.

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Acredita-se que o sobrenome de Plauto, Maccius, tenha sido convertido

para um tipo tradicional da Farsa Atelana. BERTHOLD (2000) faz uma citação

a respeito:

Seu segundo nome, Maccius, parece confirmar essa experiência, pois “Maccus” era um dos tipos fixados da Farsa Atelana – o guloso e ao mesmo tempo finório e pateta, que sempre dá um jeito para que seus comparsas de jogo tenham, no fim, de ficar com o ônus dos prejuízos quanto do escárnio. (BERTHOLD, 2000, p. 144)

Podemos observar que o tipo do Maccus da Farsa Atelana, consiste em

uma espécie de ancestral do Arlecchino da Commedia Dell’ Arte. Mas nesse

tópico o que é importante destacar é que Plauto enfatizou, em suas comédias,

o contraste entre os ricos e os pobres.

A aristocracia (a nobreza) é ridicularizada pela comédia popular, quando

os ricos ou mais velhos são logrados pelos seus servos. Apesar de estes

serem oprimidos pelo poder de seus superiores, eles têm a vantagem da

astúcia, elemento principal destes personagens. Dessa forma, os

personagens/tipos são construídos na Farsa Atelana, assim também acontece

na Commedia Dell’ Arte.

É importante destacar que a aristocracia é criticada por meio de paródias

e sátiras por diversos dramaturgos, desde as representações dos deuses e dos

heróis na Grécia Antiga. Esta crítica ganha força com a constituição dos tipos

da Commedia Dell’ Arte, principalmente por destacar os conflitos entre os

velhos e os servos. Esse grupo será denominado de Vecchi (velhos) e Zanni

(servos), como veremos a seguir, no próximo tópico.

1.3 O Surgimento da Commedia Dell’ Arte

No tópico anterior foi colocado que a Fábula (ou Farsa) Atelana continha

características e tipos que podem ter sido precursores da Commedia Dell’ Arte,

pois a representação da Fábula Atelana consistia no desenvolvimento

improvisado de intrigas pré-ordenadas. Essas intrigas aconteciam mediante

quatro tipos-fixos fortemente caracterizados nas máscaras, no comportamento

17

e no aspecto, estilizando tipos populares. São eles: Pappus – um velho

estúpido, avarento e libidinoso; Maccus – gozador, tolo, brigão; Bucco – com

uma boca enorme provavelmente por ser comilão, ou ainda tagarela

e Dossennus, um corcunda malicioso.

Podemos pensar que Pappus seria o Pantalone, na Commedia Dell’

Arte, ou Maccus o Arlecchino, ou ainda Bucco poderia ser Brighella. Enfim,

são máscaras aproximativas numa distância de quase dois milênios entre elas.

De acordo com BERTHOLD (2000), podemos dizer que as máscaras

gregas foram os principais elementos adotados pela Commedia Dell’ Arte. É

importante destacar que os atores já utilizavam máscaras - durante o período

de Cristo - para satirizar o poder, inclusive os cristãos que eram perseguidos

pelos soldados romanos na época.

Muito tempo depois, a própria igreja perseguiu os comediantes, a partir

do momento que eles exercitavam a liberdade de expressão. Ao ridicularizarem

inclusive membros da igreja, os comediantes foram banidos. Os atores tiveram

que improvisar apresentações em praças, ruas e viviam como saltimbanco4. As

apresentações, muitas vezes, ridicularizavam o poder, ou seja, a Aristocracia.

Com isso, o gênero da comédia popular ganhava prestígio e a identificação do

povo.

Com o passar do tempo, durante os séculos XV e XVI, o gênero da

comédia ganhou um status maior pelo seu conjunto de elementos, que

formaram uma expressão artística única: a Commedia Dell’ Arte. Antes disso,

sua origem era baseada na comédia popular e era chamada de “Commedia All

Improviso” e “Commedia a Soggetto”. Inicialmente, a Commedia Dell’ Arte tinha

como forte característica a oposição ao “Teatro Erudito”, que será explorada no

terceiro capítulo.

Os atores da Commedia Dell’ Arte se identificavam por utilizarem

máscaras na construção de seus personagens. É importante destacar que as

4 “O Saltimbanco era um artista popular que, nas praças públicas, quase sempre em cima de

um tablado, fazia demonstrações de habilidades físicas, de acrobacias, de teatro improvisado, antes de vender ao público objetos variados, pomadas ou medicamentos.” (PAVIS, 1999, p.349)

18

máscaras eram utilizadas como elemento básico na investigação da

corporeidade e interpretação do ator. Era também a partir do estudo da

máscara que os atores descobriam os sentimentos e os traços que eram

responsáveis por dar vida ao personagem/tipo.

A Commedia Dell’ Arte também foi responsável por outros elementos

artísticos, que foram utilizados e aperfeiçoados com a evolução da arte: a

pantomima, improvisação, personagens tipificados e cenas repetidas (Lazzi).

Este último elemento, também será explicado adiante.

Na Antiguidade clássica grega, as tragédias caracterizavam-se pela

representação de deuses e heróis. Entretanto, a comédia ridicularizava a

imagem dos personagens representativos da nobreza. Com o passar do tempo,

podemos dizer que a Commedia Dell’ Arte resgatou a essência da comédia

grega, que era de criticar o poder e a aristocracia, que oprimia a classe menos

favorecida.

De acordo com a análise dos personagens da Commedia Dell’ Arte,

identifiquei-os em duas classes sociais: a aristocracia e o proletariado. A

primeira é formada pelos personagens patrões, intelectuais, ou seja, aqueles

que exercem o poder: Vecchi (“velhos” em italiano). A segunda classe social é

formada pelos personagens/tipos empregados, criados, que constituem a

classe dos Zanni (os servos).

Durante as representações da Commedia Dell’ Arte, é possível ver estas

duas classes entrando em conflito a todo momento. Se um patrão oprime o

criado, este consegue uma maneira de ganhar uma vantagem em cima de seu

patrão. O poder é ridicularizado pela astúcia, pelas traquinagens dos Zanni e

estes são oprimidos pelo poder aristocrata dos Vecchi.

Entre os principais tipos da Commedia Dell’ Arte, podemos observar que

os Zanni – cuja principal virtude é a astúcia – são os responsáveis por

contrapor o contexto social em que estão inseridos e por superarem a

inteligência dos Vecchi, que são os patrões.

Entre os zanni, Arlecchino é o tipo mais popular. Ele encarnava uma

mistura de esperteza com ingenuidade, estando sempre no núcleo dos

19

conflitos. Brighella era o companheiro mais próximo de Arlecchino, aquele se

caracterizava por ser um criado libidinoso e cinicamente astuto. Colombina era

a namorada de Arlecchino, usualmente retratada como inteligente e habilidosa.

Entre os principais personagens dos Vecchi, estão:

- Pantalone, que se destaca por ser um rico veneziano, avarento e

conservador. Também era apaixonado por provérbios e a ira fazia parte de seu

humor.

- Dottore aparecia, algumas vezes, como amigo ou rival de Pantalone.

Dottore era o representante do erudito, era vaidoso por ostentar sua

intelectualidade, por expor lições de morais para os demais personagens, mas

sempre era enganado pelos outros, devido sua ingenuidade e acabava

contradizendo-se entre o que falava e fazia.

Havia também a presença do terceiro grupo, formado pelos

Enamorados que não usavam máscaras. Entre os principais personagens

estão:

- Horácio, personagem egoísta, fútil e vaidoso, vestido sempre na última

moda.

- Isabella, apesar de sua inocência, era sedutora e apaixonava-se

facilmente. Geralmente, a enamorada era cortejada por dois pretendentes, um

jovem e um velho.

Os Zanni se caracterizam por serem astuciosos e usarem essa

qualidade para obterem vantagem a favor de si mesmos. Eles são o tipo de

personagens que sofrem, são humilhados por seus patrões, que perdem

durante a história, mas no final conseguem dar a volta por cima tirando

vantagem de alguma situação.

A Commedia Dell’ Arte surgiu na segunda metade do séc. XV, atingiu

sua maior popularidade no séc. XVII e chegou até meados do séc. XVIII,

quando entrou em declínio. Este gênero teatral que durou aproximadamente

dois séculos e meio exerceu grande fascínio por quase toda a Europa, mas

ultrapassou o tempo e o espaço, chegando até os dias de hoje.

20

A partir da divisão entre as classes sociais na Commedia Dell’ Arte,

podemos observar que este conflito social é bastante presente também no

cotidiano da sociedade contemporânea. E para destacar os conflitos entre

classes, iremos analisar no capítulo seguinte, um dos principais meios de

comunicação de massa, que desde a sua criação, é responsável por influenciar

no comportamento da sociedade: a mídia televisiva.

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Capítulo 2: Chaves e a Comédia Popular Televisiva

No presente capítulo iremos analisar os principais aspectos da mídia

televisiva e sua influência na rotina e ações da sociedade. Contudo, não é o

objetivo deste trabalho o aprofundamento do histórico da Indústria Cultural,

mas nos determos no seriado Chaves.

2.1 A Indústria Cultural e a influência da Mídia Televisiva no

comportamento da sociedade

No início do século XX, os filósofos alemães Max Horkheimer (1895-

1973) e Theodor Adorno (1903-1969), consideraram o avanço tecnológico,

como prejudicial a sociedade, por contribuir com o surgimento de novas

expressões artísticas que dependiam do retorno lucrativo de suas produções.

Desde então, estes filósofos nomearam estes grupos de “Indústria Cultural”.

Entre as principais expressões que destacaram-se com o avanço tecnológico,

podemos citar o cinema, a televisão e o rádio.

Atualmente, a Indústria Cultural tem sido o principal sistema

responsável por influenciar o comportamento da sociedade nas últimas

décadas. A exemplo disso, podemos destacar a televisão, que tem sido um

dos maiores meios de comunicação de massa, desde sua criação. Ela está

presente no cotidiano das pessoas, assim como a internet que, nos últimos

anos, divide o espaço com a televisão e está cada vez mais em evidência,

como uma “necessidade” diária das pessoas estarem “conectadas” ao mundo.

Todavia, nos tempos atuais, a Indústria Cultural e em específico a

televisão, tem passado por muitas críticas, sendo acusada por teóricos, pela

banalidade de suas programações, visando apenas obter a audiência para

suas respectivas emissoras e o lucro proveniente delas.

Para enfatizar esta situação, é importante citar a Escola de Frankfurt,

que era formada por diversos teóricos, que criticavam a comunicação de

massa, como um todo. No livro O que é indústria, do escritor TEIXEIRA

COELHO, podemos destacar tais críticas em relação à indústria cultural na

22

seguinte citação: “[...] Identificavam a indústria cultural como indústria da

diversão entendida como instrumento de alienação” (COELHO, 1984, p.15)

Em relação à indústria da televisão, esta “alienação” é referente à mídia

consumista, que influencia nas atitudes rotineiras da sociedade, por meio de

seu mercado publicitário. Pois este mercado específico acaba incentivando o

espectador a seguir o padrão de consumo do momento. Podemos citar alguns

exemplos: os trejeitos do personagem de uma novela, a cerveja saborosa, a

maquiagem ideal, a roupa que está na moda, entre outros produtos.

De acordo com a crítica em relação à Indústria Cultural, que boa parte

da programação televisiva, é considerada como mercado de massa

(masscult). Segundo os teóricos de Frankfurt, esta “massa” é uma

denominação pejorativa para identificar “produtos de baixa qualidade”.

Contudo, estes críticos e estudiosos, acabam inevitavelmente

generalizando todos os produtos do mercado televisivo, considerando assim,

“que todas as programações são de baixa qualidade, por não contribuírem para

o conhecimento cultural da sociedade”.

Para se opor a essa linha de pensamento, (COELHO, 1984) faz um

breve comentário, em relação aos críticos da Indústria Cultural:

Particularmente após os estudos da Escola de Frankfurt, proclamadores de uma sentença de condenação contra a indústria cultural, o prazer foi particularmente banido dos produtos dessa indústria. É comum ver um crítico que exige seriedade e engajamento da TV ou do rádio, esquecer completamente essa exigência quando, por exemplo, trata de um filme de Fellini. Quer dizer: quando o negócio é com a cultura dita superior, tudo é permitido; da cultura inferior, da masscult, exige-se seriedade. Este é um índice claro da existência de um preconceito contra a cultura pop, contra o povo: "a massa é ignorante e portanto não pode perder tempo com prazer; temos, nós, de torná-la culta, através da seriedade". (COELHO, 1984,pág.16 e 17)

O grande problema de generalizações em relação à qualidade das

produções televisivas, é que estas críticas radicais, acabam se tornando

preconceituosas, por defenderem uma ideologia absoluta. É importante

destacar, que essa situação não ocorre somente na Indústria Cultural, mas

23

também em outros contextos: religião, política, raça, opção sexual,

nacionalidade, entre outros.

Compreendendo o dito popular de que “gosto não se discute”, todavia,

ao criticarmos algum produto da mídia televisiva, ou de qualquer outra

espécie, precisamos analisá-lo com certa neutralidade do ponto de vista

técnico. Sendo assim, podemos afirmar que a televisão, propriamente dita, é

um mercado de massa? Será que todas as produções televisivas não tem

algum valor cultural e intelectual?

Para responder tais questionamentos, optei por analisar o seriado

televisivo Chaves, por ser considerado um produto do “mercado de massa”,

que foi produzido na década de 70 e, para muitos, é considerado como infantil

e um produto muito simples (até precário) da mídia televisiva. Mas seu

sucesso foi crescente e continua firmado no gosto popular, em seu país de

origem, o México, em outros países sul-americanos e principalmente no Brasil.

Após obter o conhecimento da Commedia Dell’ Arte, comecei a

comparar os principais aspectos dos tipos desta expressão teatral, com as

características dos personagens do seriado Chaves. Com isso, obtive diversos

indícios de proximidade entre ambas, principalmente pela percepção de

representação do cotidiano da sociedade, enfatizando os conflitos entre as

classes sociais existentes dentro de um contexto histórico e cultural. Contudo,

faz-se necessário conhecer alguns aspectos pessoais do criador do seriado

Chaves, que obteve o seu sucesso “Sem querer querendo”, como veremos a

seguir.

2.2 Chespirito - O pequeno Shakespeare

Roberto Gómez Bolaños, também conhecido no México como Chespirito

(pequeno Shakespeare), nasceu na Cidade do México no ano de 1929. Na sua

infância sonhou em ser jogador de futebol profissional, já na adolescência,

engenheiro e boxeador. Na sua juventude, também tinha um hobby que foi o

principal responsável pelo seu sucesso no futuro: a de escritor. Ele costumava

24

escrever para uma coluna jornalística chamada Cuartilla Loca, de um jornal da

Cidade do México.

Anos mais tarde, Chespirito viu um anúncio em um jornal, que

precisava de uma vaga para aprendiz de produtor de TV e outra vaga para

escritor. Ele aproveitou seu talento e se candidatou a vaga de escritor na

agência de publicidade D’ Arcy. Depois foi contratado e começou a escrever

textos publicitários: frases para comerciais, folhetos, cartazes, letras de jingles

para diversos produtos e programas de rádio e televisão.

A publicidade estava mostrando um futuro promissor para Chespirito,

mas ele gostaria mesmo é de escrever textos para teatro, pois em sua

adolescência, costumava escrever alguns textos e apresentava peças de teatro

com seus amigos no clube Los Aracuanes.

A partir de então intensificou sua leitura e escrita, com o intuito de

especializar-se como escritor. Sua premiação ocorreu quando Carlos Riverolli

del Prado - criador de várias séries de rádio no México, viu seu talento e o

convidou para escrever roteiros para um dos mais famosos programas de rádio

da época: Virulita e Capulina. Ele não desperdiçou a oportunidade e foi até a

sede da XEW, rádio responsável por transmitir a série de Viruta e Capulina,

interpretadas, respectivamente, por Marco Antonio Campos e Gaspar Henaine.

A dupla cômica da série simpatizou rapidamente com o escritor talentoso.

Em pouco tempo, Chespirito recebeu a resposta do público: os ouvintes

riam bastante de suas piadas, motivo este que foi o bastante para ganhar mais

15 minutos de transmissão, totalizando 30 minutos de série e assumir o

primeiro lugar na audiência da rádio. Para sua surpresa, o mesmo patrocinador

que havia feito a proposta de escrever roteiros para a série Viruta e Capulina,

questionou se ele estaria disposto a escrever algo semelhante para a televisão.

Mais uma vez, ele aproveitou seu talento como escritor: a série de rádio Viruta

e Capulina ganhou um programa televisivo chamado de Cómicos y Canciones

Adams no canal 2, do então, Telesistema Mexicano.

25

Em pouco tempo, a transmissão televisiva da série se tornou a mais

popular da televisão Mexicana e Chespirito se tornou o escritor mais solicitado

e bem pago do mercado televisivo.

Chespirito continuou escrevendo os roteiros do programa de TV

Cómicos y Canciones e se destacava pelo seu talento como escritor. Até que

ocorreu um imprevisto: um dos atores não apareceu para gravar o programa.

Por causa da concorrência entre as emissoras e a briga pela audiência, o

problema teve que ser resolvido rapidamente.

Foi a partir de então que o diretor de produção do programa, Mario de la

Piedra, incentivou Juan ‘El Gallo’ Calderon - diretor do programa - que

colocasse Chespirito para interpretar no lugar do ator que havia faltado na

gravação. Apesar dele, em princípio recusar, acabou aceitando a proposta e

destacou-se como ator e pela criatividade de seus personagens.

É importante ressaltar que Chespirito não tinha nenhuma experiência

sobre atuação para a TV. Então ele resolveu investir em si próprio, lendo livros

e estudando conceitos básicos de atuação para a televisão. A aceitação do

público e de seus amigos de cena foi imediata e ele continuou a escrever o

roteiro do programa além de atuar.

A medida que ia evoluindo como roteirista e ator de Cómicos y

Canciones, também houve algumas desavenças econômicas, entre a dupla

cômica do programa. A situação ficou séria quando um dos atores, Gaspar

Henaine - intérprete do personagem Capulina - começou a incomodar-se com a

crescente admiração do público, em relação ao escritor e ator Chespirito,

nesta época já era chamado de “pequeno Shakespeare” pelo talento de seus

roteiros e por sua estatura ser baixa. Esta situação, fez com que Chespirito

renunciasse o cargo de escritor e ator de Cómicos y Canciones, mas logo foi

chamado por outros diretores de programas televisivos, também para escrever

e atuar no cinema.

No dia 25 de Janeiro de 1969, foi a data de inauguração das

transmissões do canal 8 (TIM). Os diretores da TIM precisavam de um roteirista

26

com experiência e talento para criar algumas programações para o recente

canal.

Chespirito ficou responsável por criar uma série humorística, que se

chamava El Ciudadano Gómez5. Ele aproveitou a oportunidade e colocou seu

próprio sobrenome para o personagem protagonista. Este personagem tratava-

se de um cidadão que sofrera um acidente de carro e perdia a memória e, por

este motivo, acabava se metendo em algumas encrencas por querer ajudar os

mais necessitados.

Com o sucesso de El Ciudadano Gómez, Chespirito recebeu outra

proposta, dessa vez o produtor de origem cubana, Sergio Pena, fez um convite

referente para uma participação em um programa semanal intitulado Sábados

de la fortuna, que seria exibido durante todo o dia, com apresentações de

danças, músicas, inclusive de quadros humorísticos.

Foi neste momento, que Chespirito criou a esquete Los supergenios de

la mesa cuadrada que caracterizava-se por fazer paródias referentes a jornais

esportivos de mesa redonda, que fazia sucesso no México, na época. Foi nesta

esquete, que ele criou o personagem Dr. Chapatin: um velho ranzinza e

atrapalhado. Ele parodiava alguns médicos e cientistas.

Mais uma vez, o escritor mexicano obteve sucesso em suas criações,

mas resolveu acabar com o quadro Los Supergenios de la mesa Cuadrada,

porque o programa acabou desagradando algumas pessoas do meio artístico,

que eram vítimas das piadas dos atores do programa. BOLAÑOS (2012)

destacou em sua biografia oficial:

Eu me dei conta de que estava abusando e lançando mão de recursos indevidos, porque eu não tinha direito de fazer piada com as pessoas. Todos me diziam: “Você está louco. É justamente isso que dá certo”. Sim, mas eu já não queria causar aqueles danos. (BOLAÑOS, p. 69)

5 Esta foi a primeira série humorística criada por Chespirito e também foi a primeira vez que ele

interpretou ao lado de Ruben Aguirre, que viria a ser o Prof. Girafales no seriado Chaves. El Ciudadano Gómez chegou a ficar em 1º lugar, disputando semanalmente com o canal 2 (que viria a se tornar a atual Televisa).

27

O comentário de Chespirito retrata as condições que se encontra a

comédia popular televisiva atualmente, onde muitos humoristas e comediantes

são processados pela intensidade invasiva e desrespeito de suas piadas, em

relação às pessoas conhecidas da sociedade, até mesmo do meio artístico. De

acordo com esta perspectiva, considero a preocupação e o respeito em relação

aos outros, como um dos possíveis motivos do sucesso de Chespirito e seus

tele seriados.

Esta argumentação fica comprovada quando ele recebe um programa

próprio, já na Televisa (canal 2) do México. O nome do programa era o seu

próprio apelido artístico, que se tornaria reconhecido em toda a América Latina:

Chespirito. Ele recebeu uma hora de programa para criar seus novos

personagens. E foi exatamente em seu novo programa, que criou seus

principais personagens de sucesso: Dr. Chapatin, Chómpiras (no Brasil foi

apelido de Beterraba, Garrafa e também de Chaveco), Pancada Bonaparte,

além de fazer esquetes parodiando O Gordo e o Magro e Charles Chaplin.

Também criou dois de seus principais personagens: O Chapolin Colorado (El

Chapulín Colorado) e Chaves (El Chavo del Echo).

Chapolin Colorado trata-se de um super-herói desajeitado, medroso e

feio, esteticamente falando. O objetivo do autor mexicano, com o Chapolin

Colorado, era de parodiar os super-heróis americanos, que caracterizam-se,

em sua maioria, por serem milionários, inteligentes, seguirem um padrão

estético americano, e possuírem super - poderes.

O Chapolin Colorado tem semelhanças com o tipo do Capitão da

Commedia Dell’ Arte, porque ambos têm as características de serem valentes,

mas no momento da batalha, demonstravam medo. Chespirito enriqueceu o

personagem Chapolin Colorado, ao enfatizar a fraqueza e o medo do

personagem, para superar seus limites e assim salvar os necessitados.

Embora muitas vezes, ele acabava ajudando mais os vilões com suas

trapalhadas, mas no final sempre conseguia obter êxito. Portanto, Chapolin

Colorado é outro objeto de pesquisa que pode ser observado em relação aos

tipos da sociedade e da própria Commedia Dell’ Arte em outra oportunidade.

28

Apesar de ter feito muito sucesso com o Chapolin Colorado, foi com o

programa Chaves, que Chespirito foi reconhecido mundialmente e superou

seus próprios limites, como ator e escritor. O próprio bordão do personagem

Chaves enfatizava a todo instante, seu destino artístico: “Foi sem querer

querendo”.

2.3 A Dramaturgia do seriado Chaves

Em 20 de Junho de 1971, foi criado o seriado Chaves. Em instantes, o

nível de popularidade do seriado, ultrapassou as fronteiras do país, chegando a

conquistar quase toda a América Latina.

Com o sucesso de Chaves na emissora de televisão TIM (canal 8),

Emilio Azcárraga Milmo – presidente do Telesistema Mexicano – fez uma

proposta para Chespirito transferir-se para o Telesistema, porque o seriado

Chaves competia com o canal de Emilio e ganhava muita audiência para a TIM.

A proposta de Emilio tratava-se do dobro do cachê que Chespirito recebia na

TIM por cada episódio produzido e de 300 mil pesos para a produção.

Pouco tempo depois, a TIM (canal 8), que foi responsável pelas

oportunidades oferecidas ao criador de Chaves, passa por uma fusão com o

Telesistema Mexicano (canal 2), criando a partir de então, o maior grupo de

televisão do México: Televisa.

Já no canal 2 (Televisa), em pouco tempo, Chaves atingiu os patamares

da audiência de forma inesperada, não somente no México, mas em boa parte

da América Latina e Central.

O seriado era constituído pelos seguintes atores: Roberto Gómez

Bolanõs (Chaves), Carlos Villagrán (Quico), María Antonieta de las Nieves

(Chiquinha/Dona Neves), Édgar Vivar (Seu Barriga/Nhonho), Ramón Valdéz

(Seu Madruga), Rubén Aguirre (Prof. Girafales), Florinda Meza (Dona

Florinda/Pópis), Angelines Fernández (Dona Clotilde), Raúl Padilla

(Jaiminho – o carteiro) e Horacio Bolaños (Godinez). Este último era irmão

de Chespirito.

29

O primeiro aspecto a ser analisado no seriado, é a presença de atores

adultos ao interpretarem crianças, juntamente com atores que faziam somente

personagens adultos. É importante destacar, que na primeira interpretação do

personagem Chaves – em 1971, ainda na TIM – Chespirito tinha 42 anos.

Este fato foi um dos principais motivos, que despertou a curiosidade e atenção

dos espectadores. Principalmente porque a interpretação das crianças era

convincente, em outras palavras, a mimese era elemento essencial do

programa. As crianças interpretadas pelos atores eram inspiradas no cotidiano,

assim havia uma identificação do público com os personagens e com o

contexto social em que cada criança estava inserida.

Sabemos que para um ator interpretar uma personagem criança, ou

qualquer outro tipo de personagem, é preciso estudar não somente o

comportamento delas, mas de fazer uma construção de sua interpretação a

partir do meio em que estão inseridas. No caso de Chaves, uma vila onde

moram vizinhos de diferentes classes sociais.

O segundo aspecto responsável por causar a empatia do espectador,

em relação ao seriado Chaves, é a presença melodramática contida nos

episódios.

Ao analisarmos os episódios do seriado, podemos constatar o clímax da

carga melodramática, principalmente nas cenas do protagonista Chaves,

quando este é posto diante de uma situação triste, acompanhado de uma

música de fundo melancólica. Contudo, as características do personagem

Chaves, serão detalhadas mais a frente, juntamente com o personagem

Arlecchino, da Commedia Dell’ Arte.

CARDOSO (2005), enfatiza em sua dissertação “A Saga do Herói

Mendigo: O riso e a Neopicaresca no programa Chaves – a influência do

Melodrama6, no sentimento do espectador:

6 Segundo Patrice Pavis: “O melodrama (literalmente e segundo a etimologia grega: drama

cantado) é um gênero que surge no século XVIII, aquele de uma peça – espécie de opereta popular – na qual a música intervém nos momentos mais dramáticos para exprimir a emoção de uma personagem silenciosa”. (PAVIS, 1999, p. 238)

30

(...) O melodrama apresenta um forte caráter emocional, principalmente no sentido de fazer chorar, (...) A colocação moral das lágrimas é característica da produção da cultura de massas, tendo sido completamente absorvida pela indústria cinematográfica da América Latina nas décadas de 30, 40 e 50 do século passado. Esse choro atua no sentido de catarse legítima de emoções como piedade e temor, articulando moral e catarse. (CARDOSO, 2005, p. 92)

Como podemos verificar, o autor de Chaves utilizou cenas

melodramáticas, com o objetivo de que o espectador refletisse sobre a

“orfandade” do personagem. Não se tratava de “incentivar o espectador a ter

pena do personagem”, pelo contrário, são nas cenas melodramáticas, que

ocorre o clímax da crítica social do seriado.

Todavia, Chespirito utilizava sempre uma gag7, logo depois de o

espectador, ser tocado pela carga emotiva da cena. Com isso, ele conseguia

algo que poucos comediantes conseguem despertar no público: sorrir e se

emocionar ao mesmo tempo.

Vale ainda destacar que os episódios ainda são exibidos

constantemente pelo Sistema Brasileiro de Televisão (Sbt) – emissora de TV

do empresário e apresentador Silvio Santos – e mesmo assim continuam

despertando a emoção e risos nas cenas melodramáticas do personagem

Chaves.

Apesar de não haver um depoimento do próprio Chespirito, afirmando

que tinha se inspirado na Commedia Dell’ Arte, enfatizaremos os principais

elementos interpretativos, que indiquem as proximidades entre a dramaturgia

do seriado Chaves, em relação à mesma.

7 Gag: efeito burlesco. São jogos de cena que contradizem o discurso da cena e serve como

uma saída para o ator improvisar em situações inusitadas. É semelhante aos lazzi da Commedia dell’Arte. (PAVIS, 1999).

31

Capítulo 3: A Commedia Dell’Arte e o seriado Chaves –

Relações que atravessam o tempo

Após termos abordado a origem da Commedia Dell’ Arte, de

identificarmos o autor Roberto Gómez Bolaños e também de investigar os

indícios que ressaltam evidências da proximidade do seriado Chaves, com a

Commedia Dell’ Arte, é o momento de relacionar os dois objetos dessa

pesquisa, a partir de aspectos semelhantes nos episódios do seriado.

É importante destacar que serão analisados os seguintes personagens:

Chaves, Quico, Chiquinha, Seu Madruga, Prof. Girafales e a Dona

Florinda, porque estes personagens, demonstraram maior evidências de

proximidade, no que diz respeito a caracterizações e ações com os respectivos

tipos: Arlecchino, Brighella, Colombina, Pantalone, Scaramuccia, Dottore e

Enamorados, da Commedia Dell’ Arte.

3.1 O Estudo da Natureza do Homem

Provavelmente, os atores da Commedia Dell’ Arte costumavam observar

os trejeitos das pessoas da sociedade para a construção dos principais

arquétipos. A exemplo disso, o comediante Charles Chaplin, enfatiza sobre

como fazia as pessoas rirem, ao ser questionado pelas pessoas, de qual seria

a fórmula de tanto êxito de seus filmes:

Não há mistério para fazer rir o público. Todo o meu segredo foi o de ter mantido os olhos abertos e o espírito vigilante em relação a todos os incidentes capazes de serem utilizados em meus filmes. Estudei o homem porque, sem o conhecer, nada poderia ter feito na minha profissão. (...) o conhecimento do homem está na base de todo êxito. (CHAPLIN, 1989, p. 73)

Seguindo o comentário de Charles Chaplin, podemos identificar a

presença da observação da natureza do homem, no método de criação

dramatúrgica, dos personagens de Chespirito, principalmente por este analisar

as principais características das pessoas e enfatizar os conflitos de acordo com

a composição das classes sociais.

32

Em sua biografia Chaves - A História oficial Ilustrada, Chespirito

enfatiza como surgiu a ideia de criar seus personagens, que continuam

fazendo sucesso até hoje. Vamos observar seu comentário, a respeito da

criação do personagem Quico, por exemplo:

Este personagem me ocorreu certa vez quando estávamos em uma festa de adultos e algumas crianças se reuniram. Havia um dos garotos que eu não suportava, porque era convencido demais, e tirei muitas coisas daquela situação. Ele dizia ‘Ah, diz que sim, não seja malvado’. Pensei: ‘Se alguém me dissesse isso na vida real, eu não sei o que eu faria.’ (BOLAÑOS, 2012 p.111)

Esse tipo de observação é um dos principais aspectos que beneficia a

autoria artística dos atores, na criação de personagens e de situações. O ator

observa determinada ação do cotidiano e guarda aquela cena para si, mais

tarde ele utilizará aquela cena em alguma situação encenada: seja no teatro,

cinema, televisão, ou em qualquer lugar e situação.

Podemos constatar no comentário de Zurca Sbano8, a presença da

estrutura dramatúrgica do estudo da natureza do homem, na constituição dos

personagens tipificados da Commedia Dell’ Arte:

Sempre nas peças tinha o cínico, que se chama hoje vilão. Na linguagem teatral era a classificação dos elementos do elenco: o galã – o mocinho; a moça que trabalhava, a mocinha, chamava-se ingênua. O pessoal do teatro hoje não conhece. Ingênua. Nessa peça tinha o pai da moça, que era o centro dramático. O centro dramático era aquele, o chorão, o sofredor; era o centro dramático. O intermediário a isso, o centro nobre. Então as mulheres eram: a ingênua, a caricata, a dama central; isso é o nome como se dava (...) O primeiro cômico, o segundo cômico. E justamente os principais: o galã, centro dramático, cínico e cômico. Agora, entre esses tem a dama central, tem o centro nobre, essas coisas. E tem ainda o artista, o caricato, o genérico, que faz todos, se adapta a qualquer papel, tudo isso. Era a designação do elenco. E, então, quando saíamos na rua, o povo passava assim: “Olha lá, aquele, aquele, aquele é o...” Chamava pelo nome da peça, sabe, o povo [risos]. “Olha lá, ali vai... Aquele é o barão. Aquele é o Servieris; olha lá, é o... aquele homem ruim” [risos], isso e aquilo, “aquele é o Álvaro”, chamava pelo nome do galã. “Aquele é o Álvaro, olha lá, aquele disse assim, isso e aquilo. Aquele é o Tomé, o isso e aquilo”, o nome do cômico. Chamavam assim com aquela admiração (Entrevista com Zurca Sbano. São Paulo, 1998).

8 Zurca Sbano: Artista Tradicional de Circo-Teatro em entrevista para a dissertação (Mestrado

em Teatro) de MERISIO, Paulo: O espaço cênico no circo-teatro: caminhos para a cena contemporânea. Rio de Janeiro, 1999.

33

De acordo com as informações detalhadas, Chespirito obteve o retorno

imediato, por utilizar o próprio público como objeto de laboratório para a

construção dos personagens.

Mais uma vez identificamos a presença da mimese (imitação), como

elemento essencial nas criações dos personagens. Ainda mais se tratando do

gênero de comédia, ela tem o poder de causar no espectador, a identificação

do personagem, para com o mesmo. Se nas tragédias gregas, seu principal

efeito era o estímulo da catarse, nas comédias clássicas e modernas, sua

função é despertar o riso no espectador, por meio da representação dos

mesmos, procurando enfatizar vários elementos de identificação com a

sociedade. Como por exemplo: comportamentos, trejeitos, crítica social, entre

outros atributos. Portanto, ao aliar a observação do cotidiano do homem e

estimular a prática da imitação do mesmo, poderemos obter estes efeitos.

A Commedia Dell’ Arte, por tratar-se de uma expressão artística do

século XVI, confirma esta linha de pensamento, ao identificarmos seus

principais aspectos em diversas obras de dramaturgos na modernidade, em

específico o seriado Chaves.

3.2 Quadros comparativos entre as duas Expressões Artísticas:

A Commedia Dell’ Arte e o seriado Chaves

3.2.1 A crítica das classes sociais

Como dito anteriormente, a Commedia Dell’ Arte se divide em três

grupos de personagens: Vecchi, Zanni e Enamorados. Contudo, está inserida

em duas classes sociais distintas: aristocracia e proletariado. Traduzindo em

termos populares, a primeira classe é a da riqueza e a segunda da pobreza.

Os personagens Vecchi (Pantalone e Dottore), por exemplo, estão

inseridos na classe superior, enquanto os personagens Zanni (Arlecchino,

Brighella e Colombina) estão inseridos nas classes inferiores. Os

Enamorados geralmente faziam parte da classe superior, pelo motivo de um

34

personagem ser filho do Vecchi Pantalone e o outro ser filho do Dottore.

Sendo assim, é a partir desta constituição de classes sociais, presentes na

Comedia Dell’ Arte, que surgem os conflitos.

O seriado Chaves também é constituído pelos conflitos das classes

sociais. A diferença está no contexto histórico dos séculos XV e XVI da

Commedia Dell’ Arte, para o século XX, período em que foi produzido o

seriado.

Ao analisar detalhadamente os cenários, os personagens e o contexto

em que está inserido o seriado em questão, iniciei por um quadro que identifica

a presença de duas classes sociais distintas: a classe média e a classe baixa.

CLASSE MÉDIA CLASSE BAIXA

Seu Barriga Chaves

Prof. Girafales Seu Madruga

Dona Florinda Chiquinha

Dona Clotilde

Nhonho

Quico

A utilização gráfica deste quadro contribuiu na identificação social de

cada personagem do seriado, cujo cenário principal trata-se de uma vila, onde

moram alguns vizinhos, que entram em conflito a todo instante, principalmente

pela diferença do status social entre eles.

Com isso, podemos observar – tanto nas representações da Commedia

Dell’ Arte, quanto do seriado Chaves, e inclusive de outras obras que tenham

como base o conflito entre as classes sociais – a opressão da classe superior

em relação à classe inferior e a utilização da astúcia, como elemento essencial,

para que a classe inferior ganhe vantagem em relação à classe superior.

35

Portanto, observamos que a riqueza e a pobreza estão inseridas no

contexto social do seriado e são os principais fatores, responsáveis pelo

conflito das classes. Dessa forma o seriado Chaves destaca, através do

contraste entre a “nobreza” e o proletariado, o modo de vida dos personagens

e, assim, a identificação dos espectadores acontece. Podemos constatar essa

afirmativa, pelo comentário da escritora de livros infantis Ruth Rocha, que

enfatiza a pobreza positiva do seriado Chaves, contrapondo-o à ousadia do

programa infantil Castelo Rá-tim-bum da TV Cultura:

O melhor programa infantil é o Chaves do Sbt. Pode ser pobre, feio, mas quem escreve aquilo é inteligente. Chaves é circense. As crianças se identificam com os diálogos, com os trocadilhos, com as cenas de pastelão e com o personagem-título, que se comporta exatamente como elas. É uma atração simples e divertida, que não faz mal a ninguém. Considero-o melhor que o Castelo Rá-tim-bum, da TV Cultura. O Castelo é consistente, tem ótimos atores e atrizes e no deserto da TV brasileira, é uma maravilha. Mas é um pouco “over”, exagerado. O Castelo tem muita cor, ruído, grito, correria, apelo sensorial. As crianças, principalmente as menores, têm dificuldade em assimilar o que acontece na tela. (Entrevista para a Revista VEJA, 5/5/1999).

É importante destacar que o objetivo desta citação não é de comparar os

programas televisivos citados pela jornalista Ruth Rocha, mas sim de enfatizar

a simplicidade do seriado Chaves que se utiliza da crítica social e consegue

atingir os espectadores através da identificação.

De acordo com esta perspectiva, observamos que Chespirito, destacou

o conflito social das classes, no seriado Chaves, por meio de observação do

cotidiano e comportamento da sociedade, também por ter estudado a natureza

do homem de um modo geral. É a partir destas definições, que podemos

relacionar as características entres os personagens do seriado e os tipos

humanos da Commedia Dell’ Arte.

3.2.2 Composição de Lazzi na dramaturgia do seriado Chaves

Esta pesquisa foi construída através de perguntas que precisavam

encontrar respostas, ou alguma direção para o entendimento de algumas

questões. Uma das perguntas formuladas foi: como o seriado Chaves

conseguiu tanto tempo de sucesso, com exibições ininterruptas fora de seu

36

país de origem e ainda, disputar a audiência com programas bem produzidos

de outras emissoras, sem ficar cristalizado com uma forma teatral que serviu

de base para a atuação dos atores?

O escritor brasileiro KASCHNER (2006) menciona sobre o humor e o

sucesso do programa: “(...) duas características importantes: a quebra da

expectativa e a proximidade entre Chaves e a Commedia Dell’ Arte”. A primeira

característica pode ser observada nas vezes em que o Prof. Girafales troca o

nome da Dona Florinda, denominando-a pelo nome de assunto em pauta no

episódio.

O Prof. Girafales chega à vila e conversa com as crianças – antes de

ver a Dona Florinda. O assunto que ele conversa com as crianças, fica em sua

mente. Então ele encontra a Dona Florinda e a chama por nomes que as

crianças falaram. Em alguns episódios ele chama a Dona Florinda de velha

carcomida, Dona chirimóia, entre outros apelidos, criados pelas crianças. Esse

é um dos elementos do seriado, que contribuem para a quebra da expectativa

da cena.

A relação que estabelece com a Commedia Dell’ Arte italiana, embora a

improvisação não domine o programa, pode ser divisada nos seguintes pontos

comuns:

Atores que desempenham papéis fixos, ou seja, personagens

arquétipos;

Tipos caracterizados pela indumentária (figurino);

Mesmo cenário (a vila como pátio central);

Correlação do personagem Chaves ao Melodrama;

Conflito entre as Classes Sociais;

Ridicularização da Aristocracia;

37

Repetição de cenas prontas (Lazzi).

Em relação a estes pontos, acredito já ter mencionado os principais

nesta pesquisa e ter enfatizado sobre a mimese e a questão da ridicularização

da aristocracia. Vamos, então, aqui tocar no último quesito, os Lazzi.

Dentro da estrutura dos Canovacci9, por exemplo, também existia a

possibilidade de intervenções autônomas, denominadas de Lazzi, onde os

atores comentavam ou destacavam, comicamente, as ações principais,

interligando as cenas e ocupando os espaços vazios, ou seja, tratava-se de

cenas repetitivas e prontas que o ator encaixava em todas as histórias e que

confirmavam a expectativa do espectador. Com o uso, esses Lazzi, eram

repetidos e fixados e passavam a fazer parte do repertório dos personagens.

Os Lazzi eram importantes por provocar o riso da plateia e também de dar

tempo para os demais atores realizarem tarefas necessárias, como trocar de

figurino ou qualquer outro reajuste do tipo.

O seriado Chaves utiliza diversas intervenções autônomas, assim como

os Lazzi identificados na Commedia Dell’ Arte. Como exemplo, podemos citar

as seguintes ações:

Quando Seu Madruga leva uma tapa da Dona Florinda, Quico o empurra

e ele pula no seu chapéu;

Quando Quico leva um beliscão do Seu Madruga e vai chorar no canto

da parede;

Quando Chaves leva um cascudo do Seu Madruga, ele chora e entra no

seu barril.

9 De acordo com Patrice Pavis: ““O canevas é o resumo (o roteiro) de uma peça para as

improvisações dos atores, em particular na Commedia Dell’ Arte. Os comediantes usam os roteiros (ou canovacci) para resumir a intriga, fixar os jogos de cena, os efeitos especiais ou os lazzi. Chegaram até nós coletâneas deles, que devem ser lidos, não como textos literários, mas como partitura constituída de pontos de referência para os atores improvisadores” (PAVIS, Patrice 1999, p. 38).

38

O Diretor teatral e Professor de História da Arte, na Escola de

Comunicação da UFRJ, José Henrique Moreira, confirma a ligação de Chaves

com a Commedia Dell’ Arte e também enfatiza sobre a utilização dos Lazzi em

cena:

Os personagens têm poucas características, mas bastante profundas; há vários lazzi, que são cenas prontas que o ator encaixa em todas as histórias e que confirmam a expectativa do espectador – quando o Seu Madruga joga o chapéu no chão e pula em cima, por exemplo; os mais velhos são logrados pelos jovens, que estão sempre tentando, ao seu modo, passar a perna, tirar vantagem; o poder é criticado – a figura do Senhor Barriga -; a trama é farsesca. Além disso, Chaves é o próprio Arlequim: não pode ver uma comida que sai correndo atrás. Ele tem o tom jocoso, mas ao mesmo tempo doce, do Arlecchino. (MOREIRA apud KASCHNER, 2006, p. 101).

Diante do comentário de MOREIRA, podemos constatar evidências que

comprovem a proximidade dos personagens do seriado em estudo, com os

principais tipos da Commedia Dell’ Arte. Desse modo, no tópico a seguir,

iremos analisar alguns episódios do mesmo, com o intuito de identificar as

principais características dos personagens.

Contudo, é importante destacar, que o objetivo não é de definir o tipo

fixo de cada personagem do seriado, mas de identificar os tipos predominantes

em um único personagem. Como é o caso dos personagens Seu Madruga, que

tem proximidade com o Pantalone e o Scaramuccia e o Prof. Girafales, que

tem características semelhantes aos tipos Dottore e Enamorado, como

veremos mais a frente, no tópico a seguir.

3.2.3 Comparação das características dos personagens/tipos

Dando início à análise, começaremos então pelo personagem mais

popular da Commedia Dell’ Arte: o Arlecchino (Arlequim), por este estabelecer

uma comunicação direta com o público proporcionando uma identificação entre

ele e as classes menos favorecidas. É também um tipo que produz humor

através de gags físicas e tem a esperteza como sua grande característica.

39

Figura 1 - Arlecchino anno 1671 - SAND Maurice. Masques et bouffons (Comedie Italienne).

Fonte: Wikipedia, l’enciclopedia libera10

Arlecchino é o principal personagem responsável por influenciar os

conflitos entre as classes sociais, ou seja, entre os Patrões e seus

empregados. Isto ocorre porque Arlecchino faz parte do grupo dos Zanni

(servos), aparece sempre com o desejo de obter um prato de comida e uma

terra para morar.

Figura 2 – Chespirito, no papel de “El Chavo” (Chaves)

Fonte: Página dos nosgeeks11

8 –

Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Arlecchino> Acesso em: 1 de jun. de 2014. 11

Disponível em: <http://nosgeeks.com.br/um-fenomeno-a-mais-de-40-anos-esse-e-o-nosso-

chaves/ > Acesso em: 2 jun. de 2014.

40

É a partir desta perspectiva, que analisamos as características do

personagem Chaves, em relação ao Arlecchino da Commedia Dell’ Arte.

Ambos os personagens assemelham-se, principalmente, por serem

esfomeados. No caso de Chaves, essa característica é acentuada pela

orfandade do personagem.

Contudo há também outras características relevantes de Chaves, que

faz referência direta ao Arlecchino, como ser astuto, atrapalhado e ingênuo.

Esta última também é destacada pelo fato do personagem Chaves ser uma

criança.

É através das trapalhadas de Chaves, que são desenvolvidos os

conflitos entre os demais personagens, assim como acontece com o Arlecchino

nas representações da Commedia Dell’ Arte. Chaves utiliza também a astúcia a

seu favor para obter comida para matar sua fome, principalmente se for um

sanduíche de presunto, sua comida favorita.

Entretanto, há outra característica específica de Chaves, que é

importante destacar: a acrobacia. Pois essa era uma das principais

características que diferenciava Arlecchino dos demais personagens da

Commedia Dell’ Arte, já que era o personagem que mais explorava a

corporeidade, explorando saltos e quedas em suas cenas.

Ao analisar os episódios de Chaves, destaquei alguns fragmentos que

ressaltam o talento corpóreo de Chespirito, – intérprete do personagem

Chaves – por fazer referência à corporeidade de Arlecchino. Há vários

episódios onde podemos observar sua precisão corporal. Portanto, retirei três

fragmentos dos seguintes episódios:

O belo adormecido (1975)12: Duração do episódio 22 min e 25 seg. Tempo do

fragmento retirado: 11:32 até 11:40.

O Futebol Americano (1976)13: Duração do episódio 21 min e 12 seg. Tempo

do fragmento retirado: 17:34 até 17:48.

12

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=QENZKp1geNI> Acesso em: 16 jun. 2014. 13

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=4qNzgvSD3Oc> Acesso em: 16 jun. 2014.

41

Os Farofeiros (1977)14: Duração do episódio 22 min e 17 seg. Tempo do

fragmento retirado: 7:45 até 7:56.

É importante destacar que todos os episódios analisados nesta

pesquisa, foram os exibidos no Brasil, traduzidos pela dublagem brasileira

(Maga)15

O que chama atenção nessas cenas é a corporeidade de Chaves em

diversas situações, dispensando o foco nos diálogos. Com isso, podemos

identificar evidências da relação do elemento acrobático de Chaves, para com

o Arlecchino e principalmente por Chespirito ter mais de 45 anos de idade, nas

gravações destes episódios, mas não abria mão de sua precisão corporal, que

adquiriu com os esportes que praticou em sua juventude.

BOLAÑOS (2012) enfatiza em sua biografia oficial Chaves – A História

Oficial Ilustrada, sua agilidade e flexibilidade corporal, que enriquecia

artisticamente seus personagens, em específico o personagem Chaves que se

tratava de uma criança:

Fiz todo tipo de personagem - alguns espantosos no cinema e

na televisão, mas comecei a me distinguir pela agilidade. Os

esportes que pratiquei durante a minha vida (boxe, futebol,

natação, salto e atletismo) me ajudaram a fazer muitas coisas:

boas quedas, saltos... As brigas de rua também ajudaram

muito, porque eu sabia brigar, sabia como dar golpes, como

contê-los... E também como recebê-los. (BOLAÑOS, 2012,

p.57.)

Portanto, podemos observar que Chespirito aproveitou seu talento

corporal, que contribuiu na constituição de seus personagens, a partir de suas

vivências. Vale ressaltar que tinha 45 anos quando começa a interpretar o

personagem Chaves de apenas 8 (oito) anos de idade. Semelhantemente,

essa é uma característica que resgata a essência do Arlecchino, porque na

Commedia Dell’ Arte, os atores costumavam representar os mesmos

14

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=8f95LEeOt8Y> Acesso em: 3 jun. 2014. 15

Maga (Abreviatura de Marcelo Gastaldi, proprietário da empresa de dublagem). Gastaldi,

dirigiu e dublou o personagem Chaves, no seriado do mesmo. Após o falecimento do dublador em 1995, a empresa fechou.

42

personagens por toda a vida, com isso, proporcionavam uma cristalização do

tipo representado.

Assim como analisei o personagem principal do seriado, comparando-o

com o Arlecchino, fiz o mesmo com outros personagens.

Segundo os dados históricos pesquisados, o personagem Brighella era

o Zanni principal da Commedia Dell’ Arte e seu histórico está relacionado ao

personagem Arlecchino. Todavia, com o passar do tempo, o personagem

Arlecchino, tornou-se o primeiro Zanni, principalmente por sua evolução no

quesito do aspecto acrobático. O Grupo Teatral Moitará,16 confirma essa

teoria:

Entre os zanni, Arlecchino, proveniente de Bergamo, era a máscara mais popular. Inicialmente segundo zanni, transformou-se pouco a pouco em primeiro, encarnava uma mistura de esperteza com ingenuidade, estando sempre no centro das intrigas. (Grupo Teatral Moitará)

Figura 3 - Brighella, século XVI.

Fonte: Wikipedia (Inglês)17

A partir de então o personagem Brighella – que era o primeiro Zanni –

passou a ser o segundo e o Arlecchino tornava-se o personagem preferido do

público.

16

Disponível em: <http://www.grupomoitara.com.br/d401_por.php> Acesso em: 2 Jul. de 2014. 17

Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Brighella> Acesso em: 8 Jun. de 2014.

43

De acordo com esta perspectiva, podemos observar na evolução dos

tipos, uma rivalidade entre Arlecchino e o Brighella, por meio das gags, ou seja,

pela disputa de ambos nos jogos de cenas.

Seguindo esta linha de pensamento, identificamos a possível origem das

principais características do Brighella: trapaceiro, invejoso e agressivo.

Arlecchino e Brighella formam uma espécie de dupla de palhaços nas peças da

Commedia Dell’ Arte. Enquanto aquele utiliza sempre sua astúcia para matar

sua fome, ou ganhar outra vantagem, Brighella sente inveja de Arlecchino e

sempre comete uma trapaça com o mesmo, mas no final, Arlecchino sempre

sai vitorioso e Brighella irrita-se por ter seus planos frustrados.

Em relação ao seriado Chaves, ao analisar seus personagens,

identificamos o personagem Quico (interpretado pelo ator Carlos Villagrán),

com características semelhantes ao Brighella da Commedia Dell’ Arte.

Figura 4 - Quico

Fonte: Numaz News - Blogspot18

Quico é o garoto mimado do seriado. Quando ele está em perigo, sua

mãe Dona Florinda, sempre aparece para defender seu “tesouro”. Ele tem as

mesmas características do Brighella, citados acima. Por isso, seu principal

amigo e rival (ao mesmo tempo) é justamente aquele que faz referência ao

Arlecchino, ou seja, o Chaves.

18

Disponível em: <http://numaznews.blogspot.com.br/2012/08/um-verdadeiro-ufc-mexicano-

chaves-x.html> Acesso em: 21 Mai. de 2014.

44

Podemos comprovar estas argumentações, ao analisarmos algumas

cenas específicas e observarmos o personagem Quico fazendo inveja ao

Chaves, por ter muitos brinquedos e por ter uma mãe que lhe dá dinheiro a

todo momento para comprar doces. E principalmente quando Quico provoca

Chaves ao comer um sanduíche de presunto, outras vezes pirulitos ou

qualquer tipo de comida.

Entretanto, no decorrer da trama, Quico sempre acabava com seus

planos frustrados, porque os conflitos acabavam favorecendo ao Chaves, seja

pela sua astúcia ou inocência por tratar-se de uma criança. Assim como

destacado na relação de Arlecchino e Brighella, Chaves sai vitorioso na maioria

das trapaças de Quico.

Para destacar esta argumentação, analisei um fragmento de cena do

episódio Isto merece um Prêmio (1974)19, onde Chaves e Quico aparecem

mostrando uma série de caricaturas ao Prof. Girafales, desenhadas por eles

mesmos. Porém, em um dos desenhos, está a caricatura do “Prof. Linguiça”

(apelido do Prof. Girafales, dado pelas crianças da vila). E o Prof. Girafales

demonstra irritação ao ver sua caricatura.

No decorrer do episódio, Quico confessa para Chaves que ele é o autor

da caricatura, mas tem medo de levar uma bronca do Prof. Girafales. Então

Quico consegue convencer Chaves a assumir a autoria da caricatura em troca

de um sanduíche de presunto. Quando o Prof. Girafales enquadra os dois,

Chaves mente ao dizer que ele mesmo tinha desenhado a caricatura.

O episódio tem 17 minutos e 46 segundos. O fragmento da cena é a

partir dos 15:53, até 17:17. Vejamos o diálogo a seguir:

Seu Madruga – E vocês sabem? Sabem quem está aí

também? O Prof. Girafales! E tá querendo descobrir quem

desenhou uma caricatura que ele trouxe aí.

Chaves e Quico – Nossa!

Seu Madruga – Vão se preparando!

19

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=052IQC3WW_8> Acesso em: 21 Mai. de

2014.

45

Quico - Chaves, por que você não diz que fez a caricatura

dele?

Chaves – Porque foi você que fez!

Quico – Sim, eu sei. Mas se você disser que fez a caricatura...

Chaves – Eu não digo...

Quico – Eu te dou um sanduíche de presunto.

Chaves – Eu digo sim!

(Outra cena: O Prof. Girafales quer saber quem desenhou

a sua caricatura.)

Prof. Girafales – Bem, qual dos dois desenhou a minha

caricatura?

(Quico passa o sanduíche de presunto para as mãos do

Chaves.)

Prof. Girafales – Repito, qual dos dois desenhou a minha

caricatura?

Chaves – Eu.

Prof. Girafales – Então meus parabéns.

Chaves – Hã?

Prof. Girafales – Pois este é um trabalho onde se nota os dotes

de um verdadeiro artista... e... naturalmente isto merece um

prêmio.Você gosta de biscoitos?

Chaves (feliz) Sim!

Prof. Girafales – Pois este pacote é só pra você.

Chaves – Sim, sim, obrigado!

(Chaves fica feliz ao receber o pacote de biscoitos do Prof.

Girafales e Quico fica decepcionado. Ele empurra o Prof.

Girafales e vai chorar no canto da parede.)

Como acabamos de verificar, o final é surpreendente, o Prof. Girafales

parabeniza Chaves pelo “seu dom artístico” e o presenteia com uma caixa de

biscoitos. Entretanto, Quico fica triste e chora no canto da parede e confirma o

histórico de rivalidade, os jogos de cenas (gags) e a superação de Arlecchino,

sobre Brighella da Commedia Dell’ Arte.

Seguindo com nossa análise, houve um aspecto revolucionador na

interpretação dos atores da Commedia Dell’ Arte, que foi a inclusão da mulher

46

ao interpretar um personagem, porque até então, somente os homens

representavam, inclusive os papéis femininos VIEIRA (2005). A partir da

consolidação feminina na Commedia Dell’ Arte, uma das principais

personagens que se destacou foi a Colombina, muitas vezes responsável

pelos conflitos das representações.

Figura 5 - Colombina com trajes típicos do final do séc. XVII

Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre20

Colombina fazia parte da classe dos Zanni – geralmente aparecia como

uma criada – e, muitas vezes, também era namorada do Arlecchino.

Normalmente era astuciosa, manipuladora e apaixonada. Ela costumava agir

ao lado de Arlecchino em suas trapaças e era a mais astuciosa da classe dos

Zanni, chegando a superar a astúcia do próprio Arlecchino e do Brighella.

Com isso, ela conseguia manipular as ações dos demais personagens,

inclusive de Arlecchino e Brighella, mas, assim como este último, tinha seus

planos descobertos no fim da peça, exceto quando ela fazia parceria com seu

amado Arlecchino.

Estas definições podem ser observadas ao analisar a caracterização da

personagem Chiquinha (interpretada pela atriz María Antonieta de las Nieves),

do seriado Chaves.

20

Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Colombina> Acesso em: 8 jun. de 2014.

47

Figura 6 - La Chilindrina (Chiquinha)

Fonte: Cultura Mix21

Chiquinha é filha do Seu Madruga e faz parte da classe baixa do

seriado. Também é a mais astuciosa entre as crianças. Essa qualidade faz com

que ela se aproveite de algumas situações, para ganhar vantagem em relação

aos demais. Ela é uma criança hiperativa e é a mais inteligente da vila. No

seriado, ela tem uma paixão ingênua por Chaves, que acaba inúmeras vezes

não sendo correspondida.

Destacando o uso de arquétipos que encontramos no seriado, a

Chiquinha representa o tipo de criança que faz pirraça por tudo. Isso é

comprovado em vários episódios, como por exemplo, quando ela pede dinheiro

para seu pai – Seu Madruga – para comprar doces e este nega. Então ela

começa a chorar exageradamente, destacando seu bordão principal: “Ué ué ué

ué ué”. Para não ter que continuar ouvindo os gritos de Chiquinha, Seu

Madruga acaba dando dinheiro e ela para de chorar imediatamente.

Para enfatizar a relação da personagem Chiquinha, em relação às

principais características da Colombina da Commedia Dell’ Arte, analisei um

fragmento do episódio Quem semeia moeda, colhe tempestade (1977)22,

onde Chiquinha se aproveita de uma determinada situação: Chaves está na

vila com um vaso de terra e pretende plantar um pé de carambolas. Até que em

determinado momento, Chaves ganha uma moeda do Seu Madruga para

21

Disponível em: <http://www.culturamix.com/cultura/tv/chiquinha-do-chaves> Acesso em: 12

Jul. de 2014. 22

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7woEYaVAYAI> Acesso em: 12 Jul. de

2014.

48

comprar um algodão-doce e Chiquinha, aproveitando-se da ingenuidade de

Chaves, incentiva-o a enterrar sua moeda no vaso de terra fazendo-o acreditar

que irá nascer um pé de moedas. Quando Chaves sai para buscar um regador,

Chiquinha pega a moeda e então surge o Quico, que também é enganado por

ela, ao esconder sua moeda no vaso de terra e dizer a sua mãe Dona Florinda,

que foi roubado. É nesse momento que Chiquinha pega a moeda do Quico, vai

até a venda da esquina e retorna ao pátio da vila com dois algodões-doces.

O episódio tem 23 minutos e 19 segundos. O fragmento da cena é a

partir dos 21:23, até 22:40. Vejamos o texto seguinte:

(Quico chora no canto da parede)

Chiquinha: O que ouve Quiquinho?

Quico: Roubaram minha moeda!

Chiquinha: Isso, é isso que tem que dizer Quico!

Quico: Não! Eu estou dizendo que me roubaram de verdade.

Chiquinha: Que ator! Que atorzão você é Quico!

Quico: (Irritado) Eu não sou nenhum ator! Eu estou dizendo

que roubaram a minha moeda de verdade!

Chiquinha: É isso aí! Está ótimo! Assim é que se faz, assim é

que se faz...

(Chaves aparece com um regador e vai até o vaso de terra.

Quico desconfiado empurra o Chaves.)

Quico: Ah! Então foi você que roubou a minha moeda!

Chaves: Você tá querendo me roubar é?!

Quico: Você é que quer roubar a minha moeda!

Chaves: É você que quer roubar a minha moeda.

(Enquanto Chaves e Quico brigam, Chiquinha se diverte rindo

dos dois)

Quico: Chaves, faltam duas moedas e a Chiquinha tem dois

algodões!

Chaves: Isso, isso, isso...

(Em outra cena, Quico molha a Chiquinha com o regador e

Chaves joga a terra no vaso)

Quico: Agora temos que molhar bem, mas muito bem.

Chaves: Sim, pra nascer uma árvore de Chiquinhas.

(Chiquinha chora)

49

Na cena seguinte, Chiquinha aparece dentro do vaso de terra, sendo

molhada com o regador que Quico segura e Chaves joga a terra no vaso.

Assim como a personagem Colombina, Chiquinha tem seus planos

descobertos no fim da trama.

Seguindo com a análise, iremos agora falar do Pantalone:

Figura 7 - Pantalone, 1550, por Mauricie Sand

Fonte: Wikipedia (Inglês)23

Pantalone é um dos principais Vecchi da Commedia Dell’ Arte.

Caracteriza-se principalmente por ser um velho ranzinza, impaciente e

avarento. Geralmente, aparecia nas representações, como rival do Dottore,

outro Vecchio de classe social elevada.

Analisando os tipos da Commedia Dell’ Arte, o personagem Pantalone

era o principal alvo das artimanhas dos Zanni (Arlecchino, Brighella e

Colombina). Pantalone tinha uma personalidade muito forte. Entretanto,

sempre tentava recomeçar seu cotidiano tranquilamente, mas os conflitos que

passava só o deixava cada vez mais irritado, principalmente quando alguém

tentava tirar seu dinheiro.

23

Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Pantalone> Acesso em: 21 Mai. de 2014.

50

No Programa Chaves, os principais aspectos de Pantalone podem ser

identificados ao analisar as características do personagem Seu Madruga

(interpretado pelo ator Ramón Valdéz).

Seu Madruga é pai de Chiquinha e tem uma personalidade forte. Ele

desconta sua ira em pessoas inocentes. Essa característica é destacada

quando ele desconta sua raiva ao dar um cascudo no Chaves e beliscar o

Quico. Também é enfatizada diversas vezes quando ele é vítima das tapas de

Dona Florinda – na maioria das vezes de forma injusta – ou quando é irritado

pelas travessuras das crianças.

Figura 8 - Don Ramon (Seu Madruga)

Fonte: Chaves Web24

Seguindo esta análise do personagem Seu Madruga, observamos uma

diferença no status social, em relação ao Pantalone, pois este é rico, avarento

e compõe a classe social mais elevada. Seu Madruga, por sua vez, faz parte

da classe baixa e, mesmo assim, é avarento no pouco que tem.

De acordo com esta perspectiva, observamos esta diferença, devido a

proposta dramatúrgica de Chespirito, ao colocar o personagem Seu Madruga

em um status social baixo e ainda assim ser avarento. O autor enfatiza a

avareza do Seu Madruga como uma questão de caráter e não de classe social.

Isto pode ser observado no nosso próprio cotidiano, ou seja, Chespirito

destaca novamente a mimese como elemento satisfatório do seriado, na

identificação do espectador.

24

Disponível em: <http://www.chavesweb.com/seu-madruga.php> Acesso em: 21 Mai. de 2014.

51

A partir da percepção da cristalização da avareza e da ira, que compõem

as características de Pantalone, é possível observar também, a presença de

outro tipo popular nas ações do Seu Madruga, trata-se do Scaramuccia da

Commedia Dell’ Arte.

Figura 9 - Scaramuccia em 1860 - SAND Maurice. Masques et bouffons (Comedie Italienne)

Fonte: Wikipedia (Inglês)25

Este personagem caracterizava-se por ser um contador de mentiras,

malandro e aproveitador. É considerado uma evolução do personagem

Capitão, em outras palavras, do soldado fanfarrão. Scaramuccia constituía o

grupo dos Zanni, utilizando um figurino com roupa preta e responsável por

fazer diversas caretas. Destacou-se com o passar do tempo, por ter sido

desenvolvido pelo ator italiano Tiberio Fiorilli.

Após analisar as principais características de Scaramuccia e de

Pantalone, encontrei evidências que destacam a semelhança de ambos, com

as características do personagem Seu Madruga.

Em relação ao Scaramuccia, podemos observar nos episódios do

seriado Chaves, que o Seu Madruga aproveita-se de seu status social, para

não pagar o aluguel do Seu Barriga (interpretado pelo ator Édgar Vivar), que é

25

Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Scaramouche> Acesso em: 21 Mai. de 2014.

52

o dono da vila. Seu Madruga aproveita-se, principalmente, por saber que,

apesar de o Seu Barriga ser um homem rígido e de classe média, no fundo é

generoso e muitas vezes demonstra solidariedade com o próximo. Porém, Seu

Madruga também demonstra, diversas vezes, ser um personagem de atitudes

nobres, ao ajudar o Chaves, dando-lhe de comer.

Todavia, ao passar do limite diversas vezes, Seu Madruga acaba caindo

nas próprias armações, principalmente quando ele necessita da ajuda das

crianças – especificamente o personagem Chaves – para avisá-lo o momento

certo que o Seu Barriga chegasse à vila, assim como o Pantalone necessita da

ajuda do seu criado Arlecchino e os demais Zanni, para resolver seus

negócios. Em outras palavras, o Arlecchino atua como um “porta voz” do

Pantalone. Essa característica pode ser vista nas peças de Moliére e Ariano

Suassuna, por exemplo.

Ao analisar o episódio O disco voador (1977)26, observamos uma cena

onde o Seu Madruga esconde-se no interior do quarto de sua casa, para não

pagar o aluguel. Ele combina com Chaves para gritar a seguinte frase “Já

chegou o disco voador”, quando o Seu Barriga chegasse à vila, porém Quico –

que acabara de perder seu disco voador de brinquedo, pelo fato de Chaves ter

jogado o brinquedo na rua – acaba interferindo no plano do Seu Madruga sem

perceber e este acaba sendo descoberto pelo Seu Barriga.

O episódio tem 21 minutos e 46 segundos. O fragmento da cena é a

partir dos 17:10, até 18:20. Vejamos o diálogo a seguir:

Quico: Mamãe! Já se foi o disco voador!

(Seu Madruga sai do quarto e agradece ao Quico pela janela.)

Seu Madruga: Obrigado, Quico, obrigado. (Tom) Onde será

que foi parar este bendito transistor?!

Quico: Chaves, por que o Seu Madruga me agradeceu?

Chaves: Sabe o quê que é? É que ele pensa que...

(Nesse momento, o Seu Barriga vem descendo as escadas da

casa nº 23)

Chaves: Nossa!

26

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZB9SrHB_o34> Acesso em: 21 Mai. de

2014.

53

(Chaves corre até a janela da casa do Seu Madruga)

Chaves: Já chegou o disco voador!

(Seu Madruga corre e se esconde no quarto)

Quico: Onde está? Onde está o meu disco voador?

Chaves: Não seja burro. Estou falando do Seu Barriga.

Seu Barriga: O quê?!

Quico: E eu tô falando do meu brinquedo! Mamãe, já se foi o

disco voador!

(Seu Madruga sai do quarto e entra de novo quando Chaves

grita)

Chaves: Ao contrário! Já chegou o disco voador!

Quico: É nada! Já se foi o disco voador!

Chaves: Não! Já chegou!

Quico: Já se foi o disco voador!

Chaves: Não!

Quico: Já se foi!

Chaves: Já chegou!

(Seu Madruga se irrita e vai até a janela reclamar com Chaves

e Quico, mas dá de cara com Seu Barriga.)

Seu Madruga: Já chega! Estão brincando ou estão tentando...

(dirigindo-se ao Seu Barriga) Digo... o Senhor conseguiu ver o

disco voador?... Digo, não?

Se observarmos com atenção esta cena, podemos constatar que o

personagem Seu Madruga, é logrado pelas crianças irritando-se facilmente e

acaba tendo seus planos frustrados. Desse modo, é importante destacar a

liberdade de expressão artística, no momento que Chespirito cria um

personagem com dois tipos característicos da Commedia Dell’ Arte: Pantalone

e Scaramuccia.

Na Commedia Dell’ Arte os tipos eram fixos para cada ator que os

interpretasse. Contudo, com o passar do tempo, os dramaturgos – ao

resgatarem os tipos da Commedia – adaptaram de acordo com as novas

possibilidades de expressão. Estas adaptações e inovações são identificadas

como a “poética” de cada artista. Assim, como Shakespeare, Moliére, Ariano

Suassuna, Goldoni, entre outros, Chespirito também criou sua poética, a partir

do contraste das classes sociais de seu país.

54

No episódio Como treinar um novo campeão (1977)27, há um

fragmento na cena onde o personagem do Seu madruga ensina Chaves a lutar

boxe. Logo após, Chaves vai correndo para ensinar o personagem Quico a

lutar, mas acaba literalmente nocauteando o “menino bochechudo”. Após

presenciar tal situação, o Prof. Girafales, ao lado de Dona Florinda, vai tirar

satisfação com o Seu Madruga, por este ter ensinado um esporte agressivo

para uma criança.

Figura 10 - O Professor Girafales

Fonte: Chaves Web28

O texto seguinte foi retirado do episódio citado anteriormente. O episódio

tem 24 minutos e 05 segundos. O fragmento da cena é a partir dos 17:57, até

18:36. Essa cena representa uma contradição na forma do personagem criticar

uma ação que ele próprio acaba cometendo. Vejamos o texto a seguir:

Prof. Girafales – Quem bate nos outros, se chama selvagem ou besta!

Seu Madruga (dirigindo-se à Dona Florinda) - É com a senhora.

Dona Florinda – Mas eu não bato por esporte.

Seu Madruga – Não?! É uma profissional.

Prof. Girafales – Ora já basta! E você Chaves tire essas luvas.

Chaves – Ora, mas não se irrite.

Prof. Girafales – E o Senhor Seu Madruga, vou avisá-lo de uma coisa. Eu sou inimigo fidagal da violência e da luta. Mas se eu voltar a ver o pobre do Chaves usando essas luvas, eu, ouça: Vou partir tudo que se chama cara!

27

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zITH9PX2aio> Acesso em: 7 jul. de

2014. 28

Disponível em: <http://www.chavesweb.com/professor-girafales.php> Acesso em: 8 Jun. de

2014.

55

De acordo com a análise do personagem Prof. Girafales, esse tipo de

contradição é uma das principais características do tipo Dottore da Commedia

Dell’ Arte, por este ser ambíguo em todas as suas frases.

Figura 11 - Dottore de face corada

Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre29

Dottore caracteriza-se principalmente por querer assumir sua

superioridade e intelectualidade perante os demais personagens. Na

Commedia Dell’ Arte, seu tipo físico costumava ser grande e fazia contraste

com Pantalone, seu principal rival.

Seguindo as principais características de Dottore, podemos observar

semelhanças com o texto da citação do personagem Prof. Girafales, do seriado

Chaves, como por exemplo: ser o maior em estatura do seriado, demonstrar

intelectualidade, ser ambíguo e contraditório em seus diálogos. Entretanto, se

analisarmos esse tipo de personagem no cotidiano da sociedade,

identificaremos como um homem hipócrita, que julga os semelhantes, mas não

consegue julgar a si próprio.

A Commedia Dell’ Arte também era constituída por personagens que

não utilizavam máscaras. Eles eram apaixonados e eram responsáveis pela

29

Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Dottore> Acesso em: 8 jun. de 2014.

56

dramatização cênica das cenas, eram os Enamorados. Esta classe de

personagens era formada por um casal. Geralmente, eram filhos dos Vecchi:

Pantalone e Dottore, respectivamente. O romance, o amor, a paixão, a sutileza

eram as principais características dos enamorados. O comportamento sutil

destes personagens remetem as representações do teatro erudito.

Figura 12 - Os Enamorados

Fonte: Escola de Teatro Catarse

30

Algumas das funções do teatro erudito (início do século XV) eram de

contrapor temas religiosos, em motivo do reflexo da dominação cristã no

ocidente. Caracterizava-se por resgatar modelos greco-romanos, durante o

renascimento na Itália. Destacou-se pela sua linguagem acadêmica e pela

veneração dos humanistas.

A partir desta perspectiva, observamos na maioria dos episódios do

seriado Chaves, que Chespirito utiliza uma dramatização romântica nas cenas

do Prof. Girafales e da Dona Florinda. Os dois parodiam a interpretação

dramática do teatro erudito, fato que também acontecia na Commedia Dell’

Arte, que surgiu em contraponto a este tipo de teatro dito tradicional, erudito,

que utilizava um tom “empostado”.

Observou-se então, a interferência proposital nos diálogos e ações do

Prof. Girafales e Dona Florinda.

30

Disponível em: < http://escoladeteatrocatarse.wordpress.com/2008/01/15/os-personagens-

da-commedia-dellarte/> Acesso em: 10 Jul. de 2014.

57

Figura 13 - Prof. Girafales e Dona Florinda

Fonte: Chespirito 70 - Blogspot31

Ambos tinham um texto que era repetido na maioria dos episódios, por

tratar-se de um lazzi do seriado:

Prof. Girafales - Dona Florinda!

Dona Florinda - Prof. Girafales! Que milagre o Senhor por aqui.

Prof. Girafales - Vim lhe trazer este humilde presente.

Dona Florinda - Obrigada. Não gostaria de entrar e tomar uma

xícara de café?

Prof. Girafales - Não seria incômodo?

Dona Florinda - Mas é claro que não. Entre.

Prof. Girafales - Depois da Senhora.

Analisamos o episódio intitulado Bilhetes Trocados (1977)32. O

personagem Quico – filho de Dona Florinda – é o responsável por ridicularizar

a “postura e o diálogo formal” do casal, neste episódio.

O episódio tem 23 minutos e 17 segundos. O fragmento da cena é a

partir dos 10:00, até 11:07. Veremos abaixo, o mesmo diálogo dos

personagens identificados acima, mas com uma interferência no texto

tradicional:

31

Disponível em: <http://chespirito70.blogspot.com.br/2011/01/ep-xxxiii-do-blog-somos-

cafonas-sim-o.html> Acesso em: 1 Jul. de 2014. 32

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=E0XcI9e2fgw> Acesso em: 1 Jul. de

2014.

58

(Fundo Musical de O Vento Levou)

Dona Florinda – Prof. Girafales!

Prof. Girafales – Dona Florinda!

Dona Florinda – Que milagre o Senhor por aqui!

Prof. Girafales – Vim lhe trazer esse humilde presentinho.

Quico – Outra vez flores?

Dona Florinda – Tesouro!

Quico – Ah mamãe, mas o Professor parece que não sabe

comprar outra coisa. Sempre flores, flores, flores!

Dona Florinda – Mas acontece que...

Quico – Ah, mas porque num dia ele não traz chocolates...

outro caramelos ... outro dia um relógio de ouro... outro dia um

casaco de pele... outro dia um carro em último tipo... enfim!

Dona Florinda (envergonhada) Não ligue pra ele, Prof.

Girafales, é que o Quico adora fazer piadas.

Prof. Girafales – É... eu já percebi.

Dona Florinda – Mas não gostaria de entrar e tomar uma xícara

de café?

Quico – Outra vez café?!

Dona Florinda – Tesouro!

Quico – É por isso que ele sempre te traz só flores.

Analisando com atenção o texto da cena do Prof. Girafales e Dona

Florinda, podemos constatar evidências que destacam a paródia dos

personagens e proximidade com os enamorados, pela “tentativa de

comportamento formal” dos personagens. Chespirito utiliza sutilmente uma

quebra na linguagem do Prof. Girafales e Dona Florinda, na maioria dos

episódios, permitindo assim que todos os demais personagens interfiram no

diálogo do casal.

Finalizo este último capítulo reafirmando a convicção de que a

Commedia Dell’ Arte pode estar presente em distintas expressões artísticas,

até mesmo em um “produto” da nossa sociedade contemporânea, um

programa de televisão. Mas, ao mesmo tempo, defendo as qualidades do

Programa Chaves que traz em sua essência a Commedia Dell’ Arte, com a

59

imitação de tipos que encontramos na vida e uma crítica social que aparece na

diferença de classes. E isto, tudo através da ingenuidade de personagens,

sejam adultos ou crianças.

60

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A possibilidade de aproximação entre Chaves e a Commedia Dell’ Arte,

surgiu a partir de pesquisas bibliográficas. Contudo, o desafio seguinte seria

exatamente convencer um orientador a aceitar minha pesquisa, porque a crítica

radical em relação às produções televisivas não partia somente dos jornalistas

e teóricos, mas também da Academia Científica.

Tendo obtido a orientação acadêmica para minha pesquisa, o desafio

seguinte foi de encontrar referenciais satisfatórios, na proximidade do seriado

Chaves, com a Commedia Dell’ Arte. A princípio, percebi somente as relações

entre ambos, nas características e ações dos personagens. Todavia, à medida

que fui lendo os referenciais bibliográficos, encontrei mais proximidades que

evidenciavam tal suposição como veremos adiante.

No primeiro capítulo pude notar que a Comedia Dell’ Arte, apesar de ter

surgido em meados do século XV, mantém-se presente na

contemporaneidade, influenciando, através de seus elementos constitutivos,

diversas produções artísticas. Tal fato é possível por tratar de temas que são

atuais em sua estrutura, como o conflito de classes e os tipos humanos

inspirados no cotidiano.

No segundo capítulo, onde abordei a Indústria cultural e sua relação com

a sociedade, foi possível constatar que apesar da grande influência que a

mesma possa exercer sobre o contexto social, não podemos rotular de forma

negativa todos os produtos advindos dessa indústria, sob pena de cairmos em

generalizações preconceituosas.

Desta forma, escolhi como objeto de estudo o seriado Chaves, por se

tratar de um seriado televisivo considerado por alguns críticos como produto do

mercado de massa da Indústria Cultural. Tal escolha aconteceu com o intuito

de verificar o conteúdo transmitido pelo mesmo e sua provável relação com a

Commedia Dell’ arte.

61

No terceiro capítulo, foi possível relacionar alguns tipos humanos da

Comedia Dell’ Arte, com os principais personagens do seriado Chaves, assim

também como ressaltar os aspectos sociais retratados em sua dramaturgia.

Sendo assim, de acordo com minha análise, obtive elementos

interpretativos satisfatórios na coleta de dados, que evidenciaram a

proximidade artística entre ambos. Desse modo, tal pesquisa se mostrou

relevante por comprovar que, apesar das críticas direcionadas ao seu conteúdo

intelectual e cultural, o seriado Chaves demonstra em sua estrutura cênica,

elementos de crítica social através de um humor suave e ingênuo que atinge o

público por meio da identificação com as situações e com os personagens.

Assim, concluo que a Commedia Dell’ Arte influenciou a dramaturgia do

seriado Chaves, ao legar nesta, a relação da observação da natureza do

homem e a imitação do cotidiano da sociedade (mimese), enfatizando sempre

os conflitos entre as classes (crítica social) e despertando a identificação do

público com muitas características dos personagens e as situações vivenciadas

por eles.

62

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo. Editora Martin Claret, 2004.

BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. [Tradução de Maria Paula V. Zurawski e J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia] São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.

BOLAÑOS, Roberto Gómez. Chaves: A História Oficial Ilustrada / Editorial Televisa; Tradução de: Chespirito: Vida y Magia del Comediante más Popular de América. [Traduzido por Mauricio Tamboni] – São Paulo: Ed. Universo dos Livros, 2012.

CARDOSO, Ludmila Stival. Dissertação de Mestrado: A Saga do herói mendigo: O riso e a Neopicaresca no programa Chaves. UFG, Goiânia, 2009, 265 p.

COELHO, Eduardo Teixeira. O que é Indústria Cultural? São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

CHAPLIN, Charles. Chaplin por ele mesmo. São Paulo: Ed. Martin Claret, 1989, 152p.

GRUPO MOITARÁ. Commedia Dell’ Arte. Disponível em: <http://www.grupomoitara.com.br/d401_por.php> Acesso em 27 de Maio de 2014. INFO ESCOLA. Commedia Dell’ Arte. Disponível em: <http://www.infoescola.com/teatro/commedia-dellarte/> Acesso em 29 de Novembro de 2013.

KASCHNER, Pablo. Chaves de um Sucesso. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2006, 248p.

MERISIO, Paulo Ricardo. O espaço cênico no circo-teatro: caminhos para a cena contemporânea. 2 v. Tese (Mestrado em Teatro, Estudos do Espetáculo). Centro de Letras e Artes. Programa de Pós-graduação, Rio de Janeiro, UNIRIO, 1999.

NEVES, E. F.; BARROS, R. A. Roberto Gómez Bolaños e seus teleseriados: Distinção das características de teor não-infantil presentes nos programas e análise dos elementos atraentes aos adultos. Monografia (Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Rádio e Tv). Lorena – SP, FATEA, 2008.

63

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.

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VIEIRA, Marcílio de Souza. Dissertação de Mestrado: A Estética da Commedia Dell’ Arte: Contribuições para o Ensino das Artes Cênicas. UFRN, Natal, 2005, 148 p.