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A Infância Desvalida e a Exploração do Trabalho Infantil no Pós- Abolição: Vale do Paraíba Paulista (1888-1895) MARIA APARECIDA PAPALI 1 Este artigo tem o objetivo de discutir uma problemática que vem se tornando constante à medida que nossas pesquisas avançam no sentido de descortinar as tensões estabelecidas no âmbito das relações de trabalho, ocorridas no pós-abolição em cidades do Vale do Paraíba paulista. No caso específico desta pesquisa tais cidades são Jacareí, São José dos Campos e Paraibuna. 2 As referidas cidades são geograficamente próximas e, no período estudado, pouco significativas no âmbito da agroindústria cafeeira, tão cara à região. No período escravocrata, tais cidades continham, em sua maioria, pequenos e médios proprietários, com um grande contingente de homens pobres livres. Ao levantarmos a documentação forense dessas cidades no período estipulado, ao lado de Processos Crimes e Processos Cíveis, os documentos encontrados em maior número foram as Tutelas e Soldadas aplicadas a órfãos pobres, menores desvalidos, filhos de ex- escravas, libertas e mulheres solteiras pobres em geral. O ato de tutelar um menor desvalido pode ser considerado uma atitude em si benéfica, um ato de assistência praticado pelo poder público, como indicam estudos recentes que buscam demonstrar o despertar dos olhos do Estado para a infância em geral, fato que tem início no final do século XIX, intensificando-se no início do século XX ( NUNES, 2011/ CARDOZO, 2014). No entanto, o que ocorreu no pós-abolição nas cidades pesquisadas foi uma verdadeira corrida ao uso da mão de obra infanto-juvenil de forma indiscriminada. Em pesquisa anterior sobre a cidade de Taubaté, foi possível 1 Doutora em História Social/ Docente e pesquisadora da Universidade do Vale do Paraíba/UNIVAP 2 Projeto de Pesquisa financiado pela FAPESP “Pós- Abolição: trabalho e cotidiano em pequenas cidades do Vale do Paraíba Paulista (1888-1930)” Projeto nº 2014/10190-4

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A Infância Desvalida e a Exploração do Trabalho Infantil no Pós-

Abolição: Vale do Paraíba Paulista (1888-1895)

MARIA APARECIDA PAPALI1

Este artigo tem o objetivo de discutir uma problemática que vem se tornando

constante à medida que nossas pesquisas avançam no sentido de descortinar as tensões

estabelecidas no âmbito das relações de trabalho, ocorridas no pós-abolição em cidades

do Vale do Paraíba paulista. No caso específico desta pesquisa tais cidades são Jacareí,

São José dos Campos e Paraibuna. 2 As referidas cidades são geograficamente próximas

e, no período estudado, pouco significativas no âmbito da agroindústria cafeeira, tão

cara à região. No período escravocrata, tais cidades continham, em sua maioria,

pequenos e médios proprietários, com um grande contingente de homens pobres livres.

Ao levantarmos a documentação forense dessas cidades no período estipulado, ao lado

de Processos Crimes e Processos Cíveis, os documentos encontrados em maior número

foram as Tutelas e Soldadas aplicadas a órfãos pobres, menores desvalidos, filhos de ex-

escravas, libertas e mulheres solteiras pobres em geral.

O ato de tutelar um menor desvalido pode ser considerado uma atitude em si

benéfica, um ato de assistência praticado pelo poder público, como indicam estudos

recentes que buscam demonstrar o despertar dos olhos do Estado para a infância em

geral, fato que tem início no final do século XIX, intensificando-se no início do século

XX ( NUNES, 2011/ CARDOZO, 2014). No entanto, o que ocorreu no pós-abolição nas

cidades pesquisadas foi uma verdadeira corrida ao uso da mão de obra infanto-juvenil

de forma indiscriminada. Em pesquisa anterior sobre a cidade de Taubaté, foi possível

1 Doutora em História Social/ Docente e pesquisadora da Universidade do Vale do Paraíba/UNIVAP

2 Projeto de Pesquisa financiado pela FAPESP “Pós- Abolição: trabalho e cotidiano em pequenas

cidades do Vale do Paraíba Paulista (1888-1930)” Projeto nº 2014/10190-4

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identificar que a grande maioria das crianças tuteladas, filhos de libertas ou “mães

solteiras pobres” eram encaminhados ao trabalho doméstico ou na lavoura: “Teve início

uma verdadeira disputa pelos serviços desses novos agentes sociais. Tanto a agricultura

como o serviço doméstico viram-se ameaçados de perderem suas valiosas contribuições

braçais, caso medidas mais agressivas não fossem tomadas.” (PAPALI, 2003-143).

Havia diferenças entre os tipos de tutelas, sendo que a Tutela Dativa era aquela

que recaia sobre pais ainda vivos que, por alguma razão, não teriam condições de criar

seus filhos. Tais tipos de tutelas foram amplamente utilizadas para se tutelar filhos de

libertas ou de “mães solteiras pobres”, consideradas incapazes de bem criar seus filhos:

Chamam – se tutores testamentários aqueles que são nomeados em

testamento ; legítimos aqueles que a lei nomeia na falta ou

incapacidade dos testamentários ; e dativos , aqueles que , na falta ou

incapacidade de uns e outros , são nomeados pelo juiz-

Ord.L.4,T.102* 1,5 e 7.(1915:190) . (PAPALI, 2003-38)

Além de serem tuteladas, muitas dessas crianças e jovens eram também assoldadas,

outro procedimento jurídico endereçado à contratação do trabalho de menores. Gislane

Campos Azevedo pesquisou sobre o trabalho exercido por crianças e jovens na cidade

de São Paulo entre os anos de 1871 e 1917 tendo como base os Contratos de Soldada,

como era habitual para a época. Segundo a autora: “Criado nos primeiros anos do

período imperial a fim de legalizar o trabalho de crianças filhas de imigrantes, a soldada

era um contrato de locação de serviço de menores estrangeiros para serviços domésticos

intermediado pelo juizado de órfãos”. (AZEVEDO, 1995-22).

No entanto, assim como o recurso da tutela, a soldada foi sendo cada vez mais

utilizada, à medida que o século XIX avançava. A partir da década de 1870 em diante,

tais documentos se avolumam, numa clara indicativa do aumento do número de crianças

e jovens sendo pleiteados para o trabalho.

A Soldada exigia que fosse pago um soldo, que poderia ser mensalmente,

semestralmente ou conforme o Juiz determinasse. O soldo deveria ser depositado numa

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conta na Caixa Econômica, que o Contratante deveria abrir em nome do seu

assoldadado. Outras medidas legais exigidas pelo Contrato de Soldada, eram o

ensinamento das primeiras letras, afazeres domésticos no caso das meninas e serviços

na lavoura no caso dos meninos. No entanto, vemos que muitas das medidas legais não

eram cumpridas como, por exemplo, o depósito na Caixa Econômica e o ensinamento

das primeiras letras. A soldada previa que o assoldadante acertasse o pagamento de seu

assoldadado após o órfão chegar a maioridade ou quando fosse emancipado pelo

casamento. Estudos demonstram que mesmo assim era muito comum que os

contratantes burlassem as leis, não remunerando seus assoldadados na época prevista

(BASTOS; KUHLMANN JR., 2009-45)

Anna Gicelle Garcia Alaniz (1997) mostrou a crescente demanda em busca da mão

de obra infantil na Região de Campinas no período de 1871-1895, de como os senhores

passaram a procurar redefinir as relações já existentes, para manter o controle social.

“Os senhores de escravos passaram a procurar opções e a redefinir relações já existentes

no sentido de conservar algum controle sobre a mão de obra, caso esta viesse a tornar-se

livre, como de fato aconteceu “(ALANIZ, 1997-19).

Pesquisas recentes vem demonstrando o quanto esse procedimento de tutelar e

assoldadar órfãos pobres foi utilizado em várias regiões do Brasil. Temos como

exemplo o trabalho de Alba Barbosa Pessoa, que identificou esse tipo de prática

acontecendo na cidade de Manaus(2011), ou de Ana Paula Pruner de Siqueira, que

pesquisou tais procedimentos nos Campos de Palmas, no Paraná (2013), ou de Ione

Celeste de Sousa, que procura desvendar o trabalho compulsório de ingênuos na Bahia.

Algumas dessas pesquisas evidenciam a necessidade de se estudar a inserção desses

menores nos trabalhos domésticos, conforme salienta Patrícia Geremias (2015) o que de

fato parece indicar a leitura atenta de tais fontes.

Nas cidades analisadas em nossa pesquisa- São José dos Campos, Paraibuna e

Jacareí – ações de Tutela e Soldadas foram encontradas em maior quantidade a partir de

1888, conforme indicação dos gráficos a seguir:

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Gráfico I

Fonte: Fórum de São José dos Campos (2º Cível) Arquivo Público do Município

Em São José dos Campos foram encontrados em maior número os processos de

ações tutelares, sendo que em 1888, no pós-abolição imediato, há um aumento

significativo dessas ações. Muitas das ações de tutela encontradas em São José dos

Campos são significativas do ponto de vista da análise qualitativa, já que em várias

dessas ações são encontradas fugas de menores de seus respectivos tutores ou

assoldadantes, envolvendo contendas entre Oficiais de Justiça, mães e os próprios

órfãos.

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Gráfico II

Fonte: Juízo de Órfãos Paraibuna - Núcleo de Patrimônio Histórico Fundação

Cultural “Benedito Siqueira e Silva”

Em Paraibuna prevaleceu os contratos de soldadas, com destaque para o ano de

1889, quando a existência desses documentos alcançam níveis bem altos. Foram

observadas alta incidência de fugas, protagonizadas pelos órfãos e também em algumas

dessas ações foram encontradas acusações de “defloramento”, ato praticado pelo

assoldadante em suas órfãs.

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Gráfico III

Fonte: Arquivo Histórico – Fundação Cultural de Jacareí “José Maria de Abreu”

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Já na cidade de Jacareí, contratos de tutelas e soldadas só foram encontrados a partir

de 1889, mesmo assim em número bem menor do que nas cidades vizinhas. No entanto,

apesar do pequeno número, tais ações são também turbulentas, contendo fugas, maus

tratos e disputas pelo trabalho do órfão.

Alguns desses processos descortinam cenários imbricados, não raras vezes com esses

menores sendo disputados entre tutores, mães ou contratantes. São ações de tutelas e

soldadas que se prolongam por vários anos, possibilitando ao pesquisador reconstruir

um pequeno cenário do cotidiano da época.

Um documento interessante é o do órfão “preto Abel”, de pais desconhecidos, assim

denominado no processo de tutela. O processo tem início em 1889 com o referido

menor, de 14 anos, sendo tutelado por Joaquim Camilo Guedes. No mesmo dia, 24 de

julho de 1889, Abel torna-se assoldadado do contratante Francisco Antonio Mariano

Leite, conforme consta no mesmo documento. Tanto no Termo de Tutela como no

Termo de Soldada intenções humanitárias e compromissos com o futuro e educação do

jovem tutelado transparecem em suas linhas:

Termo de contrato de soldada do órfão preto de nome Abel, de 14

anos de idade mais ou menos, residente nesta cidade e de pais

desconhecidos, contratando com o (...) Francisco Antonio Mariano

Leite a (...) de 3R000 por mês e por espaço de três anos, contando-se

desde hoje. Aos vinte e quatro dias do mês de julho de mil oitocentos e

oitenta e nove, nesta cidade de São José dos Campos, em meu

cartório, onde se achava o juiz de órfãos segundo substituto em

exercício, o cidadão Domingos Machado, comigo escrivão de seu

cargo adiante nomeado, aí compareceu Joaquim Camilo Guedes com

o contratante Francisco Antonio Mariano Leite. E por este foi dito

que por este termo se obrigará a pagar a soldada do órfão Abel a

Razão de três mil réis por mês, por espaço de três anos contando-se a

partir de hoje, com a condição porém de ministrar-lhe de graça,

vestuário caseiro, alimentação, curativo e habitação; entrando para o

cofre dos órfãos com a soldada de ano em ano, pagando os juros da

mora, tratando-o com humanidade e mandando-o aprender as

primeiras letras. Cujas condições foram aceitas pelo tutor, de que

faço este termo em que assinam. Eu João José do Nascimento,

escrivão o escrevi – D. Machado. Joaquim Camilo Guedes. Francisco

Antonio Mariano Leite. – Está conforme original escrito no atual 5°

livro de “locação de serviços dos órfãos pobres” do que dou fé e

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assino. Eu João José do Nascimento, escrivão o escrevi e fiz a entre

linhas retro que diz: por (...) = Eu João José do Nascimento o escrevi.

Em 1890, o processo tem continuidade com Abel sendo intimado a dar um

depoimento ao juiz de órfãos da cidade, situação rara em documentos desse tipo.

Ao que tudo indica, Abel havia fugido mas teria sido já reconduzido para seu

assoldadante. Muito provavelmente Abel foi intimado a depor por estar

trabalhando em casa de outro que não seu contratante. Um ano depois de ter sido

assoldadado por Francisco Antonio Mariano Leite, Abel encontrava-se prestando

serviços em casa de Delfino Mascarenhas. Conforme palavras de Abel:

Auto de perguntas ao órfão Abel. Ano do nascimento de Nosso Senhor

Jesus Cristo de mil oitocentos e noventa, aos vinte e nove dias do mês

de maio, do mesmo ano. Nesta cidade de São José dos Campos e sala

da Câmara Municipal, onde se achava o doutor juiz de órfãos Flávio

Augusto de Oliveira Queirós comigo escrivão de seu cargo adiante

nomeado, ali presente o doutor curador geral de órfãos João Dias

Cardoso e o órfão Abel. A este passou o juiz a (...) perguntas se (...)

conforme petição retro: perguntado qual a razão por que havia fugido

da casa em que se achava? Respondeu que havia feito isso por que

não queria mais estar em casa de Delfino Mascarenhas por que este

era bastante impertinente para os serviço e exigia mais do que suas

forças permitiam e que tendo sido criado em casa de Francisco

Ferreira desejava para lá ir. Perguntado quais eram os serviços de

sua obrigação em casa de Delfino? Respondeu que os serviços que

habitualmente faz em casa referida são as seguintes: dar milho para

os porcos, encher uma (...) de água, dar milho para os animais, cortar

capim para os mesmos, conduzir almoço e jantar para os camaradas;

começando os seus serviços as seis horas da manhã e finalizando as

seis da tarde. Perguntado quem o havia mandado para casa de

Delfino Mascarenhas? Respondeu que fora o assoldadante Francisco

Antonio Mariano Leite. Perguntado se durante o tempo que esteve em

casa do assoldadante foi mal tratado por este? Respondeu que em

casa do assoldadante nunca apanhara e nem fora mal tratado e que

em casa de Delfino Mascarenhas comia bem e dormia, recebendo o

vestuário necessário e que só uma vez, por motivos de intrigas dos

camaradas recebera seis palmadas.

As respostas de Abel permitem descortinarmos muitas questões envolvendo a

vida do jovem. Abel não relata maus tratos, mas enfatiza o trabalho árduo de 12 horas

diárias. Em momento algum faz menção ao fato de estar aprendendo a ler e escrever,

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cláusula obrigatória de tutelas e soldadas. Abel trabalha em serviços do âmbito

doméstico, situação que vem sendo comprovada por vários trabalhos sobre o tema.

Muito provavelmente crianças e jovens assoldadados tiveram sua inserção no mundo do

trabalho enredadas nos afazeres domésticos da época. Outra questão que se evidencia é

a quantidade de lares nos quais Abel já havia trabalhado, nos seus poucos 14 anos de

vida. Ao que tudo indica o jovem Abel havia sido criado em uma casa que não era a sua,

casa de Francisco Ferreira. Seria Abel um caso isolado? Pesquisas recentes vem

demonstrando por meio de documentos de tutelas e soldadas que tais histórias foram

muito recorrentes no pós-abolição de várias cidades brasileiras.

No rol de perguntas dirigidas ao órfão Abel depreende-se a preocupação do juiz

de órfãos com o fato do assoldadante Francisco Antonio Mariano Leite ter mandado

Abel para trabalhar em casa de Delfino Mascarenhas, fato proibido pela legislação da

época. O assoldadante Francisco Antonio é inquirido e responde ao juiz de órfãos que

estava com problemas com o órfão Abel por este ser “insubordinado”, fato que teria

motivado sua ida para a casa de Delfino Mascarenhas.

Outro documento de 1888, da cidade de São José dos Campos, também muito

interessante pelo teor qualitativo, explicita as turbulências vividas pelo órfão Miguel, de

10 anos, ao ser tutelado. Miguel, filho de uma viúva pobre, moradora de bairro distante,

foi tutelado em 1888 por Benedito Antonio de Oliveira. Logo em seguida, conforme

consta no mesmo processo, Miguel foi assoldadado por Candido Leite Machado Junior.

Consta no processo a dificuldade de se retirar o órfão da companhia de sua mão, sendo

necessário a ação de um Oficial de Justiça para tal intento. Em 1891, quando finda o

primeiro contrato de serviços de 3 anos do órfão Miguel, o assoldadante Candido Leite

Machado Junior busca o Juízo de órfãos da cidade para renovar o contrato com o

referido órfão por mais 3 anos. No entanto, Miguel, agora com 13 anos, não se sujeita,

foge, e, ao ser capturado, em 1893, presta interessante depoimento ao Juiz de Órfãos:

Aos quatorze dias do mês de janeiro do ano de mil oitocentos e

noventa e três, nesta cidade de São José dos Campos, na casa da

residência do Doutor Juiz Flavio Augusto de Oliveira, aonde vim eu

Escrivão nomeado, aqui presente o órfão Miguel de que se trata o

mandado retro – passou o Juiz a fazer-lhe as perguntas seguintes:

Qual a razão que teve de abandonar a casa de seu assoldadante

Candido Machado Junior? Respondeu que seu dito assoldadante o

surrou com chinelas e algumas vezes dava-lhe tapas e que também

ralhava; sendo que a mulher dele assoldadante surrava a ele

respondente, ora com as mãos e as vezes com achas de lenha e

também (ilegível). Perguntado se ele respondente era trabalhador

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para cumprir o contrato e se não era respondão para seus patrões?

Respondeu que nunca fora vadio e que também jamais fora mal

educado para seus patrões. Perguntado se era bem alimentado e se

lhe davam a roupa necessária para o trabalho? Respondeu ser bem

alimentado, apesar de, na ocasião estarem lhe chingando; e quanto a

roupa não tinha o que precisa, tanto assim que apresenta-se ele

respondente mui sujo a presença deste juízo. E por nada mais ter

respondido e nem se lhe ter perguntado, lido o que disse, achando-o

conforme, faço este ato em que assinam, fazendo à rogo dele

respondente porque não sabe escrever. Benedito Bicudo de Oliveira

Em sentido oposto ao relatado pelo primeiro órfão analisado (órfão Abel) o depoimento

de Miguel nos remete ao universo dos maus tratos, cenário triste mas bem presente em muitos

desses documentos. Miguel relata um cotidiano tenso e permeado de surras e xingamentos, um

menino sujo, maltratado. O órfão enfatiza que as investidas violentas das quais foi vítima foram

também efetuadas pela esposa de seu patrão. Uma questão que também transparece em seu

depoimento e que não é questionada pelo judiciário é a evidência de que Miguel não havia sido

mandado a ler e escrever, como prescrito nas ações de tutelas e soldadas. Seu relato foi assinado

por Benedito Bicudo de Oliveira “a rogo dele respondente porque não sabe escrever”

No cenário do pós-abolição nas cidades pesquisadas (São José dos Campos, Paraibuna e

Jacareí) a exploração do trabalho infantil, destinado a crianças e jovens, filhos de libertas e mães

(ou viúvas) pobres pode ser considerado uma evidência. As ações de tutelas e soldadas,

encontradas em quantidade expressiva para cidades tão pequenas, constatam isso. Mas fica uma

questão: muito provavelmente para cada criança ou jovem tutelado (ou assoldadado) muitos

outros devem ter permanecido no trabalho árduo, dentro dos lares, fora de qualquer tipo de

auxílio jurídico, enfrentando a aridez de uma infância roubada e destituída de todos os direitos.

REFERÊNCIAS:

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ALANIZ , Anna Gicelle Garcia. Ingênuos e libertos :estratégias de sobrevivência

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