A (in)Satisfação Histérica - Entre o Falo e a Falta

download A (in)Satisfação Histérica - Entre o Falo e a Falta

of 7

description

didático

Transcript of A (in)Satisfação Histérica - Entre o Falo e a Falta

  • A (IN)SATISFAO HISTRICA: ENTRE O FALO E A FALTA

    Elizabeth Cristina Landi L. Souza

    A histria da psicanlise est estreitamente vinculada histeria. Freud inaugurou

    a clnica da singularidade, entrelaando a histrica, o analista e o terceiro escutado e

    nomeado por ele: o inconsciente. No discurso da histeria, h um sujeito barrado que se

    dirige a um outro, no qualquer, mas ao Outro, significante mestre, aquele que ela supe

    saber o que ela no sabe, mesmo sabendo, e que a determina. Sujeito barrado, histrico,

    que demanda a produo de um saber sobre aquilo que no quer ser sabido, porque o

    gozo, produzido por efeito da prpria diviso, fica escamoteado, velado (LACAN,

    1992). Mas esse sujeito barrado convoca, via transferncia, um outro que, ocupando o

    lugar de analista, possibilita a apresentao da verdade do desejo inconsciente.

    Freud (1915/2004) insistiu tanto em saber dessa verdade escamoteada que a

    construiu, atravs do discurso da histrica. Ele refez o caminho dos indcios (sintomas,

    sonhos, atos falho, chistes) para a causa. Chegou ao recalque e afirmou no ser possvel

    dizer que ele que cria as formaes substitutivas, mas que essas so sinais de que o

    recalcado retorna, porque o desejo inconsciente no cede defesa.

    Para caracterizar o recalque na histeria de converso, Freud (1915/2004) apontou

    seu fracasso, uma vez que so muitas as formaes substitutivas, mesmo que s vezes a

    parcela de afeto recalcada desaparea e gere indiferena. A notcia de que o recalque

    fracassa dada pelo sofrimento da histrica, uma vez que no h mecanismo capaz de

    defender to bem o territrio do eu que evite o sofrimento do qual se tenta escapar.

    Nas histricas, a sexualidade infantil deixou marcas especficas, modelando os

    substitutos da pulso recalcada em simbolizaes corporais: inervaes somticas muito

    fortes, provocando o corpo, nos sentidos e nos movimentos, a se excitar ou a se inibir:

    converso histrica. No era simples fingimento, feitiaria ou incorporao diablica

    (ROUDINESCO; PLON, 1998). Essa possesso passiva, nomeada assim na

  • Antiguidade, indicava outra coisa, no to explcita, nem to mensurvel ou apreensvel

    pelo saber mdico. Freud (1915/2004) apontou sim para uma diviso, mas no entre

    corpo e alma, como as explicaes religiosas faziam, mas entre consciente e

    inconsciente, entre representante pulsional e recalque.

    Talvez um quadro de histeria de converso como aqueles do final do sc. XIX

    no seja to freqente hoje, apesar de ainda se apresentarem aos que quiserem ver. H

    outras cenas e outras mscaras apresentadas pelas histricas que procuram anlise e elas

    chegam pagando com o corpo as dvidas adquiridas ao longo da vida. Chegam tambm

    as que cuidam do corpo para que ele sirva de esteio pea teatral que precisam encenar.

    Uma histrica do sculo XXI apresenta-se ento numa anlise, talvez no

    desejando anlise, mas queixando-se dos sofrimentos que seu sintoma lhe acarreta. Jia

    seu nome. Um sujeito, to inteiro, to completo, to estrela, que ao se deparar com a

    falta, sofre e v seu mundo desabar. Jia comea a falar de uma tal insatisfao, e

    pergunta, tal como um $ (sujeito barrado) ao S1 (significante mestre) no discurso da

    histrica: De onde vem essa minha insatisfao?. Na anlise, no cabe ao analista

    responder, alis, o de que se trata de faz-la falar. (LACAN, 1998a, p. 18).

    Mas aquela pergunta ficou insistindo, pedindo resposta, provocando. Freud

    (1987) a encontrou, como trao diferencial da histrica no sonho que uma histrica lhe

    relatou sobre um salmo defumado, que era pouco para oferecer o jantar aparentemente

    desejado. Ela sonhou para mostrar a Freud que preciso dialetizar a realizao de

    desejo no sonho.

    Para curar a histrica de todos os seus sintomas, a melhor maneira ()

    satisfazer seu desejo de histrica que para ela o de colocar aos nossos olhos seu

    desejo como desejo insatisfeito (LACAN, 1998, p. 19). A histrica quer, portanto,

    mostrar ao analista seu desejo insatisfeito. Ao analisar o sonho, Freud (1900/1987)

    desmascarou o desejo manifestamente no realizado, evidenciando a satisfao latente

  • em manter o desejo in-satisfeito, afinal: ... a no-realizao de um desejo significava a

    realizao de outro. (p.165).

    No sonho da Bela Aougueira, ela queria oferecer um jantar, mas tinha pouco

    salmo defumado, ento tentou resolver a situao pensando em sair para comprar algo,

    ou telefonando para algum fornecedor, mas era domingo, tudo estava fechado e o

    telefone no funcionava, portanto teve que renunciar idia de oferecer o tal jantar.

    Freud (1900/1987) pediu que ela falasse, associasse, pois para interpretar o sonho, era

    preciso que o sonhador comparecesse. E outros significantes foram aparecendo: o

    marido que desejava emagrecer respondeu a um retratista que queria pintar seu rosto

    que seria prefervel pintar o traseiro de uma moa bonita; o desejo de comer caviar e a

    proibio que ela mesma imps ao marido (que lhe desse caviar), continuando assim a

    implicar com ele; uma amiga que queria engordar jantando na casa dela, comendo seu

    prato predileto: salmo. Para completar, o marido, que sempre elogiava a amiga,

    preferia as mais cheinhas.

    Freud (1900/1987) encontrou dois sentidos para o sonho. No primeiro, apontou a

    impossibilidade da histrica oferecer o jantar, com salmo, amiga que queria engordar

    e que poderia, assim, atrair ainda mais seu marido. A outra interpretao, mais sutil,

    apontou a questo da identificao histrica e do prprio desejo insatisfeito. O sonho

    mostra assim que h uma identificao entre a sua renncia do desejo de comer caviar e

    a renncia imposta no sonho ao desejo da amiga de engordar comendo salmo. Assim,

    a identificao no constitui uma simples imitao, mas uma assimilao baseada numa

    alegao etiolgica semelhante; ela expressa uma semelhana e decorre de um elemento

    comum que permanece no inconsciente. (FREUD, 1900/1987, p. 164).

    O desejo renunciado se revela no sonho, e sua insatisfao o que caracteriza o

    sintoma da histrica. Lacan (1999), na releitura que faz desse sonho, aponta-o como

    portador da criao de um desejo insatisfeito que tem uma funo e que se situa entre o

  • desejo e a demanda. A histrica demanda amor e deseja caviar, ou melhor, deseja no

    comer caviar que o que ela quer.

    A questo, justamente, saber por que, para que uma histrica mantenha um

    relacionamento amoroso que a satisfaa, necessrio, primeiramente, que

    ela deseje outra coisa, e o caviar no tem aqui outro papel seno o de ser

    outra coisa, e em segundo lugar, que, para que essa outra coisa desempenhe

    bem a funo que tem a misso de desempenhar, ela justamente no lhe seja

    dada. (LACAN, 1999, p. 376)

    Para a histrica, h sempre algo que no satisfaz, um outro desejo que no pode

    ser satisfeito. A histrica , precisamente, o sujeito para quem difcil estabelecer com

    a constituio do Outro como grande Outro, portador do signo falado, uma relao que

    lhe permita preservar seu lugar de sujeito (LACAN, 1999a, p. 376). A histrica, ento,

    no quer assumir seu lugar de sujeito e arcar com o desejo e as vicissitudes que lhe so

    prprias, especialmente a falta?

    Ela quer um desejo insatisfeito e a identificao com a amiga, no sonho, aponta

    para a questo de que o desejo do homem o desejo do Outro (LACAN, 1998b, p.

    634). A aougueira representante legtima da histrica, sujeito dividido pela

    linguagem, impossibilitado de falar em nome prprio, apropria-se de significantes

    Outros, que possam ser seus. Em vez de caviar, salmo. Lacan mostra que o desejo

    constitudo no discurso, pela condio imposta ao sujeito de que o que da ordem da

    necessidade seja simbolizado, passe pelo significante, e seja endereado ao Outro. Por

    isso o desejo do homem desejo do Outro, porque no h um eu que deseje sem Outro.

    E por que manter o desejo insatisfeito? A histrica se esquiva, ela tem o salmo,

    tem o marido aougueiro, mas no d, no pode oferecer o jantar amiga, tem que

    manter o desejo do Outro insatisfeito, ela negligencia a demanda da amiga, que na

    verdade apenas uma mscara com a qual ela tenta escamotear sua questo, sempre

    referida ao falo.

    Na clnica comparecem histricas sem salmo ou caviar, mas que apresentam

    sua (in)satisfao de seduzir os homens. Jia, a histrica de cem anos depois de Freud

  • diz: Quando tenho o que quero, quando ele est aos meus ps, no quero mais. A j

    estou pensando no prximo. como uma droga, tenho que procurar algum para sugar.

    Consegui o que eu quero, agora pronto, pode ir embora. Meu gozo at conquistar.

    Credo!. Uma pequena Dora brasileira, que fala inclusive da marca que o livro Drcula,

    de Bram Stoker, deixou em sua fantasia, dizia ficar pensando naquela coisa de

    sugar.... Mas o desejo fica insatisfeito e a questo se mantm.

    Enquanto o sujeito histrico no reconhece que o desejo do Outro barrado, ele

    no pode reconhecer-se barrado, no reconhece seu desejo marcado pela castrao. A

    histrica deseja ser o falo, ter o falo, ela se coloca no lugar do prprio falo, isto ,

    daquilo que pode satisfazer o outro. E a pequena Dora continua: Tenho uma amiga que

    diz que eu vicio, que ela tem que ter um pouco de mim de tempos em tempos. E ainda:

    Voc j viu aquele filme O Show de Truman? Pois , eu me sinto assim, filmada por

    vrias cmeras em todos os momentos do dia, como se eu estivesse num palco. Que

    brilhante descrio da posio flica, do desejo de ser o objeto privilegiado do mundo

    da vida, de ser esse simulacro. Lacan (1999) apresenta o falo contranstando-o com o

    significante, essencialmente oco. Inversamente, o que se apresenta no falo aquilo que

    se manifesta na vida (...) como turgescncia e impulso (p. 359).

    Ao se iludir com esse nada oco falo, o sujeito se esquiva da castrao, evita

    encontrar-se com o que deixa a demanda sem resposta, insatisfeita, numa insistncia em

    denegar a falta. A histrica que convocou o saber de Freud (1900) encontra-se no centro

    da confuso entre demanda e desejo, pois o que est em questo sempre sua condio

    de falta-a-ser, ao mesmo tempo em que no cessa de apelar ao Outro seu complemento.

    No entanto, o Outro lugar de fala e tambm o lugar dessa falta (LACAN, 1998b,

    p.633).

    Esse desejo de ser o falo, signo do que desejado, faz a mulher, no podendo se

    deparar com a castrao, metonimizar, substituir a falta por uma insgnia flica

  • qualquer. E no apenas Freud quem assim o nomeia, diz Jia, a pequena Dora: Eu

    acho que s vou me sentir completa quando tiver um filho, trocando em midos, um

    falo.

    O fato de ela se exibir e se propor como objeto do desejo identifica-a, de

    maneira latente e secreta, com o falo, e situa seu ser de sujeito como falo

    desejado, significante do desejo do Outro. Esse ser a situa para alm do que

    podemos chamar de mascarada feminina, j que, afinal, tudo o que ela

    mostra de sua feminilidade est ligado, precisamente, a essa identificao

    profunda com o significante flico, que o que est mais ligado sua

    feminilidade (LACAN, 1999, p. 363).

    O falo serve de mscara, encobre a falha, disfara aquilo que falta, mas denuncia

    tambm que h falta. As mscaras so tantas quantas forem as insatisfaes, ou seja,

    elas so constitudas pelas demandas recusadas. A histrica no tem o falo, no dipo se

    depara com a castrao, convocada a uma travessia que faz de braos dados com o

    sintoma. Esse seu gozo: ela goza de manter-se insatisfeita, protegendo-se

    paradoxalmente do desejo.

    BIBLIOGRAFIA

    FREUD, S. A interpretao dos sonhos (1900) In: Edio Standard Brasileira das

    Obras Psicolgicas Completas de S. Freud, vol. 4. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

    _______. O Recalque (1915) In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, v. 1. Rio

    de Janeiro: Imago, 2004.

    LACAN, J. O seminrio, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanlise.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998a.

    LACAN, J. O seminrio, livro 17: O avesso da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar Editor, 1992.

    _______. A direo do tratamento e os princpios do seu poder. In: Escritos. Rio de

    Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998b.

    _______. O seminrio, livro 5: as formaes do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar Editor, 1999.

    ROUDINESCO; PLON, M. Dicionrio de Psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

    Editor, 1998.

  • SOBRE A AUTORA

    Elizabeth Cristina Landi de L. Souza. Mestre em Psicologia. Professora do

    Departamento de Psicologia da PUC-Gois e do Curso de Psicologia da Universidade

    Federal de Gois. Membro do Ncleo do Corpo Freudiano de Goinia - Gois.