A Insegurança Da Posse

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14 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO ADRIANA NOGUEIRA VIEIRA LIMA A (IN) SEGURANÇA DA POSSE: REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM SALVADOR E OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE Salvador 2005

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A Insegurança Da Posse

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E

    URBANISMO

    ADRIANA NOGUEIRA VIEIRA LIMA

    A (IN) SEGURANA DA POSSE:

    REGULARIZAO FUNDIRIA EM SALVADOR E OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE

    Salvador 2005

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    ADRIANA NOGUEIRA VIEIRA LIMA

    A (IN) SEGURANA DA POSSE:

    REGULARIZAO FUNDIRIA EM SALVADOR E OS INSTRUMENTOS

    DO ESTATUTO DA CIDADE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em

    Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, como requisito

    parcial para a obteno do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

    Orientadora: Prof Dra. Angela Maria Gordilho Souza.

    Salvador

    2005

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    FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Faculdade

    Arquitetura da Universidade Federal da Bahia

    L732 Lima, Adriana Nogueira Vieira.

    A(in)segurana da posse: regularizao fundiria em Salvador e os

    instrumentos do Estatuto da Cidade / Adriana Nogueira Vieira Lima . Salvador, 2005.

    170p. il.

    Dissertao (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, 2006

    1. Poltica urbana Estatuto da Cidade 2. Poltica urbana Regularizao fundiria 3. Direito moradia Segurana da posse I. Ttulo

    CDU 711.432 : 347.171(060.13)

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    TERMO DE APROVAO

    ADRIANA NOGUEIRA VIEIRA LIMA

    A (IN) SEGURANA DA POSSE:

    REGULARIZAO FUNDIRIA EM SALVADOR E OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE

    Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Arquitetura e

    Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

    Angela Maria Gordilho Souza Orientadora

    Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, USP

    Paola Berenstein Jacques

    Doutora em Histria da Arte pela Universidade de Paris 1

    Nelson Saule Junior Doutor em Direito Urbanstico pela Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Estado de So Paulo, PUC

    Salvador, 27 de junho de 2005

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    LIMA, Adriana Nogueira Vieira. A (in) segurana da posse: regularizao fundiria em

    Salvador e os instrumentos do Estatuto da Cidade. 2005. 170 il. Dissertao de (Mestrado em

    Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia,

    Salvador.

    Autorizo a reproduo [parcial ou total] deste trabalho para fins de comutao bibliogrfica.

    Salvador, 27 de junho de 2005.

    Adriana Nogueira Vieira Lima

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    AGRADECIMENTOS

    Durante todo o perodo em que me dediquei elaborao desta dissertao, encontrei muitas pessoas dispostas a colaborar com o desafio de montar este quebra cabea. Cada um, de sua

    maneira, contribuiu acrescentando uma pea sem a qual seria impossvel terminar o trabalho. As contribuies foram dadas de vrias formas - conversas informais, entrevistas dirigidas, emprstimos de material, criticas contundentes ou um simples olhar fraterno. Muitos foram os

    que contriburam. Por isso, de antemo, peo desculpas e agradeo queles que deixaram de ser nomeados.

    Inicialmente, agradeo minha orientadora, ngela Gordilho, por sua orientao dedicada e exigente; a Nelson Saule Jnior, por ter me apresentado o Direito Urbanstico e pelo carinho e

    ateno durante todo esse processo e; a Paola Berentein Jacques, por ter gerado crises criativas, possibilitando a abertura de novos caminhos; a Edsio Fernandes, pela valiosa contribuio

    quando da defesa do projeto e por todas as contribuies que vem dando ao Direito Urbanstico Brasileiro.

    Aos colegas Marcos, Srgio, Silvana, Vital, Robert, Suely, Helena, Maurcio, Tnia, Daniela e Dora que com muito carinho e pacincia, acolheram a advogada e contriburam no processo

    de desvelar categorias aparentemente to distante do seu jurisdiqus. Ainda no mbito da Faculdade de Arquitetura, agradeo as funcionrias Jandira e Silvandira pelo valioso apoio.

    A todos aqueles que permitiram ser entrevistados, contribuindo para que esta dissertao se apresentasse de forma mais viva.

    CAPES, pelo aporte financeiro da bolsa de pesquisa.

    Aos funcionrios da Biblioteca da Fundao Mario Leal - Carmelita, Hilda, Bete e Rosrio.

    Aos amigos Tatiane, Juliana, Flvia, Paulo, pelo incentivo e apoio emocional. Aos companheiros da CJP, CEAS e ITCP pelo rico aprendizado.

    grande famlia (Chico, Piu, Tuca e Dan), Vocs foram a grata surpresa desse mestrado.

    professora Anglica Mattos, pelo carinho e ateno na reviso deste trabalho.

    Agradeo tambm o carinho e incentivo dos meus pais e do meu irmo.

    Por fim, a Edinho, por tudo.

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    preciso defender a igualdade sempre que a diferena gerar

    inferioridade, e defender a diferena sempre que a igualdade implicar

    descaracterizao.

    Boaventura de Souza Santos, 2003

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    RESUMO

    Os padres de ocupao do espao urbano contemporneo nas grandes cidades brasileiras esto marcados por uma ampla produo da ilegalidade fundiria e urbanstica, sendo a interveno dos poderes pblicos, atravs da produo legislativa, um fator determinante na formao do

    universo de ilegalidades. Esse universo atinge cerca da metade da populao das grandes metrpoles, caracterizando-se como ambientes que revelam uma pluralidade de normas e formas

    construdas margem do ordenamento jurdico oficial. Com a edio do Estatuto da Cidade, Lei Federal n. 10.257/2001, novas perspectivas so abertas. Esse novo marco normativo fortalece os princpios da funo social da propriedade e da cidade, consagrados no texto da Constituio

    Federal de 1988, trazendo tambm diretrizes e instrumentos que devero guiar as aes do Poder Pblico municipal no exerccio da sua competncia, para elaborar e executar a poltica

    urbana. Dentre as diretrizes elencadas, destaca-se a regularizao fundiria dos assentamentos ocupados pela populao de baixa renda. Este trabalho situa-se, portanto, no campo da discusso que envolve a questo jurdico-urbanstica e objetiva contribuir com a reflexo sobre os

    caminhos da regularizao fundiria na efetivao do direito cidade, do direito moradia e, especialmente, da segurana da posse. Para tanto, faz-se uma abordagem sobre o papel da lei na

    formao da ilegalidade urbana e, conseqentemente, na promoo da insegurana da posse e da negao do direito cidade. Em seguida, analisam-se o novo marco normativo firmado com a chegada do Estatuto da Cidade e as possibilidades por ele trazidas, para tomar como estudo de

    caso a Cidade de Salvador. O estudo tem incio com um breve histrico sobre a formao do tecido fundirio e urbanstico da Cidade e o papel das intervenes pblicas no processo de excluso socioespacial. Faz-se um levantamento dos programas de regularizao fundiria

    propostos entre 1980-2001, e, em seguida, busca-se verificar como o Estatuto da Cidade vem sendo aplicado no mbito da Cidade de Salvador, especificamente no que se refere a sua poltica

    de regularizao fundiria implementada no perodo de 2002-2004. Nessa fase, utilizam-se, como fontes de pesquisa, documentos oficiais e entrevistas qualitativas com administradores pblicos e lideranas comunitrias. Ao final, tecem-se consideraes acerca dos limites do

    Estatuto da Cidade e apontam-se novos caminhos que devero ser trilhados na busca de solues para a implementao de uma regularizao fundiria de modo a atender os ideais que guiaram a

    elaborao desse novo marco regulatrio.

    Palavras-chave: Regularizao fundiria; Estatuto da Cidade; ilegalidade urbana; poltica urbana; segurana da posse; direito moradia; direito cidade.

  • 22

    ABSTRACT

    The pattern of land occupation in the contemporary urban scene, in major Brazilian cities, is characterized by an ample production of urban and land use illegalities. The intervention of the

    powers to be, by means of legislative measures, plays a determinant role in the formation of such illegalities. They affect about half of the population in inner cities and distinguish

    themselves as situations that reveal a great variety of norms and models that do not follow the official judicial ordinances. The editing of the new City Statute, ratified by Federal Law number 10.257/2001, has brought forth new perspectives and possibilities. This new landmark

    norm strengthens principles of the social function of property, and of the city, which are sanctioned by the Federal Constitution of 1988. It also sets directives and instruments that will

    guide the actions of the municipal powers to exert its bestowed authority for the elaboration and execution of urban policies. Among the directives that were listed, one can be highlighted: the land conservancy regulation for settlements occupied by the lower income population.

    Therefore, this paper discusses and addresses the judicial-urban issue related to this matter and aims at contributing with a reflection about the possible paths of the land conservancy

    regulation, since it implements the right to city living, the right to housing, and, especially, the right to secure land tenure. In order to accomplish this objective, a discussion about the role of the law in the formation of illegalities is made, pinpointing how this role leads to a subsequent

    promotion of tenure insecurity and the negation of the right to city living. Furthermore, this paper analyzes the new landmark norm established by the signing of the new City Statute, and

    the possibilities brought forth by it, leading the way to a case study about the city of Salvador. This study initiates with a brief historical recapitulation regarding the formation of the land and urban settings in the City, as well as the role of government interventions in the process of

    social-spatial exclusion. It also catalogs the land conservancy programs proposed between 1980 and 2001, and then verifies how the City Statute has been applied to the City of Salvadors

    dominion, giving special emphasis to the land conservancy policy implemented in the period between 2002 and 2004. In this phase of the study, official documents and qualitative interviews with public administrators and community leaders are used as research sources. Lastly, some

    considerations are made regarding the limitations of the City Statute, highlighting new paths that must be taken in order to find solutions for the implementation of a land conservancy regulation

    that will satisfactorily conform to the ideals that guided this new landmark norm.

    Keywords: Land conservancy regulation; City Statute; urban illegality; urban policy; secure

    land tenure; right to housing; right to city living.

    LISTA DE FIGURAS

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    Figura 1 Mapa I: Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano: reas Especiais de

    Interesse Social. 116

    Figura 2 Mapa II: Municpio de Salvador Poligonais do Programa Municipal de

    Regularizao Fundiria 2002-2004 122

    Figura 3 Mapa III: Projeto de Regularizao Fundiria da Fazenda So Gonalo

    Salvador-Ba 148

    Figura 4 Mapa IV: Ao de usucapio urbano coletivo proposta pela Associao Cultural

    Beneficente de Mata Escura 152

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    LISTA DE QUADROS E TABELAS

    Tabela I Invases removidas em Salvador (1946-1989): resultado da remoo por perodo

    de ocorrncia. 104

    Tabela II - Programa de Legalizao : resumo das atividades por rea de interveno 108

    Tabela III Programa Municipal de Regularizao Fundiria 2002-2004 123

    Quadro I Levantamento Regularizao Fundiria 1983-2002 107

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

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    ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias

    ANOREG Associao dos Notrios do Brasil

    APSE reas de Proteo Social

    BNH Banco Nacional de Habitao

    CDRU Concesso de Direito Real de Uso

    CEAS Centro de Estudo e Ao Social

    CF Constituio Federal

    CHESF Companhia Hidroeltrica do So Francisco

    CJP Comisso de Justia e Paz da Arquidiocese de Salvador

    COMULS Comisses de urbanizao e legalizao

    CONAMA Conselho Nacional de Meio Ambiente

    CONDER Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia

    CPC Cdigo de Processo Civil

    CRF Coordenadoria de Regularizao Fundiria

    EPUCS Escritrio do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador

    FABS Federao das Associaes de Bairros de Salvador

    FNRU Frum Nacional de Reforma Urbana

    IAB Instituto dos Arquitetos do Brasil

    IBAM Instituto Brasileiro de Administrao Municipal

    IPTU Imposto sobre Propriedade Territorial Urbano

    IRIB Instituto dos Arquitetos do Brasil

    LOM Lei Orgnica do Municpio

    LOUS Lei de Uso e Ocupao do Solo

    MDF Movimento de Defesa dos Favelados

    MNRU Movimento Nacional de Reforma Urbana

    MP Medida Provisria

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

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    OAB Ordem dos Advogados do Brasil

    OCEPLAN rgo Central de Planejamento

    ONG Organizao no governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PHIS Poltica Habitacional de Interesse Social

    PLANDURB Plano de Desenvolvimento de Salvador

    PMS Prefeitura Municipal de Salvador

    PREZEIS Plano de Regularizao das Zonas Especiais de Interesse Social

    PRODESCO Programa de Desenvolvimento Comunitrio

    RENURB Companhia de Renovao Urbana

    SCMB Santa Casa de Misericrdia da Bahia

    SECOVI Sindicato das Empresas de Compra, Venda,e Administrao de Imveis.

    SEHAB Secretria de Habitao

    SEMIN Secretria Municipal de Saneamento, Habitao e Infra-estrutura Urbana

    STF Supremo Tribunal Federal

    TFP Tradio Famlia e Propriedade

    TRANSCON Transferncia de Direito de Construir

    UNMP Unio Nacional de Moradia Popular

    VIRACOM Vice Reitoria de Assuntos Comunitrios

    ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social

    SUMRIO

  • 27

    INTRODUO .................................................................................................................. 14

    1 DA FORMAO DA ILEGALIDADE REGULARIZAO

    FUNDIRIA ................................................................................................................. 21

    1.1 LEI, FORMA E SEGREGAO ESPACIAL .............................................................. 21

    1.2 O UNIVERSO DAS ILEGALIDADES NO DOMINADAS. ..................................... 25

    1.3 REGULARIZAO FUNDIRIA E (IN) SEGURANA DA POSSE ....................... 28

    2 ESTATUTO DA CIDADE: UM NOVO MARCO LEGAL. ................................... 35

    2.1 A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO CIDADE ..................................... 35

    2.2 O PROCESSO DE ELABORAO DO ESTATUTO DA CIDADE ....................... 39

    2.3 PRINCPIOS, DIRETRIZES E COMPETNCIA PARA PROMOO DA

    REGULARIZAO FUNDIRIA ............................................................................. 40

    2.4 INSTRUMENTOS DE REGULARIZAO FUNDIRIA ....................................... 48

    2.4.1 PLANO DIRETOR ..................................................................................................... 49

    2.4.1.1 Obrigao e abrangncia........................................................................................... 49

    2.4.1.2 Participao da sociedade civil ................................................................................ 51

    2.4.1.3 A centralidade do Plano Diretor na implementao da poltica de regularizao

    fundiria ..................................................................................................................52

    2.4.2 DIREITO DE PREEMPO ..................................................................................... 53

    2.4.3 OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR (TRANSCON) .............. 55

    2.4.3.1 Conceito e finalidade ............................................................................................... 55

    2.4.3.2 A verso da outorga onerosa no Estatuto da Cidade ............................................... 56

    2.4.3.3 A outorga onerosa e a regularizao fundiria ........................................................ 57

    2.4.4 TRANSFERNCIIA DO DIREITO DE CONSTRUIR..............................................58

    2.4.5 DIREITO DE SUPERFICIE ....................................................................................... 59

    2.4.6 ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL ...................................................... 60

    2.5 INSTRUMENTOS DE TITULAO DO SOLO URBANO ...................................... 64

    2.5.1 USUCAPIO INDIVIDUAL E COLETIVO ............................................................ 65

    2.5.2 CONCESSO DE DIREITO REAL DE USO E CONCESSAO ESPECIAL DE USO

  • 28

    PARA FINS DE MORADIA ..................................................................................... 70

    2.5.2.1 Concesso de direito real de uso .............................................................................. 71

    2.5.2.2 Concesso especial de uso para fins de moradia.......................................................72

    2.6 ESTATUTO DA CIDADE E OUTROS MARCOS NORMATIVOS: LEI DE

    REGISTRO PBLICO E LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO ............................ 77

    3 UM ESTUDO DE CASO DA CIDADE DE SALVADOR ........................................ 85

    3.1 BREVES NOTAS SOBRE A FORMAO DO TECIDO FUNDIRIO ................... 85

    3.2 SURGIMENTO DAS PRIMEIRAS FAVELAS ........................................................... 89

    3.3 A REFORMA URBANA DE 1968 ............................................................................... 96

    3.4 AS POLITICAS DE REGULARIZAO FUNDIRIA: (IN) SEGURANA DA

    POSSE...................... .................................................................................................... 101

    3.4.1 PLANDURB E O RECONHECIMENTO DO UNIVERSO DA ILEGALIDADE . 101

    3.4.2 OS PROGRAMAS DE REGULARIZAO FUNDIRIA: DCADAS DE 1980

    E 1990 ................................ ..................................................................................... 103

    3.4.3 INSTRUMENTOS DE PARCERIA PBLICO E PRIVADA PARA

    INTERVENO NO UNIVERSO DA ILEGALIDADE ....................................... 110

    3.4.4 O PLANO DIRETOR URBANO (PDDU 2004): O LUGAR DA

    REGULARIZAO FUNDIRIA...................................... ................................... 112

    4. REGULARIZAO FUNDIRIA APS O ESTATUTO DA CIDADE ............. 117

    4.1 MODIFICAES NO MBITO LEGISLATIVO MUNICIPAL ............................. 117

    4.2 O PROGRAMA DE REGULARIZAO FUNDIRIA 2002-2004 ........................ 119

    4.2.1 A CONCEPO DA REGULARIZAO FUNDIRIA ..................................... 124

    4.2.2 A (IN) SEGURANA DA POSSE ....................................................................... 125

    4.2.2.1 (In) segurana da posse e falta de informao ....................................................... 126

    4.2.2.2 (In) segurana da posse e processo eleitoral .......................................................... 127

    4.2.2.3 (In) segurana da posse e integrao socioespacial ................................................ 129

    4.2.2.4 (In) segurana da posse e titulao ......................................................................... 130

    4.2.3 A AO DOS CARTRIOS DE REGISTRO DE IMVEIS ................................ 135

    4.3 A REGULARIZAO FUNDIRIA EM REAS DE DOMINIO PARTICULAR 140

  • 29

    4.3.1 O PROCESSO DE NEGOCIAO: CALABAR, ALTO DAS POMBAS E

    CENTENRIO ......................................................................................................... 141

    4.3.2 MATA ESCURA: A PRIMEIRA AO DE USUCAPIO URBANO

    COLETIVO .............................................................................................................. 149

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 153

    REFERNCIAS .................................................................................................... 159

  • 30

    INTRODUO

    Dados do IBGE de 2000 apontam que 81,3% da populao brasileira vive nas cidades. As

    pesquisas revelam que grande parte dessa populao mora em favelas: Salvador, 30%

    (GORDILHO SOUZA, 1990); Rio de Janeiro, 20% (LABHAB, 1999); Fortaleza 28%

    (SEMPLAN, 1994), Recife, 40% (IBGE, 1991); So Paulo, 19,4% (FIPE, 1993).1 Os dados

    fornecidos pelo IBGE mostram que, entre 1991 e 2000, o nmero de favelas aumentou 22% em

    todo o Brasil, atingindo um total de 3.905 ncleos (IBGE, 2001).2

    Dentre os variados fatores que contriburam para a construo do cenrio de segregao

    socioespacial das cidades brasileiras, a interveno dos poderes pblicos atravs da produo

    legislativa e das prticas de planejamento urbano revelou-se um elemento estruturante da

    dicotomia cidade legalcidade ilegal. que a norma jurdica, ao longo do processo de

    formao do tecido urbano brasileiro, apresentou-se como um instrumento fundamental de

    uma poltica de ocupao e controle do uso do espao urbano segregacionista e excludente.

    Com efeito, a legislao produzida a partir da virada do sculo XIX, longe de buscar promover

    uma cidade acessvel a todos, criou obstculo ao acesso terra urbanizada para a populao de

    baixa renda, excluindo-a, segregando-a, inserindo-a no universo da ilegalidade. Os habitantes

    da cidade que no se enquadram nessa moldura conceitual criada pela legislao desafiam as

    normas urbansticas e civilistas e passam a buscar alternativas de moradia fora das reas

    1 Dados apresentados pela professora Ermnia Maricato no Frum Amrica Latina Habitar 2000, promovido pela

    Faculdade de Arquitetura da UFBA e Conder/Seplantec, no perodo de 15 a 19 de maio de 2001. 2 Segundo Suzana Taschner (2003), ao computar como favela apenas os aglomerados urbanos formados por pelo

    menos 50 unidades, carentes de infra-estrutura e localizados em terrenos no pertencentes aos moradores, o IBGE

    subestima a populao das favelas.

  • 31

    centrais da cidade ou em reas fora do interesse do capital imobilirio, dando origem a uma

    outra cidade conceituada a partir de qualificativos dominantes como: cidade ilegal e cidade

    informal.

    nesse universo de ilegalidades que os moradores passam a construir, no local onde vivem,

    uma pluralidade de cdigos e regras de convivncia social margem do ordenamento jurdico

    oficial. Nesse contexto, o Estado, longe de reconhecer a legitimidade dessas prticas de

    convivncia, utiliza-se do argumento de ilegais para impor arbitrariedades de toda ordem. Desse

    modo, as intervenes pblicas so guiadas, na maioria das vezes, por prticas violentas e

    autoritrias, acarretando remoes e expulses dos locais de moradia, o que gera uma verdadeira

    insegurana quanto ao direito moradia.

    Aos poucos, o universo das ilegalidades, composto por favelas, cortios, loteamentos

    clandestinos etc., vai se consolidando e as polticas de desfavelamento, expulso e relocao

    vo sendo substitudas por processos de urbanizao e legalizao, em busca do

    reconhecimento, da integrao ou incorporao das reas ocupadas margem da legalidade.

    na dcada de 1980 que a interveno pblica no sentido de regularizar vai adquirindo

    importncia e ganhando contornos e significados que vo se definindo pela influncia de

    fatores econmicos, sociais, culturais e polticos, numa reunio de interesses diversos que vo

    desde as presses dos movimentos populares, passando pela exigncia das agncias de

    cooperao internacional, at os anseios dos mais variados segmentos de mercado.

    Ressalte-se que a regularizao fundiria se mostrou como uma das idias-fora do

    Movimento Nacional pela Reforma Urbana, o que contribuiu para a positivao de direitos

    urbanos inseridos nos artigos 182 e 183 da Constituio Federal de 1988, dispositivos

    regulamentados pelo Estatuto da Cidade, Lei Federal n 10.257 de 2001. Esse novo diploma

    legal representa um marco conceitual para produo de uma outra legalidade urbana, pois

    prev instrumentos teis que podem ajudar a enfrentar as tenses geradas pela convivncia

    entre cidade legal (bairro) e cidade ilegal (favela), estabelecendo diretrizes para reconstruo

    desses conceitos a partir do reconhecimento da diversidade de normas e formas existentes,

  • 32

    fundamentado que est em valores e princpios ticos de justia social e nos conceitos

    jurdico-polticos do Direito Cidade.

    Nessa vertente, a regularizao fundiria passa a ser concebida como o processo de interveno

    pblica que engloba os aspectos jurdicos, fsicos e sociais, objetivando assegurar a permanncia

    de populaes moradoras de reas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, implicando

    na melhoria do ambiente urbano e no resgate da cidadania (ALFONSIN, B., 1997). A questo

    urbanstica e fundiria deve ser tratada atravs de enfoque transdisciplinar, porque a ordem

    urbanstica e fundiria so faces da mesma moeda, se entrelaam, na medida em que o ttulo de

    propriedade ou posse (legalidade fundiria) busca materializar uma poro do espao urbano, e

    so as normas urbansticas que estabelecem o como esse espao deve ser dividido, ocupado,

    usado etc. (legalidade urbanstica).

    No enfrentamento desse desafio, a regularizao fundiria aparece como um componente da

    poltica urbana, assumindo um importante significado no cumprimento do direito segurana da

    posse, direito moradia e direito cidade. Para tanto, o Estatuto da Cidade prev instrumentos

    jurdicos urbansticos, tais como preempo, solo criado, transferncia do direito de construir,

    zonas especiais de interesse social e o plano diretor, esse ltimo responsvel por estabelecer

    critrios e diretrizes para a implementao dos demais instrumentos citados.

    No que tange aos instrumentos de titulao do solo, o Estatuto da Cidade prev um leque de

    possibilidades que poder ser utilizado junto com os demais instrumentos urbansticos para

    garantir a segurana da posse e o direito moradia. As formas de titulao previstas no

    passam necessariamente pela garantia ao direito individual de propriedade privada. H

    institutos como a concesso de uso para fins de moradia e concesso de direito real de uso, por

    meio dos quais a Unio, os Estados e Municpios podem assegurar o cumprimento da funo

    social da propriedade pblica e legalizar a posse dos moradores de forma individual e tambm

    coletiva, mantendo o domnio pblico da rea. Em relao s reas privadas, h a previso do

    usucapio urbano individual ou coletivo, que consiste na aquisio do imvel pela populao

    de baixa renda que ocupe reas urbanas por um perodo de mais de cinco anos, o que lhes

    assegura o direito moradia.

  • 33

    O estudo discute as aes de regularizao fundiria, a partir dos instrumentos

    disponibilizados pelo ordenamento jurdico brasileiro, na perspectiva de perceber a

    aplicabilidade da concepo trazida pelo Estatuto da Cidade e o quanto de fato elas podem

    contribuir para a garantia do direito segurana da posse, moradia e cidade. Partindo-se de

    um estudo dos instrumentos jurdicos e urbansticos trazidos pelo Estatuto da Cidade e

    compreendendo-se que a praxis pode fornecer elementos factveis para pr em dvida a

    eficcia dos marcos normativos, foi escolhida a Cidade de Salvador como estudo de caso, com

    o enfoque na anlise das polticas de regularizao fundiria em favelas e loteamentos

    pblicos nela existentes antes e depois de vigorar a nova lei.

    Apesar de j existirem vrios estudos sobre as favelas na Cidade do Salvador, a regularizao

    fundiria desses assentamentos representa uma seara ainda pouco explorada. A escolha do

    estudo de caso se deu por se tratar de uma cidade emblemtica no apenas pelo alto grau de

    ilegalidade produzida como tambm pelas peculiaridades na formao do tecido urbano, o que

    termina por refletir na prpria estrutura fundiria e conseqentemente nas aes de

    regularizao empreendidas.3 Trata-se da terceira cidade mais populosa do Brasil com

    aproximadamente 2,7 milhes de habitantes.

    O presente trabalho est dividido em quatro captulos. A primeira parte, captulos 1 e captulo 2,

    traz uma abordagem acerca do papel da lei na formao da ilegalidade urbana, desenvolve

    argumentos na busca da compreenso dos conceitos de regularizao fundiria, analisa e

    interpreta o novo marco normativo firmado pelo Estatuto da Cidade Lei Federal n

    10.257/2001. Nessa parte, a autora utiliza como marco terico as referncias desenvolvidas por

    Alfonsin (1997), Saule Junior (1997, 2001, 2003, 2004), Fernandes (1998, 1999, 2003) Rolnik

    (1997, 2003), Maricato (1996, 2000), entre outros.

    3 Pesquisa realizada por Angela Gordilho Souza (2000) estima que, em 1991, 1,1 milho de pessoas, ou seja, um

    percentual prximo a 60% de 1.852.150 habitantes do Municpio de Salvador moravam em reas de ocupao

    informal. Em termos de rea ocupada, ainda segundo a pesquisa, esse percentual eqivale a 32,40%. A autora

    utiliza-se da categoria informal para designar as ocupaes que se originaram espontaneamente margem das

    normas urbansticas e de edificaes.

  • 34

    Na segunda parte do trabalho, captulo 3 e 4 apresenta-se o estudo emprico da Cidade do

    Salvador. No primeiro momento faz-se um breve histrico sobre a formao do tecido fundirio

    e urbanstico da cidade, especificamente para subsidiar a compreenso das dinmicas ocorridas

    na Salvador contempornea, a partir de outros referenciais baseados principalmente nos estudos

    empricos conceituais elaborados por Brando (1978, 1981), Mattedi (1978); Teixeira (1978);

    Neves (1985); Arago (1992); Gordilho Souza (1990, 2000); Sampaio (1999) e Tavares (2001).

    No captulo 3 faz-se ainda um levantamento dos programas de regularizao fundiria proposto

    pela municipalidade no perodo compreendido entre 1983-2002, a fim de estabelecer um

    paralelo com as aes empreendidas aps a promulgao do Estatuto da Cidade. O incio dessa

    periodizao justifica-se, pois a partir da dcada de 1980 que os primeiros programas de

    regularizao fundiria comeam a ser implementados.

    No captulo 4 so abordadas as aes de regularizao fundiria propostas aps a promulgao

    do Estatuto da Cidade, o alcance e limites de sua eficcia normativa quanto capacidade de

    proporcionar a segurana da posse, as motivaes que orientaram as decises polticas nos

    programas e a concepo de regularizao fundiria empreendida. Registre-se aqui que no h

    pretenso de apresentar resultados definitivos, mas apenas levantar questes para reflexes que

    podero ser aprofundadas em novas pesquisas. No mbito dessa investigao, analisou-se o

    primeiro Programa Municipal de Regularizao Fundiria implementado no perodo de 2002-

    2004.

    Tentando responder s indagaes que orientaram o presente trabalho, foram pesquisados

    documentos e relatrios disponveis nos arquivos de diversos rgos da Prefeitura Municipal de

    Salvador. Nesses locais, poucas fontes foram encontradas. Do material consultado, constatou-se

    haver uma precariedade na sistematizao dos dados sobre os programas de regularizao

    fundiria. Em alguns rgos da Administrao Pblica municipal, ficou evidente tambm que a

    questo fundiria ainda um assunto obscuro que no pode ser tratado publicamente nem

    mesmo como objeto de uma pesquisa acadmica. Diante de tais dificuldades, foram utilizadas

    informaes obtidas no Dirio Oficial do Municpio, nas mensagens enviadas a Cmara de

    Vereadores pelo chefe do Poder Executivo bem como realizadas entrevistas com tcnicos da

    Prefeitura.

  • 35

    A pesquisa sobre o primeiro programa de regularizao fundiria proposto a partir da

    promulgao do Estatuto da Cidade tambm contou com entrevistas qualitativas realizadas com

    representantes de associaes de doze reas contempladas pelo programa, nos meses de

    novembro e dezembro de 2004. Desenvolveram-se a partir de um roteiro prvio que deixava

    margem formulao de novos questionamentos, sendo o material coletado gravado e transcrito

    para anlise.

    A escolha das localidades e associaes no se deu de forma aleatria. Levou-se em

    considerao espacialidade (centro e subrbio), tempo de ocupao (antigas e recentes), relao

    com o capital imobilirio (valorizada e no valorizada), e origem do processo de formao do

    ambiente construdo (ocupao espontnea, loteamento clandestino ou promovido pelo Poder

    Pblico). Quanto s associaes, a escolha no se restringiu apenas quelas que participaram

    diretamente do processo. Quanto s localidades foram escolhidas: Marechal Rondon, So

    Gonalo do Retiro, Bairro da Paz, Caixa Dagua, Nova Constituinte, Fazenda Coutos III, Nova

    Mata Escura, Engomadeira, Santa Cruz, Pituau, Saramandaia e Nova Braslia de Itapu.

    Como o Programa de Regularizao Fundiria da Prefeitura 2002-2004 restringia-se apenas s

    favelas, loteamentos pblicos e clandestinos localizados em terrenos municipais e poucas reas

    pertencentes ao Estado doadas para implementao do referido programa, excludas as ocupadas

    pertencentes Unio e particulares, buscou-se verificar junto s organizaes da sociedade civil,

    a existncia de outras aes no sentido de promoo da regularizao das reas privadas.

    Constatou-se ento um processo de negociao envolvendo os moradores do Calabar, Alto das

    Pombas e Centenrio, a Santa Casa da Misericrdia (proprietria do terreno), a Prefeitura de

    Salvador e o Ministrio das Cidades. Ainda no mbito das iniciativas de regularizao fundiria

    proposta em rea de domnio privado, foi feita uma pesquisa nos bancos de dados do Poder

    Judicirio do Estado da Bahia, a fim de levantar as aes de usucapio urbano coletivo ajuizadas

    entre o perodo compreendido entre julho de 2001 e maro de 2004. Nessa etapa da pesquisa,

    verificou-se a existncia da primeira ao de usucapio urbano coletivo proposta pela

    Associao Beneficente e Cultural da Comunidade de Mata Escura. Essas duas iniciativas de

  • 36

    regularizao fundiria em rea de domnio privado sero abordadas neste trabalho, sem se ter,

    contudo, a pretenso de aprofund-las, tendo em vista que ainda no foram concludas.

    Por fim, luz de tudo quanto foi tratado, na concluso, novos caminhos so abertos.

    Ponderaes, reflexes e questionamentos acerca dos limites e possibilidades fixados pelo

    Estatuto da Cidade no processo de regularizao fundiria e sua contribuio na busca de

    solues que subsidiem projetos de interveno para regularizao fundiria em Salvador so

    apresentados visando a contribuir para futuras pesquisas.

  • 37

    1 DA FORMAO DA ILEGALIDADE REGULARIZAO

    FUNDIRIA

    1.1 LEI, FORMA E SEGREGAO ESPACIAL

    A urbanizao brasileira, ocorrida de forma mais intensa nos ltimos 50 anos, produziu um

    padro de cidade calcado na excluso e segregao espacial, tendo a legislao brasileira

    contribudo de maneira decisiva para a produo desse modelo de cidade.

    A relao entre legislao, segregao e excluso esteve presente na formao das cidades

    brasileiras desde a elaborao dos cdigos municipais de posturas, no final do sculo XIX,

    poca em que foram estabelecidas as normas higinicas referenciadas no urbanismo

    sanitarista4. Com a intensificao da urbanizao, o contedo ideolgico da legislao e seu

    papel instrumental na imposio de uma ordem e controle do espao ficam mais

    evidenciados, na medida em que so criados novos padres que passam a ditar as referncias

    de como a cidade ideal moderna deveria ser construda. Esse arcabouo jurdico passa a ser

    minuciosamente detalhado atravs de um conjunto de normas rgidas e elitistas que iro ditar a

    formao do tecido urbano de modo a hierarquizar e homogeneizar os espaos.

    4 Ao exigir requisitos higinicos mnimos a uma populao de baixa renda, rf de uma interveno pblica capaz

    de propiciar as condies para cumprimento da norma, o Estado insere grande parte da populao na ilegalidade.

  • 38

    Essa idealizao da cidade, revelada nas matrizes que fundamentam o planejamento e a

    legislao urbana do Brasil, longe de ter um comprometimento com a realidade concreta, diz

    respeito apenas a uma parte da cidade, reafirmando, reproduzindo privilgios e contribuindo

    para a formao de uma modernizao incompleta e excludente (MARICATO, 2000). Sob o

    discurso de ordem e controle, a legislao vai sendo construda de modo a delimitar o lugar

    dos pobres na cidade. Ao impor uma srie de exigncias, a legislao veda o acesso ao solo

    urbanizado a uma grande parcela da populao, cuja renda no permite cumprir as exigncias

    das normas urbansticas, tais como, cdigos de obras e edificaes, lei de parcelamento urbano

    etc.

    Esse vis normativo passa a impor sucessivas excluses no modo de uso e ocupao do solo

    urbano, gerando uma estratificao do espao construdo e agravando o processo de excluso

    socioespacial, entendido esse como [...] privao do direito aos benefcios urbanos individuais

    e coletivos, conformando uma cidade segmentada em espaos para cidados e no-cidados,

    construdos de forma aleatria, deficiente e desassistida pelo Poder Pblico" (GORDILHO

    SOUZA, 2000, p. 15).

    Na esteira desse pensamento, Raquel Rolnik afirma que a legislao urbana, mais do que

    efetivamente regular o desenvolvimento da cidade, atua como linha demarcatria,

    estabelecendo fronteiras do poder, garantindo a proteo de determinados espaos contra a

    invaso de usos e habitantes indesejveis, ao tempo em que, atravs de um movimento

    centrfugo, delimita as bordas da zona urbana onde a pobreza deve se instalar (ROLNIK, 1997).

    nesse sentido que o zoneamento urbano vai operar.5 As rigorosas leis de zoneamento passam a

    dividir a cidade no apenas pelo critrio de uso e funes, mas, sobretudo, em razo da renda da

    populao. Ao estabelecer a tipologia e o tamanho do lote, regula-se a apropriao do prprio

    espao, na medida em que algumas dimenses, de pronto, inviabilizam o prprio acesso ao

    solo a alguns estratos de populao, cuja renda no permite adquirir o tamanho mnimo exigvel

    conforme a localidade (SAMPAIO, 1999, p. 349).

    5 O zoneamento um instrumento pelo qual o poder pblico divide o territrio do municpio em zonas, segundo o

    critrio de destinao do solo (zona urbana, zona rural, zona de expanso urbana), uso (permitido, tolerado e

    proibido) e ocupao do solo (tipologia, densidade, coeficiente e taxas de ocupao).

  • 39

    Se as normas urbansticas impunham a segregao dos espaos urbanos, o Cdigo Civil de

    1916, segundo Luiz Edson Fachin (2003), designado como Estatuto do Patrimnio Privado,

    estava na base dessa sustentao.6 As limitaes propriedade privada estavam

    consubstanciadas apenas nas normas destinadas s relaes de vizinhana, sendo aquela tratada

    como um direito absoluto, conferindo ao proprietrio os poderes de usar, gozar e dispor dos seus

    bens como bem lhe conviesse. O foco a supremacia do interesse privado e a autonomia da

    vontade. Assim, a terra urbana e a rural so tratadas como mercadoria, enquanto valor de troca,

    concepo j introduzida no direito brasileiro pela primeira Lei de Terras (601/1850), no

    importando a destinao ou qualquer limitao de contedo social e coletivo.

    Nessa matriz terica e ideolgica, h um processo de naturalizao da propriedade individual e

    sob essa gide que esse diploma legal vai definir tambm a concepo de posse. Na viso

    tradicional liberal do Cdigo Civil de 1916, a posse apenas uma manifestao aparente do

    domnio, o exerccio de alguns poderes que lhe so inerentes, sendo apenas excepcionalmente

    considerada e tutelada em si mesmo, desde que atendidas uma srie de condies de natureza

    axiolgica, como ser justa ou de boa-f7. J a propriedade imobiliria, ainda segundo essa viso,

    constituda e protegida, independentemente do seu exerccio, do seu valor de uso ou da funo,

    bastando apenas o ato formal de registro da escritura no cartrio de imveis.

    Os habitantes da cidade que no se enquadram nessa moldura conceitual criada pela legislao,

    desafiam as normas urbansticas e civilistas e passam a buscar alternativas de moradia fora das

    reas centrais da cidade ou em reas no interessadas pelo capital imobilirio, dando origem a

    uma outra cidade, conceituada a partir de qualificativos dominantes como: cidade ilegal e cidade

    informal. Reforam esse entendimento Letcia Osrio e Nelson Saule Junior (2003) ao

    afirmarem que os padres de legalidade restritivos e inflexveis somados ao no cumprimento

    6 Em 2002, o referido Cdigo foi substitudo por um novo Cdigo Civil, em que foram introduzidos conceitos como

    funo social da propriedade. importante ressaltar que a relativizao do conceito de propriedade absoluta ainda

    no foi compreendida por grande parte dos juristas brasileiros, prevalecendo o marco conceitual do Cdigo Civil de

    1916. 7 O Cdigo Civil de 1916 considera justa a posse que no for violenta, clandestina ou precria e de boa-f a posse

    se o possuidor ignora o vicio ou o obstculo que lhe impede a aquisio da coisa ou do direito possudo. Essa

    conceituao foi mantida no Cdigo Civil de 2002.

  • 40

    da funo social da propriedade passam a produzir uma cidade com paisagem dividida. A

    relao entre norma e forma representa faces da mesma moeda. Ambas fazem parte de uma

    imposio hegemnica e se entrelaam.

    Assim, a conceituao cidade ilegal d-se a partir do que os assentamentos representam ante o

    direito hegemnico produzido pelo Estado e materializado na legislao. Quanto ao qualitativo

    informal, do mesmo modo, a qualificao parte de uma viso hegemnica de arquitetura

    consubstanciada na imagem da ordem conhecida e consagrada da cidade formal, onde a

    codificao pr-estabelecida atravs de formatos jurdicos que definem as condies de

    acesso, de uso e de ocupao do solo(BOTLER, 1994, p. 09).

    Nessa perspectiva, so criados dois padres de cidade: a cidade legal e a cidade ilegal, ambas

    frutos de um mesmo processo de urbanizao excludente.

    A ao social homogeneizadora visava acabar com as diferenas, hierarquizando-as no espao, sob as imagens da cidade legal, autorizada (com direitos urbanos e, portanto, sob o amparo da legislao urbanstica) versus a cidade clandestina, paralela, ilegal (sem acesso aos direitos urbanos e fora dos padres de legitimidade da legislao urbanstica). (SILVA, 1990, p. 30)

    O termo cidade ilegal, entretanto, ser aqui utilizado para designar tanto os assentamentos

    construdos margem da legalidade quanto aqueles construdos margem da formalidade

    dominante, visto que a norma se apresenta como veiculo de imposio da forma. Ademais,

    preciso evidenciar a ilegalidade desses assentamentos no para legitimar os discursos de

    desqualificao do espao construdo, mas, sobretudo, para marcar o papel da legislao na

    construo da segregao desses espaos e pr em evidncia a necessidade de trabalhar com

    novos marcos normativos.

  • 41

    1.2 O UNIVERSO DAS ILEGALIDADES NO DOMINADAS

    O universo dessas ilegalidades no uniforme. possvel encontrar desde os cortios, herdados

    do sculo passado, at os loteamentos empreendidos pelo Poder Pblico e conjuntos

    habitacionais propostos pelo Estado para resolver o problema da habitao, os lotes comprados

    sem registro ou parcelados sem licena. A no-uniformidade no se caracteriza apenas pelo

    aspecto das tipologias, das estruturas reveladas, no dizer de Milton Santos, mas tambm no

    modo de ocupao e uso do solo, no modo de criar, fazer e viver.

    Identificar e definir essas tipologias no tarefa fcil. A complexidade que envolve os processos

    de construo desse universo impossibilita muitas vezes que essas construes sejam

    rigorosamente enquadradas nas tipologias criadas: favela, loteamentos clandestinos, loteamentos

    irregulares, cortios.

    Entretanto, a tipologia que mais corporifica a densidade desse universo, a favela, no apenas

    porque desafia as normas urbansticas, como tambm porque afronta o ordenamento jurdico em

    um de seus pontos mais sensveis - a propriedade privada. Essa alternativa de acesso ao solo

    ultrapassa os espaos privados da moradia e se enraza nos espaos pblicos com a construo

    de ruas, escolas, centros culturais e outros equipamentos coletivos autogeridos, construindo-se

    assim uma diversidade de formas arquitetnicas que fogem razo geomtrica planejada e

    materializada da legalidade urbanstica. Nessas prticas sociais de acesso terra e habitao,

    verifica-se a emergncia de microterritrios urbanos com parmetros sociais especficos,

    desconhecidos pelo planejamento urbano e por ele no previstos (PANIZZI, 1989).

    Em um contexto de invisibilidade e ausncia do Estado como promotor de polticas de

    interveno no ambiente construdo e regulador dos conflitos, emerge nos microterritrios,

  • 42

    como estratgia de sobrevivncia, uma pluralidade de cdigos e regras de convivncia social

    margem do ordenamento jurdico oficial8

    Vo se formando atravs de um processo arquitetnico e urbanstico vernculo singular, que no somente difere do dispositivo projectual tradicional da arquitetura e urbanismo eruditos seria mesmo seu oposto -, mas tambm se investe de uma esttica prpria da favela, com caractersticas peculiares, completamente diferente da esttica da cidade dita formal (JACQUES, 2001, p.13)

    Esses cdigos no se restringem apenas ao modo como o espao ser utilizado. O morador da

    cidade ilegal, buscando legitimar o exerccio do direito moradia, constri um conceito

    extralegal de segurana da posse, calcado em outras matrizes que no as que fundamentam o

    direito oficial. As estratgias de legitimao utilizadas passam por investimento nas casas,

    fortalecimento dos laos de vizinhana, utilizao de recibos de compras e vendas, declarao

    de posse emitidas pela associao e at mesmo recolhimento de impostos prediais.

    Essa cidade ilegal objeto da interveno pblica sob vrias formas. Se, por um lado, o

    Estado, atravs do seu arsenal legislativo, estabelece a dicotomia legal-ilegal, por outro, esse

    mesmo Estado muitas vezes tolerante com a ilegalidade. Esse comportamento vai variar no

    espao e no tempo em funo das relaes sociais travadas no tecido urbano. Nas zonas mais

    valorizadas da cidade, o papel do Estado tende a ser mais repressivo, enquanto nos espaos

    menos cobiados pelo capital h uma espcie de cumplicidade, operando-se a poltica da

    invisibilidade do problema.

    De acordo com Boaventura de Souza Santos (1984), o Estado utiliza-se de um conjunto de

    mecanismos de disperso cujo critrio de seleo desenha o perfil da dominao poltica, que

    vai desde os mecanismos de represso-excluso (por exemplo, a remoo violenta das

    favelas), passando pelo processo de trivializao/neutralizao (por exemplo, tolerncia para

    8 Ver pesquisa realizada por Boaventura de Souza Santos na dcada de 1970 em uma favela do Rio de Janeiro, a

    qual o autor atribui o nome fictcio de Passrgada. Nessa investigao, o autor observa o fenmeno do pluralismo

    jurdico, conceituado como a coexistncia no mesmo tempo e espao geopo ltico de mais de uma ordem jurdica

    (oficialmente ou no) (SOUSA SANTOS, 1998). Ainda nesse sentido, ver estudo de caso realizado por Francisco

    Antonio Zorzo sobre as prticas de controle do espao desenvolvidas pelos prprios moradores no assentamento

    popular Alto da Sereia, localizado na Cidade de Salvador. (ZORZO, 1994).

  • 43

    com as favelas) e a manuteno do status jurdico e social ou a socializao/integrao (por

    exemplo, legalizao da posse ou propriedade seguida de urbanizao). O certo que,

    independentemente do mecanismo que o Estado brasileiro tenha adotado, no sculo XX,

    condio de ilegalidade foi, ao longo dos processos de urbanizao, utilizada para impor

    arbitrariedades de todas as ordens. criada uma teia de no-direitos, na qual a condio de

    ilegalidade em relao posse da terra determina uma srie de outras excluses, visto que,

    durante muito tempo, a propriedade apresentou-se como condio de acesso a infra-estrutura

    urbana, a servios pblicos e a crditos de financiamento habitacional. Nesse sentido, Ermnia

    Maricato, tecendo consideraes a respeito de uma pesquisa jurdico-social realizada por

    Boaventura de Souza Santos numa favela brasileira, afirma que

    A expresso 'ns ramos e somos ilegais' (de um antigo morador da favela), que, no seu contexto semntico, liga o status de ilegalidade com a prpria condio humana dos habitantes de Passrgada, pode ser interpretada como indicao de que nas atitudes destes para com o sistema jurdico nacional, tudo se passa como se a legalidade da posse da terra repercutisse sobre todas as outras relaes sociais, mesmo sobre aquelas que nada tm com a terra ou com a habitao. (MARICATO, 1996, p. 60)

    A interveno oficial baseada no mecanismo de represso-excluso ser a tnica dos

    acontecimentos que viriam a seguir. No meado da dcada de 1960, o interesse do capital

    imobilirio vai sendo melhor delineado e o Estado, j imerso em uma ditadura militar, vai

    intensificar o controle do uso do solo. Do ponto de vista da poltica nacional declarada uma

    verdadeira guerra s favelas e deflagrado o processo de criao do Banco Nacional de

    Habitao como alternativa ao universo da ilegalidade. importante frisar que a prioridade do

    referido Banco est clara no texto da lei que o criou9. A poltica pensada buscava priorizar a

    aplicao de recursos na construo de conjuntos habitacionais destinados eliminao de

    favelas, mocambos e outras aglomeraes sub-humanas de habitao.

    Os conjuntos habitacionais apresentaram-se como mais uma idia fora do lugar.10 A

    pretenso de substituio da favela por uma tipologia uniforme e padronizada no se deu da

    9 O Banco Nacional de Habitao (BNH) foi institudo atravs da Lei Federal n 4.380, de 21 de agosto de 1964.

    (BRASIL, 1964). 10

    Expresso utilizada por Roberto Schwarz para tratar as importaes de idias pelos tericos brasileiros.

  • 44

    forma pretendida no Brasil e nos demais pases latino-americanos. No entender de Jonh Turner

    (1977), esse fato se deu em razo da incapacidade de endividamento por parte dos moradores e

    a total incapacidade dos Estados em financiar o alto custo da terra e da construo baseada nos

    "padres mnimos modernos". Ainda nesse sentido, Carlos Nelson Ferreira Santos (1981), ao

    tecer consideraes sobre a utilizao dos recursos tcnicos e financeiros do Banco Nacional

    de Habitao para erradicao de favelas, conclui sobre o evidente impasse que o BNH

    enfrentou ao realizar uma unio impossvel: agilizar dinheiro caro, atravs da venda de uma

    mercadoria de alto valor (terreno + construo moderna), para uma clientela de pessoas sem

    capacidade de endividamento. Essa equao terminou gerando uma quantidade enorme de

    unidades residenciais ocupadas irregularmente (pois os moradores no pagavam as

    prestaes) (SANTOS, 1981)

    Sob o ponto de vista do ambiente construdo, essa poltica habitacional segregacionista de

    proviso de moradia, alm de ampliar a oferta de solo especulao, vai ser responsvel pela

    padronizao e monotonia gerada na produo em larga escala, sem qualidade, numa poltica

    repetitiva em termos de tipologia massificada, sem identidade prpria (SAMPAIO, 1999, p.

    114).

    Assim, pode-se afirmar que a proposta do Sistema Brasileiro de Habitao fracassou tanto no

    propsito de eliminar as favelas do tecido urbano como no sentido de promover moradia aos

    favelados atravs dos conjuntos habitacionais. Como resultado da poltica de habitao que

    combina represso, invisibilidade, assistencialismo e incorporao dos assentamentos ilegais,

    tem-se um adensamento das favelas causado pela migrao dos favelados expulsos das favelas

    erradicadas, o surgimento de favelas em reas mais distantes e perifricas e uma verdadeira

    insegurana em relao ao direito moradia.

    1.3 REGULARIZAO FUNDIRIA E (IN) SEGURANA DA POSSE

    A partir do final da dcada de 1970, a ditadura militar comea a dar sinais de exausto, e a

    conquista da redemocratizao do Estado brasileiro cria um ambiente mais propicio para que

    os movimentos sociais urbanos possam expor de forma mais contundente as suas

  • 45

    reivindicaes direcionadas implementao de polticas pblicas que busquem o

    reconhecimento da cidade ilegal e a segurana da posse como componente do direito social

    moradia.11

    Reivindica-se ento que seja, implementada a regularizao fundiria visando a promover a

    segurana jurdica da posse que representa um componente do Direito moradia, aqui

    entendido como o direito de todo ser humano a um espao na cidade onde possa viver

    dignamente, em um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado que lhe permita ter acesso

    aos equipamentos e servios urbanos, transporte pblico, saneamento bsico, sade, educao,

    cultura, esporte e lazer, enfim, um direito que deve ser reconhecido como uma dimenso dos

    direitos humanos e, sendo assim, trazendo consigo as prerrogativas fundamentais de um

    direito universal, inalienvel e indivisvel (SAULE JUNIOR, 2004). Nessa vertente, a

    regularizao fundiria passa a ser concebida como o processo de interveno pblica que

    engloba os aspectos jurdicos, fsicos e sociais, objetivando assegurar a permanncia de

    populaes moradoras de reas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, implicando

    na melhoria do ambiente urbano e no resgate da cidadania (ALFONSIN, 1997). Em outras

    palavras, esse conceito de regularizao fundiria envolve trs dimenses: a dimenso

    jurdica, que consiste na obteno e registro do ttulo de posse ou propriedade; a dimenso

    urbanstica, que consiste na regularizao do parcelamento, uso e ocupao do solo dotando-o

    de infra-estrutura bsica; a dimenso social.

    Essas reivindicaes dos movimentos sociais urbanos passam a pressionar as municipalidades.

    As polticas de interveno pblica nas favelas buscando promover a remoo e expulso dos

    moradores vo dar lugar aos programas de urbanizao e regularizao, desenvolvidos a partir

    de uma reinterpretao e remodelagem de instrumentos jurdicos existentes e no processo de

    reforma do ordenamento jurdico vigente, visando adequ-lo ao propsito de promover a

    regularizao fundiria, urbanizao e prestao de servios pblicos. Vrias razes podem dar

    respaldo aos anseios dos moradores, incluindo algumas de natureza simblica e ideolgica, as

    11

    Segundo a Campanha das Naes Unidas pela Segurana da Posse uma pessoa ou famlia ter a segurana da posse quando eles estiverem protegidos contra a remoo involuntria de suas terras ou residncia s, exceto em

    circunstncias excepcionais, e somente pelos meios de um conhecido e acordado procedimento legal, o qual deve

    ser objetivo, eqitativamente aplicvel, contestvel e independente(UNCHS apud OSORIO, 2004, p. 35).

  • 46

    quais, entretanto, tm uma dimenso muito concreta tais como a aspirao dos favelados

    segurana social e pessoal, bem como a escapar da poderosa situao de chantagem poltica que

    se faz possvel devido a sua situao vulnervel(FERNANDES, E., 1998, p. 161).

    Se, por um lado, a idia de promover a regularizao fundiria apresenta-se como

    reivindicao do movimento social com o objetivo de sair da condio de ilegalidade, o que

    em tese significaria uma maior segurana no exerccio do direito moradia, foroso

    reconhecer que ela aparece tambm como uma orientao do mercado nas suas diversas

    facetas, gerando uma tenso entre o ideal do mercado e o ideal do movimento social. A

    diferena de objetivos relativos regularizao fundiria vai refletir na formao do seu

    prprio conceito e no modus operandi da sua implementao.

    Em face das diferentes formas pelas quais que os programas foram sendo implementados, o

    conceito de regularizao fundiria o utilizado para designar intervenes que vo desde a

    mera distribuio de ttulos at processos de intervenes pblicas mais amplos. Assim sendo,

    Betnia Alfonsin (2001) sistematiza algumas acepes do termo: a) regularizao fundiria

    como regularizao jurdica dos lotes; b) regularizao fundiria como regularizao

    urbanstica, na qual o ponto central fazer com que uma rea ocupada em desconformidade

    com a legislao urbanstica seja novamente recepcionada pela legislao; c) regularizao

    fundiria como urbanizao do assentamento.

    possvel demarcar uma linha divisria entre duas concepes tericas sobre as polticas de

    regularizao fundiria que vm sendo implementadas nos pases em via de desenvolvimento.

    Uma guiada pelo objetivo de promover prioritariamente a segurana da posse e a integrao

    com a cidade legal, e outra que compreende a regularizao fundiria como mecanismo hbil

    para o aquecimento da economia urbana. Essa ultima baseia-se nas idias do economista

    peruano Hernando de Soto (2001), que acredita que a regularizao fundiria permite a

    insero do capital dos pobres da cidade no circuito econmico, implicando em acesso a

    crdito e incorporao cidade formal. Essas concepes tericas ultrapassam o mbito

    acadmico e passam a influenciar as polticas propostas pelo Banco Mundial e demais

    entidades internacionais nos anos 1990.

  • 47

    Enquanto a ONU/Habitat propugna pelo reconhecimento do direito social de moradia, o Banco Mundial defende explicitamente o direito individual de propriedade e a homogenizao dos sistemas jurdicos nacionais, entre outras razes para remover os obstculos circulao global do capital imobilirio internacional. (FERNANDES, E., 2003a, p. 152)

    No que concerne ao modus operandi da regularizao fundiria, as polticas implementadas

    com base na vertente propalada por Hernando de Soto restringem-se distribuio, pelo Poder

    Pblico, de ttulos de propriedade plena dissociados de outros programas sociais ou

    urbanizao da rea beneficiada, concepo liberal que vem sendo bastante criticada por

    inmeros tericos. Pesquisas desenvolvidas em paises que tiveram programas de regularizao

    fundiria baseados nessa poltica demonstram que os programas no alcanaram os objetivos

    propostos, tais como acesso ao crdito formal e integrao socioespacial. Nesse sentido,

    importante relatar a relevante pesquisa realizada por Julio Cockburn, que vem demonstrar que

    a distribuio de um milho de ttulos concedidos pela Comission de Formalizacin de la

    Propriedad Informal (CONFORI) no Peru, durante cinco anos (1996-2000) no desencadeou

    o acesso esperado ao sistema de crdito formal (CALDERN-COCKBURN, 2003).

    Os efeitos indesejveis desses programas foram evidenciados. A homogeneizao do sistema

    de seguridade da posse teve como conseqncia a destruio das diferenas existentes, o que

    terminou por aumentar a presso do mercado formal sobre esses assentamentos, operando-se

    os processos de gentrificao, que consiste na substituio de um tecido social por outro de

    renda mais elevada. Nesse sentido, Geoffrey Payne (2002), afirma que muitas famlias

    beneficiadas por programas de distribuio de ttulos de propriedade plena, terminaram por

    comercializar suas casas em funo dos altos custos de servios que foram adicionados.

    Apesar da evidncia dos limites e efeitos indesejveis desses programas, a demanda por ttulos

    de propriedade plena continua sendo predominante por razes histricas, sem que haja por

    parte da administrao pblica o interesse em adotar prticas alternativas (DURAND e

    RAYSTON, 2002). A falta de interesse do Poder Pblico em propor uma outra concepo de

    regularizao fundiria pode estar fundamentada em diversas razes. H alguns elementos

  • 48

    que valem a pena serem registrados para reflexo. A regularizao fundiria restrita

    distribuio de ttulos, alm de pretender alimentar o circuito do capital, busca em ltima

    instncia, desobrigar o Poder Pblico da sua responsabilidade em tratar a questo da moradia

    enquanto poltica pblica, visto que se pretende com a distribuio de ttulo que o beneficiado

    do programa busque em instituies financeiras privadas crditos para melhoria da sua

    habitao.

    Outro componente que permeia muitas vezes os processos de regularizao fundiria diz

    respeito s prticas clientelistas. A entrega dos ttulos aparece como um ato de vontade do

    administrador pblico e faz parte da cultura de favorecimento e barganhas eleitoreiras,

    distanciando-se dos princpios da ordem constitucional brasileira, que impe ao administrador

    a prtica de atos impessoais, transparentes e probos.

    importante registrar que existem outras perspectivas e compreenses pelas quais a

    regularizao fundiria no passa obrigatoriamente pelo direito individual ao ttulo de

    propriedade privada; busca evitar os despejos forados atravs do reconhecimento de outras

    formas de legitimao, de modo a assegurar o direito social moradia. Nessa concepo, o

    sistema legal vigente no pas deve prever instrumentos jurdicos e urbansticos que

    reconheam a diversidade das formas de uso e ocupao do solo (OSORIO, 2004). Ainda

    nesse sentido, Flavio de Souza (2004) rechaa o significado de segurana da posse calcado

    apenas no direito de propriedade e prope uma outra abordagem para a questo.

    O significado de seguridade da posse parece ter sido importado de uma prtica mais ortodoxa de planejamento urbano e direito urbanstico, na qual o conceito de propriedade privada individual tem sido amplamente aceito. As percepes de seguridade, por outro lado, no incorporam necessariamente os mesmos valores e princpios de tais conhecimentos ortodoxos. De fato, as percepes sobre seguridade da posse envolvem entidades menos tangveis (direito de uso, em vez de direito de propriedade, por exemplo) (SOUZA, 2004, 143).

    Assim, o sistema de seguridade da posse no pode ser definido apenas em termos de

    legalidade ou ilegalidade, formalidade ou informalidade; preciso perceber os fatores

    histricos e culturais que refletem na relao entre as pessoas e a sociedade e entre as pessoas

  • 49

    e a terra em que habitam (PAYNE, 2002). Os programas de regularizao devem levar em

    considerao toda a teia existente que permite o florescimento da (in) segurana. Os

    assentamentos mais antigos gozam de mais legitimidade dos que os mais recentes; os

    assentamentos menores so mais vulnerveis do que os mais populosos; o nvel de coeso

    social e presena de ONGs tambm so elementos que precisam ser apreciados (DURAND e

    RAYSTON, 2002).

    De acordo com esse pensamento, Joana Lima (2002), atravs de pesquisa emprica

    desenvolvida em duas favelas na Cidade de Porto Alegre, refora o argumento de que a

    seguridade da posse no passa exclusivamente pela distribuio de ttulos de propriedade

    plena; pode ser assegurada por diversas formas. No caso em estudo, a autora chama ateno

    para a forma participativa com que a municipalidade vem implementando os programas e a

    gesto democrtica da cidade.

    H uma relao imbricada entre seguridade e acesso ao trabalho, educao, crdito, sade,

    abastecimento de gua, esgotamento sanitrio, relaes familiares e rede social

    (KRUECKEBERG, 2002), o que faz com que as polticas para segurana da posse no possam

    estar restritas a polticas de terra. Devem enfrentar outras dimenses dos problemas, incluindo

    o desenvolvimento da comunidade, acesso ao crdito, capacitao, desenvolvimento de

    economia e a integrao das polticas de regularizao no planejamento da cidade.

    (DURAND-LASSERVE e ROYSTON, 2001).

    Alerta Edsio Fernandes (2003a) que o desenvolvimento das polticas de regularizao

    fundiria fora do escopo de polticas socioeconmicas abrangentes pode reforar o conjunto de

    foras polticas e econmicas causadoras da segregao espacial. Da mesma maneira, o

    desafio de implementar os mecanismos de legalizao sem que operem em descaracterizao e

    aumento da segregao espacial est posto como tarefa difcil de ser materializada porque,

    como adverte Cuellar (2002), a simples expectativa de que a rea ter acesso ao servio

    pblico aumenta seu preo e, por conseguinte, torna muito mais dispendioso para o governo

    promover acesso ao solo para os pobres e quase impossvel para eles conseguir o acesso por si

    mesmo.

  • 50

    Nesse vis, a regularizao implementada em uma poltica de planejamento urbano que

    respeite as diferenas e as formas de uso e ocupao o desafio do sculo XXI. No Brasil, o

    Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001) parece apresentar instrumentos hbeis para

    enfrentar a questo e dialogar com a cidade ilegal.

  • 51

    2 O ESTATUTO DA CIDADE: UM NOVO MARCO LEGAL

    2.1 A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO CIDADE

    As prticas sociais de acesso e uso do solo urbano nas cidades brasileiras, construdas a partir

    de um dilogo contraditrio e conflituoso com os valores legais e dominantes e com a

    legislao oficial (FERNANDES, E., 1998), vo pressionar o Poder Pblico a promover o

    reconhecimento da cidade ilegal. No plano jurdico-institucional, essa presso dos movimentos

    populares vai encontrar terreno frtil durante a elaborao da atual Constituio Federal

    Brasileira, em que h captulo especfico tratando da questo urbana, posteriormente

    regulamentado pela Lei Federal n 10.257/2001 denominada Estatuto da Cidade.

    No presente captulo, objetiva-se fazer uma anlise do novo marco normativo firmado pelo

    Estatuto da Cidade - Lei Federal n 10.257/2001 que, alm de regulamentar os artigos 182 e

    183 da Constituio Federal de 1988, estabelece diretrizes da poltica urbana. Para tanto, busca-

    se resgatar, os processos que antecederam a sua aprovao, trata-se das diretrizes e estudam-se

    instrumentos trazidos por esse diploma legal, teis para promover a regularizao fundiria.

    O Estatuto da Cidade no fruto de um momento, mas de uma longa trajetria de conquista de

    direitos em relao cidade. A partir da dcada de 1960, a sociedade civil passou a reivindicar

    novos marcos jurdicos que pudessem contribuir para reverso do processo de segregao e

    excluso das cidades brasileiras. Com o golpe militar de 1964, os movimentos sociais foram

    fortemente reprimidos e, com eles, os ideais da reforma urbana, o que restringiu as modificaes

  • 52

    no mbito legislativo edio de uma lei federal criando o Banco Nacional de Habitao

    (BNH).

    No final da dcada de 1970 e incio da dcada de 1980, porm, como j dito, a ditadura militar

    comea a dar sinais de enfraquecimento e o movimento social passa a buscar a transformao da

    institucionalidade vigente atravs da redemocratizao do Estado brasileiro. No campo das lutas

    urbanas colocado em pauta a reivindicao do Direito Cidade, que compreende o direito

    vida urbana, transformada, renovada (LEFEBVRE, 1991, p. 116). Na busca desse ideal, as

    reivindicaes direcionam-se para o direito terra, aos meios de subsistncia, ao trabalho,

    sade, educao, cultura, moradia, proteo social, segurana, ao meio ambiente sadio,

    ao saneamento, ao transporte pblico, ao lazer e a informao, de acordo com a idia de

    universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos.

    Essas reivindicaes pelo Direito Cidade constituram o fio condutor na busca de um efetivo

    exerccio da cidadania e afirmao de direitos. Esses novos sujeitos coletivos passaram a intervir

    no processo de construo de uma Nova Ordem Constitucional, visando assegurar a inscrio de

    direitos econmicos, polticos, sociais e culturais. Nesse sentido, Ana Amlia da Silva (1990),

    ao analisar o papel dos movimentos sociais na construo desse projeto democrtico, destaca a

    sua importncia para a elaborao de emendas populares resultantes de mais de 12 milhes de

    assinaturas encaminhadas ao Poder Constituinte. As foras populares envolvidas nesse processo

    buscavam estabelecer um novo padro de poltica pblica que fosse capaz de assegurar o

    reconhecimento dos direitos emergentes.

    Nesse contexto mais amplo de participao para a elaborao da Constituio Federal de 1988,

    foi apresentada a emenda popular da Reforma Urbana subscrita por 131.000 eleitores

    brasileiros, reafirmando o direito humano universal cidade. No texto apresentado, contavam

    23 artigos que versavam sobre moradia, propriedade imobiliria, poltica habitacional,

    transportes, servios pblicos e gesto democrtica da cidade. Nessa proposta, os institutos

    jurdicos e urbansticos eram auto-aplicveis, ou seja, no precisavam de lei federal que os

    regulamentassem. No decorrer das negociaes na Assemblia Constituinte, porm, a proposta

    original foi tomando novos contornos e esvaziando algumas pretenses dos movimentos

  • 53

    populares que lhe deram origem. Durante a sua tramitao, houve um acirrado processo de

    disputa poltica em torno das idias apresentadas. As foras polticas conservadoras

    representadas pelo bloco parlamentar denominado Centro buscavam evitar a instituio de

    normas constitucionais auto-aplicveis a fim de no afetar os interesses dos detentores do capital

    imobilirio (SAULE JUNIOR, 1997).

    Essas disputas fizeram com que a Emenda Popular no fosse aprovada na ntegra. Apesar disso,

    o texto final consagrado no captulo da Poltica Urbana artigos 182 e 183, da Constituio

    Federal de 1988 trouxe inovaes importantes para implementao de um novo modo de

    conceber a cidade e, pela primeira vez na histria do pas, no texto constitucional dedicado um

    captulo especificamente poltica urbana.

    A despeito de um ambiente parlamentar majoritariamente refratrio s proposies do MNRU especialmente em relao s que buscavam conferir efetividade funo social da propriedade , a Constituio de 1988, pela primeira vez na histria do Brasil, incorporou dispositivos que fizeram migrar, do territrio patrimonialista do direito privado para o mbito coletivo do direito pblico, as relaes jurdicas pertinentes propriedade urbana. (BASSUL, 2004, p. 10)

    Portanto, a opo jurdico-poltica do ordenamento constitucional brasileiro se fez no sentido de

    relativizar o direito de propriedade, condicionando o seu exerccio ao atendimento da sua funo

    social, aos fundamentos da ordem econmica e financeira e ao respeito aos direitos humanos

    fundamentais da pessoa. No mais se mantm a viso privatista e individualista, que tem sua

    matriz no liberalismo clssico, de que cabe ao proprietrio usar, gozar e dispor da propriedade

    privada de forma exclusiva e perptua. H, na Constituio Federal de 1988, uma evidente

    mudana de foco. O seu texto reafirma o carter privado da propriedade, mas a proteo e a

    existncia dela passa a ser condicionada aos atendimentos da funo social, ao exerccio desse

    direito em prol do bem estar dos habitantes da cidade. Nesse sentido,

  • 54

    antes de o direito de propriedade constituir poder de troca do proprietrio, poder de uso repete-se e poder de uso que, a par de no interessar somente a ele, mas a todos quantos possam ser afetados pelo exerccio do referido direito, est pressionado por urgncias inadiveis.(ALFONSIN, J., 2003, p. 176).

    Desse modo, a funo social da propriedade o princpio estruturador sobre o qual a poltica

    urbana deve ser assentada e, por se tratar de um conceito aberto e indeterminado, cabe aos

    municpios, atravs do Plano Diretor, o poder-dever de estabelecer as exigncias fundamentais

    de ordenao da cidade que devem ser atendidas para o cumprimento da funo social (art.

    182, 2 da CF/1988).12 Portanto, a Constituio Federal de 1988 remete a definio para a

    esfera local, que levar em conta as necessidades de cada municpio. Para ento o municpio

    executar a poltica de desenvolvimento urbano de modo a garantir as funes sociais da cidade

    e o bem-estar de seus habitantes (art. 182 da CF/1988). Para materializar esse propsito, a

    Constituio Federal de 1988 estabelece ainda, no artigo 182, instrumentos urbansticos

    sancionatrios buscando coibir o uso da terra como reserva de valor, cabendo ao Poder Pblico

    municipal exigir a utilizao do imvel atravs da aplicao do parcelamento, edificao ou

    utilizao compulsrios, imposto progressivo sobre a propriedade territorial urbana e

    desapropriao mediante ttulos da dvida pblica, sucessivamente.

    Por fim, visando a reconhecer e garantir a segurana jurdica dos cidados de baixa renda que

    vivem nos assentamentos criados margem da legalidade urbana, assim como cumprir a

    funo social da propriedade pblica e privada, estabeleceu no art. 183 os institutos do

    usucapio urbano e da concesso de uso13.

    Houve, entretanto, o entendimento de juristas e administradores pblicos de que a aplicao

    desses institutos deveria ser submetida regulamentao por norma infraconstitucional, o que

    12

    A proposta de emenda popular no previa o Plano Diretor como instrumento bsico da poltica de

    desenvolvimento urbano. 13

    A proposta popular de emenda ao projeto de Constituio previa a possibilidade de usucapio de terras pblicas e

    privadas de posse no contestada, por trs anos, cuja metragem no ultrapassasse o limite de 300m2 e fosse

    utilizada para moradia, sendo adquirido o domnio independentemente de justo ttulo e boa f (art. 11). Esse artigo

    no foi inserido no texto constitucional sob o argumento de proteo ao patrimnio pblico, sendo o instituto do

    usucapio urbano em terras pblicas substitudo pela concesso de uso (BRASIL, 1988).

  • 55

    representou um obstculo para implementao dos institutos trazidos pela Constituio

    Federal de 1988.

    Contudo, apesar desse entendimento ter prevalecido, algumas administraes buscaram as suas

    aplicaes imediatas, apoiadas em interpretaes de juristas que concebem o direito para alm

    de uma abordagem meramente formal e dogmtica, e compreenderam ser possvel avanar na

    implementao da funo social da propriedade e da cidade atravs da incluso de diretrizes nas

    leis orgnicas municipais, implementao de poltica participativa na elaborao dos planos

    diretores (Porto Alegre e Santo Andr), criao de zonas especiais (Recife, Belo Horizonte),

    aplicao do IPTU progressivo (So Paulo), e outros.

    Paralelamente a esse esforo por parte das administraes municipais, houve na esfera

    institucional uma grande presso de diversos setores da sociedade para que o Congresso

    Nacional aprovasse a Lei Federal, que viria a ser o Estatuto da Cidade a fim de regulamentar

    os referidos artigos e estabelecer as diretrizes gerais para a execuo da poltica urbana.

    2.2 O PROCESSO DE ELABORAO DO ESTATUTO DA CIDADE

    O projeto de lei federal de desenvolvimento urbano foi iniciado e discutido desde 1989 com a

    apresentao, no Senado Federal, do PL n 181/1989, denominado Estatuto da Cidade, que

    dispunha sobre as diretrizes gerais da poltica urbana e buscava regulamentar os artigos 182 e

    183 da Constituio Federal de 198814.

    A tramitao desse projeto no Congresso Nacional no se deu de forma pacfica. Foram 11

    anos de embates polticos e negociaes entre os diversos atores da cidade. Segundo Grazia

    De Grazia (2002), as entidades que representavam os proprietrios de terra, setores da

    construo civil e imobilirio, alm da Tradio Famlia e Propriedade (TFP), pressionaram

    14

    importante ressaltar que houve outras tentativas de aprovar uma Lei Federal de Desenvolvimento Urbano.

    Registre-se o projeto de lei de desenvolvimento urbano, PL n. 775/1983 que no foi aprovado em funo das

    presses de diversos setores do capital.

  • 56

    no sentido de impedir a sua aprovao. Durante esses anos de tramitao no Congresso

    Nacional, o Estatuto da Cidade no apenas passou a ser fruto de uma reivindicao do

    movimento social de reforma urbana, mas tambm representou um pacto entre diversos

    setores que compem a sociedade brasileira, sendo incorporados ao projeto inicial

    instrumentos de interesse do capital imobilirio, a exemplo do instituto das operaes urbanas

    consorciadas, e o que em certo momento parecia uma ameaa ao setor empresarial passou a

    ser gradativamente percebido, e aproveitado, como oportunidade de mercado (BASSUL,

    2004, p. 133).

    Se, por um lado, o projeto original sofreu alteraes a fim de permitir a sua aprovao, por

    outro, isso no significou o esvaziamento dos ideais do Movimento da Reforma Urbana. O

    Estatuto da Cidade, logo no seu primeiro, artigo estabelece a sua finalidade e declara o seu

    propsito, qual seja, estabelecer normas de ordem pblica e interesse social que

    regulamentam o uso da propriedade em prol do bem coletivo, da segurana e do bem-estar dos

    cidados, bem como do equilbrio ambiental.(art. 1, pargrafo nico). Portanto, essa

    determinao a esfera na qual devem gravitar a interpretao, aplicao das diretrizes e

    instrumentos contidos no novo marco regulatrio.

    2.3 PRINCPIOS, DIRETRIZES GERAIS E COMPETNCIA PARA PROMOO

    DA REGULARIZAO FUNDIRIA

    O Estatuto da Cidade estabelece um conjunto de princpios e diretrizes gerais que devem guiar a

    elaborao e execuo da poltica urbana de modo a reverter a segregao e excluso

    socioespacial gerada no decorrer do processo de urbanizao brasileira. nesse sentido que a

    funo social da propriedade e das cidades juntamente com os princpios do desenvolvimento

    sustentvel, da justia social e da participao popular se apresentam como base estruturadora

    dessa poltica, cabendo, portanto, s diretrizes gerais, delinear o caminho a ser seguido pela

    Unio, Estados e Municpios para a sua efetivao.

  • 57

    Esse entendimento est consubstanciado no artigo 39 do Estatuto da Cidade, que expressamente

    determina cumprir a propriedade urbana a funo social quando atende s exigncias

    fundamentais de ordenao da cidade expressa no Plano Diretor, assegurando o atendimento das

    necessidades do cidado quanto qualidade de vida, justia social e ao desenvolvimento das

    atividades econmicas, devendo, para tanto, serem respeitadas as diretrizes previstas nesse

    diploma legal. Portanto, o Plano Diretor um instrumento estratgico para fazer valer a

    efetivao desse principio, conforme ser abordado neste trabalho.

    O Plano Diretor, ao definir as funes que devero ser atribudas propriedade para que ela

    cumpra a sua funo social, deve atentar para as diretrizes gerais de desenvolvimento

    estabelecidas no Estatuto da Cidade. Entre as diretrizes gerais previstas est a regularizao

    fundiria de reas ocupadas pela populao de baixa renda. Essa diretriz apresenta-se como

    um importante comando para que a propriedade e a cidade cumpram a sua funo social, na

    medida em que abre caminhos para garantir o reconhecimento, a segurana da posse, o direito

    social moradia e, em carter amplo, o direito cidade sustentvel, esse ltimo conceituado,

    no inciso I do artigo 2 do Estatuto da Cidade, como o direito terra urbana, moradia, ao

    saneamento ambiental, infra-estrutura urbana, ao transporte e servios pblicos, ao trabalho

    e ao lazer, para presentes e futuras geraes. nesse sentido que Jacques Alfonsin (2002) se

    posiciona, ao afirmar que a primeira condio concreta de respeito devido ao bem estar dos

    habitantes das cidades garantir a posse de espao indispensvel moradia de todas as

    pessoas que vivem nas cidades, sendo o reconhecimento dessa funo do solo urbano parte

    integrante das funes sociais da cidade e referncia obrigatria das responsabilidades

    inerentes funo social de cada propriedade.

    Assim, o direito segurana jurdica da posse, o direito moradia adequada e o direito

    cidade aparecem como escalas de direitos sucessivos e interdependentes. O direito segurana

    jurdica (proteo contra remoes involutrias) integra, junto com outros componentes, o

    direito moradia adequada que, por sua vez, se apresenta como ncleo central do direito

    cidade sustentvel. Refora esse entendimento, a afirmao de que assegurar o pleno

    exerccio do direito cidade a diretriz-chave da poltica urbana que deve ser implantada nas

  • 58

    cidades brasileiras para atender s prioridades de seus habitantes, nas quais se inclui o direito

    moradia.(SAULE JUNIOR, 2004, p. 230).

    Na efetivao desses direitos, a regularizao fundiria tem um papel fundamental, pois

    permite uma interveno pblica ampla no ambiente construdo, conforme tratado neste

    trabalho. Buscando implementar essa concepo mais ampla de regularizao fundiria, o

    Estatuto da Cidade a insere como componente da poltica de desenvolvimento urbano,

    devendo a sua implementao se dar de forma integrada com as demais diretrizes gerais nele

    previstas, tais como cooperao entre os governos e iniciativa privada, justa distribuio dos

    benefcios decorrentes do processo de urbanizao, ordenao do solo de forma a evitar a

    especulao imobiliria, preservao e recuperao do meio ambiente, planejamento e gesto

    democrtica da cidade. Por essa concepo de regularizao fundiria, o Estatuto da Cidade

    deixa para trs as intervenes pblicas tpicas afastada da poltica urbana que preponderaram

    nas dcadas de 1980 e 1990 e que alm de no terem enfrentado a escala do problema, em

    muitos casos contriburam para agravar o processo de segregao socioespacial.

    A relao entre funo social e regularizao fundiria, portanto, pode ser observada por dois

    vieses complementares. A funo social da propriedade est diretamente relacionada com o

    seu uso destinado a garantir as funes sociais da cidade e o bem-estar dos seus habitantes.

    Como visto, a propriedade cumpre a sua funo social quando permite garantir a permanncia

    de pessoas no local onde construram as suas moradias, estabeleceram laos de vizinhana e

    criaram uma forma de viver. Por outro lado, o cumprimento da funo social da propriedade

    no utilizada ou mal utilizada pode vir a contribuir com o processo de democratizao do

    acesso terra urbana dotada de infra-estrutura, o que em tese evita que novos assentamentos

    sejam construdos margem da legalidade urbana.

    Apesar da necessidade de interao entre as diretrizes gerais da poltica urbana, sero tratados

    especificamente os dois incisos referentes regularizao fundiria de reas ocupadas pela

    populao de baixa renda, sejam elas, favelas, cortios, loteamentos clandestinos ou outras

    tipologias construdas margem da legalidade fundiria e urbanstica. Desse modo, o Estatuto

    da Cidade prev a

  • 59

    XIV - regularizao fundiria e urbanizao de reas ocupadas por populao de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanizao, uso e ocupao do solo, ou edificao, levando-se em considerao a situao scio-econmica da populao e as normas ambientais. -------------------------------------------------------------------------------------- XV simplificao da legislao de parcelamento, uso e ocupao do solo e das normas edilcias, com vistas a permitir a reduo dos custos e o

    aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; (BRASIL, 2001)

    Ao estabelecer a obrigatoriedade da edio de padres especiais de urbanizao no processo de

    regularizao fundiria, o Estatuto da Cidade impe ao Poder Pblico um dilogo com a

    realidade ftica, demonstrando uma ntida opo em rechaar o discurso do padro ideal que

    foi historicamente usado para reforar a excluso e segregao espacial. H uma opo pelo

    reconhecimento dos assentamentos como espaos diversificados de convivncia, que se

    constroem a cada dia, a cada minuto, a cada segundo, apresentando tipologias prprias. Nesse

    sentido,

    A exigncia de um ordenamento que conduza regularizao fundiria e urbanstica das ocupaes populares existentes introduz um condicionante novo e transformador em nosso direito urbanstico. At ento, a incompatibilidade dentre as ocupaes populares e a ordem urbanstica ideal tinha como conseqncia a ilegalidade daquelas (sendo a superao desse estado um dever dos responsveis pela irregularidade - isto , dos prprios ocupantes). Com o Estatuto a equao se inverte: a legislao deve servir no para impor um ideal idlico de urbanismo, mas para construir um urbanismo a partir dos dados da vida real. (SUNFELD, 2003, p. 59-60)

    Isso no significa dizer que esse novo padro normativo deva consolidar um espao urbano

    precrio; ao contrrio; deve ser utilizado para redimensionar a interveno do Poder Pblico

    nesses assentamentos. O estabelecimento de padres diferenciados e o redimensionamento da

    imposio de um ideal idlico de urbanismo, atravs da simplificao das normas urbansticas,

    no podem ser guiados apenas pela racionalidade do mercado buscando reduzir custos para

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    aumentar a oferta de lotes e habitaes, sem levar em conta o