A Insegurança Da Posse
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E
URBANISMO
ADRIANA NOGUEIRA VIEIRA LIMA
A (IN) SEGURANA DA POSSE:
REGULARIZAO FUNDIRIA EM SALVADOR E OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE
Salvador 2005
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ADRIANA NOGUEIRA VIEIRA LIMA
A (IN) SEGURANA DA POSSE:
REGULARIZAO FUNDIRIA EM SALVADOR E OS INSTRUMENTOS
DO ESTATUTO DA CIDADE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em
Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, como requisito
parcial para a obteno do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
Orientadora: Prof Dra. Angela Maria Gordilho Souza.
Salvador
2005
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FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Faculdade
Arquitetura da Universidade Federal da Bahia
L732 Lima, Adriana Nogueira Vieira.
A(in)segurana da posse: regularizao fundiria em Salvador e os
instrumentos do Estatuto da Cidade / Adriana Nogueira Vieira Lima . Salvador, 2005.
170p. il.
Dissertao (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, 2006
1. Poltica urbana Estatuto da Cidade 2. Poltica urbana Regularizao fundiria 3. Direito moradia Segurana da posse I. Ttulo
CDU 711.432 : 347.171(060.13)
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TERMO DE APROVAO
ADRIANA NOGUEIRA VIEIRA LIMA
A (IN) SEGURANA DA POSSE:
REGULARIZAO FUNDIRIA EM SALVADOR E OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE
Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Arquitetura e
Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
Angela Maria Gordilho Souza Orientadora
Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, USP
Paola Berenstein Jacques
Doutora em Histria da Arte pela Universidade de Paris 1
Nelson Saule Junior Doutor em Direito Urbanstico pela Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Estado de So Paulo, PUC
Salvador, 27 de junho de 2005
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LIMA, Adriana Nogueira Vieira. A (in) segurana da posse: regularizao fundiria em
Salvador e os instrumentos do Estatuto da Cidade. 2005. 170 il. Dissertao de (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia,
Salvador.
Autorizo a reproduo [parcial ou total] deste trabalho para fins de comutao bibliogrfica.
Salvador, 27 de junho de 2005.
Adriana Nogueira Vieira Lima
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AGRADECIMENTOS
Durante todo o perodo em que me dediquei elaborao desta dissertao, encontrei muitas pessoas dispostas a colaborar com o desafio de montar este quebra cabea. Cada um, de sua
maneira, contribuiu acrescentando uma pea sem a qual seria impossvel terminar o trabalho. As contribuies foram dadas de vrias formas - conversas informais, entrevistas dirigidas, emprstimos de material, criticas contundentes ou um simples olhar fraterno. Muitos foram os
que contriburam. Por isso, de antemo, peo desculpas e agradeo queles que deixaram de ser nomeados.
Inicialmente, agradeo minha orientadora, ngela Gordilho, por sua orientao dedicada e exigente; a Nelson Saule Jnior, por ter me apresentado o Direito Urbanstico e pelo carinho e
ateno durante todo esse processo e; a Paola Berentein Jacques, por ter gerado crises criativas, possibilitando a abertura de novos caminhos; a Edsio Fernandes, pela valiosa contribuio
quando da defesa do projeto e por todas as contribuies que vem dando ao Direito Urbanstico Brasileiro.
Aos colegas Marcos, Srgio, Silvana, Vital, Robert, Suely, Helena, Maurcio, Tnia, Daniela e Dora que com muito carinho e pacincia, acolheram a advogada e contriburam no processo
de desvelar categorias aparentemente to distante do seu jurisdiqus. Ainda no mbito da Faculdade de Arquitetura, agradeo as funcionrias Jandira e Silvandira pelo valioso apoio.
A todos aqueles que permitiram ser entrevistados, contribuindo para que esta dissertao se apresentasse de forma mais viva.
CAPES, pelo aporte financeiro da bolsa de pesquisa.
Aos funcionrios da Biblioteca da Fundao Mario Leal - Carmelita, Hilda, Bete e Rosrio.
Aos amigos Tatiane, Juliana, Flvia, Paulo, pelo incentivo e apoio emocional. Aos companheiros da CJP, CEAS e ITCP pelo rico aprendizado.
grande famlia (Chico, Piu, Tuca e Dan), Vocs foram a grata surpresa desse mestrado.
professora Anglica Mattos, pelo carinho e ateno na reviso deste trabalho.
Agradeo tambm o carinho e incentivo dos meus pais e do meu irmo.
Por fim, a Edinho, por tudo.
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preciso defender a igualdade sempre que a diferena gerar
inferioridade, e defender a diferena sempre que a igualdade implicar
descaracterizao.
Boaventura de Souza Santos, 2003
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RESUMO
Os padres de ocupao do espao urbano contemporneo nas grandes cidades brasileiras esto marcados por uma ampla produo da ilegalidade fundiria e urbanstica, sendo a interveno dos poderes pblicos, atravs da produo legislativa, um fator determinante na formao do
universo de ilegalidades. Esse universo atinge cerca da metade da populao das grandes metrpoles, caracterizando-se como ambientes que revelam uma pluralidade de normas e formas
construdas margem do ordenamento jurdico oficial. Com a edio do Estatuto da Cidade, Lei Federal n. 10.257/2001, novas perspectivas so abertas. Esse novo marco normativo fortalece os princpios da funo social da propriedade e da cidade, consagrados no texto da Constituio
Federal de 1988, trazendo tambm diretrizes e instrumentos que devero guiar as aes do Poder Pblico municipal no exerccio da sua competncia, para elaborar e executar a poltica
urbana. Dentre as diretrizes elencadas, destaca-se a regularizao fundiria dos assentamentos ocupados pela populao de baixa renda. Este trabalho situa-se, portanto, no campo da discusso que envolve a questo jurdico-urbanstica e objetiva contribuir com a reflexo sobre os
caminhos da regularizao fundiria na efetivao do direito cidade, do direito moradia e, especialmente, da segurana da posse. Para tanto, faz-se uma abordagem sobre o papel da lei na
formao da ilegalidade urbana e, conseqentemente, na promoo da insegurana da posse e da negao do direito cidade. Em seguida, analisam-se o novo marco normativo firmado com a chegada do Estatuto da Cidade e as possibilidades por ele trazidas, para tomar como estudo de
caso a Cidade de Salvador. O estudo tem incio com um breve histrico sobre a formao do tecido fundirio e urbanstico da Cidade e o papel das intervenes pblicas no processo de excluso socioespacial. Faz-se um levantamento dos programas de regularizao fundiria
propostos entre 1980-2001, e, em seguida, busca-se verificar como o Estatuto da Cidade vem sendo aplicado no mbito da Cidade de Salvador, especificamente no que se refere a sua poltica
de regularizao fundiria implementada no perodo de 2002-2004. Nessa fase, utilizam-se, como fontes de pesquisa, documentos oficiais e entrevistas qualitativas com administradores pblicos e lideranas comunitrias. Ao final, tecem-se consideraes acerca dos limites do
Estatuto da Cidade e apontam-se novos caminhos que devero ser trilhados na busca de solues para a implementao de uma regularizao fundiria de modo a atender os ideais que guiaram a
elaborao desse novo marco regulatrio.
Palavras-chave: Regularizao fundiria; Estatuto da Cidade; ilegalidade urbana; poltica urbana; segurana da posse; direito moradia; direito cidade.
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ABSTRACT
The pattern of land occupation in the contemporary urban scene, in major Brazilian cities, is characterized by an ample production of urban and land use illegalities. The intervention of the
powers to be, by means of legislative measures, plays a determinant role in the formation of such illegalities. They affect about half of the population in inner cities and distinguish
themselves as situations that reveal a great variety of norms and models that do not follow the official judicial ordinances. The editing of the new City Statute, ratified by Federal Law number 10.257/2001, has brought forth new perspectives and possibilities. This new landmark
norm strengthens principles of the social function of property, and of the city, which are sanctioned by the Federal Constitution of 1988. It also sets directives and instruments that will
guide the actions of the municipal powers to exert its bestowed authority for the elaboration and execution of urban policies. Among the directives that were listed, one can be highlighted: the land conservancy regulation for settlements occupied by the lower income population.
Therefore, this paper discusses and addresses the judicial-urban issue related to this matter and aims at contributing with a reflection about the possible paths of the land conservancy
regulation, since it implements the right to city living, the right to housing, and, especially, the right to secure land tenure. In order to accomplish this objective, a discussion about the role of the law in the formation of illegalities is made, pinpointing how this role leads to a subsequent
promotion of tenure insecurity and the negation of the right to city living. Furthermore, this paper analyzes the new landmark norm established by the signing of the new City Statute, and
the possibilities brought forth by it, leading the way to a case study about the city of Salvador. This study initiates with a brief historical recapitulation regarding the formation of the land and urban settings in the City, as well as the role of government interventions in the process of
social-spatial exclusion. It also catalogs the land conservancy programs proposed between 1980 and 2001, and then verifies how the City Statute has been applied to the City of Salvadors
dominion, giving special emphasis to the land conservancy policy implemented in the period between 2002 and 2004. In this phase of the study, official documents and qualitative interviews with public administrators and community leaders are used as research sources. Lastly, some
considerations are made regarding the limitations of the City Statute, highlighting new paths that must be taken in order to find solutions for the implementation of a land conservancy regulation
that will satisfactorily conform to the ideals that guided this new landmark norm.
Keywords: Land conservancy regulation; City Statute; urban illegality; urban policy; secure
land tenure; right to housing; right to city living.
LISTA DE FIGURAS
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Figura 1 Mapa I: Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano: reas Especiais de
Interesse Social. 116
Figura 2 Mapa II: Municpio de Salvador Poligonais do Programa Municipal de
Regularizao Fundiria 2002-2004 122
Figura 3 Mapa III: Projeto de Regularizao Fundiria da Fazenda So Gonalo
Salvador-Ba 148
Figura 4 Mapa IV: Ao de usucapio urbano coletivo proposta pela Associao Cultural
Beneficente de Mata Escura 152
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LISTA DE QUADROS E TABELAS
Tabela I Invases removidas em Salvador (1946-1989): resultado da remoo por perodo
de ocorrncia. 104
Tabela II - Programa de Legalizao : resumo das atividades por rea de interveno 108
Tabela III Programa Municipal de Regularizao Fundiria 2002-2004 123
Quadro I Levantamento Regularizao Fundiria 1983-2002 107
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
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ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias
ANOREG Associao dos Notrios do Brasil
APSE reas de Proteo Social
BNH Banco Nacional de Habitao
CDRU Concesso de Direito Real de Uso
CEAS Centro de Estudo e Ao Social
CF Constituio Federal
CHESF Companhia Hidroeltrica do So Francisco
CJP Comisso de Justia e Paz da Arquidiocese de Salvador
COMULS Comisses de urbanizao e legalizao
CONAMA Conselho Nacional de Meio Ambiente
CONDER Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia
CPC Cdigo de Processo Civil
CRF Coordenadoria de Regularizao Fundiria
EPUCS Escritrio do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador
FABS Federao das Associaes de Bairros de Salvador
FNRU Frum Nacional de Reforma Urbana
IAB Instituto dos Arquitetos do Brasil
IBAM Instituto Brasileiro de Administrao Municipal
IPTU Imposto sobre Propriedade Territorial Urbano
IRIB Instituto dos Arquitetos do Brasil
LOM Lei Orgnica do Municpio
LOUS Lei de Uso e Ocupao do Solo
MDF Movimento de Defesa dos Favelados
MNRU Movimento Nacional de Reforma Urbana
MP Medida Provisria
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
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OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OCEPLAN rgo Central de Planejamento
ONG Organizao no governamental
ONU Organizao das Naes Unidas
PHIS Poltica Habitacional de Interesse Social
PLANDURB Plano de Desenvolvimento de Salvador
PMS Prefeitura Municipal de Salvador
PREZEIS Plano de Regularizao das Zonas Especiais de Interesse Social
PRODESCO Programa de Desenvolvimento Comunitrio
RENURB Companhia de Renovao Urbana
SCMB Santa Casa de Misericrdia da Bahia
SECOVI Sindicato das Empresas de Compra, Venda,e Administrao de Imveis.
SEHAB Secretria de Habitao
SEMIN Secretria Municipal de Saneamento, Habitao e Infra-estrutura Urbana
STF Supremo Tribunal Federal
TFP Tradio Famlia e Propriedade
TRANSCON Transferncia de Direito de Construir
UNMP Unio Nacional de Moradia Popular
VIRACOM Vice Reitoria de Assuntos Comunitrios
ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social
SUMRIO
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INTRODUO .................................................................................................................. 14
1 DA FORMAO DA ILEGALIDADE REGULARIZAO
FUNDIRIA ................................................................................................................. 21
1.1 LEI, FORMA E SEGREGAO ESPACIAL .............................................................. 21
1.2 O UNIVERSO DAS ILEGALIDADES NO DOMINADAS. ..................................... 25
1.3 REGULARIZAO FUNDIRIA E (IN) SEGURANA DA POSSE ....................... 28
2 ESTATUTO DA CIDADE: UM NOVO MARCO LEGAL. ................................... 35
2.1 A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO CIDADE ..................................... 35
2.2 O PROCESSO DE ELABORAO DO ESTATUTO DA CIDADE ....................... 39
2.3 PRINCPIOS, DIRETRIZES E COMPETNCIA PARA PROMOO DA
REGULARIZAO FUNDIRIA ............................................................................. 40
2.4 INSTRUMENTOS DE REGULARIZAO FUNDIRIA ....................................... 48
2.4.1 PLANO DIRETOR ..................................................................................................... 49
2.4.1.1 Obrigao e abrangncia........................................................................................... 49
2.4.1.2 Participao da sociedade civil ................................................................................ 51
2.4.1.3 A centralidade do Plano Diretor na implementao da poltica de regularizao
fundiria ..................................................................................................................52
2.4.2 DIREITO DE PREEMPO ..................................................................................... 53
2.4.3 OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR (TRANSCON) .............. 55
2.4.3.1 Conceito e finalidade ............................................................................................... 55
2.4.3.2 A verso da outorga onerosa no Estatuto da Cidade ............................................... 56
2.4.3.3 A outorga onerosa e a regularizao fundiria ........................................................ 57
2.4.4 TRANSFERNCIIA DO DIREITO DE CONSTRUIR..............................................58
2.4.5 DIREITO DE SUPERFICIE ....................................................................................... 59
2.4.6 ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL ...................................................... 60
2.5 INSTRUMENTOS DE TITULAO DO SOLO URBANO ...................................... 64
2.5.1 USUCAPIO INDIVIDUAL E COLETIVO ............................................................ 65
2.5.2 CONCESSO DE DIREITO REAL DE USO E CONCESSAO ESPECIAL DE USO
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28
PARA FINS DE MORADIA ..................................................................................... 70
2.5.2.1 Concesso de direito real de uso .............................................................................. 71
2.5.2.2 Concesso especial de uso para fins de moradia.......................................................72
2.6 ESTATUTO DA CIDADE E OUTROS MARCOS NORMATIVOS: LEI DE
REGISTRO PBLICO E LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO ............................ 77
3 UM ESTUDO DE CASO DA CIDADE DE SALVADOR ........................................ 85
3.1 BREVES NOTAS SOBRE A FORMAO DO TECIDO FUNDIRIO ................... 85
3.2 SURGIMENTO DAS PRIMEIRAS FAVELAS ........................................................... 89
3.3 A REFORMA URBANA DE 1968 ............................................................................... 96
3.4 AS POLITICAS DE REGULARIZAO FUNDIRIA: (IN) SEGURANA DA
POSSE...................... .................................................................................................... 101
3.4.1 PLANDURB E O RECONHECIMENTO DO UNIVERSO DA ILEGALIDADE . 101
3.4.2 OS PROGRAMAS DE REGULARIZAO FUNDIRIA: DCADAS DE 1980
E 1990 ................................ ..................................................................................... 103
3.4.3 INSTRUMENTOS DE PARCERIA PBLICO E PRIVADA PARA
INTERVENO NO UNIVERSO DA ILEGALIDADE ....................................... 110
3.4.4 O PLANO DIRETOR URBANO (PDDU 2004): O LUGAR DA
REGULARIZAO FUNDIRIA...................................... ................................... 112
4. REGULARIZAO FUNDIRIA APS O ESTATUTO DA CIDADE ............. 117
4.1 MODIFICAES NO MBITO LEGISLATIVO MUNICIPAL ............................. 117
4.2 O PROGRAMA DE REGULARIZAO FUNDIRIA 2002-2004 ........................ 119
4.2.1 A CONCEPO DA REGULARIZAO FUNDIRIA ..................................... 124
4.2.2 A (IN) SEGURANA DA POSSE ....................................................................... 125
4.2.2.1 (In) segurana da posse e falta de informao ....................................................... 126
4.2.2.2 (In) segurana da posse e processo eleitoral .......................................................... 127
4.2.2.3 (In) segurana da posse e integrao socioespacial ................................................ 129
4.2.2.4 (In) segurana da posse e titulao ......................................................................... 130
4.2.3 A AO DOS CARTRIOS DE REGISTRO DE IMVEIS ................................ 135
4.3 A REGULARIZAO FUNDIRIA EM REAS DE DOMINIO PARTICULAR 140
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29
4.3.1 O PROCESSO DE NEGOCIAO: CALABAR, ALTO DAS POMBAS E
CENTENRIO ......................................................................................................... 141
4.3.2 MATA ESCURA: A PRIMEIRA AO DE USUCAPIO URBANO
COLETIVO .............................................................................................................. 149
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 153
REFERNCIAS .................................................................................................... 159
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30
INTRODUO
Dados do IBGE de 2000 apontam que 81,3% da populao brasileira vive nas cidades. As
pesquisas revelam que grande parte dessa populao mora em favelas: Salvador, 30%
(GORDILHO SOUZA, 1990); Rio de Janeiro, 20% (LABHAB, 1999); Fortaleza 28%
(SEMPLAN, 1994), Recife, 40% (IBGE, 1991); So Paulo, 19,4% (FIPE, 1993).1 Os dados
fornecidos pelo IBGE mostram que, entre 1991 e 2000, o nmero de favelas aumentou 22% em
todo o Brasil, atingindo um total de 3.905 ncleos (IBGE, 2001).2
Dentre os variados fatores que contriburam para a construo do cenrio de segregao
socioespacial das cidades brasileiras, a interveno dos poderes pblicos atravs da produo
legislativa e das prticas de planejamento urbano revelou-se um elemento estruturante da
dicotomia cidade legalcidade ilegal. que a norma jurdica, ao longo do processo de
formao do tecido urbano brasileiro, apresentou-se como um instrumento fundamental de
uma poltica de ocupao e controle do uso do espao urbano segregacionista e excludente.
Com efeito, a legislao produzida a partir da virada do sculo XIX, longe de buscar promover
uma cidade acessvel a todos, criou obstculo ao acesso terra urbanizada para a populao de
baixa renda, excluindo-a, segregando-a, inserindo-a no universo da ilegalidade. Os habitantes
da cidade que no se enquadram nessa moldura conceitual criada pela legislao desafiam as
normas urbansticas e civilistas e passam a buscar alternativas de moradia fora das reas
1 Dados apresentados pela professora Ermnia Maricato no Frum Amrica Latina Habitar 2000, promovido pela
Faculdade de Arquitetura da UFBA e Conder/Seplantec, no perodo de 15 a 19 de maio de 2001. 2 Segundo Suzana Taschner (2003), ao computar como favela apenas os aglomerados urbanos formados por pelo
menos 50 unidades, carentes de infra-estrutura e localizados em terrenos no pertencentes aos moradores, o IBGE
subestima a populao das favelas.
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31
centrais da cidade ou em reas fora do interesse do capital imobilirio, dando origem a uma
outra cidade conceituada a partir de qualificativos dominantes como: cidade ilegal e cidade
informal.
nesse universo de ilegalidades que os moradores passam a construir, no local onde vivem,
uma pluralidade de cdigos e regras de convivncia social margem do ordenamento jurdico
oficial. Nesse contexto, o Estado, longe de reconhecer a legitimidade dessas prticas de
convivncia, utiliza-se do argumento de ilegais para impor arbitrariedades de toda ordem. Desse
modo, as intervenes pblicas so guiadas, na maioria das vezes, por prticas violentas e
autoritrias, acarretando remoes e expulses dos locais de moradia, o que gera uma verdadeira
insegurana quanto ao direito moradia.
Aos poucos, o universo das ilegalidades, composto por favelas, cortios, loteamentos
clandestinos etc., vai se consolidando e as polticas de desfavelamento, expulso e relocao
vo sendo substitudas por processos de urbanizao e legalizao, em busca do
reconhecimento, da integrao ou incorporao das reas ocupadas margem da legalidade.
na dcada de 1980 que a interveno pblica no sentido de regularizar vai adquirindo
importncia e ganhando contornos e significados que vo se definindo pela influncia de
fatores econmicos, sociais, culturais e polticos, numa reunio de interesses diversos que vo
desde as presses dos movimentos populares, passando pela exigncia das agncias de
cooperao internacional, at os anseios dos mais variados segmentos de mercado.
Ressalte-se que a regularizao fundiria se mostrou como uma das idias-fora do
Movimento Nacional pela Reforma Urbana, o que contribuiu para a positivao de direitos
urbanos inseridos nos artigos 182 e 183 da Constituio Federal de 1988, dispositivos
regulamentados pelo Estatuto da Cidade, Lei Federal n 10.257 de 2001. Esse novo diploma
legal representa um marco conceitual para produo de uma outra legalidade urbana, pois
prev instrumentos teis que podem ajudar a enfrentar as tenses geradas pela convivncia
entre cidade legal (bairro) e cidade ilegal (favela), estabelecendo diretrizes para reconstruo
desses conceitos a partir do reconhecimento da diversidade de normas e formas existentes,
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32
fundamentado que est em valores e princpios ticos de justia social e nos conceitos
jurdico-polticos do Direito Cidade.
Nessa vertente, a regularizao fundiria passa a ser concebida como o processo de interveno
pblica que engloba os aspectos jurdicos, fsicos e sociais, objetivando assegurar a permanncia
de populaes moradoras de reas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, implicando
na melhoria do ambiente urbano e no resgate da cidadania (ALFONSIN, B., 1997). A questo
urbanstica e fundiria deve ser tratada atravs de enfoque transdisciplinar, porque a ordem
urbanstica e fundiria so faces da mesma moeda, se entrelaam, na medida em que o ttulo de
propriedade ou posse (legalidade fundiria) busca materializar uma poro do espao urbano, e
so as normas urbansticas que estabelecem o como esse espao deve ser dividido, ocupado,
usado etc. (legalidade urbanstica).
No enfrentamento desse desafio, a regularizao fundiria aparece como um componente da
poltica urbana, assumindo um importante significado no cumprimento do direito segurana da
posse, direito moradia e direito cidade. Para tanto, o Estatuto da Cidade prev instrumentos
jurdicos urbansticos, tais como preempo, solo criado, transferncia do direito de construir,
zonas especiais de interesse social e o plano diretor, esse ltimo responsvel por estabelecer
critrios e diretrizes para a implementao dos demais instrumentos citados.
No que tange aos instrumentos de titulao do solo, o Estatuto da Cidade prev um leque de
possibilidades que poder ser utilizado junto com os demais instrumentos urbansticos para
garantir a segurana da posse e o direito moradia. As formas de titulao previstas no
passam necessariamente pela garantia ao direito individual de propriedade privada. H
institutos como a concesso de uso para fins de moradia e concesso de direito real de uso, por
meio dos quais a Unio, os Estados e Municpios podem assegurar o cumprimento da funo
social da propriedade pblica e legalizar a posse dos moradores de forma individual e tambm
coletiva, mantendo o domnio pblico da rea. Em relao s reas privadas, h a previso do
usucapio urbano individual ou coletivo, que consiste na aquisio do imvel pela populao
de baixa renda que ocupe reas urbanas por um perodo de mais de cinco anos, o que lhes
assegura o direito moradia.
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33
O estudo discute as aes de regularizao fundiria, a partir dos instrumentos
disponibilizados pelo ordenamento jurdico brasileiro, na perspectiva de perceber a
aplicabilidade da concepo trazida pelo Estatuto da Cidade e o quanto de fato elas podem
contribuir para a garantia do direito segurana da posse, moradia e cidade. Partindo-se de
um estudo dos instrumentos jurdicos e urbansticos trazidos pelo Estatuto da Cidade e
compreendendo-se que a praxis pode fornecer elementos factveis para pr em dvida a
eficcia dos marcos normativos, foi escolhida a Cidade de Salvador como estudo de caso, com
o enfoque na anlise das polticas de regularizao fundiria em favelas e loteamentos
pblicos nela existentes antes e depois de vigorar a nova lei.
Apesar de j existirem vrios estudos sobre as favelas na Cidade do Salvador, a regularizao
fundiria desses assentamentos representa uma seara ainda pouco explorada. A escolha do
estudo de caso se deu por se tratar de uma cidade emblemtica no apenas pelo alto grau de
ilegalidade produzida como tambm pelas peculiaridades na formao do tecido urbano, o que
termina por refletir na prpria estrutura fundiria e conseqentemente nas aes de
regularizao empreendidas.3 Trata-se da terceira cidade mais populosa do Brasil com
aproximadamente 2,7 milhes de habitantes.
O presente trabalho est dividido em quatro captulos. A primeira parte, captulos 1 e captulo 2,
traz uma abordagem acerca do papel da lei na formao da ilegalidade urbana, desenvolve
argumentos na busca da compreenso dos conceitos de regularizao fundiria, analisa e
interpreta o novo marco normativo firmado pelo Estatuto da Cidade Lei Federal n
10.257/2001. Nessa parte, a autora utiliza como marco terico as referncias desenvolvidas por
Alfonsin (1997), Saule Junior (1997, 2001, 2003, 2004), Fernandes (1998, 1999, 2003) Rolnik
(1997, 2003), Maricato (1996, 2000), entre outros.
3 Pesquisa realizada por Angela Gordilho Souza (2000) estima que, em 1991, 1,1 milho de pessoas, ou seja, um
percentual prximo a 60% de 1.852.150 habitantes do Municpio de Salvador moravam em reas de ocupao
informal. Em termos de rea ocupada, ainda segundo a pesquisa, esse percentual eqivale a 32,40%. A autora
utiliza-se da categoria informal para designar as ocupaes que se originaram espontaneamente margem das
normas urbansticas e de edificaes.
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34
Na segunda parte do trabalho, captulo 3 e 4 apresenta-se o estudo emprico da Cidade do
Salvador. No primeiro momento faz-se um breve histrico sobre a formao do tecido fundirio
e urbanstico da cidade, especificamente para subsidiar a compreenso das dinmicas ocorridas
na Salvador contempornea, a partir de outros referenciais baseados principalmente nos estudos
empricos conceituais elaborados por Brando (1978, 1981), Mattedi (1978); Teixeira (1978);
Neves (1985); Arago (1992); Gordilho Souza (1990, 2000); Sampaio (1999) e Tavares (2001).
No captulo 3 faz-se ainda um levantamento dos programas de regularizao fundiria proposto
pela municipalidade no perodo compreendido entre 1983-2002, a fim de estabelecer um
paralelo com as aes empreendidas aps a promulgao do Estatuto da Cidade. O incio dessa
periodizao justifica-se, pois a partir da dcada de 1980 que os primeiros programas de
regularizao fundiria comeam a ser implementados.
No captulo 4 so abordadas as aes de regularizao fundiria propostas aps a promulgao
do Estatuto da Cidade, o alcance e limites de sua eficcia normativa quanto capacidade de
proporcionar a segurana da posse, as motivaes que orientaram as decises polticas nos
programas e a concepo de regularizao fundiria empreendida. Registre-se aqui que no h
pretenso de apresentar resultados definitivos, mas apenas levantar questes para reflexes que
podero ser aprofundadas em novas pesquisas. No mbito dessa investigao, analisou-se o
primeiro Programa Municipal de Regularizao Fundiria implementado no perodo de 2002-
2004.
Tentando responder s indagaes que orientaram o presente trabalho, foram pesquisados
documentos e relatrios disponveis nos arquivos de diversos rgos da Prefeitura Municipal de
Salvador. Nesses locais, poucas fontes foram encontradas. Do material consultado, constatou-se
haver uma precariedade na sistematizao dos dados sobre os programas de regularizao
fundiria. Em alguns rgos da Administrao Pblica municipal, ficou evidente tambm que a
questo fundiria ainda um assunto obscuro que no pode ser tratado publicamente nem
mesmo como objeto de uma pesquisa acadmica. Diante de tais dificuldades, foram utilizadas
informaes obtidas no Dirio Oficial do Municpio, nas mensagens enviadas a Cmara de
Vereadores pelo chefe do Poder Executivo bem como realizadas entrevistas com tcnicos da
Prefeitura.
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A pesquisa sobre o primeiro programa de regularizao fundiria proposto a partir da
promulgao do Estatuto da Cidade tambm contou com entrevistas qualitativas realizadas com
representantes de associaes de doze reas contempladas pelo programa, nos meses de
novembro e dezembro de 2004. Desenvolveram-se a partir de um roteiro prvio que deixava
margem formulao de novos questionamentos, sendo o material coletado gravado e transcrito
para anlise.
A escolha das localidades e associaes no se deu de forma aleatria. Levou-se em
considerao espacialidade (centro e subrbio), tempo de ocupao (antigas e recentes), relao
com o capital imobilirio (valorizada e no valorizada), e origem do processo de formao do
ambiente construdo (ocupao espontnea, loteamento clandestino ou promovido pelo Poder
Pblico). Quanto s associaes, a escolha no se restringiu apenas quelas que participaram
diretamente do processo. Quanto s localidades foram escolhidas: Marechal Rondon, So
Gonalo do Retiro, Bairro da Paz, Caixa Dagua, Nova Constituinte, Fazenda Coutos III, Nova
Mata Escura, Engomadeira, Santa Cruz, Pituau, Saramandaia e Nova Braslia de Itapu.
Como o Programa de Regularizao Fundiria da Prefeitura 2002-2004 restringia-se apenas s
favelas, loteamentos pblicos e clandestinos localizados em terrenos municipais e poucas reas
pertencentes ao Estado doadas para implementao do referido programa, excludas as ocupadas
pertencentes Unio e particulares, buscou-se verificar junto s organizaes da sociedade civil,
a existncia de outras aes no sentido de promoo da regularizao das reas privadas.
Constatou-se ento um processo de negociao envolvendo os moradores do Calabar, Alto das
Pombas e Centenrio, a Santa Casa da Misericrdia (proprietria do terreno), a Prefeitura de
Salvador e o Ministrio das Cidades. Ainda no mbito das iniciativas de regularizao fundiria
proposta em rea de domnio privado, foi feita uma pesquisa nos bancos de dados do Poder
Judicirio do Estado da Bahia, a fim de levantar as aes de usucapio urbano coletivo ajuizadas
entre o perodo compreendido entre julho de 2001 e maro de 2004. Nessa etapa da pesquisa,
verificou-se a existncia da primeira ao de usucapio urbano coletivo proposta pela
Associao Beneficente e Cultural da Comunidade de Mata Escura. Essas duas iniciativas de
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regularizao fundiria em rea de domnio privado sero abordadas neste trabalho, sem se ter,
contudo, a pretenso de aprofund-las, tendo em vista que ainda no foram concludas.
Por fim, luz de tudo quanto foi tratado, na concluso, novos caminhos so abertos.
Ponderaes, reflexes e questionamentos acerca dos limites e possibilidades fixados pelo
Estatuto da Cidade no processo de regularizao fundiria e sua contribuio na busca de
solues que subsidiem projetos de interveno para regularizao fundiria em Salvador so
apresentados visando a contribuir para futuras pesquisas.
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1 DA FORMAO DA ILEGALIDADE REGULARIZAO
FUNDIRIA
1.1 LEI, FORMA E SEGREGAO ESPACIAL
A urbanizao brasileira, ocorrida de forma mais intensa nos ltimos 50 anos, produziu um
padro de cidade calcado na excluso e segregao espacial, tendo a legislao brasileira
contribudo de maneira decisiva para a produo desse modelo de cidade.
A relao entre legislao, segregao e excluso esteve presente na formao das cidades
brasileiras desde a elaborao dos cdigos municipais de posturas, no final do sculo XIX,
poca em que foram estabelecidas as normas higinicas referenciadas no urbanismo
sanitarista4. Com a intensificao da urbanizao, o contedo ideolgico da legislao e seu
papel instrumental na imposio de uma ordem e controle do espao ficam mais
evidenciados, na medida em que so criados novos padres que passam a ditar as referncias
de como a cidade ideal moderna deveria ser construda. Esse arcabouo jurdico passa a ser
minuciosamente detalhado atravs de um conjunto de normas rgidas e elitistas que iro ditar a
formao do tecido urbano de modo a hierarquizar e homogeneizar os espaos.
4 Ao exigir requisitos higinicos mnimos a uma populao de baixa renda, rf de uma interveno pblica capaz
de propiciar as condies para cumprimento da norma, o Estado insere grande parte da populao na ilegalidade.
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Essa idealizao da cidade, revelada nas matrizes que fundamentam o planejamento e a
legislao urbana do Brasil, longe de ter um comprometimento com a realidade concreta, diz
respeito apenas a uma parte da cidade, reafirmando, reproduzindo privilgios e contribuindo
para a formao de uma modernizao incompleta e excludente (MARICATO, 2000). Sob o
discurso de ordem e controle, a legislao vai sendo construda de modo a delimitar o lugar
dos pobres na cidade. Ao impor uma srie de exigncias, a legislao veda o acesso ao solo
urbanizado a uma grande parcela da populao, cuja renda no permite cumprir as exigncias
das normas urbansticas, tais como, cdigos de obras e edificaes, lei de parcelamento urbano
etc.
Esse vis normativo passa a impor sucessivas excluses no modo de uso e ocupao do solo
urbano, gerando uma estratificao do espao construdo e agravando o processo de excluso
socioespacial, entendido esse como [...] privao do direito aos benefcios urbanos individuais
e coletivos, conformando uma cidade segmentada em espaos para cidados e no-cidados,
construdos de forma aleatria, deficiente e desassistida pelo Poder Pblico" (GORDILHO
SOUZA, 2000, p. 15).
Na esteira desse pensamento, Raquel Rolnik afirma que a legislao urbana, mais do que
efetivamente regular o desenvolvimento da cidade, atua como linha demarcatria,
estabelecendo fronteiras do poder, garantindo a proteo de determinados espaos contra a
invaso de usos e habitantes indesejveis, ao tempo em que, atravs de um movimento
centrfugo, delimita as bordas da zona urbana onde a pobreza deve se instalar (ROLNIK, 1997).
nesse sentido que o zoneamento urbano vai operar.5 As rigorosas leis de zoneamento passam a
dividir a cidade no apenas pelo critrio de uso e funes, mas, sobretudo, em razo da renda da
populao. Ao estabelecer a tipologia e o tamanho do lote, regula-se a apropriao do prprio
espao, na medida em que algumas dimenses, de pronto, inviabilizam o prprio acesso ao
solo a alguns estratos de populao, cuja renda no permite adquirir o tamanho mnimo exigvel
conforme a localidade (SAMPAIO, 1999, p. 349).
5 O zoneamento um instrumento pelo qual o poder pblico divide o territrio do municpio em zonas, segundo o
critrio de destinao do solo (zona urbana, zona rural, zona de expanso urbana), uso (permitido, tolerado e
proibido) e ocupao do solo (tipologia, densidade, coeficiente e taxas de ocupao).
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Se as normas urbansticas impunham a segregao dos espaos urbanos, o Cdigo Civil de
1916, segundo Luiz Edson Fachin (2003), designado como Estatuto do Patrimnio Privado,
estava na base dessa sustentao.6 As limitaes propriedade privada estavam
consubstanciadas apenas nas normas destinadas s relaes de vizinhana, sendo aquela tratada
como um direito absoluto, conferindo ao proprietrio os poderes de usar, gozar e dispor dos seus
bens como bem lhe conviesse. O foco a supremacia do interesse privado e a autonomia da
vontade. Assim, a terra urbana e a rural so tratadas como mercadoria, enquanto valor de troca,
concepo j introduzida no direito brasileiro pela primeira Lei de Terras (601/1850), no
importando a destinao ou qualquer limitao de contedo social e coletivo.
Nessa matriz terica e ideolgica, h um processo de naturalizao da propriedade individual e
sob essa gide que esse diploma legal vai definir tambm a concepo de posse. Na viso
tradicional liberal do Cdigo Civil de 1916, a posse apenas uma manifestao aparente do
domnio, o exerccio de alguns poderes que lhe so inerentes, sendo apenas excepcionalmente
considerada e tutelada em si mesmo, desde que atendidas uma srie de condies de natureza
axiolgica, como ser justa ou de boa-f7. J a propriedade imobiliria, ainda segundo essa viso,
constituda e protegida, independentemente do seu exerccio, do seu valor de uso ou da funo,
bastando apenas o ato formal de registro da escritura no cartrio de imveis.
Os habitantes da cidade que no se enquadram nessa moldura conceitual criada pela legislao,
desafiam as normas urbansticas e civilistas e passam a buscar alternativas de moradia fora das
reas centrais da cidade ou em reas no interessadas pelo capital imobilirio, dando origem a
uma outra cidade, conceituada a partir de qualificativos dominantes como: cidade ilegal e cidade
informal. Reforam esse entendimento Letcia Osrio e Nelson Saule Junior (2003) ao
afirmarem que os padres de legalidade restritivos e inflexveis somados ao no cumprimento
6 Em 2002, o referido Cdigo foi substitudo por um novo Cdigo Civil, em que foram introduzidos conceitos como
funo social da propriedade. importante ressaltar que a relativizao do conceito de propriedade absoluta ainda
no foi compreendida por grande parte dos juristas brasileiros, prevalecendo o marco conceitual do Cdigo Civil de
1916. 7 O Cdigo Civil de 1916 considera justa a posse que no for violenta, clandestina ou precria e de boa-f a posse
se o possuidor ignora o vicio ou o obstculo que lhe impede a aquisio da coisa ou do direito possudo. Essa
conceituao foi mantida no Cdigo Civil de 2002.
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da funo social da propriedade passam a produzir uma cidade com paisagem dividida. A
relao entre norma e forma representa faces da mesma moeda. Ambas fazem parte de uma
imposio hegemnica e se entrelaam.
Assim, a conceituao cidade ilegal d-se a partir do que os assentamentos representam ante o
direito hegemnico produzido pelo Estado e materializado na legislao. Quanto ao qualitativo
informal, do mesmo modo, a qualificao parte de uma viso hegemnica de arquitetura
consubstanciada na imagem da ordem conhecida e consagrada da cidade formal, onde a
codificao pr-estabelecida atravs de formatos jurdicos que definem as condies de
acesso, de uso e de ocupao do solo(BOTLER, 1994, p. 09).
Nessa perspectiva, so criados dois padres de cidade: a cidade legal e a cidade ilegal, ambas
frutos de um mesmo processo de urbanizao excludente.
A ao social homogeneizadora visava acabar com as diferenas, hierarquizando-as no espao, sob as imagens da cidade legal, autorizada (com direitos urbanos e, portanto, sob o amparo da legislao urbanstica) versus a cidade clandestina, paralela, ilegal (sem acesso aos direitos urbanos e fora dos padres de legitimidade da legislao urbanstica). (SILVA, 1990, p. 30)
O termo cidade ilegal, entretanto, ser aqui utilizado para designar tanto os assentamentos
construdos margem da legalidade quanto aqueles construdos margem da formalidade
dominante, visto que a norma se apresenta como veiculo de imposio da forma. Ademais,
preciso evidenciar a ilegalidade desses assentamentos no para legitimar os discursos de
desqualificao do espao construdo, mas, sobretudo, para marcar o papel da legislao na
construo da segregao desses espaos e pr em evidncia a necessidade de trabalhar com
novos marcos normativos.
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1.2 O UNIVERSO DAS ILEGALIDADES NO DOMINADAS
O universo dessas ilegalidades no uniforme. possvel encontrar desde os cortios, herdados
do sculo passado, at os loteamentos empreendidos pelo Poder Pblico e conjuntos
habitacionais propostos pelo Estado para resolver o problema da habitao, os lotes comprados
sem registro ou parcelados sem licena. A no-uniformidade no se caracteriza apenas pelo
aspecto das tipologias, das estruturas reveladas, no dizer de Milton Santos, mas tambm no
modo de ocupao e uso do solo, no modo de criar, fazer e viver.
Identificar e definir essas tipologias no tarefa fcil. A complexidade que envolve os processos
de construo desse universo impossibilita muitas vezes que essas construes sejam
rigorosamente enquadradas nas tipologias criadas: favela, loteamentos clandestinos, loteamentos
irregulares, cortios.
Entretanto, a tipologia que mais corporifica a densidade desse universo, a favela, no apenas
porque desafia as normas urbansticas, como tambm porque afronta o ordenamento jurdico em
um de seus pontos mais sensveis - a propriedade privada. Essa alternativa de acesso ao solo
ultrapassa os espaos privados da moradia e se enraza nos espaos pblicos com a construo
de ruas, escolas, centros culturais e outros equipamentos coletivos autogeridos, construindo-se
assim uma diversidade de formas arquitetnicas que fogem razo geomtrica planejada e
materializada da legalidade urbanstica. Nessas prticas sociais de acesso terra e habitao,
verifica-se a emergncia de microterritrios urbanos com parmetros sociais especficos,
desconhecidos pelo planejamento urbano e por ele no previstos (PANIZZI, 1989).
Em um contexto de invisibilidade e ausncia do Estado como promotor de polticas de
interveno no ambiente construdo e regulador dos conflitos, emerge nos microterritrios,
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como estratgia de sobrevivncia, uma pluralidade de cdigos e regras de convivncia social
margem do ordenamento jurdico oficial8
Vo se formando atravs de um processo arquitetnico e urbanstico vernculo singular, que no somente difere do dispositivo projectual tradicional da arquitetura e urbanismo eruditos seria mesmo seu oposto -, mas tambm se investe de uma esttica prpria da favela, com caractersticas peculiares, completamente diferente da esttica da cidade dita formal (JACQUES, 2001, p.13)
Esses cdigos no se restringem apenas ao modo como o espao ser utilizado. O morador da
cidade ilegal, buscando legitimar o exerccio do direito moradia, constri um conceito
extralegal de segurana da posse, calcado em outras matrizes que no as que fundamentam o
direito oficial. As estratgias de legitimao utilizadas passam por investimento nas casas,
fortalecimento dos laos de vizinhana, utilizao de recibos de compras e vendas, declarao
de posse emitidas pela associao e at mesmo recolhimento de impostos prediais.
Essa cidade ilegal objeto da interveno pblica sob vrias formas. Se, por um lado, o
Estado, atravs do seu arsenal legislativo, estabelece a dicotomia legal-ilegal, por outro, esse
mesmo Estado muitas vezes tolerante com a ilegalidade. Esse comportamento vai variar no
espao e no tempo em funo das relaes sociais travadas no tecido urbano. Nas zonas mais
valorizadas da cidade, o papel do Estado tende a ser mais repressivo, enquanto nos espaos
menos cobiados pelo capital h uma espcie de cumplicidade, operando-se a poltica da
invisibilidade do problema.
De acordo com Boaventura de Souza Santos (1984), o Estado utiliza-se de um conjunto de
mecanismos de disperso cujo critrio de seleo desenha o perfil da dominao poltica, que
vai desde os mecanismos de represso-excluso (por exemplo, a remoo violenta das
favelas), passando pelo processo de trivializao/neutralizao (por exemplo, tolerncia para
8 Ver pesquisa realizada por Boaventura de Souza Santos na dcada de 1970 em uma favela do Rio de Janeiro, a
qual o autor atribui o nome fictcio de Passrgada. Nessa investigao, o autor observa o fenmeno do pluralismo
jurdico, conceituado como a coexistncia no mesmo tempo e espao geopo ltico de mais de uma ordem jurdica
(oficialmente ou no) (SOUSA SANTOS, 1998). Ainda nesse sentido, ver estudo de caso realizado por Francisco
Antonio Zorzo sobre as prticas de controle do espao desenvolvidas pelos prprios moradores no assentamento
popular Alto da Sereia, localizado na Cidade de Salvador. (ZORZO, 1994).
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com as favelas) e a manuteno do status jurdico e social ou a socializao/integrao (por
exemplo, legalizao da posse ou propriedade seguida de urbanizao). O certo que,
independentemente do mecanismo que o Estado brasileiro tenha adotado, no sculo XX,
condio de ilegalidade foi, ao longo dos processos de urbanizao, utilizada para impor
arbitrariedades de todas as ordens. criada uma teia de no-direitos, na qual a condio de
ilegalidade em relao posse da terra determina uma srie de outras excluses, visto que,
durante muito tempo, a propriedade apresentou-se como condio de acesso a infra-estrutura
urbana, a servios pblicos e a crditos de financiamento habitacional. Nesse sentido, Ermnia
Maricato, tecendo consideraes a respeito de uma pesquisa jurdico-social realizada por
Boaventura de Souza Santos numa favela brasileira, afirma que
A expresso 'ns ramos e somos ilegais' (de um antigo morador da favela), que, no seu contexto semntico, liga o status de ilegalidade com a prpria condio humana dos habitantes de Passrgada, pode ser interpretada como indicao de que nas atitudes destes para com o sistema jurdico nacional, tudo se passa como se a legalidade da posse da terra repercutisse sobre todas as outras relaes sociais, mesmo sobre aquelas que nada tm com a terra ou com a habitao. (MARICATO, 1996, p. 60)
A interveno oficial baseada no mecanismo de represso-excluso ser a tnica dos
acontecimentos que viriam a seguir. No meado da dcada de 1960, o interesse do capital
imobilirio vai sendo melhor delineado e o Estado, j imerso em uma ditadura militar, vai
intensificar o controle do uso do solo. Do ponto de vista da poltica nacional declarada uma
verdadeira guerra s favelas e deflagrado o processo de criao do Banco Nacional de
Habitao como alternativa ao universo da ilegalidade. importante frisar que a prioridade do
referido Banco est clara no texto da lei que o criou9. A poltica pensada buscava priorizar a
aplicao de recursos na construo de conjuntos habitacionais destinados eliminao de
favelas, mocambos e outras aglomeraes sub-humanas de habitao.
Os conjuntos habitacionais apresentaram-se como mais uma idia fora do lugar.10 A
pretenso de substituio da favela por uma tipologia uniforme e padronizada no se deu da
9 O Banco Nacional de Habitao (BNH) foi institudo atravs da Lei Federal n 4.380, de 21 de agosto de 1964.
(BRASIL, 1964). 10
Expresso utilizada por Roberto Schwarz para tratar as importaes de idias pelos tericos brasileiros.
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forma pretendida no Brasil e nos demais pases latino-americanos. No entender de Jonh Turner
(1977), esse fato se deu em razo da incapacidade de endividamento por parte dos moradores e
a total incapacidade dos Estados em financiar o alto custo da terra e da construo baseada nos
"padres mnimos modernos". Ainda nesse sentido, Carlos Nelson Ferreira Santos (1981), ao
tecer consideraes sobre a utilizao dos recursos tcnicos e financeiros do Banco Nacional
de Habitao para erradicao de favelas, conclui sobre o evidente impasse que o BNH
enfrentou ao realizar uma unio impossvel: agilizar dinheiro caro, atravs da venda de uma
mercadoria de alto valor (terreno + construo moderna), para uma clientela de pessoas sem
capacidade de endividamento. Essa equao terminou gerando uma quantidade enorme de
unidades residenciais ocupadas irregularmente (pois os moradores no pagavam as
prestaes) (SANTOS, 1981)
Sob o ponto de vista do ambiente construdo, essa poltica habitacional segregacionista de
proviso de moradia, alm de ampliar a oferta de solo especulao, vai ser responsvel pela
padronizao e monotonia gerada na produo em larga escala, sem qualidade, numa poltica
repetitiva em termos de tipologia massificada, sem identidade prpria (SAMPAIO, 1999, p.
114).
Assim, pode-se afirmar que a proposta do Sistema Brasileiro de Habitao fracassou tanto no
propsito de eliminar as favelas do tecido urbano como no sentido de promover moradia aos
favelados atravs dos conjuntos habitacionais. Como resultado da poltica de habitao que
combina represso, invisibilidade, assistencialismo e incorporao dos assentamentos ilegais,
tem-se um adensamento das favelas causado pela migrao dos favelados expulsos das favelas
erradicadas, o surgimento de favelas em reas mais distantes e perifricas e uma verdadeira
insegurana em relao ao direito moradia.
1.3 REGULARIZAO FUNDIRIA E (IN) SEGURANA DA POSSE
A partir do final da dcada de 1970, a ditadura militar comea a dar sinais de exausto, e a
conquista da redemocratizao do Estado brasileiro cria um ambiente mais propicio para que
os movimentos sociais urbanos possam expor de forma mais contundente as suas
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reivindicaes direcionadas implementao de polticas pblicas que busquem o
reconhecimento da cidade ilegal e a segurana da posse como componente do direito social
moradia.11
Reivindica-se ento que seja, implementada a regularizao fundiria visando a promover a
segurana jurdica da posse que representa um componente do Direito moradia, aqui
entendido como o direito de todo ser humano a um espao na cidade onde possa viver
dignamente, em um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado que lhe permita ter acesso
aos equipamentos e servios urbanos, transporte pblico, saneamento bsico, sade, educao,
cultura, esporte e lazer, enfim, um direito que deve ser reconhecido como uma dimenso dos
direitos humanos e, sendo assim, trazendo consigo as prerrogativas fundamentais de um
direito universal, inalienvel e indivisvel (SAULE JUNIOR, 2004). Nessa vertente, a
regularizao fundiria passa a ser concebida como o processo de interveno pblica que
engloba os aspectos jurdicos, fsicos e sociais, objetivando assegurar a permanncia de
populaes moradoras de reas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, implicando
na melhoria do ambiente urbano e no resgate da cidadania (ALFONSIN, 1997). Em outras
palavras, esse conceito de regularizao fundiria envolve trs dimenses: a dimenso
jurdica, que consiste na obteno e registro do ttulo de posse ou propriedade; a dimenso
urbanstica, que consiste na regularizao do parcelamento, uso e ocupao do solo dotando-o
de infra-estrutura bsica; a dimenso social.
Essas reivindicaes dos movimentos sociais urbanos passam a pressionar as municipalidades.
As polticas de interveno pblica nas favelas buscando promover a remoo e expulso dos
moradores vo dar lugar aos programas de urbanizao e regularizao, desenvolvidos a partir
de uma reinterpretao e remodelagem de instrumentos jurdicos existentes e no processo de
reforma do ordenamento jurdico vigente, visando adequ-lo ao propsito de promover a
regularizao fundiria, urbanizao e prestao de servios pblicos. Vrias razes podem dar
respaldo aos anseios dos moradores, incluindo algumas de natureza simblica e ideolgica, as
11
Segundo a Campanha das Naes Unidas pela Segurana da Posse uma pessoa ou famlia ter a segurana da posse quando eles estiverem protegidos contra a remoo involuntria de suas terras ou residncia s, exceto em
circunstncias excepcionais, e somente pelos meios de um conhecido e acordado procedimento legal, o qual deve
ser objetivo, eqitativamente aplicvel, contestvel e independente(UNCHS apud OSORIO, 2004, p. 35).
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quais, entretanto, tm uma dimenso muito concreta tais como a aspirao dos favelados
segurana social e pessoal, bem como a escapar da poderosa situao de chantagem poltica que
se faz possvel devido a sua situao vulnervel(FERNANDES, E., 1998, p. 161).
Se, por um lado, a idia de promover a regularizao fundiria apresenta-se como
reivindicao do movimento social com o objetivo de sair da condio de ilegalidade, o que
em tese significaria uma maior segurana no exerccio do direito moradia, foroso
reconhecer que ela aparece tambm como uma orientao do mercado nas suas diversas
facetas, gerando uma tenso entre o ideal do mercado e o ideal do movimento social. A
diferena de objetivos relativos regularizao fundiria vai refletir na formao do seu
prprio conceito e no modus operandi da sua implementao.
Em face das diferentes formas pelas quais que os programas foram sendo implementados, o
conceito de regularizao fundiria o utilizado para designar intervenes que vo desde a
mera distribuio de ttulos at processos de intervenes pblicas mais amplos. Assim sendo,
Betnia Alfonsin (2001) sistematiza algumas acepes do termo: a) regularizao fundiria
como regularizao jurdica dos lotes; b) regularizao fundiria como regularizao
urbanstica, na qual o ponto central fazer com que uma rea ocupada em desconformidade
com a legislao urbanstica seja novamente recepcionada pela legislao; c) regularizao
fundiria como urbanizao do assentamento.
possvel demarcar uma linha divisria entre duas concepes tericas sobre as polticas de
regularizao fundiria que vm sendo implementadas nos pases em via de desenvolvimento.
Uma guiada pelo objetivo de promover prioritariamente a segurana da posse e a integrao
com a cidade legal, e outra que compreende a regularizao fundiria como mecanismo hbil
para o aquecimento da economia urbana. Essa ultima baseia-se nas idias do economista
peruano Hernando de Soto (2001), que acredita que a regularizao fundiria permite a
insero do capital dos pobres da cidade no circuito econmico, implicando em acesso a
crdito e incorporao cidade formal. Essas concepes tericas ultrapassam o mbito
acadmico e passam a influenciar as polticas propostas pelo Banco Mundial e demais
entidades internacionais nos anos 1990.
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Enquanto a ONU/Habitat propugna pelo reconhecimento do direito social de moradia, o Banco Mundial defende explicitamente o direito individual de propriedade e a homogenizao dos sistemas jurdicos nacionais, entre outras razes para remover os obstculos circulao global do capital imobilirio internacional. (FERNANDES, E., 2003a, p. 152)
No que concerne ao modus operandi da regularizao fundiria, as polticas implementadas
com base na vertente propalada por Hernando de Soto restringem-se distribuio, pelo Poder
Pblico, de ttulos de propriedade plena dissociados de outros programas sociais ou
urbanizao da rea beneficiada, concepo liberal que vem sendo bastante criticada por
inmeros tericos. Pesquisas desenvolvidas em paises que tiveram programas de regularizao
fundiria baseados nessa poltica demonstram que os programas no alcanaram os objetivos
propostos, tais como acesso ao crdito formal e integrao socioespacial. Nesse sentido,
importante relatar a relevante pesquisa realizada por Julio Cockburn, que vem demonstrar que
a distribuio de um milho de ttulos concedidos pela Comission de Formalizacin de la
Propriedad Informal (CONFORI) no Peru, durante cinco anos (1996-2000) no desencadeou
o acesso esperado ao sistema de crdito formal (CALDERN-COCKBURN, 2003).
Os efeitos indesejveis desses programas foram evidenciados. A homogeneizao do sistema
de seguridade da posse teve como conseqncia a destruio das diferenas existentes, o que
terminou por aumentar a presso do mercado formal sobre esses assentamentos, operando-se
os processos de gentrificao, que consiste na substituio de um tecido social por outro de
renda mais elevada. Nesse sentido, Geoffrey Payne (2002), afirma que muitas famlias
beneficiadas por programas de distribuio de ttulos de propriedade plena, terminaram por
comercializar suas casas em funo dos altos custos de servios que foram adicionados.
Apesar da evidncia dos limites e efeitos indesejveis desses programas, a demanda por ttulos
de propriedade plena continua sendo predominante por razes histricas, sem que haja por
parte da administrao pblica o interesse em adotar prticas alternativas (DURAND e
RAYSTON, 2002). A falta de interesse do Poder Pblico em propor uma outra concepo de
regularizao fundiria pode estar fundamentada em diversas razes. H alguns elementos
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que valem a pena serem registrados para reflexo. A regularizao fundiria restrita
distribuio de ttulos, alm de pretender alimentar o circuito do capital, busca em ltima
instncia, desobrigar o Poder Pblico da sua responsabilidade em tratar a questo da moradia
enquanto poltica pblica, visto que se pretende com a distribuio de ttulo que o beneficiado
do programa busque em instituies financeiras privadas crditos para melhoria da sua
habitao.
Outro componente que permeia muitas vezes os processos de regularizao fundiria diz
respeito s prticas clientelistas. A entrega dos ttulos aparece como um ato de vontade do
administrador pblico e faz parte da cultura de favorecimento e barganhas eleitoreiras,
distanciando-se dos princpios da ordem constitucional brasileira, que impe ao administrador
a prtica de atos impessoais, transparentes e probos.
importante registrar que existem outras perspectivas e compreenses pelas quais a
regularizao fundiria no passa obrigatoriamente pelo direito individual ao ttulo de
propriedade privada; busca evitar os despejos forados atravs do reconhecimento de outras
formas de legitimao, de modo a assegurar o direito social moradia. Nessa concepo, o
sistema legal vigente no pas deve prever instrumentos jurdicos e urbansticos que
reconheam a diversidade das formas de uso e ocupao do solo (OSORIO, 2004). Ainda
nesse sentido, Flavio de Souza (2004) rechaa o significado de segurana da posse calcado
apenas no direito de propriedade e prope uma outra abordagem para a questo.
O significado de seguridade da posse parece ter sido importado de uma prtica mais ortodoxa de planejamento urbano e direito urbanstico, na qual o conceito de propriedade privada individual tem sido amplamente aceito. As percepes de seguridade, por outro lado, no incorporam necessariamente os mesmos valores e princpios de tais conhecimentos ortodoxos. De fato, as percepes sobre seguridade da posse envolvem entidades menos tangveis (direito de uso, em vez de direito de propriedade, por exemplo) (SOUZA, 2004, 143).
Assim, o sistema de seguridade da posse no pode ser definido apenas em termos de
legalidade ou ilegalidade, formalidade ou informalidade; preciso perceber os fatores
histricos e culturais que refletem na relao entre as pessoas e a sociedade e entre as pessoas
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e a terra em que habitam (PAYNE, 2002). Os programas de regularizao devem levar em
considerao toda a teia existente que permite o florescimento da (in) segurana. Os
assentamentos mais antigos gozam de mais legitimidade dos que os mais recentes; os
assentamentos menores so mais vulnerveis do que os mais populosos; o nvel de coeso
social e presena de ONGs tambm so elementos que precisam ser apreciados (DURAND e
RAYSTON, 2002).
De acordo com esse pensamento, Joana Lima (2002), atravs de pesquisa emprica
desenvolvida em duas favelas na Cidade de Porto Alegre, refora o argumento de que a
seguridade da posse no passa exclusivamente pela distribuio de ttulos de propriedade
plena; pode ser assegurada por diversas formas. No caso em estudo, a autora chama ateno
para a forma participativa com que a municipalidade vem implementando os programas e a
gesto democrtica da cidade.
H uma relao imbricada entre seguridade e acesso ao trabalho, educao, crdito, sade,
abastecimento de gua, esgotamento sanitrio, relaes familiares e rede social
(KRUECKEBERG, 2002), o que faz com que as polticas para segurana da posse no possam
estar restritas a polticas de terra. Devem enfrentar outras dimenses dos problemas, incluindo
o desenvolvimento da comunidade, acesso ao crdito, capacitao, desenvolvimento de
economia e a integrao das polticas de regularizao no planejamento da cidade.
(DURAND-LASSERVE e ROYSTON, 2001).
Alerta Edsio Fernandes (2003a) que o desenvolvimento das polticas de regularizao
fundiria fora do escopo de polticas socioeconmicas abrangentes pode reforar o conjunto de
foras polticas e econmicas causadoras da segregao espacial. Da mesma maneira, o
desafio de implementar os mecanismos de legalizao sem que operem em descaracterizao e
aumento da segregao espacial est posto como tarefa difcil de ser materializada porque,
como adverte Cuellar (2002), a simples expectativa de que a rea ter acesso ao servio
pblico aumenta seu preo e, por conseguinte, torna muito mais dispendioso para o governo
promover acesso ao solo para os pobres e quase impossvel para eles conseguir o acesso por si
mesmo.
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Nesse vis, a regularizao implementada em uma poltica de planejamento urbano que
respeite as diferenas e as formas de uso e ocupao o desafio do sculo XXI. No Brasil, o
Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001) parece apresentar instrumentos hbeis para
enfrentar a questo e dialogar com a cidade ilegal.
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2 O ESTATUTO DA CIDADE: UM NOVO MARCO LEGAL
2.1 A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO CIDADE
As prticas sociais de acesso e uso do solo urbano nas cidades brasileiras, construdas a partir
de um dilogo contraditrio e conflituoso com os valores legais e dominantes e com a
legislao oficial (FERNANDES, E., 1998), vo pressionar o Poder Pblico a promover o
reconhecimento da cidade ilegal. No plano jurdico-institucional, essa presso dos movimentos
populares vai encontrar terreno frtil durante a elaborao da atual Constituio Federal
Brasileira, em que h captulo especfico tratando da questo urbana, posteriormente
regulamentado pela Lei Federal n 10.257/2001 denominada Estatuto da Cidade.
No presente captulo, objetiva-se fazer uma anlise do novo marco normativo firmado pelo
Estatuto da Cidade - Lei Federal n 10.257/2001 que, alm de regulamentar os artigos 182 e
183 da Constituio Federal de 1988, estabelece diretrizes da poltica urbana. Para tanto, busca-
se resgatar, os processos que antecederam a sua aprovao, trata-se das diretrizes e estudam-se
instrumentos trazidos por esse diploma legal, teis para promover a regularizao fundiria.
O Estatuto da Cidade no fruto de um momento, mas de uma longa trajetria de conquista de
direitos em relao cidade. A partir da dcada de 1960, a sociedade civil passou a reivindicar
novos marcos jurdicos que pudessem contribuir para reverso do processo de segregao e
excluso das cidades brasileiras. Com o golpe militar de 1964, os movimentos sociais foram
fortemente reprimidos e, com eles, os ideais da reforma urbana, o que restringiu as modificaes
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no mbito legislativo edio de uma lei federal criando o Banco Nacional de Habitao
(BNH).
No final da dcada de 1970 e incio da dcada de 1980, porm, como j dito, a ditadura militar
comea a dar sinais de enfraquecimento e o movimento social passa a buscar a transformao da
institucionalidade vigente atravs da redemocratizao do Estado brasileiro. No campo das lutas
urbanas colocado em pauta a reivindicao do Direito Cidade, que compreende o direito
vida urbana, transformada, renovada (LEFEBVRE, 1991, p. 116). Na busca desse ideal, as
reivindicaes direcionam-se para o direito terra, aos meios de subsistncia, ao trabalho,
sade, educao, cultura, moradia, proteo social, segurana, ao meio ambiente sadio,
ao saneamento, ao transporte pblico, ao lazer e a informao, de acordo com a idia de
universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos.
Essas reivindicaes pelo Direito Cidade constituram o fio condutor na busca de um efetivo
exerccio da cidadania e afirmao de direitos. Esses novos sujeitos coletivos passaram a intervir
no processo de construo de uma Nova Ordem Constitucional, visando assegurar a inscrio de
direitos econmicos, polticos, sociais e culturais. Nesse sentido, Ana Amlia da Silva (1990),
ao analisar o papel dos movimentos sociais na construo desse projeto democrtico, destaca a
sua importncia para a elaborao de emendas populares resultantes de mais de 12 milhes de
assinaturas encaminhadas ao Poder Constituinte. As foras populares envolvidas nesse processo
buscavam estabelecer um novo padro de poltica pblica que fosse capaz de assegurar o
reconhecimento dos direitos emergentes.
Nesse contexto mais amplo de participao para a elaborao da Constituio Federal de 1988,
foi apresentada a emenda popular da Reforma Urbana subscrita por 131.000 eleitores
brasileiros, reafirmando o direito humano universal cidade. No texto apresentado, contavam
23 artigos que versavam sobre moradia, propriedade imobiliria, poltica habitacional,
transportes, servios pblicos e gesto democrtica da cidade. Nessa proposta, os institutos
jurdicos e urbansticos eram auto-aplicveis, ou seja, no precisavam de lei federal que os
regulamentassem. No decorrer das negociaes na Assemblia Constituinte, porm, a proposta
original foi tomando novos contornos e esvaziando algumas pretenses dos movimentos
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populares que lhe deram origem. Durante a sua tramitao, houve um acirrado processo de
disputa poltica em torno das idias apresentadas. As foras polticas conservadoras
representadas pelo bloco parlamentar denominado Centro buscavam evitar a instituio de
normas constitucionais auto-aplicveis a fim de no afetar os interesses dos detentores do capital
imobilirio (SAULE JUNIOR, 1997).
Essas disputas fizeram com que a Emenda Popular no fosse aprovada na ntegra. Apesar disso,
o texto final consagrado no captulo da Poltica Urbana artigos 182 e 183, da Constituio
Federal de 1988 trouxe inovaes importantes para implementao de um novo modo de
conceber a cidade e, pela primeira vez na histria do pas, no texto constitucional dedicado um
captulo especificamente poltica urbana.
A despeito de um ambiente parlamentar majoritariamente refratrio s proposies do MNRU especialmente em relao s que buscavam conferir efetividade funo social da propriedade , a Constituio de 1988, pela primeira vez na histria do Brasil, incorporou dispositivos que fizeram migrar, do territrio patrimonialista do direito privado para o mbito coletivo do direito pblico, as relaes jurdicas pertinentes propriedade urbana. (BASSUL, 2004, p. 10)
Portanto, a opo jurdico-poltica do ordenamento constitucional brasileiro se fez no sentido de
relativizar o direito de propriedade, condicionando o seu exerccio ao atendimento da sua funo
social, aos fundamentos da ordem econmica e financeira e ao respeito aos direitos humanos
fundamentais da pessoa. No mais se mantm a viso privatista e individualista, que tem sua
matriz no liberalismo clssico, de que cabe ao proprietrio usar, gozar e dispor da propriedade
privada de forma exclusiva e perptua. H, na Constituio Federal de 1988, uma evidente
mudana de foco. O seu texto reafirma o carter privado da propriedade, mas a proteo e a
existncia dela passa a ser condicionada aos atendimentos da funo social, ao exerccio desse
direito em prol do bem estar dos habitantes da cidade. Nesse sentido,
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antes de o direito de propriedade constituir poder de troca do proprietrio, poder de uso repete-se e poder de uso que, a par de no interessar somente a ele, mas a todos quantos possam ser afetados pelo exerccio do referido direito, est pressionado por urgncias inadiveis.(ALFONSIN, J., 2003, p. 176).
Desse modo, a funo social da propriedade o princpio estruturador sobre o qual a poltica
urbana deve ser assentada e, por se tratar de um conceito aberto e indeterminado, cabe aos
municpios, atravs do Plano Diretor, o poder-dever de estabelecer as exigncias fundamentais
de ordenao da cidade que devem ser atendidas para o cumprimento da funo social (art.
182, 2 da CF/1988).12 Portanto, a Constituio Federal de 1988 remete a definio para a
esfera local, que levar em conta as necessidades de cada municpio. Para ento o municpio
executar a poltica de desenvolvimento urbano de modo a garantir as funes sociais da cidade
e o bem-estar de seus habitantes (art. 182 da CF/1988). Para materializar esse propsito, a
Constituio Federal de 1988 estabelece ainda, no artigo 182, instrumentos urbansticos
sancionatrios buscando coibir o uso da terra como reserva de valor, cabendo ao Poder Pblico
municipal exigir a utilizao do imvel atravs da aplicao do parcelamento, edificao ou
utilizao compulsrios, imposto progressivo sobre a propriedade territorial urbana e
desapropriao mediante ttulos da dvida pblica, sucessivamente.
Por fim, visando a reconhecer e garantir a segurana jurdica dos cidados de baixa renda que
vivem nos assentamentos criados margem da legalidade urbana, assim como cumprir a
funo social da propriedade pblica e privada, estabeleceu no art. 183 os institutos do
usucapio urbano e da concesso de uso13.
Houve, entretanto, o entendimento de juristas e administradores pblicos de que a aplicao
desses institutos deveria ser submetida regulamentao por norma infraconstitucional, o que
12
A proposta de emenda popular no previa o Plano Diretor como instrumento bsico da poltica de
desenvolvimento urbano. 13
A proposta popular de emenda ao projeto de Constituio previa a possibilidade de usucapio de terras pblicas e
privadas de posse no contestada, por trs anos, cuja metragem no ultrapassasse o limite de 300m2 e fosse
utilizada para moradia, sendo adquirido o domnio independentemente de justo ttulo e boa f (art. 11). Esse artigo
no foi inserido no texto constitucional sob o argumento de proteo ao patrimnio pblico, sendo o instituto do
usucapio urbano em terras pblicas substitudo pela concesso de uso (BRASIL, 1988).
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representou um obstculo para implementao dos institutos trazidos pela Constituio
Federal de 1988.
Contudo, apesar desse entendimento ter prevalecido, algumas administraes buscaram as suas
aplicaes imediatas, apoiadas em interpretaes de juristas que concebem o direito para alm
de uma abordagem meramente formal e dogmtica, e compreenderam ser possvel avanar na
implementao da funo social da propriedade e da cidade atravs da incluso de diretrizes nas
leis orgnicas municipais, implementao de poltica participativa na elaborao dos planos
diretores (Porto Alegre e Santo Andr), criao de zonas especiais (Recife, Belo Horizonte),
aplicao do IPTU progressivo (So Paulo), e outros.
Paralelamente a esse esforo por parte das administraes municipais, houve na esfera
institucional uma grande presso de diversos setores da sociedade para que o Congresso
Nacional aprovasse a Lei Federal, que viria a ser o Estatuto da Cidade a fim de regulamentar
os referidos artigos e estabelecer as diretrizes gerais para a execuo da poltica urbana.
2.2 O PROCESSO DE ELABORAO DO ESTATUTO DA CIDADE
O projeto de lei federal de desenvolvimento urbano foi iniciado e discutido desde 1989 com a
apresentao, no Senado Federal, do PL n 181/1989, denominado Estatuto da Cidade, que
dispunha sobre as diretrizes gerais da poltica urbana e buscava regulamentar os artigos 182 e
183 da Constituio Federal de 198814.
A tramitao desse projeto no Congresso Nacional no se deu de forma pacfica. Foram 11
anos de embates polticos e negociaes entre os diversos atores da cidade. Segundo Grazia
De Grazia (2002), as entidades que representavam os proprietrios de terra, setores da
construo civil e imobilirio, alm da Tradio Famlia e Propriedade (TFP), pressionaram
14
importante ressaltar que houve outras tentativas de aprovar uma Lei Federal de Desenvolvimento Urbano.
Registre-se o projeto de lei de desenvolvimento urbano, PL n. 775/1983 que no foi aprovado em funo das
presses de diversos setores do capital.
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no sentido de impedir a sua aprovao. Durante esses anos de tramitao no Congresso
Nacional, o Estatuto da Cidade no apenas passou a ser fruto de uma reivindicao do
movimento social de reforma urbana, mas tambm representou um pacto entre diversos
setores que compem a sociedade brasileira, sendo incorporados ao projeto inicial
instrumentos de interesse do capital imobilirio, a exemplo do instituto das operaes urbanas
consorciadas, e o que em certo momento parecia uma ameaa ao setor empresarial passou a
ser gradativamente percebido, e aproveitado, como oportunidade de mercado (BASSUL,
2004, p. 133).
Se, por um lado, o projeto original sofreu alteraes a fim de permitir a sua aprovao, por
outro, isso no significou o esvaziamento dos ideais do Movimento da Reforma Urbana. O
Estatuto da Cidade, logo no seu primeiro, artigo estabelece a sua finalidade e declara o seu
propsito, qual seja, estabelecer normas de ordem pblica e interesse social que
regulamentam o uso da propriedade em prol do bem coletivo, da segurana e do bem-estar dos
cidados, bem como do equilbrio ambiental.(art. 1, pargrafo nico). Portanto, essa
determinao a esfera na qual devem gravitar a interpretao, aplicao das diretrizes e
instrumentos contidos no novo marco regulatrio.
2.3 PRINCPIOS, DIRETRIZES GERAIS E COMPETNCIA PARA PROMOO
DA REGULARIZAO FUNDIRIA
O Estatuto da Cidade estabelece um conjunto de princpios e diretrizes gerais que devem guiar a
elaborao e execuo da poltica urbana de modo a reverter a segregao e excluso
socioespacial gerada no decorrer do processo de urbanizao brasileira. nesse sentido que a
funo social da propriedade e das cidades juntamente com os princpios do desenvolvimento
sustentvel, da justia social e da participao popular se apresentam como base estruturadora
dessa poltica, cabendo, portanto, s diretrizes gerais, delinear o caminho a ser seguido pela
Unio, Estados e Municpios para a sua efetivao.
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Esse entendimento est consubstanciado no artigo 39 do Estatuto da Cidade, que expressamente
determina cumprir a propriedade urbana a funo social quando atende s exigncias
fundamentais de ordenao da cidade expressa no Plano Diretor, assegurando o atendimento das
necessidades do cidado quanto qualidade de vida, justia social e ao desenvolvimento das
atividades econmicas, devendo, para tanto, serem respeitadas as diretrizes previstas nesse
diploma legal. Portanto, o Plano Diretor um instrumento estratgico para fazer valer a
efetivao desse principio, conforme ser abordado neste trabalho.
O Plano Diretor, ao definir as funes que devero ser atribudas propriedade para que ela
cumpra a sua funo social, deve atentar para as diretrizes gerais de desenvolvimento
estabelecidas no Estatuto da Cidade. Entre as diretrizes gerais previstas est a regularizao
fundiria de reas ocupadas pela populao de baixa renda. Essa diretriz apresenta-se como
um importante comando para que a propriedade e a cidade cumpram a sua funo social, na
medida em que abre caminhos para garantir o reconhecimento, a segurana da posse, o direito
social moradia e, em carter amplo, o direito cidade sustentvel, esse ltimo conceituado,
no inciso I do artigo 2 do Estatuto da Cidade, como o direito terra urbana, moradia, ao
saneamento ambiental, infra-estrutura urbana, ao transporte e servios pblicos, ao trabalho
e ao lazer, para presentes e futuras geraes. nesse sentido que Jacques Alfonsin (2002) se
posiciona, ao afirmar que a primeira condio concreta de respeito devido ao bem estar dos
habitantes das cidades garantir a posse de espao indispensvel moradia de todas as
pessoas que vivem nas cidades, sendo o reconhecimento dessa funo do solo urbano parte
integrante das funes sociais da cidade e referncia obrigatria das responsabilidades
inerentes funo social de cada propriedade.
Assim, o direito segurana jurdica da posse, o direito moradia adequada e o direito
cidade aparecem como escalas de direitos sucessivos e interdependentes. O direito segurana
jurdica (proteo contra remoes involutrias) integra, junto com outros componentes, o
direito moradia adequada que, por sua vez, se apresenta como ncleo central do direito
cidade sustentvel. Refora esse entendimento, a afirmao de que assegurar o pleno
exerccio do direito cidade a diretriz-chave da poltica urbana que deve ser implantada nas
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cidades brasileiras para atender s prioridades de seus habitantes, nas quais se inclui o direito
moradia.(SAULE JUNIOR, 2004, p. 230).
Na efetivao desses direitos, a regularizao fundiria tem um papel fundamental, pois
permite uma interveno pblica ampla no ambiente construdo, conforme tratado neste
trabalho. Buscando implementar essa concepo mais ampla de regularizao fundiria, o
Estatuto da Cidade a insere como componente da poltica de desenvolvimento urbano,
devendo a sua implementao se dar de forma integrada com as demais diretrizes gerais nele
previstas, tais como cooperao entre os governos e iniciativa privada, justa distribuio dos
benefcios decorrentes do processo de urbanizao, ordenao do solo de forma a evitar a
especulao imobiliria, preservao e recuperao do meio ambiente, planejamento e gesto
democrtica da cidade. Por essa concepo de regularizao fundiria, o Estatuto da Cidade
deixa para trs as intervenes pblicas tpicas afastada da poltica urbana que preponderaram
nas dcadas de 1980 e 1990 e que alm de no terem enfrentado a escala do problema, em
muitos casos contriburam para agravar o processo de segregao socioespacial.
A relao entre funo social e regularizao fundiria, portanto, pode ser observada por dois
vieses complementares. A funo social da propriedade est diretamente relacionada com o
seu uso destinado a garantir as funes sociais da cidade e o bem-estar dos seus habitantes.
Como visto, a propriedade cumpre a sua funo social quando permite garantir a permanncia
de pessoas no local onde construram as suas moradias, estabeleceram laos de vizinhana e
criaram uma forma de viver. Por outro lado, o cumprimento da funo social da propriedade
no utilizada ou mal utilizada pode vir a contribuir com o processo de democratizao do
acesso terra urbana dotada de infra-estrutura, o que em tese evita que novos assentamentos
sejam construdos margem da legalidade urbana.
Apesar da necessidade de interao entre as diretrizes gerais da poltica urbana, sero tratados
especificamente os dois incisos referentes regularizao fundiria de reas ocupadas pela
populao de baixa renda, sejam elas, favelas, cortios, loteamentos clandestinos ou outras
tipologias construdas margem da legalidade fundiria e urbanstica. Desse modo, o Estatuto
da Cidade prev a
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XIV - regularizao fundiria e urbanizao de reas ocupadas por populao de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanizao, uso e ocupao do solo, ou edificao, levando-se em considerao a situao scio-econmica da populao e as normas ambientais. -------------------------------------------------------------------------------------- XV simplificao da legislao de parcelamento, uso e ocupao do solo e das normas edilcias, com vistas a permitir a reduo dos custos e o
aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; (BRASIL, 2001)
Ao estabelecer a obrigatoriedade da edio de padres especiais de urbanizao no processo de
regularizao fundiria, o Estatuto da Cidade impe ao Poder Pblico um dilogo com a
realidade ftica, demonstrando uma ntida opo em rechaar o discurso do padro ideal que
foi historicamente usado para reforar a excluso e segregao espacial. H uma opo pelo
reconhecimento dos assentamentos como espaos diversificados de convivncia, que se
constroem a cada dia, a cada minuto, a cada segundo, apresentando tipologias prprias. Nesse
sentido,
A exigncia de um ordenamento que conduza regularizao fundiria e urbanstica das ocupaes populares existentes introduz um condicionante novo e transformador em nosso direito urbanstico. At ento, a incompatibilidade dentre as ocupaes populares e a ordem urbanstica ideal tinha como conseqncia a ilegalidade daquelas (sendo a superao desse estado um dever dos responsveis pela irregularidade - isto , dos prprios ocupantes). Com o Estatuto a equao se inverte: a legislao deve servir no para impor um ideal idlico de urbanismo, mas para construir um urbanismo a partir dos dados da vida real. (SUNFELD, 2003, p. 59-60)
Isso no significa dizer que esse novo padro normativo deva consolidar um espao urbano
precrio; ao contrrio; deve ser utilizado para redimensionar a interveno do Poder Pblico
nesses assentamentos. O estabelecimento de padres diferenciados e o redimensionamento da
imposio de um ideal idlico de urbanismo, atravs da simplificao das normas urbansticas,
no podem ser guiados apenas pela racionalidade do mercado buscando reduzir custos para
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aumentar a oferta de lotes e habitaes, sem levar em conta o