A Insurreição Das Oito

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A INSURREIÇÃO DAS “OITO”  

 A escola ficava na periferia de uma capital não muito grande. Contava

no turno da tarde com pouco mais de trezentos estudantes, divididos emturmas do quinto ao nono ano. Tinha pouco mais de uma década de fundação,

e apesar de vir enfrentando sérios problemas nos últimos cinco anos, ainda se

mantinha entre as “boas escolas” da rede  naquela região. A época era

dezembro, final do período mais quente do ano, naquela que era uma das

capitais mais quentes do país.

Mesmo sendo da rede pública, ou talvez justamente por isso, a maioria

das pessoas trabalhadoras encarregadas dos serviços gerais e administrativos

da escola era terceirizada, havia nada mais nada menos que quatro empresas

terceirizadas prestando serviços ali. As oito dessa história eram funcionárias de

três dessas empresas, mas falaremos delas logo logo, antes vamos conhecer

um pouco mais a escola e sua atual situação. Tentaremos nos portar de forma

imparcial, mas já nos acusaram de só sabermos questionar e apontar

problemas, uma mania por trazer à tona os defeitos e jogar tudo no ventilador...

Se sucumbirmos a essa falha, falta ou desvio, será por pura incompetência de

nossa parte, mas ainda assim, o que não faltará aqui é a verdade, por mais feia

ou incômoda que possa ser, do caminho de relatarmos as coisas como

realmente aconteceram não nos retiramos.

 A estrutura física da escola não era adequada, nem a atividade a que se

propunha o local, ensino e aprendizagem ou educação se preferirem, nem aquantidade de alunes. A parte construída seguia o padrão arquitetônico dos

locais destinados ao controle de massas, como já foi descrito pelo francês de

nome engraçado, os corredores, as celas, o pátio com o ponto de observação,

a cantina, os bebedouros (sempre com água quente), os vigias... tal qual a

cadeia, o hospital e a granja. Apesar da fachada colorida com desenhos

alegres e fofinhos, como uma maquiagem, as salas eram sombrias e quentes,

sem climatização apesar do clima, com uma ventilação deficiente, cadeirasdesconfortáveis e muitas vezes inadequadas para os variados tamanhos (em

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anos anteriores era comum que nos primeiros horários os alunos saíssem de

sala em sala à procura de carteiras, porque sempre faltavam algumas em cada

sala, enquanto noutras sobrava). A acústica era ruim, principalmente quando

se tem em média trinta criaturinhas barulhentas por natureza. O próprio

manusear das cadeiras e mesas gerava muito ruído. A quadra não era coberta,

o que impossibilitava que fosse utilizada nos últimos horários da manhã e nos

primeiros da tarde, não tinha arquibancadas, nos interclasse a molecada se

dependurava nos alambrados pra assistir os jogos, enquanto um bom bocado

ficava em pé apoiado na mureta e fritando no sol. Os banheiros eram poucos e

subdimensionados para a quantidade de alunos, assim como os bebedores,

além disso, comum era não ter água nas torneiras e nem mesmo nos vasos;

espelhos, sabonete, sabão, deuzulivre, às vezes faltava papel... A biblioteca,

desatualizada, com poucos livros atuais e “interessantes” pra galerinha,

abarrotada de livros didáticos, pequena, estava às escuras e sem climatização

há quase um ano, essa é uma historinha interessante, vejam só: o ar-

condicionado deu problema, aí sabe-se lá Jah porque num tinha como

consertar ou trocar o Split, a solução foi instalar ventiladores novos, já que os

de teto não funcionavam e não davam conta, só que a pessoa que instalou os

ventiladores, desinstalou a rede das lâmpadas, que nunca mais se acenderam.

 Assim me relatou uma pessoa que não tinha necessidades, e nem prática, de

mentir e que conhecia de perto o local em questão. Única sala climatizada da

escola, com exceção da diretoria, era então o laboratório de informática, que de

laboratório só tinha o nome, não havia um único computador funcionando; a

sala era frequentemente utilizada como sala de reunião e de vídeo, porque sala

de vídeo mesmo num tinha também. Laboratório de ciências só tinha em caixa

alta nos umbrais de mais uma sala de aula. De área não construída utilizável

somente uma reduzida área verde que servia de prolongamento do pátio, não

era coberta e contava com quatro mangueiras de pequeno porte, que não

conseguiam sombrear toda a área, apesar disso, antes da maquiagem de início

de ano que construiu duas mesas e oito banquinhos de concreto embaixo das

mangueiras mais frondosas, era possível acomodar uma turma e ter uma aula

ali, depois dos benditos banquinhos não dá mais. Os tais banquinhos e mesas

 já estão rachados e quebrados, não durarão muito... Para além disso, nosfundos da quadra e das salas, é o mato e o lixo, e um gato morto que uma

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turma uma vez encontrou. (Tudo bem, se nem tudo são flores, nem tudo é gato

morto também; teve a ocasião em que uma turminha, numa aula qualquer que

tava acontecendo fora da sala, encontrou um morcego numa mangueira mais

próxima da quadra, o bicho era grande, me contaram, e tava lá talvez tirando

uma soneca.) Mais nada! Horta, pracinha, oficina, nadica  de nada. Mas era

uma boa escola ainda, mesmo com as constantes falta de água, afinal de

contas, tinha escola muito pior ...

Do professorado o que posso dizer é que se esforçavam, nem sempre

de forma positiva é verdade, mas nenhum e nenhuma agia de forma maldosa,

não desejavam o mal daquelas jovens criaturinhas, acreditavam na educação

como ferramenta única para ascensão social das massas menos favorecidas,

eram, todos e todas sem exceção, cheios de boas intenções, e talvez por isso

a escola estivesse se tornando um inferno. Aumentava o número de

reprovações, a “indisciplina” e a violência, numa proporção assustadora. Não

era incomum ouvir de docentes, que assim como algumas das oito de que

falamos antes estavam na escola desde a fundação, sussurros na sala dos

 professores  sobre a decadência da escola, a ineficiência da atual gestão, a

saída de bons alunos por conta da desorganização, e mais uma porrada de

queixas, lamúrias e sábias, pomposas e inúteis reflexões, que nunca levavam a

nenhuma ação diferente de enfrentar cada aula como se fosse uma batalha, e

se resignar aguardando o messias sindical salvador ou a terra prometida por

alguma santa secretaria, vangloriando-se orgulhosamente de seus papéis de

mártires pacientes e determinados, firmes na retidão de sofrer em silêncio

sonhando com dias e Institutos melhores... (Nova falha nossa, esquecemos demencionar que a maioria desses profissionais geralmente trabalha três turnos,

alguns trabalham nos finais de semana, enfim, suportam jornadas extenuantes

em atividades realmente insalubres, hostis e doentias, só nessa escola existem

dois docentes exercendo outras funções por terem sido removidos da sala de

aula apresentando problemas psicológicos, uma terceira está afastada pelo

mesmo motivo. Essas condições de vida acabam por minar muitas das forças

dessa categoria laboral.)

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  Chegamos então à questão da violência crescente no interior e entorno

da escola. Irei propositalmente omitir as tais simbólicas, presentes nas salas de

aula e nas relações entre o alunado e comunidade escolar, por não ser versado

no outro francês de nome engraçado, Bourdier, se não me engano. Foquemos

na violência que supostamente vem de fora, por ser tema, e fato, recorrente

nos últimos tempos. As invasões na madruga pra levar ventiladores, botijões e

outras coisas já era acontecimento comum há um bom tempo, de novidade só

as invasões durante o dia, situações de terror, pessoas armadas pulando os

muros, polícia sendo chamada, assaltos na porta, brigas... Alunos fumando

alguma coisa no banheiro ou nos fundos da quadra, consumindo remédios

controlados, altos moleques de olho vermelho e pupila dilatada, ameaçando

professores e secando os pneus dos veículos. O clima é de uma tensão

constante. O alunado em geral convive com essa realidade constantemente,

visto que habitam as redondezas, são os filhos e filhas, irmãos, primas,

sobrinhos, vizinhas, chegados e conhecidos de “traficantes”, latrocidas,

homicidas e da malucada em geral. E agora é polícia na hora do recreio, é

polícia na saída...

E assim é a escola onde trabalham as oito, que se desdobram fazendoinúteis serviços burocráticos, limpando banheiros com baldes, já que as

descargas como já dissemos muitas vezes não funcionam; operando milagres

pra limpar os benditos banheiros com um litro de água sanitária por semana;

realizando maravilhas matemáticas pra garantir um rango minimamente

decente pra moçada, já que não tem à disposição muitos ingredientes

essenciais; tendo que diuturnamente limpar um pátio que sempre fica imundo

após o recreio, também pudera, trezentos e tantos diabinhos e diabinhas que

comem em pé, correndo, desviando dos outros que correm desesperadamente

pra aproveitar os míseros e cronometrados vinte minutos do recreio; ou

sentadas no chão, pelos cantos, espremidos nos pouquíssimos bancos

existentes ao redor do pátio; mesas, refeitório, ah! Que sonho!

Seguem as oito, dia após dia, algumas tendo que permanecer e almoçar

na escola o dia inteiro, umas por ser extremamente perigoso ir até em casa

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almoçar meio dia, outras por morarem muito longe. Almoçam e se deitam num

canto ou noutro da cantina pra descansarem da primeira etapa da jornada, no

chão mesmo porque num tem um espaço reservado pro repouso delas não,

nem vestiário, nem nada. Elas se esforçam, não faltam, resistem como fortes

mulheres trabalhadoras que são, mas existem coisas humanamente

impossíveis. Existisse um nível de educação disseminado e presente na

escola, bem como a infraestrutura apropriada, a ponto de fazer com que as

crianças sujassem menos, talvez as trabalhadoras dessem conta, e eu reforço

o talvez. Na atual situação o número é insuficiente. Mas elas resistem e lutam,

uma às vésperas de completar 65 anos tem netos e sobrinhos estudando ali;

outra esta lá desde a fundação; tem a que é arrimo de família e por aí vai,

todas trabalhadoras e lutadoras. Elas resistem e lutam pra sobreviver e para

cumprir com seus “deveres” e “obrigações”, mesmo estando há três meses

sem salário, cinco tickets atrasados, férias vencidas, e não pagas, como

décimos e afins. Mas cometeram o pior de todos os crimes: reclamaram!

 A segunda surgiu trazendo o último dia de novembro. As trabalhadoras

procuraram a direção da escola e informaram que diante das atuais, e

absurdas, condições, iriam paralisar as atividades na terça, como forma depressionar os empregadores, nada mais justo e inclusive legal, a tal da

constituição “garante” o direito de greve e de manifestação, principalmente

numa situação como essa, onde num mundo de direitos e deveres, uma parte

estava faltando com o cumprimento destes últimos. Prolixamente desenhando

pra não sobrar dúvidas, as trabalhadoras estavam cumprindo com seus

deveres, uma vez que estavam indo trabalhar até aquela data, e exercendo um

direito, o de manifestar; os patrões não estavam cumprindo seus deveres e não

tinham e nem têm o direito de fazê-lo, já que lucram e sobrevivem às custas do

trabalho alheio!

Por uma dessas supostas ironias do destino, calhou de um tal gerente

não sei das quantas da secretaria que controla a rede de ensino da qual a

escola faz parte, fazer uma visita na fatídica terça, primeiro de dezembro, início

do mês de aniversário do nosso... Para, supostamente, verificar o andamento

das obras da escola. Pois é, estavam a cobrir a quadra e reformar as salas,dizia-se na boca pequena que iriam instalar os condicionadores de ar, e fazia

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sentido, já que estavam “lacrando” as salas. Coincidência ou não ano que vem

é ano eleitoral, e dizem as más-línguas que o senhor prefeito irá tentar a

reeleição, cala-te boca!

Sem que as oito estivessem realizando suas funções, embora presentesna escola (com exceção da sexagenária que estava ausente por motivos

outros, cujos estava a resolver justamente na empresa da qual é contratada),

ficava impossível que a escola funcionasse o horário integral. Na hora da

merenda num tinha merenda. Nessa altura a diretora “decidiu”, como forma de

solidariedade, despachar as crianças no recreio. Se não soasse tão

tendencioso eu me atreveria a dizer que ela não teve outra opção, mas como

não faz diferença mesmo, fiquemos com a tese da decisão solidária de apoio.

O gerente chegou. Cadê a meninada? Caíram fora. Por quê? Tinha

merenda não. Por quê? Geral tá sem receber aí cruzaram os braços.  Ah cuma

é?! Pois é. Pois tão tudo demitida! Onde já se viu, damo o emprego pra essas

pragas e elas em vez de agradecer, se num fosse nós empregando, iam viver

de que? Aí só porque tão uns meizinhos sem receber, tão se rebelando! Ah

pois aqui num é assim não! Num quer trabalhar vai pro olho da rua! Pode crer.

 A informação corre. O chamado é pra geral tá na escola 13h em ponto. Tão lá

às doze e quarenta. O que é que tá acontecendo. Tão demitidas. Como assim?

13h, quase em ponto. O gerente chega. Trazendo já uma equipe nova com ele.

O que é isso? Tão demitidas. Num querem trabalhar tem quem queira! (Um

arrogante parasita fascistóide machista, se dirigindo a mulheres trabalhadoras,

mães, avós...). O cara faz o showzinho e vaza. Geral se movimenta. Um

professor, de forma ágil e habilidosa, é pastor a tal figura, desenvolve o texto

de um abaixo assinado que corre a escola, ou parte dela, o texto era bom, numposso negar, mas lembrava muito, se me permitem o devaneio, as súplicas dos

trabalhadores russos ao  paizinho czar; eu teria trocado o mui humildemente

solicitamos, por algo do tipo “exigimos imediatamente”, mas talvez seja só

questão de estilo. Direção se compromete de levar o documento e tentar

“interceder” junto ao paizinho, digo, junto à secretaria. Se geral já tava na luta,

dela num se retiraria nem por decreto! E novamente a direção sábia e

sensatamente “decidiu” liberar os alunos na hora do recreio, como tinha feitopela manhã. Até porque a galerinha de farda tava se ligando no que tava

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acontecendo, tinha tia da limpeza chorando pelos cantos da escola, e um

sentimento fortíssimo e extremamente poderoso ia se manifestando ali. Pela

manhã eram crianças realmente, à tarde eram jovens. Manda os professores

pras salas, explicam que tá sem clima por conta da situação, e despacha todo

mundo o mais rápido possível. Não faz quinze dias que essas pragas se

organizaram e fizeram um abaixo assinado, com trocentas e tantas

assinaturas, informando que não iam querer uma determinada atividade de

final de ano, fato que pegou a escola toda no contrapé. Na sala dos

 professores todo mundo queria saber o que era que estava acontecendo, todo

mundo boiando. Não! Pela amor de Deus, despacha esses demônios pra bem

longe daqui, pra que não se organizem de novo, amém!

Mas a Legião já tinha surgido, e ela é muitos.

Ela se comunica, pensa, pesquisa, conquista, desenvolve, aprende e se

espalha. Chega a quarta, as oito continuam “demitidas”, a Legião precisa agir,

e ela age! 12h40 no horário local, a tensão é sentida no respirar... Na sala dos

 professores aquela “morna rebeldia”, muita indignação e pouca ação. Fizemos

um abaixo assinado ontem, a direção ficou de levar. É um começo, mas não

pode parar aí, os alunes tão se movimentando, a gente precisa apoiar e ajudar.

Havia ali uma figura estranha, não ao local, mas ao dia, não deveria estar

presente, mas estava. Um experiente professor, ex-diretor, fala com aquela

aura de sabedoria que somente anos e anos de experiência podem conceder

(preciso enfatizar a ironia?): demitidas elas vão ser, sem dúvidas, mas nãoagora, no máximo serão transferidas, só depois é que vão ser finalmente

demitidas. Podemos organizar um movimento e exigir que elas permaneçam

aqui, dizia o estranho. O melhor pra elas é não fazer muito barulho, se nós nos

movimentarmos podemos piorar as coisas pra elas, já foi feito o abaixo

assinado e elas já estão com um advogado que as está orientando. Mas a

gente pode organizar algo pra pressionar. Desde que não atrapalhe as coisas.

E mais professores chegam, indignados, se mostram dispostos a ajudar.Chegam também mais alunos. Um grupo de garotas chama o estranho.

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Conversam ali na antessala. Há um fluxo incomum de pessoas. As garotas

dizem que pretendem fazer uma fala na formação, pra talvez marcar uma

reunião pra hora do recreio, com o intuito de discutir e produzir ações de apoio

às trabalhadoras. A formação é uma hora boa, tem familiares na escola, seria

interessante envolver a comunidade, tem que chamar os professores. As

pessoas da direção passam ali perto, mas parecem se esquivar daquele

sinistro grupo que parece conspirar, ali na frente de todo mudo. Uma das

diretoras está logo ali do lado. As garotas pedem que o estranho fale com ela

pra pedir a caixa de som e o microfone. Ele responde que o movimento é delas

e elas é que precisam fazer o que for preciso. Portões abertos. Mais grupos

aqui e acolá. O estranho passeia pelo pátio. As garotas o encontram. Ela disse

pra esperar a outra diretora, que não vai ter formação, que a gente fosse pra

sala mesmo. Já tem professor partindo com a caderneta debaixo do braço.

Elas dizem que vão tentar correr as salas chamando a galera pra hora do

recreio. Ele só escuta. Elas perguntam alguma coisa. Ele dá uma opinião.

Pedem um direcionamento. Recebem opções. E o pátio vai se esvaziando.

Encasteladas, como bravas guerreiras que são, estão as oito, e o

estranho vai ao encontro delas. Ouve as versões de cada uma, sofre com osolhos mareados das senhoras que dizem, com uma incrível força de espírito

entre os dentes, o como se sentiram humilhadas. O clima não era mais de

tensão, o sentimento que se materializava nos olhos flamejantes daquelas

mulheres, naquela heroica e desigual luta, no medo notável, na raiva das

palavras, era o sentimento mais poderoso da classe trabalhadora...

O estranho ouvia e ponderava, falava uma coisa ou outra, perguntava

mais, e na conversa iam surgindo ideias, das próprias trabalhadoras: chamar aimprensa, fazer vídeos e postar na internet, divulgar notas, enfim, se

movimentar. Um professor que está presente dá apoio. Uma das oito faz uma

ligação. Outra se queixa do abaixo assinado não ter sido apresentado para o

pessoal do turno da manhã. Mais informações vão surgindo. O estranho

rabisca. Uma outra terceirizada, que não entrou no bolo, da dicas. Grupos de

alunos aparecem, falam um palavrão: greve. A hora do recreio se aproxima. A

diretora não chega. A moçada não admite que a escola funcione normalmente,como se nada estivesse acontecendo. A diretora já está pra chegar. Mas o

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recreio chega primeiro. Adrenalina fluindo fartamente. Molecada no pátio. O

grupo das meninas solicita a caixa de som e o microfone pra direção. Negado.

 A diretora tá chegando, trazendo boas novas. Pedem pras tias que fazem parte

das oito, mas elas estão numa situação delicada. Por fim o estranho. Mesma

resposta, só apoio, o movimento é de vocês. E o sentimento agora era material

ali no fogo daqueles jovens olhos, herança genética das filhas e filhos da

classe trabalhadora. Um aluno entra e pega a caixa de som. O pátio lotado.

Professores na sala deles. Outro traz o microfone. Ligam a caixa. O estranho

está perto, chamando atenção pra organização e pra não danificar os

equipamentos. Um rapazinho de uns onze anos chuta o portão e é duramente

repreendido. A moça se prepara pra usar o microfone. Mas a direção chega,

não a diretora, a direção, e confisca o microfone. Protestos, gritos, vaias,

tumulto. Ela se dirige ao estranho, falando ao pé do ouvido que a diretora já

vem vindo com boas novas, que já está tudo resolvido, que não há

necessidade daquilo tudo. Pois diga isso pra eles, não pra mim, eles que tão

querendo respostas. Não precisa. E levou o microfone. E agora? Agora não

sei. Pois vamos ficar aqui no pátio, ninguém vai pras salas depois do recreio

não. Pois corre a ideia e organiza. Alguém conecta um celular na caixa de som,

um reggae, a galera se agita, a escola treme. Confiscam o celular. Vaias,

gritos. Ensaiam um arrastão rumo à diretoria, os gritos assustam. Os alunos

pareciam haver tomado a escola de assalto. O medo, a angústia e o terror era

visto em alguns rostos, como o de uma das diretoras; noutros era um ódio

inexplicável, talvez fruto de um medo ainda maior, ou de um conflito ético

interno. Confiscam a caixa de som. Gritos e mais gritos. O estranho passeia em

meio ao tumulto. Surge de algum lugar o grupo de garotas. Tá saindo do

controle, tem uma galera só bagunçando, num era pra ser assim, era pra genteter conversado, explicado e decidido junto o que fazer. Tem que fazer alguma

coisa. O estranho passeia. A todo instante interpelado por grupos de alunos

que querem saber o que diabos está acontecendo. Ele tenta resumir e indicar

no meio do caos as pessoas que estão tentando organizar. Aparece a ideia de

sentarem no pátio, já que o recreio está acabando. Se querem que esperemos

pela diretora, iremos esperar no pátio. Termina o recreio. As garotas tremem.

Vai todo mundo pra sala, na hora que os professores passarem. Passa opastor. A galera fica. Ele aparece na porta da sala de aula, chamando pelo

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rebanho. Inutilmente. Um grupo grande está sentado num circulo compacto no

meio do pátio, outro está ocupando o palco. E é assim que a Diretora os

encontra quando chega, todos e todas no pátio.

Quase automaticamente ela despacha o grupo do palco, que fica de pé

atrás do círculo dos que já estão sentados. Ela diz pra todos sentarem. Uns

obedecem, outros não. O estranho está lá no meio, sentado no chão junto com

os alunos, ouvindo atentamente a Diretora, e observando a postura militar que

ela usa no trato com aquelas jovens criaturas, as ameaças, o dedo em riste,

consegue no grito o direito de falar. Quem é que fala por vocês? Que pergunta

hein?! TODO MUNDO! Como assim todo mundo, ela deve ter pensado. Uma

garota ergue a mão, é magrinha, na faixa dos treze anos, cacheada dona de

um sorriso largo e de olhinhos faiscantes. Você fala por todos, pergunta a

autoridade. Sim, ela responde resoluta, e se agiganta. O que é que está

acontecendo aqui? Uma única palavra, o mais forte, mais sincero e poderoso

sentimento da classe trabalhadora, ali representada por aquela jovem:

REVOLTA!!!

 A escola treme.

Outra aluna pede a palavra, uma veterana do movimento de semanas

anteriores, dona de um bom timbre e de uma ótima dicção, além de um

raciocínio veloz. A Diretora nega. Como assim? Ela insiste. Mas a Diretora

focou na revoltada, ela foi que disse que falava por todos. Ela falou, agora sou

eu falando por todos. E descarregou o verbo, palavras fortes, firmes e bem

articuladas, apesar do evidente nervosismo. Explicou tudo direitinho,ressaltando o sentimento de Revolta nascido por conta da injustiça. Essas

terceirizadas somos nós amanhã! Não precisava dizer mais nada. Eis um

levante da juventude da classe trabalhadora, autêntico, espontâneo e sincero.

Mas a Diretora realmente trazia boas novas. Depois de explicar que baderna

não seria aceita e que iria acabar com as pessoas que estavam manipulando

aquela situação em proveito próprio, retirando assim toda a capacidade

daquela massa que se insurgia de se organizar e agir por si própria, que visãolimitada. O discurso segue, citou as “decisões” que tomou naqueles dias, o

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esforço que empreendeu para resolver a situação, a importância do respeito à

hierarquia, afinal de contas, todos temos chefes e devemos respeitá-los.

Destacou o importantíssimo papel que ela, como líder da escola, assim se

intitulou naquele momento, tinha desempenhado no diálogo com os superiores.

Falou da forma heroica como ela defendeu as oito, e que no final, convencido o

gestor por seu poderoso discurso, as oito seriam readmitidas imediatamente.

 Alguém ainda perguntou se também iriam pagar os atrasados imediatamente.

Ela pareceu não ter ouvido. Dizendo em seguida que como tudo estava

resolvido, que voltassem pras salas, pois a vida continuava. O estranho então

se levantou e se posicionou ao lado da Diretora, que agora, certa de que

dominava, lhe passou a palavra. Ele começou solicitando que a assembleia lhe

concedesse o direito de falar ali, já que eram eles e elas, alunos e alunas que

naquele momento conduziam aquele movimento. A assembleia assentiu em

unanimidade. Ele se limitou a parabenizar a galerinha pelo belo trabalho

realizado. Vocês deram uma aula de cidadania pra essa escola, o ouvi dizer

com uma voz rouca de emoção. Finalizou chamando a atenção pra

autenticidade e espontaneidade do movimento, que não havia sido essa ou

aquela pessoa que teria manipulado ou conduzido, e que se não tinha saído

tudo certo, isso se dera por conta da falta de apoio e da disponibilização das

ferramentas e da ajuda necessária, como no confisco do microfone. Se

despediu parabenizando mais uma vez a atitude daquela juventude, uma

 juventude que ia se mostrando cada vez mais como sendo de Luta, uma

 juventude que, para ele, vale muito a pena e tem infinitas possibilidades, uma

 juventude que merece um futuro melhor do que aquele que estamos deixando

a cada dia que passa. O sorriso de alegria das oito e os de sensação do dever

cumprido do alunado são coisas impossíveis de descrever com palavras, sóquem estava lá pra sentir aquela energia, sentir na carne e no espírito, o quão

poderoso é o povo unido, o quão forte é o povo que luta, e que a vitória sobre

essa vida de exploração e opressão é possível, e não tardará, ali estavam as

sementes da árvore da Liberdade.

Em homenagem as oito trabalhadoras, e as tantas jovens que estiveram

ativamente nesse episódio, representando a força da união das mulheres

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trabalhadoras, de diferentes gerações, é que encerramos com um histórico

grito de Revolta:

ARRIBA LAS QUE LUCHAN!!!

O estranho

Terehell, dezembro.

*  As fotos da capa são dos protestos de estudantes, as ocupações de escola, que ocorreramno estado de São Paulo em novembro e dezembro de 2015, foram retiradas da internet e

utilizadas como forma de homenagem.

** Esta não é uma obra de ficção.

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