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A INTERPRETAÇÃO DAS LEIS: UM PROBLEMA METAJURÍDICO OU UMA QUESTÃO ESSENCIAL DO DIREITO? DE HANS KELSEN A RONALD DWORICIN MENELICK DE CARVALHO NETEO Merielick de Carva- lho Netto é profes- sor e vice-diretor da Faculdade de Direi- toda UFMG duas traduções publicadas neste volu- me dos Cadernos da Escola do Legislativo, de dois luminares da Ciên- cia ou Teoria Geral do Direito, artigos da autoria, respectivamente, de Hans Kelsen e de Ronald Dworkin, a par de serem textos raros e de difícil acesso, são textos paradigmáticos. Ou seja, óti- mos exemplos, um, dos limites da dou- trina e da concepção até há pouco inequivocamente prevalente no âmbito jurídico (o positivismo jurídico no marco do paradigma do Estado So- cial), inclusive, no que respeita à temática da interpretação e de sua repercussão sobre a efetividade do Direito e do sen- Cad. Etc. Legisl. Belo Horizont, 3(5): 27-71. janijun. 1997 27

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A INTERPRETAÇÃO DAS LEIS: UM PROBLEMAMETAJURÍDICO OU UMA QUESTÃO ESSENCIAL DO

DIREITO? DE HANS KELSEN A RONALD DWORICIN

MENELICK DE CARVALHO NETEO

Merielick de Carva-lho Netto é profes-sor e vice-diretor daFaculdade de Direi-toda UFMG

duas traduções publicadas neste volu-me dos Cadernos da Escola doLegislativo, de dois luminares da Ciên-cia ou Teoria Geral do Direito, artigosda autoria, respectivamente, de HansKelsen e de Ronald Dworkin, a par deserem textos raros e de difícil acesso,são textos paradigmáticos. Ou seja, óti-mos exemplos, um, dos limites da dou-trina e da concepção até há pouco

inequivocamente prevalente no âmbito jurídico (opositivismo jurídico no marco do paradigma do Estado So-cial), inclusive, no que respeita à temática da interpretação ede sua repercussão sobre a efetividade do Direito e do sen-

Cad. Etc. Legisl. Belo Horizont, 3(5): 27-71. janijun. 1997 27

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timento de Constituição e de Justiça, o outro, daspotencialidades da doutrina e da prática da interpretaçãosob o ângulo do paradigma do Estado Democrático de Di-reito.

O texto da lavra de Kelsen, publicado no princípioda década de 30 na Internationale Zeitschrift fürTheorie des Rechts e praticamente reproduzido na pri-meira edição da Teoria Pura de 1934, já demarca ospontos cardeais do raciocínio kelseniano no tocante àmatéria, ao ressaltar a indeterminação inerente ao Direitopositivo, ou seja, reduzido a texto oficial, a delimitaçãoda tarefa da ciência do Direito à descrição do quadro desuas leituras possíveis, ou em outros termos, das nor-mas possíveis, para que sejam objeto da escolha discrici-onária da autoridade competente no momento de suaaplicação de ofício ou judicialmente. Esse é o primeirotexto de Kelsen especificamente referente à questão daintepretação jurídica. Para Stanley L. Paulson é precisa-mente a preservação e o aprofundamento dos postuladosbásicos que já o informam nas reabordagens sucessivasdo tema que podem explicar o desenvolvimento posteriorde sua Teoria Pura do Direito (o denominado giro parao "decisionismo" verificado com a edição da Teoria Purade 1960). Como ressalta o Prof. Marcelo Cattoni de Oli-veira, em ensaio publicado na Revista Brasileira de Estu-dos Políticos, ao retraçar o referido aprofundamentodesses postulados iniciais no desenvolvimento da doutri-na kelseniana, a expressão "interpretação autêntica" nãoé empregada nesse texto e nem na primeira edição da Te-oria Pura, a mesma surge pela primeira vez na traduçãofrancesa de 1953. Expressão essa que qualifica a inter-pretação juridicamente autorizada fixadora de norma jurí-dica, distinta da meramente descritiva da ciência doDireito. Nessa tradução, contudo, Kelsen ainda acreditaque a ciência do Direito teria a função de limitar o espec-tro desse âmbito de discricionariedade da autoridade aotraçar o quadro das leituras possíveis. Por fim, podemosverificar, assim, que o reconhecimento da impossibilida-

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de de se limitar efetivamente o poder discricionário daautoridade que, na segunda edição da obra de 1960, ter-mina por colocar em risco os objetivos centrais da Teo-ria Pura ao diluí-Ia em um total decisionimo, tem umahistória passível de reconstrução.

O segundo texto, a conferência de Dworkin profe-rida em 1990 em Tóquio, é uma apresentação sintéticada teoria do sucessor de Flart na cátedra de Teoria doDireito em ilarvard. Dworkin retoma a questão da inter-pretação precisamente ali onde Kelsen termina. A suaafirmação de uma única decisão correta para o caso as-senta-se na unicidade e irrepetibilidade que marca cadacaso, a ressaltar a complexidade de um ordenamento deprincípios e regras, que se apresenta por inteiro e deforma concorrente no que se refere aos seus princípios,para regê-lo, vez que o mesmo deve ser reconstruído detodas as perspectivas possíveis no sentido de se alcançara norma adequada, a única capaz de produzir justiça na-quele caso específico. Essas reflexões de Dworkin mar-cam o emergir de um novo paradigma que vem,enquanto tal, de forma cada vez mais difundida einternalizada se afirmando através da constituição de umnovo senso comum social, de um novo pano-de-fundopara a comunicação social, no qual são gestadas preten-sões e expectativas muito mais complexas, profundas erigorosas no que respeita ao Direito, seja comoordenamento ou esfera própria da ação comunicativa, doreconhecimento e do entendimento mútuo dos cidadãospara o estabelecimento e a implementação da normativaque deve reger sua vida em comum, seja como simplesâmbito específico de conhecimento e exercício profissi-onais. É esse novo paradigma que tem sido denominadopela Doutrina "Estado Democrático de Direito" e que, noBrasil, foi inclusive constitucionalmente consagrado.Ainda é de se registrar que a prevalência do positivismojurídico instrumentalizador do paradigma do Estado So-cial se verifica não só como marco teórico explícito masmuito mais como pano-de-fundo tacitamente acolhido

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que chegou e ainda continua a conformar difusa e efi-cazmente não apenas a prática dos vários operadores ju-rídicos, mas a própria reprodução dessa prática aodeterminar decisivamente o caldo de cultura em que sedão o processo de aprendizagem e de formação do pro-fissional do Direito. A profunda revisão doutrinária quetem conduzido, de modo crescente e de par com asmarcantes alterações ocorridas nas duas ou três últimasdécadas em todos os âmbitos da vida humana - resul-tantes da nova estrutura societária pluralista ehipercomplexa das denominadas sociedades pós-industri-ais, da crítica aos excessos da razão iluminista acolhidapela modernidade no âmago do próprio conceito de ciên-cia, do advento de novas tecnologias e saberes, da exi-gência de se rever a relação puramente predatória com anatureza, do advento dos direitos de 3a geração e do fra-casso do modelo do Estado Social - à constituição des-se novo paradigma, possibilita e exige a recunhagem dopróprio estatuto da Ciência ou Teoria Geral do Direito,redefine e amplia suas fronteiras, seus conceitos básicose seu próprio papel, bem como o papel, as tarefas e aresponsabilidade do profissional do Direito, sobretudo,do Judiciário em sua relação cotidiana com a efetividadedos ideais constitucionais como implementação,concretização e efetivação da Justiça e da cidadania.

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DIREITO, FiLosofiA E INTERPRETAÇÃO

SOBRE A TEORIA DA INTERPRETAÇÃO*HANS ICELSEN

1. Oordenamentojurídico não dum sistemade normas coordenadas, fundadas em ummesmo e único nível. Na verdade, é umaestrutura hierárquica de normas legaissupra-ordenadas e infra-ordenadas, cujasrelações recíprocas são iluminadas pelaanálise estrutural empreendida pela TeoriaPura do Direito. Um estudo sobre aestruturahierárquica do sistema legal toma-se relevante para o problema da

interpretação. Interpretação é uma atividade intelectual queacompanha o processo de criação do Direito, no seu movimentode um nível mais alto da estrutura hierárquica para um nível

* O trabalho deKelsen 'Zur Theoricder Interpretation"apareceu primeirona revista/nternatio-na/e Zeitschriftfúr 7heorie desRechts, volume 8(1934), pp. 9-17, efoi reimpresso nosegundo volumetE Die WienerrechststheoretischeSchu/e, editado por1-lans Kiectsky (Vie-na: Europa Verlag,1968), pp 1363-1373).

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mais baixo, que, por sua vez, é regulado por aquele nível maisalto. No caso típico, ou seja, aquele da interpretação das leis,a questão que se coloca é como se chegar, na aplicação danorma geral (lei), aum caso concreto, a uma norma individual(uma decisãojudicial ou um ato administrativo). Além disso,existe também a interpretação da Constituição, que consideraasuaaplicação, digamos, porexemplo, no processo legislativo,ou na edição de regulamentos de emergência ou outrosdecretos que derivam diretamente da Constituição - isto é,na medida em que a Constituição deva ser implementada emum nível mais baixo da hierarquia. Há, também, a interpretaçãodas normas individuais, das decisões judiciais, das ordensadministrativas, das transações do Direito Privado, e outras.Existe, em suma, a interpretação de todas as normas, namedida em que elas devam ser implementadas, isto é, namedida em que o processo de criação e implementação da leise move de um nível hierárquico para o seguinte.

§2. A relação entre um nível superior e outro inferior dosistemalegal —como entre a Constituição e alei ordinária, ouentre a lei ordinária e a decisão judicial - é uma relação dedeterminação ou de vinculação. A norma superior regula o atopor meio do qual a norma inferior é criada (ou simplesmenteregula a realização do ato coercitivo, quando se requer a puraimplementação da norma superior). Na criação da normainferior, a norma superior determina não apenas oprocedimento por meio do qual a norma inferior é criada, maseventualmente também o conteúdo da norma a ser criada. Narelação entre a Constituição e a lei, o procedimentoregulamentador é predominante. Apesar disso, o conteúdodas futuras leis é determinado aqui também: a garantiaconstitucional dos direitos e liberdades básicas é uma tentativade se determinar o conteúdo das futuras leis - pelo menosnegativamente - através da exclusão de outros conteúdos(intromissão na liberdade individual e na propriedade). Narelação entre alei e a decisão judicial ou o ato administrativo,a regulamentação do procedimento administrativo e aregulamentação do conteúdo da futura norma estãoequilibradas; do mesmo modo que o procedimento para se

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criar a norma individual é determinado, assim também oconteúdo da norma individual (no Direito substantivo,incluindo-se o Direito Civil, o Direito Penal e o DireitoAdministrativo) é determinado.

Essa determinação, no entanto, nunca é completa, poisa norma não pode ser vinculativa com relação a todos osdetalhes do ato por meio do qual é posta em prática. Devesempre haver uma margem - algumas vezes maior, algumasvezes menor - de livre arbítrio, de modo que a normasuperior, em relação ao ato que a implementa (seja um ato decriação da norma inferior ou de simples implementação),tenha apenas o caráter de uma moldura a ser preenchida pormeio desse ato. Mesmo um comando meticulosamentedetalhado deve deixar um cedo número de determinaçõespara aqueles que o executam. Se a autoridade A ordena àautoridade E que prenda o cidadão C, B deverá usar o seupróprio discernimento para decidir quando, onde e como eleexecutará o mandado de prisão para prender C, decisõesessas que dependem de circunstâncias externas que A nãopreviu e que, em grande parte, não pode prever.

§3. O que resulta do que foi dito anteriormente é quetodo ato legal implementador de uma norma— seja ele um atode criação jurídica ou um ato de simples implementação - édeterminado apenas em parte por essa norma e permaneceindeterminado com relação ao resto. Essa indeterminaçãopode dizer respeito tanto ao fato material condicionante comotambém à conseqüência condicionada, isto é, tanto ao"porquê" quanto ao "quê" do ato descrito. A indeterminaçãopode ser claramente proposital, isto é, pode ser a intenção daautoridade que editou a norma. Assim, a edição da normageral sempre se opera - mantendo sua essência - atravésda pressuposição de que a norma individual editada naimplementação da norma geral continuará o processo dedeterminação, o processo subjacente ao ordenamentohierárquico das normas legais. Assim também acontece coma delegação. Uma lei de saúde, que contém uma sanção paraocaso de violação, determina que, em caso de haver um surto

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de uma epidemia, os habitantes da cidade afetada devemtomar certas precauções para evitara proliferação da doença;os Órgãos administrativos têm autonomia para determinaressas precauções das mais diversas formas, dependendo dasvárias doenças. O Direito Penal prevê uma multa ou uma penade prisão para um determinado delito e, no caso concreto,deixa que juiz decida sobre uma ou outra sanção, e determinea sua severidade, podendo, para esta, ser estabelecido umlimite máximo e mínimo na própria lei.

§4. A indeterminação do ato legal pode ser também aconseqüência não intencional das características da próprianorma a ser implementada pelo ato em questão. Apresenta-se,em primeiro plano, a ambigüidade de uma palavra ou de umafrase usada na expressão da norma, poiso sentido lingüísticoda norma não é inequívoco, e quem quer que tenha deimplementá-la depara-se com várias leituras possíveis. Amesma situação existe quando o implementador da normaacredita que pode pressupor haver uma discrepância entre aexpressão lingüística da norma e a vontade da autoridade quea editou, enquanto a questão de como a vontade da autoridadeserá revelada provavelmente será deixada aberta. De qualquermodo, onde se supõe que expressão lingüística da norma nãocorresponde à vontade da autoridade que editou, deve havera possibilidade de pesquisa da sua vontade, apelando-se paraoutras fontes que não a própria expressão lingüística. Ajurisprudência tradicional normalmente reconhece que achamada vontade do legislador ou a intenção das partes queparticipam de uma transação legal podem não corresponder àspalavras usadas na lei ou na transação legal. A discrepância entrevontade e expressão pode ser total, mas também pode ser apenasparcial quando, por exemplo, a vontade do legislador ou aintenção das partes corresponde a pelo menos uma das váriaspossíveis leituras da expressão linguística da norma.

Finalmente, a indeterminação do ato legal prescritopode resultar do fato de que duas normas que pretendem sersimultaneamente válidas por estarem ambas contidas,digamos, em uma mesma lei - se contradizem no todo ouem parte.

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§5, Em todos esses casos, oferecem-se váriaspossibilidades para implementação da norma superior. O atojurídico que implementa a norma legal pode ser feito paracorresponder a uma ou outra das possíveis leituras da norma.Ou pode ser feito para corresponder à vontade do editor danorma, por mais que revelada, ou à expressão que eleescolher. Ou no caso de duas normas simultâneas que secontradizem, o ato legal pode ser feito para corresponder auma ou a outra, ou para se decidir de que forma elas serevogam. Em todos esses casos, a norma a ser implementadaé simplesmente uma moldura dentro da qual existem váriaspossibilidades de implementação, e todo ato que ficar dentrodessa moldura, preenchendo-a em algum sentido possível,está de conformidade com a norma.

Se por "interpretação" entende-se a revelação, atravésdacognoscibilidade, do espírito da norma a ser implementada,seu resultado pode ser apenas a descoberta da moldura quea norma a ser interpretada representa e, dentro dessa moldura,o conhecimento das várias possibilidades de suaimplementação. Assim, interpretar uma lei não conduznecessariamente a uma solução como sendo a única correta,mas, possivelmente, leva a várias soluções, aferidas somenteem confronto com a norma a ser aplicada, mesmo seconsiderando que apenas uma única delas se torna, no ato dadecisão judicial, Direito positivo. Dizer que uma decisãojudicial é baseada numa lei apenas significa, na verdade, quea decisão é uma das normas individuais possíveis dentro damoldura da norma geral, e não que aquela seja a única normaindividual possível.

Na jurisprudência tradicional, no entanto, espera-semais da interpretação do que simplesmente a descoberta damoldura do ato legal prescrito. A tarefa adicional a sercumprida, que a jurisprudência tradicional tende a ver comoaprincipal tarefa da interpretação, é desenvolvimento de ummétodo para preencher a moldura adequadamente. A teoriausual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada a umcaso concreto, pode fornecer apenas urna solução correta eque a "justeza" dessa solução - sua correção em termos do

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Direito positivo —ébaseadanapróprialei. A teoria tradicionalrepresenta o processo de se chegar a essa interpretação comose houvesse um ato intelectual de clarificação ou entendimento,como se o intérprete tivesse apenas que usar a sua razão, e nãoa sua vontade; como se através de pura atividade intelectiva,ele pudesse escolher, entre as possibilidades existentes, umaque corresponda ao Direito positivo, e então fazer umaescolha justa nos termos desse Direito.

§6. No entanto, do ponto de vista do Direito positivo,nãoháqualquer critério com basenoqual uma das possibilidadesdadas dentro da moldura da norma a ser aplicada possa serfavorecida com relação à outra. Com relação ao Direitopositivo, não há qualquer método de acordo com o qualapenas uma das várias leituras de uma norma possa serapontada como "correta", levando-se em conta, obviamente,que várias leituras do significado da norma sejam possíveisno contexto de todas as outras normas da lei ou do ordenamentojurídico. Apesar de todos os esforços da jurisprudênciatradicional, não se conseguiu ainda, deum modo objetivamenteválido, resolver o conflito entre o ato de vontade e a expressãoda vontade. Todos métodos de interpretação desenvolvidosaté hoje levam, invariavelmente, a um resultado possível,nunca a um único resultado correto. Do ponto de vista doDireito positivo, é indiferente negligenciar o texto para sefixar na presumida vontade do legislador, ou observarestritamente o texto, sem se preocupar com a vontade -normalmente problemática- do legislador. No caso em queduas normas simultaneamente válidas se contradizem, aspossibilidades lógicas de implementação previamentemencionadas estão no mesmo plano do ponto de vista doDireito positivo. E inútil tentar estabelecer "juridicamente"uma possibilidade através da exclusão das outras. Os meiosusuais de interpretação, argumentam a contrario e analogia,são ineficazes, pois ambos levam a resultados opostos e nãohá critério para se decidir quando usar um ou outro. Mesmoo princípio do chamado equilíbrio de interesses é meramenteaqui umaformulação do problema, e não uma solução. Ele nãofornece o critério objetivo de acordo com o qual interesses

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contrários possam ser comparados como uma forma deresolver conflitos de interesse. Esse parâmetro, em particular,não pode ser retirado da norma a ser interpretada, ou da lei quecontém a norma, ou do sistema legal como um todo, comoa chamada * teoria da ponderação de interesses/equilíbrio deinteresses sugere serpossível. A necessidade de "interpretação"resulta justamente do fato de a norma - ou o sistema denormas - a ser aplicada deixar abertas várias possibilidades,o que equivale dizer que nem a norma nem o sistema denormas fornecem uma decisão sobre qual dos interessesenvolvidos é o de maior valor. Em vez disso, essa decisão,essa gradação de interesses, é deixada para um futuro atocriador do Direito - para a sentença judicial, por exemplo.

§ 7. A noção subjacente à teoria tradicional dainterpretação é que, como o ato legal prescrito é indeterminado,a determinação não fornecida pela norma superior aplicávelpode ser obtida através de algum tipo de conhecimento doDireito preexistente. Essanoção auto-contraditória vai contrao pressuposto de que uma interpretação é possível. Pois seuma norma pode ser interpretada, então a questão da escolha"correta" entre as possibilidades dadas dentro da moldura danormadificilmente seráumaquestão de conhecimento dirigidoao Direito positivo; não é um problema de teoria do Direito,mas de política do Direito. A tarefa de se conseguir, a partirda lei, a única sentençajusta ou ato administrativo correto dalei é basicamente a mesma tarefa de se criar, nos quadros daConstituição, as únicas leis justas. Assim como não seconseguem extrair, da Constituição, as únicas leis corretasatravés da interpretação, tampouco podemos extrair, das leis,as únicas sentenças corretas. Certamente existe uma diferençaentre esses dois casos, mas apenas uma diferença quantitativa,e não qualitativa, que consiste apenas no fato de que, nosentido material, a vinculação do legislador é muito maior quea dojuiz, em outras palavras, que aquele é muito mais livre doque este na criação da lei. Mas também ojuiz é um criador deDireito, pois mesmo ele é, nessa função, relativamente livre.E é justamente por esse motivo que é uma tarefa da vontadechegar à norma individual no processo de implementação da

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lei, desde que a moldura da norma geral seja preenchida dessemodo. Comentários teoréticos supostamente relacionados àimplementação de uma lei são de fato completamente políticos;fazem sugestões para o legislador considerar, tentandoinfluenciar na tarefa criativa dos tribunais e dos órgãosadministrativos. Na aplicação da lei deve haver também, damesma forma, lugar para a atividade cognitiva, além dafixação da moldura dentro da qual o ato de aplicação deve serconfinado; isso não é conhecimento do Direito positivo, masconhecimento de outras normas que agora podem participardo processo de criação da lei, tais como as normas de moral,dejustiça,juízos sociais de valor costumeiramente designadospor expressões como "bem-estar social", "interesse público","progresso", etc. Do ponto de vista do Direito positivo, nadapode ser dito sobre a validade dessas normas e se elas podemser verificadas ou não. Desse mesmo ponto de vista, taisdeterminações podem apenas ser caracterizadasnegativamente, o que significa que essas determinações nãoresultam do próprio Direito positivo. Com relação a este, o atolegal é livre de tais restrições, isto é, o aplicador da lei é livrepara agir de acordo com o seu entendimento, a menos que opróprio Direito positivo autorizasse algumas normasmetajurídicas ou outras, como a moral ou a justiça. Essasnormas, no entanto, se transformariam em normas do Direitopositivo.

§8. A visão de que interpretação é conhecimento doDireito positivo, e que tal é o meio de se derivarem novasnormas das normas vigentes, é a fundação da chamadajurisprudência de conceitos (Begriffsjurisprudenz), a qual aTeoria Pura do Direito também rejeita. A Teoria Pura destróia visão de que as normas podem ser criadas por meio dacognição, uma visão que resulta, finalmente, da necessidadede se imaginar o Direito como um sistema fixo que regulatodos os aspectos do comportamento humano, em particular,as atividades dos órgãos que aplicam a lei, acima de todos ostribunais. Sua função - e a da interpretação também, - éserem vistos simplesmente como a descoberta das normasexistentes, normas, então, que são simplesmente para serem

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reveladas de uma certa maneira. A ilusão da certeza legal é oque a teoria jurídica tradicional, deliberadamente ou não, seesforça para manter.

§9. É dada à interpretação um papel especial nopreenchimento das lacunas da lei. Lacunas genuínas, noentanto, não existem. Uma lacuna verdadeira significaria queuma disputa legal não poderia ser decidida de acordo com asnormas vigentes, por faltar à lei um provimento que trate docaso e, conseqüentemente, esta não poderia ser aplicada.Toda disputa legal consiste em uma parte fazendo umademanda contraoutra parte, e a decisão acatando ou rejeitandoademandadepende do fato de alei —isto é, uma norma válidade ser aplicada num caso concreto - estabelecer ou não aalegada obrigação legal. Já que não existe uma terceirapossibilidade, a decisão pode sempre ser tomada e,indubitavelmente, sempre com base na lei, isto é, através daaplicação da lei. Mesmo uma decisão que rejeite a demanda éfeita apelando-se ao ordenamento jurídico vigente. Por meioda imposição aos indivíduos da obrigação de se comportaremde determinada maneira, o sistema legal garante a elesliberdade fora daquelas obrigações. Se A demanda que B secomporte de uma maneira não estabelecida como obrigatóriapelo sistema legal vigente, então aquele sistema legal garantea B o "direito" de abster-se desse comportamento, um"direito" no sentido de liberdade legalmente garantida. Osistema legal defende não só o princípio de que o indivíduo éobrigado a se comportar de determinada maneira (comportar-se de maneira oposta é colocado como uma condição para aconseqüência específica de um ato ilegal), mas também oprincípio de que se é livre onde não se é obrigado a fazer ouabster-se de fazer. É esta norma negativa que é aplicada numadecisão que rejeita uma demanda dirigida ao comportamentonão estabelecido como obrigatório.

Se em certos casos, apesar disso, fala-se de uma"lacuna", isso não significa, como a expressão podeerroneamente sugerir, que uma decisão é logicamenteimpossível por falta de uma norma. Ao contrário, isso

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simplesmente significa que adecisão acatadora ou rejeitadorade uma demanda, enquanto logicamente possível, é tida comoimpraticável ou muito injustapela autoridade responsável peladecisão, isto é, responsável pela aplicação da lei. Na verdade,a decisão é tida como tão impraticável que a autoridade sente-se inclinada a presumir que o legislador não tinha, de modoalgum, considerado aquelecaso, e caso tivesse, teria decididode maneira diferente do que teria que ser decidido com basena lei. Se a pressuposição da autoridade é correta ou não, épouco provável que se possa demonstrar; no entanto, emface da sua obrigação constitucionalmente estabelecida paraaplicar a lei, no entanto, sua suposição é irrelevante. Mesmoque a lei seja considerada ruim na visão da autoridade que aaplica, ela precisa ser aplicada, sem mencionar que aquiloconsiderado ruim por alguns, pode apresentar-se como bompara outros. A chamada "lacuna", então, nada mais é que adiferença entre o Direito positivo e um sistema tido comomelhor, mais justo, o mais possivelmente correto. Somenteatravés do cotejamento desse sistema "melhor" com osistema do Direito positivo e, desse modo, verificando asimperfeições deste, pode-se reconhecer algo como "lacuna".O fato de ele não poder serpreenchido por via da interpretaçãofica óbvio tão logo se reconheça a sua natureza. Nesse caso,a interpretação serve para eliminar a norma interpretada esubstitui-Ia por uma norma que seja melhor, mais justa, omais possivelmente correta - em suma, a norma desejadapelo órgão aplicador. Sob o pretexto de que a norma originalestá sendo suplementada para suprir suas deficiências, ela éanulada no curso da aplicação e é substituída por uma novanorma. Recorre-se a essa ficção, particularmente, quando,por qualquer motivo, é difícil ou impossível modificar anorma geral, ou porque se trate de direito consuetudinário -o qual não pode ser modificado por um procedimento racional-, ou porque se considerem as leis vigentes invioláveis ou deorigem divina, ou porque é difícil ou impossível pôr emmovimento a máquina legislativa.

§ 10. Ao lado de lacunas autênticas, podemos distinguir,ocasionalmente, lacunas técnicas. Estas são consideradas

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possíveis mesmo por aqueles que, sob a ótica positivista,negam a existência de lacunas genuínas, e admite-se opreenchimento das lacunas técnicas pela via da interpretação.Fala-se em lacunas técnicas quando o legislador não consegueregulamentar algo que ele teria de regulamentar para tornarpossível a aplicação da lei. O que se caracteriza como lacunatécnica, no entanto, é qualquer lacuna no sentido original dapalavra, isto é, uma diferença entre o Direito positivo e oDireito desejado, ou é aquela indeterminação que deriva de umcaráter de moldura da norma. Um exemplo da primeiraalternativa: uma lei estatui a força vinculativa de uma venda,mas nada determina sobre quem deve assumir aresponsabilidade, caso a mercadoria vendida seja estragada,antes da entrega, sem que haja culpa de nenhuma das partes.Não é o caso, no entanto, de se dizer que o legislador nãodeterminou nada sobre a questão. Ou melhor, é que ele nãodetermina que o vendedor está liberado da obrigação deentregaras mercadorias ou de providenciar uma substituição,uma determinação considerada obviamente como desejávelpelo indivíduo que aqui alega a existência de uma lacuna. Osimples fato de que a lei não faz exceções para a obrigação dovendedor de entregar as mercadorias - nem exceções nocaso aqui mencionado também - significa que isto determinaque o vendedor assuma o risco. Um exemplo da segundaalternativa com respeito ao que é caracterizado como umalacuna técnica: uma lei determina que um órgão seja criadoatravés de uma eleição, mas não regulamenta os procedimentoseleitorais. Isso significa que algum tipo de eleição, qualquerque seja, é legal - seja baseada em voto majoritário ouproporcional, seja pública ou secreta, e assim por diante. Aautoridade encarregada de proceder à eleição pode usar seulivre arbítrio para determinar os procedimentos da eleição; emoutras palavras, a determinação desses procedimentos foideixada para uma norma inferior. Outro exemplo: uma leidetermina que para poder deliberar, uma comissão deve serconvocada por seu presidente; ao mesmo tempo, a leidetermina que a própria comissão deve eleger seu presidente,mas não estatui nada sobre como a comissão deve se reunirquando não houver presidente. Ou esta norma significa que

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CAI*iNos DA EscoiA no LEGislATivo

quando não houverpresidente, considera-se legal a assembléiaque se reunir, ou simplesmente significa que, neste caso,também, a comissão deve ser convocada por seu presidente,tornando, assim, totalmente impossível o funcionamentolegal da comissão. Mesmo aqui, no entanto, não existe"lacuna", pois a lei prevê que a comissão deve ser convocadapor seu presidente - [e o provimento vale] - mesmoquando acomissão não tiver presidente. Se alei não prescreveunada sobre como a comissão deve se reunir, então algum tipode assembléia, qualquer que seja ela, deve ser legal.Certamente, a lei determina algo absurdo aqui, mas que podeacontecer; afinal, as leis são um produto humano. Uma normapode até mesmo ser completamente sem sentido e, aí,nenhuma interpretação é capaz de arrancar algum sentidodela, pois ainterpretação não pode extrair de uma norma o quea norma não tem.

§ li. Teoricamente, portanto, não existem lacunas nalei. O legislador, no entanto, influenciado por uma teoriaequivocada, pode, não obstante, pressupor a existência delacunas, mesmo que talvez ele próprio não as considere comotais. O legislador pode - e na verdade ele o faz -estabelecerprovimentos que tratem de casos para os quais nenhumadecisão pode ser derivada da lei, provimentos como o art.7° do Código Civil austríaco e o art. 1° do Código Civil suíço.Se, como neste último, a lei instrui o juiz, no caso de haveruma "lacuna", a decidir qua legislador, isso equivale aautorizar ojuiz, nos casos em que este considerar a aplicaçãoda lei inaceitável, a decidir de acordo com seu própriodiscernimento, em vez de o fazer com base na lei. O bomlegislador não está em posição de dispensar que bem poderiaser uma correção necessária da sua lei, tendo em vista que,desde o início, ele deve contar com fatos materiais que ele nãopreviu e não pode prever e que ele pode, no máximo,direcionar suas normas gerais para o curso ordinário doscasos. Exatamente por esse motivo, ele não pode nem mesmoespecificar aqueles casos em que ele pretende que o órgãooficial aplicador da lei responda por ele. Fosse ele capaz deespecificar tais casos, ele não teria necessidade de serrepresentado. O legislador não tem outra alternativa senão

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DIREITO, FILOSOFIA E INTERPRETAÇÃO

deixar essa decisão para o órgão aplicador da lei e assumir oinevitável risco que o "legislador delegado" também decidirácasos onde o legislador teria a sua lei aplicada. O risco aqui,obviamente, é de que surjam questões sobre o princípio dalegalidade na aplicação dessas normas gerais que são editadasexpressamente para serem aplicadas pelos tribunais e pelosórgãos administrativos do governo, e, assim, surgem questõessobre a verdadeira validade dessas normas. Toda a importânciada criação do Direito ameaça se transferir do nível geral parao individual, isto é, do legislador para a autoridade que aplicaa lei. Para minimizar esse risco tanto quanto possível, adelegação depoder para burlara lei é formulada de tal maneiraque a autoridade aplicadora da lei não esteja ciente doextraordinário poder que de fato lhe é delegado. Ele é levadoa acreditar que deve se absterde aplicar alei somente naquelescasos nos quais ela própria impossibilita essa aplicação. Eleé levado a crer que é livre apenas onde ele deve agir comolegislador, mas não é livre quando tiver que substituir olegislador. O fato de ele serlivre, mesmo em relação ao últimoaspecto, lhe é oculto por meio da ficção da "lacuna". É aintenção do legislador que esta fórmula, deliberadamente falsaou não, possa encorajar a autoridade aplicadora da lei a fazerapenas o mínimo uso da liberdade que lhe é concedida, e nãoaplicar a lei num caso concreto. Para a autoridade que aplicaa lei, somente a maior divergência entre a lei e seu própriosenso de lei parecerá ser uma lacuna real, isto é, um caso emque o próprio legislador não desejou regulamentar e que a lei,conseqüentemente, não regulamenta; faltam as premissaslógicas, portanto, para a conclusão do geral para o particularrepresentada em cada ato de aplicação da lei. A fórmula daschamadas "lacunas da lei" é tipicamente ideológica,descrevendo a aplicação de uma lei num caso concreto comologicamente impossível sob o Direito, enquanto —julgado deacordo com o discernimento da autoridade aplicadora da lei- ele pode simplesmente ser impraticável em termos depolítica jurídica.

(Tradução: Raíssa R. Mendes - Revisão: Menelick deCarvalho Netto)

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CADERNOS DA EscolA DO LEGISLATIVO

DIREITO, FILOSOFIA E INTERPRETAÇÃORONALD DWORKIN

professor de Direito forma tão esplêndida. Para aqueles quena Universidade deNova lorque (EUA) nunca tiveram essa experiência, devoe professor visitan- dizer que é um grande prazer ser apre-teemOxford(GBR), sentado e possivelmente elogiado em

Ronald Dworkin é oito obrigado por me apresentarem de

a quem agradece- uma língua que você não entende. Por-mos a gentileza dacessão da publica- que, aí, então, se pode compor para sição desta palestra próprioparte da apresentação. Deem português qualquer modo, estou muito agradeci-

do. Vocês nem podem imaginar quantasatisfação tive ao ser convidado para proferir não apenasuma, mas uma série de palestras inaugurais. Estou real-mente muito agradecido.

Deverei fazer duas palestras sobre jurisprudênciageral em duas cidades diferentes. A primeira delas, aquiem Tóquio, versará sobre o papel da interpretação noDireito. A palestra em Kobe será devotada principalmente

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DIREITO, FILOSOFIA E INTERPRETAÇÃO

às questões atinentes à inter-relação do Direito com aFilosofia Política - em especial à relação entre direito edemocracia. Essa divisão é bastante conveniente paramim, pois se as pessoas me perguntarem hoje, na partereservada ao debate, por que não discuti um determina-do aspecto, vou responder: "espero discuti-lo em Kobe".Se em Kobe me perguntarem por que não discuti umadeterminada questão, direi: "discorri sobre esse assuntoem Tóquio na semana passada".

No início da palestra de hoje, devo, em grande me-dida, simplesmente resumir pontos de vista já explicadosde forma exaustiva em alguma obra de minha autoria.Faço isso porque, apesar de alguns de vocês já estaremfamiliarizados com esses pontos de vista, há outros quenão estão, e achei melhor começar por um breve resumodaquilo que já discuti anteriormente, de modo que, as-sim, eu possa desenvolver alguma matéria nova na parteprincipal da conferência.

A questão geral que eu gostaria de debater temdois aspectos diferentes. Começo lembrando-lhes -apesar de os juristas aqui presentes não precisarem deser lembrados - que mesmo os expertos sempre dis-cordam sobre qual é o direito em certa matéria. Mais doque isso, eles discordam, de uma maneira particular, es-pecial e profunda. Mesmo quando concordam com oque chamaríamos de fatos históricos ordinários da maté-ria - mesmo quando há concordância entre os advoga-dos sobre o que aconteceu em uma determinada ocasião,sobre quem fez o que a quem, e mesmo quando há con-senso acerca de quais os sentidos das palavras escritasna legislação ou nos livros de Direito, e sobre o que osjuízes escreveram ou disseram em casos anteriores -eles ainda podem discordar sobre qual é o direito. Parailustrar essa questão, darei a vocês dois exemplos, am-bos tirados do Direito norte-americano.

O primeiro é um caso famoso, julgado há muitotempo, chamado Riggs versus Palmer. E o caso de um

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CADERNOS DA EscotA »o LEQIsukTlvo

jovem cujo avô havia feito um testamento deixando-lhea sua propriedade, e que, ao descobrir que este decidirase casar novamente e fazer um novo testamento, assas-sinou-o para evitar que isso ocorresse. Surgiu então aseguinte questão: o jovem ainda teria direito de herdar apropriedade do homem que ele havia matado? Não havianenhuma discordância quanto ao entendimento dos fatosem si. Todos concordavam sobre o que dizia o Direitodas Sucessões. O Direito não dizia nada sobre assassi-nos herdeiros, ou seja, ele não dizia que, se o herdeiromatasse o testador, ele seria desqualificado para recebera herança. No entanto, os advogados discordavam sobrea solução correta para o caso, e os juizes também: doisjuizes disseram que o Direito imporia a conclusão de queassassinos não podem herdar. E um juiz, o discordante,disse: "Não, está errado. O Direito nos leva a afirmarque o assassino pode herdar a propriedade".

Apenas para dar um outro exemplo, quero mencio-nar um outro caso famoso. E o caso da Buick MotorsCotnpany versus McPherson. Houve uma época em que amaioria dos juristas americanos achava que, se alguémcomprasse um automóvel com defeito, poderia proces-sar apenas a revendedora onde ele tivesse comprado ocarro. Não se poderia processar o fabricante. Eles assimacreditavam porque não havia um contrato entre o com-prador e o fabricante. No caso da Buick, a parte queixo-sa, lesada por ter comprado um automóvel defeituoso,decidiu que deveria processar o fabricante, a CompanhiaBuick Motors, que pertence à General Motors, mesmoindo contra a opinião geral de que ela perderia. Mais umavez os juizes discordavam entre si. A maioria, com baseem um famoso voto da lavra do Ministro Cardozo daSuprema Corte, dizia que, com efeito, "se analisarmoscuidadosamente as decisões anteriores da maneira corre-ta, perceberemos, então, que, apesar da opinião geraldos advogados, na verdade, o Direito permite que al-guém que tenha comprado um automóvel defeituoso deuma concessionária possa processar diretamente o fabri-cante". Havia desacordo de opiniões. O ministro discor-

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dante disse: "não, se analisarmos atentamente os casosanteriores, veremos o oposto. O Direito proíbe que ocomprador instaure um processo para acionar direta-mente o fabricante. O comprador pode processar apenasa concessionária da qual ele tenha comprado o carro".Mais uma vez, não havia desacordo sobre o que tinha re-almente acontecido. Todos concordavam que o motordo cano estava com defeito. Todos concordavam sobreo que estava escrito nos casos anteriores e, no entanto,advogados e juízes bastante eruditos, competentes e ca-pazes discordavam entre si sobre a correta disposição doDireito.

Essa discordância levanta, então, uma questão fi-losófica, que pode ser descrita de dois modos diferen-tes. Podemos descrevê-la de uma perspectiva que osfilósofos chamariam de perspectiva epistemológica,como um problema de raciocínio jurídico. Quando to-dos os fatos estão estabelecidos, qual é o raciocíniocorreto para se chegar a uma conclusão no Direito?Podemos também descrever o problema (para usar,novamente, o jargão filosófico) como um problemaontológico, isto é, um problema sobre o que deve serverdade sobre o mundo - sobre o que deve ter acon-tecido lá - de modo a tornar a proposição de Direitofalsa ou verdadeira.

Mas, apesar de serem formulações diferentes, aquestão subjacente é a mesma. Permitam-me ilustraresse ponto com um exemplo que não seja jurídico. Su-ponhamos que eu pergunte se o Japão é um país rico.Alguém, ao tentar responder a questão epistemológica,poderia ficar perplexo: como é que seria possível desco-brir a resposta certa para essa questão? O que seria con-siderada uma boa evidência para se decidir se um país érico ou não? Ou as pessoas poderiam ficar perplexas di-ante da questão ontológica. Ninguém acha que a afirma-ção de que o Japão é uma nação rica é verdadeiraporque o Japão é uma pessoa com um monte de dinheirono bolso. Devemos, portanto, perguntar: que diferentes

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tipos de fatos - no que se refere à riqueza dos indivídu-os, das pessoas reais, por exemplo, - podem fazer ver-dadeira a afirmação de que uma nação é rica?

Os mesmos dois tipos de questões, epistemológicae ontológica, são levantados pelos desacordos no Direi-to, que descrevi e exemplifiquei. Temos, como já disse,primeiramente, a questão do raciocínio jurídico: o quepoderia ser considerado um bom argumento para o fatode um assassino não poder, no Direito, herdar de sua ví-tima? Em segundo lugar, temos, como igualmente miste-riosa, a questão ontológica: se é fato que assassinos nãopodem herdar de suas vítimas, que tipo de fato é esse? Éum fato evidente, como o fato de que existem nove pla-netas no nosso sistema solar? Se não o é, seria do mes-mo tipo de fato como o de o Japão ser rico, ou seja, umresumo de um grande número de outros fatos, mais bá-sicos, acerca do que as pessoas em particular fazem outêm feito? Essas são, para mim, as questões centrais daTeoria Geral do Direito. Essas são as questões filosófi-cas por trás da questão jurídica tradicional "qual é o di-reito?".

Por um longo tempo, não apenas nos Estados Uni-dos ou na Inglaterra, onde ensino, mas em todo o mun-do, um conjunto de respostas a essas questões, umateoria jurídica geral, usualmente denominado PositivismoJurídico, exerceu uma grande influência. Na América doNorte e na Europa, os filósofos mais influentes dessa li-nha de pensamento são Hans Kelsen, John Austin eH.L.A. Flart. Poderia resumir melhor as respostas que oPositivismo dá às minhas perguntas, começando pelaquestão ontológica.

O Positivismo diz que as proposições de Direito,como o postulado que proíbe que os assassinos herdemde suas próprias vítimas, só podem ser verdadeiras emvirtude de eventos históricos - de determinadas pesso-as dizendo ou pensando determinadas coisas. JohnAustin disse, como a maioria de vocês sabe, que o "Di-

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reito é o comando do soberano". Ele quis dizer com issoque o que faz uma proposição de Direito verdadeira -quando ela for verdadeira - é um acontecimento histó-rico de um determinado tipo, ou seja, um soberano, umapessoa dotada de poder político ilimitado, que edita umaordem para aquele efeito. Essa é a única coisa, de acor-do com Austin, que pode fazer verdadeira uma proposi-ção de Direito.

H.L.A. I-lart elaborou uma teoria muito mais sofisti-cada. Ele disse que as proposições de Direito são consi-deradas verdadeiras, mais fundamentalmente, em virtudede um fato sociológico: o de que o público em geral ou,pelo menos, as autoridades de uma comunidade tenhamaceitado um princípio geral, que ele chama de uma Re-gra de Reconhecimento, estipulando procedimentos econdições que fazem válidas as leis. "Por exemplo", dis-se l-Iart, "na Grã-Bretanha, a Regra de Reconhecimento,ou seja, o princípio geral aceito por todos, é que aquiloque o Parlamento declarar como lei é efetivamente con-siderado lei". Daí que uma proposição de Direito é ver-dadeira, na Grã-Bretanha, se o Parlamento aprovar asregras que a proposição estatui.

Em síntese, a resposta do Positivismo à questãoontológica é "o Direito é verdadeiro em virtude dos fatossobre os quais um povo em particular, seus soberanos,como no caso de Austin, ou as pessoas em geral, nocaso de Hart, decidiram ou pensaram". Se dermos essaresposta à questão ontológica, então a resposta mais prá-tica, epistemológica, que se dará à questão é simples. Deacordo com os positivistas, descobre-se qual é o Direitosimplesmente voltando à história a fim de encontrarmoso que o Direito efetivamente tem feito através dos atoshistóricos que, de acordo com a versão do Positivismoem questão, constituem o Direito. Portanto, no caso da-quele jovem mau que assassinou o avô, simplesmenteconsultam-se os livros para se saber se os legisladoresalguma vez disseram - de um modo ou de outro - qualé a resposta.

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CADERNOS DA EscolA »o LEçislATivo

Mas existe uma dificuldade óbvia em tudo isso. Deque maneira se explica como e por que juízes e advoga-dos discordam entre si? Vocês se lembram de que eudisse que todos os advogados e todos os juízes concor-daram, no caso Riggs versus Palmer e no caso da Buick,acerca de quais eram os fatos históricos, incluindo-se osfatos relativos ao que os legisladores teriam feito. Mas seo Positivismo estiver certo - se a única coisa envolvidana questão jurídica é se saber qual a decisão a que sechegou no passado -, como poderia haver desacordo? Opositivista responde a essa questão deste modo: não há,nesses casos, qualquer controvérsia sobre qual é o Direi-to. Isso é uma ilusão. Os juizes podem dizer que estãodiscordando sobre qual é o Direito, mas não estão, jáque eles concordam a respeito de quais foram as deci-sões tomadas no passado. Em que eles discordam, en-tão? Eles estão discordando, de acordo com oPositivismo, a respeito do que o Direito deveria ser. Elesestão discutindo entre si sobre até que ponto, no exercí-cio do seu poder discricionário para fazê-lo, eles deveri-am mudar o Direito.

Quero, agora, resumir as minhas razões para pensarque essa é uma resposta ruim. Advogados e juizes pen-sam estar discordando a respeito do que é o Direito. Edesse modo que eles próprios entendem o que estáacontecendo. Assim é que se sente um juiz ou um advo-gado nesses casos. Sente-se que há um problema difícila ser resolvido e que esse é um problema acerca do queé realmente o Direito, não do que ele deveria ser, que seacredita ser um assunto muito mais fácil. Precisamos deuma teoria do Direito, uma resposta às nossas questõesque não nos leve à surpreendente conclusão de que o de-sacordo que parece tão genuíno e tão absorvente seria,na verdade, ilusório. Eis o motivo pelo qual tentei defen-der um tipo de resposta distinta da positivista. Essa outraresposta encontra o cerne do Direito não apenas nas de-cisões oficiais do passado, mas também no processo deinterpretação das decisões tomadas no passado, o quepretendo agora exemplificar.

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Às vezes é bastante proveitoso introduzir uma idéiacomplicada através de uma analogia. Por isso, vou ima-ginar um jogo feito para tardes chuvosas, quando não setem nada para fazer. Imaginem dez pessoas, romancis-tas, que passam uma tarde desse tipo juntos, organizan-do o seguinte jogo. Eles tiram a sorte com pedaços depapel que têm números diferentes em cada um deles. Oescritor que tirar o número 1 escreve o primeiro capítu-lo de um romance, um romance original e inédito. De-pois, ele dá o capítulo que escreveu para o romancistaque tirou o número 2. Assim, o romancista número 2 lêo primeiro capítulo e escreve um segundo capítulo quecontinue a estória, tentando fazer com que o romance sedesenvolva da melhor maneira possível. E, então, os doisprimeiros capítulos são entregues ao romancista que ti-rou o número 3, e ele escreve outro capítulo, continuan-do assim a estória, tentando fazer dela a melhorpossível. Esse processo continua até que o romancistaque tirou o número 10 termine o seu capítulo. Esse últi-mo romancista teve de ler toda a estória, até aquele pon-to, e escrever um novo capítulo com novosacontecimentos, mas sempre cuidando para que o novocapítulo fosse, ainda assim, uma continuação da mesmaestória.

Gostaria agora de comparar o desenvolvimentodo Direito à elaboração desse, digamos, romance emcadeia. Minha idéia colocada de uma maneira bemsimples (mais tarde tentarei explicar melhor) é quequando um advogado ou um juiz depara com um novoproblema, como no caso do jovem assassino ou noproblema do carro da Buick com defeito, ele deverialer todo o Direito até aquele ponto, como se ele fossecapítulos precedentes de um romance, e deveria en-tender que a decisão a que deve chegar no novo casodeve ser uma decisão que continue a estória da formamais adequada possível.

Espero, agora, que esteja claro, a partir do meujogo imaginário, que dois escritores diferentes escreve-

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CADERNOS DA EscoLA DO LEQIsumvo

riam o mesmo capítulo da estória de maneiras diferen-tes. Portanto, também advogados ou juízes diferentes te-rão opiniões diferentes sobre a melhor maneira de secontinuar a estória. Eles terão opiniões diferentes emparte, não completamente, porque o que faz uma conti-nuação da estória jurídica melhor que outra vai dependerdas convicções morais e políticas de cada um. Por isso,se um juiz for muito conservador, decidirá o caso daBuick de uma maneira diferente daquela como um juizmais liberal o decidiria. Mas, a despeito desse fato, se osjuízes estão de boa-fé ao buscarem decidir mais comointérpretes do que como legisladores, então para cadajuiz haverá, apesar disso, uma diferença entre duas ques-tões. A primeira é a questão da interpretação. Qual é amelhor leitura que se pode fazer dessa história jurídicaaté este ponto? Como eu posso interpretar ou entenderisso para fazer, até o momento presente, a melhor estó-ria de um ponto de vista político? A segunda não é umaquestão de interpretação, mas de legislação. Se eu pudes-se fazer um Direito "novo em folha", sem responsabili-dade para com o passado, da maneira como a umlegislador é permitido proceder - se eu pudesse, naverdade, começar um novo romance -, como eu o fa-ria?

Acredito que, mesmo quando algumas opiniões ju-rídicas de um juiz refletirem sua convicção política, ha-verá, apesar disso, uma diferença para cada juiz entre ainterpretação da estória até aquele ponto e a decisão decomo ele a regulamentaria se não houvesse qualquer es-tória até então. Suponhamos, por exemplo, que haja umjuiz comunista nos Estados Unidos (eu concordo queisso seja pouco provável) e que ele defrontasse com ocaso da Buick. Suponhamos que ele diga: "Eu gostariade estabelecer um princípio jurídico a fim de que qual-quer um que processe uma grande empresa capitalistaganhe, automaticamente, a causa. Se ele realmente tentarinterpretar a história do Direito norte-americano para sa-ber se aquele princípio poderia ser tido como

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DIREITO, FILOSOFIA E INTERPRETAÇÃO

continuador da estória, ele fracassaria. A estória do Di-reito americano, até aqui, não é, sem dúvida, uma estó-ria em que o capitalismo sempre perde: nenhum juiz comum mínimo de responsabilidade poderia pensar que fos-se, e esse fato marca a diferença entre interpretação elegislação original. Ou, como eu colocaria a questão, adiferença entre interpretação e invenção.

Muito bem. Isso conclui a minha tentativa de fazerum breve resumo da posição que eu busquei defender nopassado, em especial no livro Law 's Empire . Agora, 'Há tradução para oquero me reportar a várias objeções importantes que têm espanholsido feitas a minha posição. Faço isso não apenas porquetodo escritor goste de uma oportunidade para replicarcríticas a seus trabalhos, mas porque essas objeções pa-recem me requerer uma resposta que seja um relato maisgeral e esclarecedor do conceito de interpretação do que

-. apenas a repetição do que já é dito na obra Law'sEinpire. Gostaria, portanto, nesta tarde, de descreverprimeiramente as críticas e, só então, tentar desenvolvercom vocês uma teoria mais geral da interpretação. Espe-ro que vocês percebam o que quero dizer.

Eis as objeções que gostaria de discutir com vocês.A primeira insiste em afirmar que eu entendi mal o querealmente seria interpretação. Essa crítica tem sido feitapor muitas pessoas, inclusive por críticos literários. Elesdizem que, no meu ponto de vista, interpretação é sem-pre uma tentativa de se fazer de uma estória a melhorestória possível.

Eu disse que, quando os romancistas estavam es-crevendo o romance em cadeia, cada um deles estavatentando fazer a melhor continuação possível desse ro-mance. E digo que, quando os juízes decidem um casodifícil, cada um deveria estar buscando dar continuidadeà estória da melhor forma possível, do ponto de vista dajustiça política. Bem, a crítica diz que a interpretaçãotem por objetivo descrever o objeto da interpretaçãocomo ele realmente é, e não fazer dele o melhor possível.

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CADERNOS DA ESCOLA DO LEQISIATIvO

Na minha visão, a interpretação objetiva melhorar o obje-to da interpretação, enquanto que, de acordo com a pri-meira crítica, a interpretação não seria uma questão dese buscar melhorar algo, mas de se descrever algo comprecisão.

A segunda crítica está relacionada com a primei-ra. Ela afirma que a minha visão da interpretação apli-cada ao Direito tem o efeito indesejável de fazer oDireito parecer mais atraente do que realmente é. Su-ponhamos que vocês estivessem interpretando MeinKampf (Minha Luta) de Hitler, o Holocausto ou a su-bida de Joseph Stalin ao poder. Vocês tentariam fazerqualquer dessas estórias parecer boa? Existe algo dehorrível, de acordo com essa segunda crítica, na idéiade se tentar reescrever a história para fazê-la a melhorpossível. Algumas vezes é importante mostrá-la tãomá quanto possível.

A terceira crítica é diferente das duas primeiras -é mais filosófica. Ela diz: será que se pode acreditar quesempre existe uma única resposta correta para umaquestão de interpretação? A interpretação é essencial-mente uma matéria subjetiva. Para cada pessoa, há umainterpretação diferente. Se duas pessoas olham para amesma pintura ou para a mesma peça de arte, ou assis-tem à mesma perforínance de um drama de Noh, verãocoisas diferentes, porque a interpretação não é objetiva,mas subjetiva. Por isso, se estou certo de que o Direito éessencialmente uma questão não de descoberta doseventos históricos, mas da interpretação desses eventos,então o Direito se toma, de acordo com essa crítica,muito mais subjetivo do que objetivo.

Essas são as três críticas que, acredito, exigem demim (ou deveria dizer, de nós) uma reflexão mais gené-rica sobre o fenômeno da interpretação. Por isso, com acomplacência de vocês, vou, por alguns minutos, viraras costas ao Direito. Eu sei que estou aqui para proferiruma conferência jurídica e que vocês são juristas, mas

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DIREITO, FILOSOFIA E INTERPRETAÇÃO

vou dar as costas ao Direito um pouco porque nós tam-bém interpretamos, é claro, um grande leque de fenô-menos e contextos. Permitam-me lembrá-los dosdiferentes tipos de atividades nas quais, de uma formaou de outra, a interpretação é a idéia central.

Temos a interpretação jurídica, mas também a in-terpretação literária, a artística e a estética. Temos a in-terpretação científica. Dizemos que os cientistasinterpretam dados. Existe também a interpretação histó-rica. Os historiadores não apenas descrevem os eventosdo passado, mas também os interpretam. E existe a in-terpretação psicanalítica. A obra mais famosa deSigmund Freud, pelo menos para o público em geral,chama-se A Interpretação dos Sonhos. Nem preciso lem-brar-lhes que, obviamente, existe uma oportunidademuito mais corriqueira de interpretação, chamada con-versação. Na verdade, o que vocês estão ouvindo agora,nos seus fones de ouvido, desses intérpretes admirá-veis, que estão penando para dar sentido ao que estoudizendo, é uma forma de interpretação. Eles estão inter-pretando o que eu digo, e fazem isso numa língua dife-rente da que estou usando.

Pois bem, o fato de termos um grande leque de ati-vidades nas quais figura a idéia da interpretação sugereum problema que, até onde eu saiba, não tem sido dis-cutido pelos filósofos, pelo menos não nesses termos.Refiro-me ao problema de se dar uma resposta à seguin-te questão: todas essas várias atividades são considera-das interpretação no mesmo sentido? Se é assim, o que éinterpretação, considerando-se que ela pode ser entendi-da tão abstratamente que a interpretação de sonhos e ainterpretação de leis são tomadas, ambas, como ocasiõesde interpretação?

Se nós podemos encontrar alguma teoria da inter-pretação tão geral que abranja todos esses diferentes ca-sos, ou mesmo a maioria deles, surge, então, umproblema maior. Como poderemos distinguir entre os

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CADERNOS DA Esco DO LEÇISLATIVO

diferentes tipos de atividades de interpretação? Poisnós, certamente, distinguimos. Suponham que apareçaatrás de mim, agora, uma série de clarões de luz. Eentão eu pedisse a vocês que interpretassem essas lu-zes. Vocês não saberiam nem mesmo como começar,até que soubessem que tipo de interpretação seriamais adequada. Vocês teriam de decidir se as luzes se-riam um fenômeno natural - algumas luzes misterio-sas que acabaram de aparecer na atmosfera - ou seseriam uma mensagem cifrada transmitida em códigomorse, ou uma nova forma de arte, que seconsubstanciara em um espetáculo de luzes concebidopor algum tipo de artista.

Portanto, nós temos dois problemas que qualquerteoria geral da interpretação deve confrontar. O pri-meiro é o que - ou se algo - faz todos esses tiposou ocasiões de interpretação ocasiões de uma mesmacoisa? E o segundo problema, igualmente difícil, é oseguinte: o que, como o exemplo dado nos sugere, fazcom que seja tão profunda a diferença entre cada for-ma de interpretação? E quando desenvolvermos, sepudermos, uma teoria geral da interpretação que res-ponda a essas questões, temos que moldá-la de manei-ra que possa responder simultaneamente a duas outrasquestões. A primeira é esta: seria uma característicade todos esses diferentes tipos de interpretação queaqueles que realizam cada uma delas - os cientistas,os juristas, os historiadores, os tradutores, os psica-nalistas -, quando discordassem entre si, cada umdeles pensaria, pelo menos na maior parte das vezes,que está certo, e os demais, errados. Isto é, pensa-mos, tipicamente, na interpretação como algo quepode ser feito melhor ou pior, que uma interpretaçãopode ser verdadeira ou falsa. E esse aspecto vem enri-quecer o problema, pois não existem muitas ativida-des, se vocês pensarem em todas as diferentesatividades nas quais nos engajamos, que, nesse senti-do, buscam a verdade ou que levantam uma pretensãode verdade.

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DIREITO, FILOSOFIA E INTERPRETAÇÃO

Mas, uma vez que entendamos que é inerente à in-terpretação, nesse sentido muito geral, que ela reivindi-que a verdade, perceberemos então uma quartacaracterística que a teoria precisa levar em conta, que éa seguinte: uma teoria geral da interpretação precisa, nomínimo, deixar espaço para o ceticismo, porque é tam-bém uma característica de cada um dos tipos de inter-pretação que descrevi a existência de céticos que dizemque toda essa seara é uma espécie de nonsense. Eu sei,por exemplo, que tem havido recentemente, no Japão,muita discussão sobre o movimento desconstrutivista nateoria literária, que é um tipo de posição cética. Nos Es-tados Unidos, estamos familiarizados com uma gama deposições céticas que dizem que Direito é nonsense, quenão há Direito. Por isso, uma teoria geral da interpreta-ção precisa explicar não apenas por que a maioria dosque a vivenciam vêem esse empreendimento como umabusca da verdade, ao esperarem estabelecer a verdade,mas também por que alguns o vêem de um modo cético,destituído de verdade.

Muito bem, eis o desafio, e vou dar uma breveresposta a ele. Essa não será, é claro, uma teoria com-pleta, não apenas porque não tenho tempo de desenvol-ver os detalhes, mas porque ela servirá apenas em algunsdos contextos de interpretação que descrevi. E uma teo-ria parcial, parte de uma teoria mais geral, que tentareidescrever em outra ocasião. Mas a parte da teoria quevou tentar descrever agora nos é particularmente útilporque, apesar de não servir para todos os contextos,serve à classe daqueles contextos que incluem o Direito.Chamo essa forma de interpretação de interpretaçãocon struti vista.

Vocês já perceberam que a interpretação tem lu-gar dentro de práticas sociais organizadas e que osconceitos que usamos na formação de interpretaçõesde diferentes tipos tomam seu sentido não do mundonatural, mas dessas práticas sociais. Considerem, porexemplo, os conceitos que figuram na interpretação

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estética: os conceitos de romance, ficção, poema, so-neto, drama. Esses conceitos ganham vida, ou seja,tomam seu significado e sentido das atividades e dosempreendimentos humanos. Deve ter havido um tem-po em que as pessoas primeiro começaram a pensarque inventar uma estória era criar algo. Antes disso,era simplesmente contar mentiras. De repente, contarmentiras torna-se uma maneira de criar arte. Deve terhavido um momento no qual o desenho de um búfalona parede adquiriu uma nova dimensão de significadocomo arte. Esse foi o momento no qual ele foi absor-vido dentro de um empreendimento humano distinto.E claro, conversação e tradução também são parte deum empreendimento humano distinto.

Bem, todas essas práticas e empreendimentos quecitei até agora são vistos por aqueles de nós que se ocu-pam deles não como sem sentido, mas como benéficosou válidos de alguma outra forma. Nós consideramosque eles têm um objetivo ou finalidade. Achamos que oDireito tem uma função na comunidade a que pertence.Acreditamos que a arte tenha um tipo diferente de fun-ção, que traga uma dimensão de experiência válida anossas vidas. Consideramos que a história tenhaum tipo diferente de valor narrativo, e assim por diante.Isto é, não temos esses empreendimentos simplesmentecomo rituais. Nós os temos como algo importante, comoalgo que tem valor.

Agora, constituído esse pano de fundo, dado essebackground, posso apresentar o estudo da interpretaçãoconstrutivista. A interpretação construtivista surge quan-do as pessoas se engajam numa prática desse tipo, emque todos consideram-na portadora de um propósito oufinalidade, mas discordam, exatamente, acerca de qualseria esse propósito ou finalidade. Neste evento, os par-ticipantes considerarão a extensão ou o âmbito de apli-cação dos conceitos que tornam a prática sensível a essafinalidade ou por ela determinada. Servem a diferentes ti-pos de finalidades. Podemos discordar sobre qual é a ii-

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nalidade do Direito, mas concordamos que a finalidadedo Direito é diferente da finalidade da poesia. Por quepodemos ser "inquiridores" da verdade sobre as matériasda interpretação? Porque somos pesquisadores da verda-de nas matérias das quais depende a interpretação. Supo-nhamos que discordemos de outros advogados, emalgum ponto da interpretação jurídica, por serem nossospontos de vista sobre a finalidade do Direito, ou sobre ajustiça - pois, até onde sabemos, o objetivo do Direitoé proporcionar a justiça - diferentes dos deles. Acha-remos que a nossa interpretação é a verdadeira - e nãoapenas diferente - se acreditarmos, e porque acredita-mos, que as nossas opiniões sobre a finalidade do Direi-to ou sobre justiça são verdadeiras. Defendemos nossospontos de vista sobre essas matérias como uma questãode convicção, o que significa que achamos serem elasverdadeiras.

Mas espero que vocês percebam também porqueo ceticismo está sempre no background. Porque o ce-ticismo sempre se apresenta quando lidamos com as-suntos que as pessoas sentem, profundamente, comouma questão de convicção, mas sobre os quais discor-dam entre si, sem que nenhuma delas possa provarque está certa. Posso pensar, de uma maneirapassional, que a finalidade da verdade da literatura écelebrar Deus. Mas outros pensam que o valor da ver-dadeira literatura é muito diferente. Não tenho comodemonstrar que estou certo, e , conseqüentemente,sou vulnerável ao desafio do cético que diz que nin-guém está certo, que não há verdade nem falsidadesobre tal questão. Então, como uma matéria formal, eno nível abstrato, a teoria superficial que apresentei avocês (que vocês podem denominar teoria teleológicaou finalística da interpretação) tem a forma correta,ao corresponder aos vários requisitos que eu disseque a teoria da interpretação deveria preencher.

Vamos observar mais detalhadamente alguns exem-plos dessa teoria na prática, e já que prometi que

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retomaria, mais cedo ou mais tarde, ao Direito, volto aele no meu primeiro exemplo. Como esse relato da inter-pretação nos ajuda a entender a discussão em Riggsversus Palmer, no caso sobre o jovem que assassinou oavô, ou no caso da Buick versus McPherson, sobre amulher que processou a Companhia Buick Motors? Éclaro que muitas visões podem ser e são sustentadasacerca do objetivo ou da função do Direito como umempreendimento coletivo. No entanto, a fim de simplifi-car o exemplo, posso supor que em uma determinadacomunidade haja apenas duas visões passíveis de seremdefendidas por quaisquer de seus membros. A primeirainsiste que o Direito existe para prover certeza eregulação, a fim de que a vida coletiva possa ser maiseficiente, de modo que as pessoas possam planejar suasvidas sabendo quais regras a polícia ou o Estado vaiobrigá-las a cumprir. Agora, se alguém assumisse essavisão da finalidade do Direito, alegando, grosso modo,que o Direito existe para permitir que a sociedade funcio-ne eficientemente, a despeito do fato de as pessoas dis-cordarem acerca da justiça e da moralidade - eletenderia a ter uma abordagem positivista do Direito. Es-pecificamente, ele tenderia a acolher a visão ontológicade que o Direito existe apenas na forma de decisões ex-plícitas do passado tomadas por autoridades políticas, eque podem ser lidas e conhecidas. Ele pode ser levado apensar, no caso do herdeiro assassino, que este deveherdar, porque a lei é muito clara sobre os testes formaispelos quais um testamento deve passar para ser conside-rado válido, e não diz absolutamente nada sobre assassi-nos do próprio doador. Se tivéssemos de decidirquestões morais, tais como saber se e quando será per-mitido aos assassinos herdarem, a fim de saber se umtestamento em especial teria de ser cumprido, na visãoque esse alguém tem da finalidade do Direito, essa finali-dade mesma seda frustrada. Um juiz simpatizante doPositivismo, por ter a visão de que o propósito do Direi-to é promover a previsibilidade, pensaria, conseqüente-mente, que o Direito permite que o assassino herde,

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apesar de ele também poder achar que, no futuro, o Di-reito devesse ser mudado pelo Parlamento, e não pelojuiz. De maneira semelhante, no caso da Buick Motors, umpositivista com essa visão tenderia a não permitirum processo contra o fabricante, pela simples razão de quenenhum caso passado permitiu tal processo, e os legislado-res não disseram que essa prática poderia ser mudada.

Considerem, agora, uma visão diferente sobre a fi-nalidade ou o objetivo das leis. Nela, sustenta-se que avisão positivista que acabei de descrever é por demais li-mitada. Ela reconhece que o Direito serve ao propósitode permitir às pessoas planejar seus negócios e que, paraesse propósito, é desejável a previsibilidade. Mas acres-centa que o Direito deveria fazer mais do que isso pelacomunidade, O Direito também deveria tornar essa re-gência, esse governo, mais coerente em seus princípios;deveria também procurar ajudar a preservar aquilo quepoderíamos chamar de integridade da regência, do go-verno, da comunidade, de modo que a comunidade fosseregida por princípios, e não apenas por regras que pu-dessem ser incoerentes com os princípios. E insiste queesse último propósito é tão importante que bem deveria,nos casos particulares, ser mais importante do que aprevisibilidade e a certeza.

Pois bem, alguém que tenha essa visão pode muitobem pensar, na hipótese de o beneficiário assassinar otestador, que permitir que um assassino obtenha vanta-gens de seu terrível crime atenta tão frontalmente contraos princípios gerais da moral e do Direito, que, precisa-mente por isso, deveríamos entender a legislação comoimpeditiva desse fato. Ainda que a lei não tenha nenhumdispositivo que diga explicitamente que um assassino nãopode tirar proveito de sua própria torpeza, ao lermosessa lei no contexto do Direito como um todo, com oobjetivo de que o Direito seja em princípio coerente, so-mos levados, por isso mesmo, a decidir que o Direitoadequadamente entendido não permite que um assassinoherde os bens de sua vítima. Foi isso que o tribunal efeti-vamente decidiu.

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No caso da Buick, que foi, como disse, uma deci-são muito famosa do Ministro Cardoso, o tribunal usouum tipo similar de raciocínio. Se desejamos que o Direi-to seja coerente com os princípios, é necessário que nãoentendamos o Direito, até onde for possível, como algoabsolutamente separado da moral, e que não tomemosdecisões que sejam moralmente arbitrárias. Se o defeitono automóvel não é culpa do vendedor, que simplesmen-te o revende, mas do fabricante, de onde se originou odefeito, então, qual princípio moral poderia justificar aproibição à pessoa prejudicada de reivindicar seus direi-tos à instituição que realmente causou o dano?

Agora, suponhamos que eu possa começar a res-ponder às questões que enumerei anteriormente. Sobre oque estão realmente discordando os juízes que divergemacerca do Direito, ainda que concordem sobre os fatos?Eles estão discordando (podemos dizer agora) acerca dequal seria a interpretação correta da estória até aqueleponto, e discordam sobre isso porque a interpretação ételeológica, finalística, uma vez que discordam sobrequal a melhor atribuição do objetivo ou da finalidade doempreendimento geral do Direito.

Mas comprovemos a generalidade desse estudo, aoconsiderarmos outras ocasiões de interpretaçãoconstrutivista. Devemos começar pela interpretação lite-rária. Existem, é claro, muitas escolas de interpretaçãoliterária. Sem dúvida, existem discussões acaloradas,tanto aqui no Japão quanto no resto do mundo, entre osdefensores das diversas maneiras de se entender a poesiaou as peças de teatro ou os romances. Mas, novamente,para simplificar, e apenas para fins de ilustração, voucontrapor somente umas poucas visões sobre a finalida-de da literatura. Como no caso do Direito, a simplifica-ção negligencia muitas nuanças interessantes, mas façoisso com fins ilustrativos.

A primeira dessas poucas visões que vou mencionarsustenta que a finalidade da literatura é a instrução moral.

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Ela deveria visar ao aumento de nossa sensibilidade comrelação às verdadeiras questões morais, a fim de nosmostrar, de maneira convincente, as verdades sobre osconflitos, as opções e as tragédias que só conseguimosver de uma maneira inexata e sem o correto e profundoaporte da literatura. Essa era a visão, por exemplo, de umcrítico britânico muito influente, F. R. Leavis.

A segunda visão é, por oposição, formalista. Elasustenta que a finalidade da literatura é interna à estética,que ela consiste em criar um tipo de beleza ou poder queprecisa ser valorizado por si próprio, em seus própriostermos, e não porque nos ensina algo sobre a moral (ousobre a psicologia, a história ou qualquer outra coisa).Uma terceira visão é a Marxista. Ela sustenta que o obje-tivo da literatura é contribuir para o triunfo histórico daclasse trabalhadora.

Agora, vou sugerir a vocês que as pessoas quesustentam uma dessas três visões sobre a finalidade ouobjetivo da literatura, provavelmente, interpretem umapeça de teatro ou um poema complexos de forma muitodiferente da que um crítico que tivesse uma das outrasduas visões - apesar de isso ser algo que não posso es-perar que seja facilmente demonstrável. Aparentemente,pode não estar muito claro o motivo pelo qual as pesso-as que discordam, por exemplo, sobre a análise corretado personagem Shylock, na peça O Mercador deVeneza", de Shakespeare, estão, na verdade, discutindo.De acordo com essa visão, a raiz do desacordo pode re-sidir nas marcantes diferenças acerca do correto enten-dimento de qual é a finalidade de se julgar e interpretar aarte. Um intérprete marxista pode ser levado a verShylock tanto como opressor quanto como vítima docapitalismo veneziano. Um simpatizante do pensamentode Leavis seria tentado a fazer um estudo mais profundoque deveria enfatizar, por exemplo, a complexidade dasrelações de Shylock com sua filha Jéssica. E umformalista poderia rejeitar ambas as visões por serem

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muito externas, muito pouco ligadas ao vocabulário me-tafórico e a outros aspectos lingüísticos da peça.

Consideremos, agora, a forma mais comum de in-terpretação: a interpretação da conversação. Os filósofostêm ficado atônitos com relação à seguinte dificuldade: éimpossível entender o que o outro está dizendo, o queuma pessoa quer dizer, antes de se entender muitas ou-tras coisas sobre essa pessoa, incluindo, por exemplo,aquilo em que ela acredita e o que ela quer. Intenções,significados e crenças estão unidos num mesmo siste-ma. Como podem os intérpretes aqui hoje traduzir para ojaponês o que estou dizendo, sem saberem uma série decoisas a meu respeito? Eu digo a vocês, "isto é um copod'água". Como os intérpretes sabem que estou usando apalavra "água" para me referir à água, de modo a pode-rem traduzir o que digo, usando a palavra água em japo-nês? Como eles sabem que "água" não é apenas o meumodo engraçadinho ou irônico de me referir a vodca?Eles devem estar presumindo, por exemplo, que o quepenso estar neste copo - do qual bebo de tempos emtempos durante esta palestra - é água.

Agora eis o quebra-cabeça: como podem os intér-pretes decidir o que penso antes de saberem o que querodizer com as palavras que uso? E como podem decidir oque quero dizer ao usar essas palavras até saberem o quepenso? Os filósofos liderados por Donald Davidson, ba-seados na obra de Williard Van Orman Quine, propuse-ram que devemos pensar nas crenças, nos significados enos desejos não apenas por meio de um deles, mas deatravés de um sistema interligado. Aportamos uma varie-dade de pressupostos iniciais a qualquer problema detradução, mas o nosso pressuposto geral é o de dar umsentido geral ao que o falante está fazendo, assim comoao que está dizendo. Isto é, nós não traduzimos apenassentença por sentença, mas olhamos para todo o com-portamento como uma tentativa de suposição, pelo me-nos, de que o falante seja racional. Por isso, se estou

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dando uma palestra e bebo deste copo, e se vocês su-põem que eu seja racional, podem supor também que eunão beberia tanto se achasse que isso fosse vodca.Vocês estão confiando em um tipo de evidência, assimcomo em milhares de outras suposições sobre mim, afim de traduzir a minha afirmação de que "isto é umcopo d'água". Podemos dizer que qualquer tradução emparticular é apenas a ponta do iceberg, porque debaixoda superfície estão milhares de outras suposições quecontribuem para dar sentido ao comportamento do falan-te como um todo.

Trago a vocês esse problema da filosofia da lingua-gem porque quero afirmar que existem certas ocasiõesde interpretação pessoal nas quais nosso objetivo, nossaambição, não é apenas desse tipo. De maneira geral, ten-tamos dar e damos o melhor sentido que podemos aocomportamento de alguém, a fim de que possamos pre-ver e encaixar nossas vidas com a daquela pessoa. Masalgumas vezes acrescentamos outros requisitos. Consi-deremos, por exemplo, um outro momento interpre-tativo que mencionei anteriormente: a psicanálise.

De acordo com alguns estudiosos da psicanálise, oanalista, ao interpretar os sonhos do paciente ou as pia-das que ele conta ou os seus lapsos lingüísticos, nãoestá apenas tentando encontrar uma interpretação queajude a explicar o comportamento do paciente de um jei-to comum. De acordo com essa visão, o médico temum propósito ligeiramente diferente: descobrir uma ex-plicação que transforme o comportamento do paciente- não que o explique simplesmente, mas que o transfor-me por meio da elaboração de uma explicação que o pa-ciente internalizará, de modo a ser ajudado a caminharem direção à cura. Esse é um propósito especial, nessavisão, o que justifica que possamos dizer que a finalida-de ou objetivo da interpretação psicanalítica dos sonhosou das piadas é diferente da finalidade ou do objetivo dainterpretação da conversação - de ouvintes buscando

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interpretar uma palestra sobre Teoria Geral do Direito,por exemplo. Sendo assim, um crítico jurista e um psi-canalista, de quem eu fosse paciente, chegariam a con-clusões diferentes sobre as minhas intenções ao contardeterminada piada nesta palestra

Até agora, já lhes dei três exemplos: um tirado doDireito, outro da crítica literária e outro da diferença en-tre a interpretação psicanalítica e a interpretação da con-versação. Esses diferentes exemplos têm por objetivoapenas ilustrar a teoria geral (e, espero , sugerir o seupoder) segundo a qual precisamos entender que a inter-pretação vinculada à prática é regida pelo sentido de pro-pósito ou finalidade que se atribui a essa prática, ou quea interpretação vinculada à prática é sensível ao sentido dafinalidade a essa prática atribuído, ao telos dessa prática.

Vamos, finalmente, voltar ao começo. Vocês vãose lembrar de que mencionei uma variedade de críticasao estudo interpretativo da Teoria Geral do Direito queresumi. A primeira era esta: "Você diz que a interpreta-ção jurídica tem por objetivo fazer o melhor da estóriaaté aquele ponto, fazer o melhor da memória jurídica dacomunidade, enquanto nós dizemos que interpretaçãosignifica relato acurado, e não relato mais ou menos pre-ciso". Minha resposta é, "a interpretação é, em princí-pio, teleológica, finalística, e, conseqüentemente, emprincípio, uma tentativa de se fazer o melhor do objetoda interpretação". Mas essa afirmativa é facilmente malentendida e eis o motivo pelo qual incluí a segunda críti-ca que mencionei. A segunda crítica -como vocês de-vem estar lembrados - argumenta que o métodointerpretativo é um modo de tornar cor-de-rosa as coi-sas, um modo de fazê-las parecer melhor do que efetiva-mente o são. Vocês interpretariam o Holocausto dessamaneira? Mas a interpretação construtivista objetiva fazero melhor do seu objeto apenas no sentido especial quedescrevi. Ela objetiva fazer utilizar da melhor formaesses dados, tendo em vista o propósito ou a finalida-

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de do empreendimento geral para o qual a ocasião dainterpretação se apresenta. Por isso, consideremos ocaso do Holocausto promovido por Hitler. Esse é umcaso de interpretação histórica. E a finalidade da inter-pretação histórica é bastante similar ao que descrevicomo a finalidade normal da interpretação da conver-sação, isto é, fornecer uma descrição do que aconte-ceu que torne seu sentido o mais coerente e completopossível. Não podemos ser totalmente bem-sucedidosao explicarmos o Holocausto como o comportamentode pessoas racionais. Mas, ainda assim, a interpreta-ção ou a interpretação histórica exigem que façamos omelhor que pudermos. E isso significa que precisamosatribuir aos monstros que estavam no comando, porocasião do fato histórico, motivos que dêem sentidoao que eles fizeram. Uma vez que fizermos isso, é cla-ro, então, que estaremos fazendo o melhor que pode-mos, dando o propósito a esse tipo de interpretação.Fazer o melhor que pudermos, no entanto, significamostrá-los como eles eram, e isso significa mostrá-los como bestas.

O Direito é diferente. Por quê? Porque o objetivoda prática jurídica não tem o propósito explanatório queanima a interpretação histórica. Os juristas estão tentan-do dar em seu relato sobre o que aconteceu a melhor ex-plicação possível, especificamente acerca docomportamento das pessoas. E por um só motivo: o Di-reito que interpretamos não é o fazer de nenhum grupodeterminado de pessoas. É o fazer de toda uma socieda-de ou civilização num longo período de tempo, por sécu-los até. Então, fazer o melhor de nossa tradição jurídicasignifica algo muito diferente de fazer o melhor da inter-pretação histórica. Significa, acredito eu, fazer o Direitotão justo quanto possamos. Isso é o que significaacuidade em interpretação jurídica.

Eu disse que nós temos por objetivo fazer do obje-to da interpretação o melhor que ele puder ser. Mas issoé apenas um mote, um slogan, que resume o estudo

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mais longo que acabei de apresentar. Significa fazer omelhor dele, tendo em vista aquilo que acreditamos ser avisão correta da finalidade desse empreendimento emquestão. E claro que, como eu disse, os advogados dis-cordarão a respeito do que significa, em detalhes, fazerdo Direito, torná-lo, o mais justo possível. A própria vi-são de vocês se refletirá sobre sua visão mais concretaacerca do propósito, da finalidade, do Direito, e tambémsobre o que é justiça. Então, para retomar o que disseantes, se vocês acham que a finalidade do Direito é acerteza, então vocês fazem o melhor do Direito fazendodele, tornando-o, o mais certo possível. Se vocês pen-sam, como eu, que a finalidade do Direito é fazer donosso governo um governo de princípios, então vocêsacharão que fazer o melhor do Direito é assegurar a eleum caráter mais substantivo. Isso significa fazer o me-lhor do ponto de vista da integridade do Direito, torná-loo mais íntegro possível.

Agora, quase encerrando, eu tomo em análise aterceira das críticas. Essa é, de certo modo, a mais po-derosa das três porque, acredito eu, parecerá corretapara muitos de vocês. Ela alega que a interpretação, talcomo eu a expliquei, é subjetiva, de tal sorte que, umavez que concordemos que a questão de direito é umaquestão de interpretação, não faria sentido dizer, comoeu digo, que existe apenas uma resposta melhor, mesmonos casos difíceis e controversos como os casos Riggsversus Palmer e o da Buick. A interpretação dependemuito de como as coisas parecem a um único intérprete,que supõe existir uma resposta melhor para as questõesinterpretativas colocadas nesses casos, vistas de seuponto de vista específico. Essa objeção é profunda eacredito que vocês vão ficar felizes em saber que nãopretendo explorá-la em detalhes esta tarde. Mas querofazer algumas observações a seu respeito, que acreditoserem pertinentes.

De início, uma vez que tenhamos entendido o âm-bito completo da interpretação, o âmbito completo das

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atividades que têm um caráter interpretativo, que temosbuscado descrever ou delimitar, veremos, então, queexistem alguns cenários, departamentos ou searas da in-terpretação onde naturalmente supomos que existemrespostas corretas. Um exemplo é a interpretaçãoconversacional. A sua compreensão do que eu digonuma língua estrangeira, e até mesmo a sua compreen-são do que cada um de vocês diz aos outros em sua pró-pria língua, é uma matéria muito mais complexa do quese pensa. Tal compreensão repousa sobre muitos tiposde pressuposições normativas, incluindo as suposiçõesrelativas à racionalidade. E ainda mais, a maioria de nósacredita que, na maior parte do tempo, agimos acertada-mente ao fazê-lo. Pois bem, certamente, isso é especial.Há razões evidentes pelas quais a interpretação da con-versação tem essa natureza. Eu menciono apenas essaporque quero negar que exista algo inerente no empreen-dimento da interpretação que faça dela algo distintiva-mente sub-jetivo.

Minha segunda observação é esta: se meu estudosobre a interpretação em geral estiver correto, ou aproxi-madamente correto, indagar, portanto, se a interpretaçãoé uma atividade subjetiva ou objetiva depende do caráterdas proposições subjacentes relativas ao objetivo, à fina-lidade dessa tarefa. Se estiver certo em afirmar que a in-terpretação no Direito é sensível à visão que se temsobre o objetivo do próprio Direito, e que o objetivo doDireito tem algo a ver com Justiça, a incerteza jurídicaseria, portanto, uma simples derivação da incerteza moralou política. Se somos céticos a respeito do Direito, sequeremos dizer: "Oh, não existe uma resposta corretapara um caso realmente difícil", isso deve ser porquesomos céticos em relação à moralidade política. Se pen-samos existir uma resposta correta para as questões dejustiça, pensamos, assim, que existem respostas corretaspara as questões de direito, mesmo para as maisintrincadas e sobre as quais o professores de Direito e osjuizes discordem.

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Essa pode parecer uma questão por demais surpreen-dente para ser formulada, pois uma idéia muito difundida,principalmente entre os estudantes de Direito norte-ameri-canos, é a de que a moral é subjetiva, que não existe verda-de ou falsidade sobre as questões morais profundas, quesão apenas uma questão de opinião. Pretendo falar mais so-bre esse assunto em outras conferências desta série e dis-cutir seu impacto no trabalho da Suprema Corte dosEstados Unidos (como, por exemplo, na questão do abor-to) no Seminário de Tóquio no Centro Americano. Por ora,no entanto, quero apenas mencionar esse aspecto.

Nunca encontrei nenhum estudante que efetivamenteacreditasse no ceticismo moral que os estudantescomumente alardeiam. Não quero com isso dizer que elessejam hipócritas. Mas acredito que eles freqüentemente fra-cassam quando buscam compreender a contradição ineren-te à sua posição. Muitas pessoas, que agora tenho emmente, dizem-me que não existe uma única resposta corre-ta para essas questões tão difíceis com as quais a SupremaCone lida. Eu, então, indago: por que isso? E falo sobre ainterpretação, de como ela relaciona Direito, moral e políti-ca. E, aí, os alunos me respondem: "Arrá! Bem que nósdissemos. Pois agora você diz que o Direito depende dajustiça e todos sabem que a justiça é apenas subjetiva". En-tão indago a eles: vocês têm uma opinião formada a respei-to do aborto enquanto questão moral? Aí cada um tem umaopinião diferente. Muitos dizem: "O abono é um crime". Amaioria costuma dizer: " A legislação antiaborto é tirânica".E eu digo: vocês efetivamente acreditam nessas opiniões? Eeles respondem: "Claro que sim, inclusive vou participar deuma passeata esta tarde carregando faixas defendendo es-sas opiniões". Replico: "Mas vocês disseram que não existeuma resposta correta em matéria política, que esta não pas-sa de uma questão de opinião...". Aí então eles pensam erespondem: " Ah, mas essa é a minha opinião".

Bem, a contradição é evidente, não é mesmo? Comcerteza é logicamente possível assumir uma posição ab-solutamente cética sobre o aborto, ou sobre qualquer

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outra matéria referente à justiça política ou social. Mas aíé preciso que você desista de sua opinião pessoal. E amaioria das pessoas confrontadas com essas questõesvão preferir desistir da filosofia ruim a deixar de susten-tar intensamente suas convicções.

Já estou terminando. Não vou aborrecê-los maiscom resumos. Quero, no entanto, por ser esta a pri-meira conferência em Kobe, e como as palestras deKobe serão dedicadas à Teoria Geral ou Ciência do Di-reito, fazer uma referência final ao assunto. Tenhoenfatizado a contribuição que a filosofia - o estudofilosófico da interpretação, por exemplo - pode darao Direito. E minha visão, de fato, que o Direito é emgrande parte filosofia. Mas também espero - e isso éimperioso - que essas observações possam sugerir acontribuição que a Teoria Geral ou Ciência do Direitopode dar à filosofia e, além desta, à vida intelectualem geral. Eu disse anteriormente que os filósofos nãoestudaram o bastante o fenômeno da interpretação.Acredito que a interpretação é uma matéria muito im-portante e que, ao se considerar sua natureza em umnível geral, contudo de uma maneira muito mais sofis-ticada e detalhada do que o fizemos, serão esclareci-dos muitos aspectos importantes, como, por exemplo,o do estudo da arte e da literatura. Também acreditoque os juristas têm uma grande contribuição a darpara a doutrina geral da interpretação. Na verdade,vou tão longe ao ponto de sugerir que os juristas esta-riam melhor equipados que os membros dessas outrasdisciplinas para refletir sobre a natureza e o caráter dainterpretação. Mas provavelmente agora vocês vão di-zer: "Como é que um professor norte-americano deTeoria Geral do Direito pode acreditar que a sua disci-plina seja o centro do universo?!".

Por isso, acho melhor parar por aqui. Obrigado!

(Tradução: Raíssa R. Mendes - Revisão: Menelick deCarvalho Netto)

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CUCURBITAKARL BLOSSFELDT

1865 - 1932