A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

469
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA TESE DE DOUTORADO A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense: memórias, narrativas e lutas pela educação popular e democrática (1960-2018). EDEVAMILTON DE LIMA OLIVEIRA CUIABÁ-MT Abril/2018

Transcript of A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

Page 1: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

TESE DE DOUTORADO

A invenção da escola no Araguaia-Xingu

mato-grossense: memórias, narrativas e

lutas pela educação popular e

democrática (1960-2018).

EDEVAMILTON DE LIMA OLIVEIRA

CUIABÁ-MT Abril/2018

Page 2: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

2

EDEVAMILTON DE LIMA OLIVEIRA

A invenção da escola no Araguaia-Xingu

mato-grossense: memórias, narrativas e

lutas pela educação popular e

democrática (1960-2018).

Tese apresentada à Banca Examinadora do

Programa de Pós-Graduação História, do

Instituto de Geografia, História e

Documentação – IGHD, da Universidade

Federal de Mato Grosso, como requisito

parcial à obtenção de título de Doutor em

História.

Orientador: Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro

CUIABÁ-MT Abril/2018

Page 3: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

3

Page 4: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

4

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Avenida Fernando Correa da Costa, 2367 – Boa Esperança – Cep. 78060900 - Cuiabá/MT

Tel: 65-3615-8493 – Email: [email protected]

FOLHA DE APROVAÇÃO

TÍTULO: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense: memórias,

narrativas e lutas pela educação popular e democrática (anos 1960-2018).

AUTOR: Doutorando Edevamilton de Lima Oliveira

Tese de Doutorado defendida e aprovada em 19/04/2018.

Composição da Banca Examinadora:

Presidente Banca/Orientador Doutor Renilson Rosa Ribeiro Instituição: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Examinador Interno Doutora Jaqueline Aparecida Martins. Zarbato

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Examinador Interno Doutor Osvaldo Rodrigues Júnior

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Examinador Externo Doutor Luis César Castrillon Mendes

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS Examinador Externo Doutora Márcia Elisa Tete Ramos

Instituição: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ Examinador Suplente Doutor Marcelo Fronza Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Examinador Suplente Doutora Glauce Viana de Souza Torres Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CUIABÁ, 21/08/2018.

Page 5: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

5

OLIVEIRA, E.L. A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense:

memórias, narrativas e lutas pela educação popular e democrática (1960-2018).

469 pag. Tese de doutorado – Programa de Pós-Graduação em História,

Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2018.

RESUMO

O presente trabalho versa sobre A invenção e as „artes de fazer‟ escola popular e

democrática no Araguaia-Xingu mato-grossense (1960-2018). Lançar um olhar

sobre a invenção da escola para posseiros, indígenas, peões e sua relação com os

fazendeiros, políticos, comerciantes e polícia, possibilitou entender a constituição

do povo, origens, projetos de vida e resistência elegendo a escola como atalaia e

mecanismo de poder. Uma trama que revelou as principais lideranças e, entre elas,

os professores que ensinavam história subversiva. Também a narrativa dá conta de

emoldurar o projeto de escola popular e democrática, o „semear‟ e o „cuidar‟

como táticas para o enfrentamento nas disputas pela terra. Nessa trama da vida

real, cercada de especificidades, se encontravam as escolas semeadas entre os rios

Araguaia e Xingu, delineando o Brasil Central. Porém, muito distante do „vazio

demográfico‟, muitas „comunidades‟ em torno delas, mesmo que fisicamente

distante dos grandes centros, articuladas com outras „comunidades‟

compartilhando ideias, avaliando práticas e sugerindo novas ideias - a invenção da

escola local com dimensões global. Os escolares fez (faz) a História Humana dos

sertões do Araguaia-Xingu mato-grossense. Pensar a escola de educação básica na

segunda metade do século XX em Mato Grosso, em especial no período da

ditadura militar faz-se importante na medida em que revelou discursos e práticas

do governo e dos populares, revelar esta última foi nosso propósito. Nesse

„banzeiro‟ colocamos nosso barco a navegar em busca de águas menos revolta,

porém, entre remansos e correntezas nos deparamos com as memórias, o ensino

de história, a formação de professores, o que projetou novas necessidades, visitar

o cotidiano da escola do século XXI, dialogar com professores e entender o papel

social da escola no tempo. Revisitar seu cotidiano fez emergir tática de guerrilha

bem como os „não ditos‟ sobre sua invenção, seu projeto popular e democrático

dando novos contornos ao INAJÁ, e, como fruto, as Parceladas. As narrativas e

luta pela memória foi o fio condutor da história que ora compartilhamos,

arregimentando argumentos para confrontar enunciados sobre a „falência

proclamada da educação‟ em voga no discurso dos opressores. Haveremos de

combatê-los no campo do conhecimento, da memória e do ensino de história, na

busca pela reinvenção de uma escola popular e democracia em tempos de

cibercultura, de dispositivos móveis, da sala de aula invertida, de realidade

aumentada em que se aprende em qualquer lugar e em qualquer tempo. Assim,

vivenciamos a ampliação das relações e da transformação da mediação da

aprendizagem e do conhecimento transformando a realidade dos escolares na

perspectiva da dialética. O reinventar a escola na expectativa de uma escola

sustentável, própria do século XXI.

Palavras chave: 1. Educação popular. 2. Invenção da escola. 3. Tecnologias

educacionais. 4. Ensino de história. 5. Araguaia - Xingu MT

Page 6: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

6

OLIVEIRA, E.L. The invention of the school in the Araguaia-Xingu mato-

grossense: memories, narratives and struggles for popular and democratic

education (1960-2018). 469 p. Thesis - Post-Graduate Program in History, Federal

University of Mato Grosso, Cuiabá, 2018.

ABSTRACT

The present work deals with The invention of the Araguaia-Xingu school in Mato

Grosso: memories, narratives and struggles for popular and democratic education

(1960-2018). Taking a look at the invention of the school for squatters, natives,

pedestrians and their relationship with farmers, politicians, merchants and police,

made it possible to understand the people's constitution, origins, life and

resistance projects, choosing school as a watchtower and mechanism of power . A

plot that revealed the leading leaders and, among them, the teachers who taught

subversive history. The narrative also deals with framing the popular and

democratic school project, 'sowing' and 'caring' as tactics for confrontation in land

disputes. In this real-life plot, surrounded by specificities, were the schools sown

between the Araguaia and Xingu rivers, outlining Central Brazil. However, far

from the 'demographic void', many 'communities' around them, even though

physically distant from the great centers, articulated with other 'communities'

sharing ideas, evaluating practices and suggesting new ideas - the invention of the

local school with global dimensions. The schoolchildren made (does) the Human

History of the backlands of the Araguaia-Xingu Mato Grosso. Thinking about the

basic education school in the second half of the twentieth century in Mato Grosso,

especially during the period of military dictatorship, is important in that it

revealed discourses and practices of government and the popular, revealing the

latter was our purpose. In this 'bathtub' we put our boat to navigate in search of

less revolting waters, however, between backwaters and rapids we came across

memories, history teaching, teacher training, which projected new needs, visit the

daily school of the century, dialogue with teachers and understand the social role

of school in time. Revisiting his daily life gave rise to guerrilla tactics as well as

the 'not told' about his invention, his popular and democratic project giving new

contours to INAJÁ, and, as a result, Parceladas. Narratives and the fight for

memory were the guiding thread of the history we are now sharing, gathering

arguments to confront statements about the 'proclaimed bankruptcy of education'

in vogue in the discourse of the oppressors. We will have to fight them in the field

of knowledge, memory and history teaching, in the search for the reinvention of a

popular school and democracy in times of cyberculture, of mobile devices, of the

inverted classroom, of augmented reality in which one learns anywhere, anytime.

Thus, we experience the expansion of relationships and transformation of the

mediation of learning and knowledge transforming the reality of schoolchildren in

the perspective of dialectics. Reinventing school in the expectation of a

sustainable school, proper to the 21st century. Keywords: Popular education,

history teaching, teacher training, digital social technologies, technology in

education and sustainable school.

Keywords: Popular education. 2. Invention of the school. 3. Educational Technologies. 4.

History teaching. 5. Araguaia - Xingu MT.

Page 7: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

7

AGRADECIMENTOS

Palavras são jogadas ao vento a todo instante, em múltiplos sentidos e

formas, porém, nenhuma sem que haja intencionalidade de quem a mobiliza. Essa

é a razão de nossa narrativa, perceber a escola enquanto redenção e resistência.

Em tempos de cibercultura, alguns semeiam, outros colhem, sorte daqueles que

semeiam, colhem, compartilham. Parece-nos desnecessário afirmar que não basta

curtir, comentar compartilhar, precisamos dialogar, pois o diálogo alimenta e nutri

razões para muitas coisas, nesse particular, desenho as poucas palavras para

agradecer, pois gratidão é lembrança, e, com lembrança também inventamos

memória‟.

Assim, sou grato aos meus pais, Ednaldo e Olímpia, à minha filha

Enarê, que me inspira pensar e agir na busca por uma sociedade mais justa, onde

ela e todas as crianças possam acessar o conhecimento por meio da instituição

escola, especialmente a pública, com justiça e esperança. À minha esposa Ronize,

por ter compartilhado de minhas angústias, crises e superação. Aos meus irmãos,

Edmilton (in memoriam), Ednilson, Edvanilson, Ednair, Ednacir, Ednacelia,

Edjane e Edlayne, pois me fazem lembrar sempre. Somos uma família que viveu

na pele o estar em Mato Grosso nas décadas de 1970, onde continuamos seguindo

e contribuindo com o curso da história.

Agradeço especialmente àqueles que lutaram por Universidade

Pública Brasileira, bem como aos educadores que lutaram e lutam para que

conquistássemos o direito à licença para qualificação, ao estado de Mato Grosso e

à Secretaria de Estado de Educação. Em nome da SEDUC, agradeço a todas as

escolas públicas onde aprendi a ser professor, aos CEFAPROS e ao MEC, em

especial à extinta Secretaria de Educação a Distância, à Diretoria de Tecnologia

DITEC e ao ex-diretor José Guilherme Ribeiro. Em particular, à Diretoria de

Criação de Material e Formação de Professores em EAD – DPCEAD e seu ex-

diretor, Demerval Guillardazo Bruzzi, por ter dado continuidade ao Programa

Nacional de Informática na Educação e pela criação do Maior Programa de

Page 8: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

8

Formação Continuada em Tecnologia Educacional brasileira, quiçá mundial –

Proinfo Integrado, onde tive a bela experiência em coordená-lo em Mato Grosso,

por 7 anos.

Agradeço imensamente aos meus professores do Departamento de

História e respectivo Programa de Pós-graduação, onde pude fazer meu mestrado

sob orientação da professora Dra. Maria de Fátima Gomes Costa, oportunizando

reedificar Casal Vasco em palavras e revisitar a Fronteira Oeste do Brasil

Colonial, e especialmente ao meu orientador no doutorado, prof. Dr. Renilson

Rosa Ribeiro, por ter aceitado inventar a escola no Araguaia-Xingu mato-

grossense num lugar especial, que não se prende ao fato de ser o Brasil Central,

mas pelas lutas travadas pelo oprimido contra a sagacidade do opressor.

Agradeço-lhe também pelos incentivos e cobranças, pois, embora tenha sido

exigente a caminhada, foi possível visitar as searas da produção historiográfica, a

invenção da escola no Brasil Central, e, por conseguinte, a educação do século

XXI. Elogiável vossa atitude em entender o ritmo do trabalho de artesão que,

entre hesitações naturais de uma pesquisa, se depara com as exigências

socialmente impostas que, certamente, aparecerão na narrativa.

Aos meus colaboradores na leitura atenta e contribuições ao texto,

Prof. Ms. Célia F. Souza e a Profa. Dra. Elizabeth Madureira de Siqueira.

A todos aqueles que dedicaram e cultivam esforços pela educação no

Araguaia-Xingu mato-grossense, aos amigos e colegas da Universidade do Estado

de Mato Grosso, ao Programa Parceladas, núcleos pedagógicos do norte Araguaia,

em nome do Luis Antônio Soares (Tunico), Maria do Rosário Lima e aos

orientados (as) e orientandos (as), pela acolhida.

Por fim, agradecimento especial faço ao Dr. Honoris Causa da

UNEMAT e também da UFMT, Pedro Casaldáliga, pela edificação da escola no

Brasil Central em prol da libertação dos oprimidos, que, entre sonho e utopia,

revelou a fé, a esperança e a determinação, em palavração.

Page 9: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

9

EPÍGRAFE

Sim, o povo precisa de escolas, de instrução. Um povo

educado, esclarecido é um povo consciente de si e de seu

papel na História.1

1 Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Maio de 1970 A16.0.03

p 2-3.

Page 10: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

10

LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES

ANATEL – Agencia Nacional de Telecomunicações

ANSA - Associação Nossa Senhora da Assunção

APE – Associação de Pais e Estudantes

APM – Associação de Pais e Mestres

ARENA - Aliança Renovadora Nacional

ATV - Associação Terra Viva

AXA - Articulação Araguaia Xingu

BASA – Banco da Amazônia S/A

CEFAPROS – Centro de Formação dos Profissionais da Educação

CFTE – Coordenadoria de Formação em Tecnologia Educacional

CIMI - Conselho Indigenista Missionário

CISA - Centro de Informações da Aeronáutica

CNBB – Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil

CNLD - Comissão Nacional do Livro Didático

CODEARA – Companhia de Desenvolvimento do Araguaia

COLTED - Comissão do Livro Técnico e Livro Didático

CPT - Comissão Pastoral da Terra

EDH – Educação em Direitos Humanos

EF – Ensino Fundamental

EJA – Educação de Jovens e Adultos

EM – Ensino Médio

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio

FAE - Fundação de Assistência ao Estudante

FENAME - Fundação Nacional do Material Escolar

FUNABEM – Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

FUNDEB – Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica

GEA - Ginásio Estadual Araguaia

GETAT – Grupo Executivo de Terras do Araguaia e Tocantins

IBDF - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBRA - Instituto Brasileiro de Reforma Agrária

IDB – Índice do Desenvolvimento da Educação Básica

IDH – Índice de Desenvolvimento Humano

INCRA - Instituto Nacional e Reforma Agrária

INDA - Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário

INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

INL – Instituto Nacional do Livro

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

ISA - Instituto Socioambiental

ISEB-Instituto Superior de Estudos Brasileiros

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

MCCOM – Ministério das Comunicações

Page 11: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

11

MEC – Ministério da Educação

MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização

MPOG – Ministério do Planejamento

OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONU – Organização das Nações Unidas

PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais

PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação

PEA - Instituto Pesquisa e Estatística

PIB – Produto Interno Bruto

PIN – Programa de Integração Nacional

PISA – Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes

PLIDEF – Programa do Livro Didático do Ensino Fundamental

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio

PNE – Plano Nacional da Educação

PNEDH – Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos

PNLD - Programa Nacional do Livro Didático

PNUD - Programa das Nações Unidas

POLOAMAZÕNIA – Programa de criação de Polos Agropecuários e

Agrominerais da Amazônia

POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados

POLONOROESTE – Programa Integrado para o Noroeste do Brasil

PRODEAGRO – Programa de Desenvolvimento Agroambiental de Mato Grosso

PRODECER – Programa Nipo-Brasileiro de Cooperação para o Desenvolvimento

Agrícola do Cerrado

PROJED – Empresa de consultoria (sem definição no doc. Consultado).

PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à Agroindústria

do Norte e Nordeste

PROUNI – Programa Universidade para Todos

SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica

SEDUC – Secretaria de Estado de Educação

SPEVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia

SUDAM – Superintendência do

SUFP – Superintendência de Formação dos Profissionais da Educação

SUPRA - Superintendência da Reforma Agrária

UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura.

UNESF – União Estudantil de São Félix

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

USAID - Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional

Page 12: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

12

FIGURAS

Seq. Descrição Pág.

1 Mapa da territorialidade da Prelazia de São Félix do Araguaia –

MT (Brasil Central) – 1970------------------------------------------------

48

2 Mapa dos 25 municípios que compõe o território do Araguaia

Xingu – MT neste ano de 2018-------------------------------------------

50

3 Carta de agradecimento escrita por Isaulina Rocha dos Santos ao

Bispo Pedro Casaldáliga – 1973------------------------------------------

108

4 Educação em greve para melhores salários: notícias de fora--------- 116

5 A união em torno do sindicato e os direitos defendidos

coletivamente pelos posseiros---------------------------------------------

130

6 Sala de aula da escola inventada nos „sertões‟ Araguaia Xingu

1970-1990--------------------------------------------------------------------

132

7 Professor Caçula, esposa e filho em frente à sua casa no „sertão‟. 133

8 Ginásio Estadual Araguaia – GEA – 1972------------------------------ 172

9 Guerrilheiro pela Paz e pela Justiça-------------------------------------- 185

10 Políticos „assalta‟ a escola para acabar com a organização do povo- 197

11 Adolfo Pérez Esquivel e o Araguaia Xingu----------------------------- 204

12 Carestia: mais uma forma de oprimir o trabalhador-------------------- 213

13 O vazio sentido pelos índios foi o mesmo sentido pelos posseiros

de Porto alegre, martirizados pelo direito e calados pela violência

praticada pelos tubarões----------------------------------------------------

.

215

14 O exemplo Canudos e seus 87 anos de história------------------------- 235

15 Escola opressora e ordeira x Escola democrática e libertadora------- 241

16 Em uma democracia, que fazer quando a educação vai mal?--------- 241

17 Êxodo sinônimo de fome e miséria nas cidades e sertões------------- 249

18 A escola: condição de permanência-------------------------------------- 260

19 A consciência negra „pelos‟ sonhos de Dona Mundica I-------------- 269

20 A consciência negra „pelos‟ sonhos de Dona Mundica I-------------- 270

21 Escola Tapirapé, símbolo de resistência--------------------------------- 272

22 Educação para a liberdade------------------------------------------------- 273

23 Autoridade sem legitimidade---------------------------------------------- 280

24 Na escola democrática, quem decide é o povo-------------------------- 282

25 Desigualdade e exclusão--------------------------------------------------- 288

26 Para ensinar história faz-se necessário falar do processo

„civilizador‟------------------------------------------------------------------

293

27 „Relembrar‟ o assassinato do Padre João Bosco P. Burnier: ato

contínuo à sua denúncia e o re-vivamento da memória----------------

297

28 Marcha pela independência: outro sentido parra o ato cívico--------- 301

29 Dona Mundica ensinando o significado de independência do

Brasil-------------------------------------------------------------------------

306

30 Independência ou recolonização?----------------------------------------- 306

31 Famílias ocupam a escola em defesa de uma gestão democrática---- 314

32 Professora: profissão coragem-------------------------------------------- 315

Page 13: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

13

33 Mapa do Estado de Mato Grosso em destaque os municípios

atendidos pelo INAJÁ oferta 1987-1990--------------------------------

341

34 Mapa do município de São Félix do Araguaia e suas respectivas

escolas------------------------------------------------------------------------

342

35 Mapa do município de Porto Alegre com a localização de suas

escolas------------------------------------------------------------------------

342

36 Mapa de Santa Terezinha e suas respectivas escolas------------------- 341

37 Mapa de Ribeirão Cascalheira e suas respectivas escolas------------- 341

38 Alfabetização de Adultos pelo professor Antônio Carlos Moura---- 345

39 Capa do 2º Caderno (método de alfabetização de adultos segundo

Paulo Freire) 1985----------------------------------------------------------

350

40 Caderno de Alfabetização de adultos (1º e 2º passos)----------------- 351

41 Caderno de alfabetização de adultos (3º e 5º passos)------------------ 352

42 Caderno de alfabetização de adultos (4º e 6º passos)------------------ 353

43 Cartazes para alfabetização------------------------------------------------ 354

44 Cartazes para alfabetização------------------------------------------------ 355

45 Com o Pé no chão----------------------------------------------------------- 359

46 História da cartilha „...Estou Lendo!!!‟---------------------------------- 361

47 Método da Cartilha „...Estou Lendo!!!‟--------------------------------- 362

48 Capa, caderno de exercício da cartilha „...Estou Lendo!!!‟----------- 363

49 Educação--------------------------------------------------------------------- 385

50 Abaixo assinado pela permanência da professora na comunidade--- 446

51 Projeto arquitetônico da Escola do século XXI (sustentável) 469

52 Escola Sustentável II 469

Tabelas

Seq. Descrição Pág.

1 Expressões sintomáticas----------------------------------------------------- 85

2 Evolução da distribuição da população por nível de educação (%) –

Brasil 1960 – 1990. ----------------------------------------------------------

96

3 Recursos aplicados na edificação do GEA e seus respectivos

doadores------------------------------------------------------------------------

102

4 Escolas e respectivo número de alunos matriculados-------------------- 106

5 Projetos (Empresas) de pecuária aprovados pela SUDAM no

Araguaia mato-grossense. --------------------------------------------------

159

6 Quadro descritivo para que serve a Escola-------------------------------- 288

7 Quadro descritivo sobre o que a escola tem de bom. ------------------- 290

8 Quadro descritivo sobre o que a escola tem de ruim--------------------- 291

9 Perfil dos objetivos dos professores --------------------------------------- 325

10 Perfil dos conteúdos---------------------------------------------------------- 325

11 Metodologia------------------------------------------------------------------- 326

12 Avaliação---------------------------------------------------------------------- 327

13 Representação da escola----------------------------------------------------- 328

14 Concepção de educação popular--------------------------------------------

-

370

Page 14: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

14

Gráficos

Seq. Descrição Pág.

1 Colaboradores da pesquisa por sexo----------------------------------- 392

2 Vínculo--------------------------------------------------------------------- 392

3 Tempo em que trabalha em educação---------------------------------- 393

4 Tempo em que trabalha com ensino de história---------------------- 393

5 Em relação às tecnologias móveis digitais, elas mudam a maneira

que nossos alunos pensam e aprendem história? --------------------

416

6 As tecnologias de informação e comunicação são consideradas

relevantes para o ensino de história------------------------------------

417

7 Nós, professores de história integramos as tecnologias

educacionais (computador, tablete, smarthpone, notebook e

recursos web-Internet) para ensinar história. -------------------------

417

8 Começamos recentemente a usar o computador e a Internet nas

práticas do currículo escolar---------------------------------------------

418

9 Ainda não sabemos quais ferramentas existem instaladas nos

computadores das escolas e na web, que podem ser utilizados em

nossas práticas de mediação de aprendizagens na disciplina de

história---------------------------------------------------------------------

418

10 Em decorrência da chegada dos computadores conectados à

Internet e dos dispositivos digitais acessíveis aos professores e

alunos, destaque as respostas que avalia relevantes------------------

419

11 Diante das afirmativas abaixo, dê sua opinião: Os alunos da escola

onde você trabalha têm maior domínio das tecnologias digitais que

os professores-----------------------------------------------

421

12 Com a web (Internet) os alunos acabam perdendo o contato com a

realidade em que vivem------------------------------------------------

422

13 Distribuição numérica do número de cursistas atendidos pelos

cursos de Formação Continuada em Tecnologia Educacional (IED,

TIC, EP e REDES) por CEFAPRO. Extraído do SIPI em 17 de

outubro de 2014. --------------------------------------------------

434

Page 15: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

15

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 18

CAPÍTULO 1 ......................................................................................................... 32

A ESCOLA COMO ARTE DE INVENTAR DE UM „POVO‟ NOS „SERTÕES‟

NO ARAGUAIA-XINGU MATO-GROSSENSE ................................................ 32

1 – A aurora da educação revelada pela Folha Alvorada ...................................... 51

1.2 – Os indígenas antes da organização social dos „brancos‟ ............................... 52

1.2.1 Karajá .................................................................................................... 54

1.2.2 Tapirapé ................................................................................................ 55

1.2.3 Xavante ................................................................................................. 57

1.3 - A escola entre lugares e espaços praticados e os banzeiros no Araguaia ...... 59

1.4 - Contextualizando a produção da Folha Alvorada: inventando fontes ........... 65

1.4.1 Os „tubarão‟ predadores infestam a Folha Alvorada, as águas e terras do

Araguaia-Xingu ............................................................................................. 71

1.4.2 Eu já li isso na ALVORADA: os posseiros „analfabetos‟ ...................... 74

1.4.3 – O contexto sob o viés crítico-reflexivo da fonte ................................ 80

1.5 - Perfil educacional das famílias: sinais do tempo e do lugar .......................... 81

1.5.1 - Em cena a síntese de uma invenção ................................................... 89

1.5.2 - O como e os porquês da invenção em marcha ................................... 96

1.5.3 - A Educação entre a cultura de resistência e a libertação do povo .... 101

1.6 - Os desafios do „ser‟ escolar no Araguaia-Xingu na década de 1970 ........... 104

1.7 - Entre a alegria de ler, escrever e a tristeza de contar: 200 cruzeiros por

cabeça de gado humano ....................................................................................... 107

1.8 - Em contextos „integração‟, „segurança‟ e „desenvolvimento‟ que ensina a

Escola senão a subversão? ................................................................................... 113

1.8.1 - Que os olhos passem a ver aquilo que realmente precisamos ver:

formação política, greve, subversão e outros episódios............................... 117

1.9 - Escola: uma invenção em litígio .................................................................. 120

1.10 - A invenção da Escola democrática e as incertezas no Brasil Central ........ 129

CAPÍTULO 2 ....................................................................................................... 141

ESCOLA COMO PEDRA ANGULAR NA FORMAÇÃO SOCIAL CONTRA A

INUMANA „DESINTEGRAÇÃO‟ DE ÍNDIOS, POSSEIROS E PEÕES NO

BRASIL CENTRAL. ........................................................................................... 141

Page 16: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

16

2.1 - A escola entre a obsessão do governo militar e a crescente desumanização do

povo 154

2.2 - A Escola e os „sentidos‟ de educação para quem trabalhava na terra.......... 163

2.3 - Na escola, para ensinar precisa saber: inaugurando a formação de professores

no Araguaia-Xingu ............................................................................................... 170

2.3.1 – A escola revela preconceitos ............................................................ 182

2.4 - Violências além e aquém das cercanias da escola ....................................... 184

2.5 - Uma professora de história entre a rebeldia e a punição ............................. 194

2.5.1 - A escola que pune aluno pune professor .......................................... 197

2.6 - Escola em cores: fardas e castigos para os fracos ........................................ 205

2.7 - Professores são árvores de idealidade: que fazer „oprimido‟? ..................... 209

2.8 - Caixa escolar: obstáculo a superar ............................................................... 211

2.8.1 – A dialética do ensino de história ...................................................... 217

2.9 - Escola sem meio termo: se não é democrática, é tirânica ............................ 219

CAPÍTULO 3 ....................................................................................................... 223

ENSINO DE HISTÓRIA E „SUBERSIVIDADE‟: ............................................. 223

NEM AMAR, NEM DEIXAR, UNIR, DENUNCIAR E RESISTIR ..................... 223

3.1 - Os dilemas de o professor ensinar história nas escolas o Araguaia-Xingu

mato-grossense ..................................................................................................... 230

3.2 - Aprendizados do professor Juraci: caluniador de „autoridades‟ pelo triste fim

de um peão do trecho „morto e pronto‟ ................................................................ 236

3.3 - Desafios ao professor de produzir uma educação escolar que ensinasse o

caminho da liberdade ........................................................................................... 240

3.4 - Aprender e ensinar história em linguagem poética ...................................... 243

3.4.1 Lugares e espaços de lutas entre campo e cidade no Araguaia-Xingu

mato-grossense............................................................................................. 251

3.5 Entre o livro e a poesia: o ensino de história ................................................. 255

3.6 – Descolonizar a escola e o fazer do professor requer educar os sentidos ..... 257

3.6.1 - Escola e ensino de história a descolonizar: um desafio coletivo ...... 262

3.6.2 - Inaugurando outros meios com os mesmos fins: o ensino de história

..................................................................................................................... 268

3.7 - Edificado o barracão-escola, só falta professor! Autoridade ....................... 279

3.8 - A Escola sob o olhar dos escolares: o que e para que – enigmas a decifrar 286

3.8.1 - A arte de ensinar „história mal contada‟ e suas consequências ........ 292

Page 17: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

17

3.8.2 - Ameaças, expulsão e assassinato: a saga dos „subversivos‟:

professores e religiosos ................................................................................ 295

3.9 - Sete de Setembro revelando uma história pouco ensinada .......................... 298

3.9.1 - Independência ................................................................................... 304

3.10 - A escola onde a fome da cabeça é maior que a fome da barriga ............... 308

3.11 - A comunidade inventa a escola, a escola constrói a sociedade: a sociedade

revela sua contradição .......................................................................................... 312

3.12 - Fundamentos teóricos e metodológicos da invenção da escola no Araguaia-

Xingu: entre o projeto opressor e a educação popular ......................................... 316

3.13 - Avaliação da educação popular no Araguaia-Xingu mato-grossense ....... 321

CAPÍTULO 4 ....................................................................................................... 330

A RE-INVENÇÃO DA ESCOLA POPULAR E DEMOCRÁTICA NO

ARAGUAIA-XINGU MATO-GROSSENSE: CONTRIBUIÇÕES À HISTÓRIA

E O „SABER FAZER‟ DO PROFESSOR NO SÉCULO XXI ........................... 330

4.1 – INAJÁ – a mais elaborada invenção da escola popular para a formação de

professores............................................................................................................ 337

4.2 – INAJÁ fruto cuja semente não germinou no cacho, mas em raízes profundas

em solo regado de conhecimento, de inovação, de resistência e esperança ......... 344

4.2.1. As ciências humanas na educação básica em torno de uma causa: a

sobrevivência humana no Brasil Central ..................................................... 349

4.2.2. Tia, Tia, Tia, Estou Lendo!!!: mais que aprender a palavra, aprender a

palavração. ................................................................................................... 358

4.2.3. Razões da educação popular X razões da „Carta de Curitiba‟ nutrindo

debates e disputas sobre a memória ............................................................. 364

4.3 - Educação popular x educação burguesa ...................................................... 369

4.3.1 Princípios da educação popular .......................................................... 372

4.4 – As disputas pela memória: a educação em semente sob as sombras do Inajá378

4.5 – O saber-fazer do professor de história no presente e no futuro................... 391

4.6. Escola 2030: Um novo perfil do professor de história - entre o ensinar e

mediar aprendizagens em tempos (self) ............................................................... 415

4.7 - Das práticas à teoria – da teoria às práticas: por uma reinvenção da escola no

Araguaia-Xingu no e para o século XXI, caminhos a seguir .............................. 432

Considerações finais............................................................................................. 437

Page 18: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

18

INTRODUÇÃO

„Os contextos não são isolados, eles são resultados

de processos históricos‟.

Thompson (1981)

Narrar sobre a invenção e as artes de fazer a escola no Araguaia-

Xingu mato-grossense foi, e continuará sendo, ato continuo, uma aventura

inesquecível, um desafio a que poucos tiveram a oportunidade de enfrentar e de

reconhecer a instituição escola com endereço no tempo e espaço, um tempo

narrável, quantificável e em alguns momentos administrável, embora estivesse

quase sempre se rebelando, pois, mesmo que em forma de memória, os banzeiros

tornaram a navegação e o caminhar entre o Araguaia-Xingu uma viagem com

imprecisão de chegada em um porto seguro, porém, repleta de trajetórias e

riquezas merecedoras de ser reveladas.

Dimensionar o espaço, que de longe é aquele visto no mapa físico,

mas um espaço de confronto, próprio de fronteira, onde se efetivaram conquistas e

reconquistas no limite do humano, numa linha tênue entre vidas e mortes,

indefinidamente espaços sociais transformados e transformadores de um tempo

não quantificável, fluido, não manipulável, mas, como dito, passíveis de visitas –

cujo exercício proporcionou-nos o status de inventor. Assim, a narrativa que ora

apresentamos tem como temática central a invenção social de uma instituição

escolar, num espaço concebido e em tempos socialmente construídos, registrados

e narrados, chamamentos à revisitação, conferindo à escola uma memória

reificante.

Ao certo que, nem na dimensão do físico da existência humana sob o

solo, tampouco nas memórias daqueles que lá viveram (vivem), bem como entre

os pesquisadores dos processos constituintes da ocupação do Brasil Central

conseguem fazê-la com exatidão, mas, a somatória de esforços, a exemplo da

presente narrativa, contribui para termos uma ideia sobre o fazer humano, muito

embora, como as areias do tempo, mantem-se o imemorial, um tempo em que o

calendário cristão não consegue dominar, manancial de razões para novas

pesquisas.

Page 19: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

19

Assim, ao tempo em que a busca permite avanços no tocante à

ampliação dos horizontes do conhecimento sobre o Brasil Central, reconhecemos

os limites espaço-temporais da pesquisa, razão pela qual delimitamos a reflexão

na segunda metade do século XX e início do século XXI, pois, bem distante de ser

vazio na concepção humana da ocupação das terras e águas do Araguaia-Xingu,

daremos visibilidade ao processo de expulsão e dizimação de dezenas de nações

indígenas, bem como ao silenciamento imposto aos primeiros chegantes,

caucheiros, sertanejos, posseiros, peões.

Diferente tratamento receberam os „tubarões‟2 que, com o apoio do

Estado, se assenhoraram das terras na „Amazônia Legal‟, tal ligação gestou os

grandes latifúndios, acirrando os conflitos pela terra, tornando-as privativas ao uso

coletivo de indígenas e não indígenas. Portanto, o „vazio demográfico‟ foi uma

invenção do Estado para justificar a decisão de privatizar a terra, abrindo

precedente para a especulação, a exploração, e, por conseguinte, a exclusão social

- a substituição do homem pela pata da vaca e as cifras delas advindas3.

Essa política de aniquilamento do humano se deu especialmente

durante o governo militar, cuja ascensão ocorreu a partir do golpe de 1964 e

terminou com a redemocratização do país em 19854, cujo marco não resultou

numa ruptura desse processo, cujas consequências são ainda percebidas nos dias

atuais. Nesse contexto é que buscamos entender a invenção da escola no

Araguaia-Xingu mato-grossense tomando as memórias registradas, anunciadas e

difundidas pelo periódico católico Folha Alvorada5, procurando entender que

2 O termo tubarão ou tubarões foi utilizado largamente pela Folha Alvorada para se referir aos

fazendeiros latifundiários. 3 Durante a narrativa, ao mencionarmos Brasil Central em substituição da expressão Araguaia –

Xingu, nos referimos à posição geográfica, pois, o Araguaia-Xingu, num traço norte-sul, Leste-

Oeste representa o centro do mapa desse país continental. 4 Ao expressar término nos referimos ao governo militar-civil, pois, o conflito nunca teve fim, e

em tempos de avanço da monocultura, primeira década do século XXI, testemunhamos as

violências, a ser dimensionadas nos próximos estudos. 5 O acervo da prelazia foi todo digitalizado por voluntários da Espanha, ligados à ONG

“Arquivistas sem fronteiras”, cujo trabalho contribuiu imensamente com nossa pesquisa, pois são

mais de 200 mil documentos digitalizados, nos quais podem ser encontradas mais de 50 mil cartas

de Dom Pedro. Para nosso trabalho nos valemos desse recurso, especialmente das publicações da

Folha Alvorada. Esse periódico tinha circulação bimestral reproduzido em mimeógrafo no formato

apostila, com distribuição gratuita, assinatura e contribuição espontânea, tendo sido elaborado por

equipe própria e contava com colaboradores fixos e voluntários, veiculando notícias de diversas

dioceses e da igreja em geral. Tinha uma tiragem aproximada de 1.600, com 6 páginas em média

com início no ano de 1970 e circula até a presente data.

Page 20: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

20

importância haveria de se ter uma „escolinha‟ de educação básica nas cidades e

sertões do Brasil Central.

À medida que avançava a pesquisa, começamos a perceber quão rica e

generosa se tornava aquela fonte, seja pela metodologia de sua construção, pela

clareza com que apresentava o cotidiano, deixando-nos entrever e analisar sua

importância, com o olhar de historiador e professor de história, ao deparar com

aquele aparato de resistência e pedra angular da formação social no tempo.

Bem diferente da subestimada importância atribuída às „escolinhas‟

rurais ou urbanas, que, embora custassem para ganhar status de cidade,

considerando sua densidade populacional, mas um grandioso projeto embasado

nas táticas de guerrilha. Embora espalhadas a centenas de quilômetros umas da

outras, sem estradas, com dificuldades de locomoção, especialmente em tempos

de chuva, isoladas geograficamente, havia um viés que as ligada ponto a ponto,

tecendo uma rede: o ideário de libertação e resistência em rede, alimentado por

um importante meio de comunicação, a Folha Alvorada.

Esse foi um achado aos olhos deste pesquisador, especialmente por ser

a escola-educação assunto de primeira grandeza. Tamanha era sua relevância e

volume de dados que a Folha Alvorada não foi suficiente, em muitos momentos,

exigindo buscar outras fontes, suspeitas necessárias para maior segurança e

distanciamento do discurso ali praticado.

O fato de ser um periódico „independente‟ dos silenciamentos

impostos ou comprados por parte dos fomentadores da grande mídia oficial, fez

da Folha Alvorada instrumento subversivo aos olhos e interesses dos opressores –

Estado e latifúndio, porta-voz da causa dos oprimidos, meio pelo qual anunciava,

denunciava, compartilhava e ensinava como haveria de ser orquestrada a

resistência, e, nesse particular ocorreu o embricamento entre a escola, como

atalaia, e o conhecimento, enquanto arma contra as pedras de tropeços, aliados à

ignorância, desigualdade social e ao medo.

Nas páginas da Folha Alvorada habitaram homens, mulheres e

crianças integrantes de uma sociedade real, lutando por uma sociedade ideal, onde

a fome, a miséria, a prostituição, a vida e a morte se avizinhavam nas e pelas

palavras, porém, por traz das narrativas, escritas ou desenhadas, estava um escritor

Page 21: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

21

revolucionário liderando outros subversivos, calçados ou descalços, lá estiveram

com os pés no chão, com caneta em punho e ou com estes sobre o teclado de uma

pequena máquina de datilografia, desenhando letras que a cabeça projetava sobre

aqueles e muitos outros cotidianos, entre sonho e realidade, o dia-a-dia vividos e

registrados, dentre os quais inventamos nossas fontes.

Além da Folha, também fizemos uso dos diários de Pedro

Casaldáliga, enviados especialmente aos amigos de além-mar e, por entender que

eles foram escritos por diferentes motivos, seja por representar o recolhimento de

fatos para um futuro livro, mas, naquele contexto, enquanto forma encontrada de

preparar-se para a defesa de possíveis acusações.

O diário constitui importante documento para a análise dos dramas

pessoais, no caso de nossa pesquisa, dos registros pessoais de Pedro Casaldáliga,

um líder religioso, que, ao consignar suas impressões logo após o ocorrido, ou

suas memórias, lembranças de processos resultantes de perseguições e perdas.

Assim, a Folha Alvorada, somada aos documentos pessoais de Pedro

Casaldáliga, os quais se tornaram públicos no Brasil ou fora deste, se confundem,

pois muitos dos registros ali publicados eram, anos posteriores, „relembrados‟,

como forma de reafirmar propósitos. Tais documentos não poderiam ser

descartados na pesquisa, mas tiveram inestimável valor, com vistas, sobretudo, a

estimular a compreensão do problema e também para complementar dados

obtidos mediante outros procedimentos.

Lançar um olhar sobre a invenção da escola para posseiros, indígenas,

peões e sua relação com fazendeiros, políticos, comerciantes e polícia – revelaria

„[...] as astúcias, o golpe e as artes de fazer‟6 a escola de educação básica

representada enquanto manancial para a compreensão sobre a constituição do

Povo: posseiros, religiosos, professores titulados e leigos, peões, jagunços, gatos e

demais categorias que fizeram (fazem) a história humana dos sertões entre o

Araguaia-Xingu, no estado de Mato Grosso.

Inicialmente, muitas eram as perguntas: considerando as distâncias e

os poucos recursos das famílias vítimas do êxodo rural durante décadas: como e o

que representavam as escolas para as famílias dos escolares? Como foram

6 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 101.

Page 22: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

22

edificadas nas cidades e nos sertões, sem estradas, sem transportes? Como eram

praticadas, de que tecnologias se valiam os professores para exercer a função

docente? Quais eram as temáticas tratadas por eles ao ensinar história? Que

estratégias foram criadas para que as escolas se mantivessem de pé, frente às

dificuldades vividas pelo povo pobre, habitantes daqueles sertões? E para as

famílias dos posseiros, peões (sertanejos) e indígenas e demais legítimos

habitantes da região, naquele momento sob o julgo de projetos empresariais de

colonização incentivados pelos governos militar-civil?

Que esperar de uma instituição repleta de contradições, que tem sido

atacada por um discurso de que não é capaz de atender aos anseios estatísticos dos

detentores do poder? Uma instituição repleta de escolares insatisfeitos, rebeldes,

com um currículo „ultrapassado‟ e merecedor de constantes reformas? Uma escola

praticada nos e pelos interesses neoliberais7? Porém, tais respostas não teriam

sentido se não partissem de um lugar vivido, e, nesse particular, ancoramos no que

delineou Certeau, “[...] o lugar é uma configuração instantânea de posições.

Implica uma relação de estabilidade”.8

Assim, narrar à escola inventada no Araguaia-Xingu é abrir uma

janela para o pertencimento, o estranhamento e a interpretação das relações ali

estabelecidas. Dessa forma, reconstruir a trajetória daquele processo é reconhecer

o contexto, as famílias, os aprendentes e, principalmente, os profissionais que

nelas atuaram, muitos dos quais só se fizeram presentes nos registros por meio de

imagens ou escrituras deixadas, intencionalmente, ou não, como no caso, os

daqueles publicados na Folha Alvorada, nos diários do Bispo Pedro Casaldáliga e

também em formulários impressos e online, dentre outras fontes compulsadas na

construção da presente narrativa.9

A Folha Alvorada recebeu maior atenção por se tratar de uma

documentação bem conhecida dos pesquisadores sobre o Araguaia, é documento

7 Os interesses neoliberais na escola de educação básica são revelados pela relação maior resultado

com menor esforço, portanto, aproxima-se da relação capitalista de trabalho resultando na

fragilização e exploração do profissional da educação. Essa relação será apresentada ao longo da

narrativa em forma de denúncias feitas sobre o baixo salário do professor, a falta de investimento

para a edificação das escolas, cujas problemáticas serviram bandeira para sua superação, a

invenção de uma escola popular e democrática. 8 CERTEAU, Michel de. Op. cit., p. 101.

9 Ao longo da tese, adotaremos o termo aprendente enquanto sinônimo de aluno, desde que a

escrita não interfira no contexto.

Page 23: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

23

público, porém, esta pesquisa se faz inédita, por não haver qualquer estudo que

tenha tomado à escola enquanto objeto de pesquisa, procurando entender o

contexto de sua invenção e seus paradigmas.

Algumas razões conduziram-nos ao diálogo com Frantz Fanon, o qual

nos capacitou para entender a relação entre opressores e oprimidos, pois, ambas as

expressões tornava evidentes tais categorias e, como a próprio discurso que

permeou as ações de resistência e confronto entre opressores e oprimidos nas

páginas da Folha Alvorada. Observando que seus pensamentos foram largamente

adotados pela esquerda brasileira, por intermédio de Jean-Paul Sartre, através de

seu extrato de Damnés de La Terre (1961), publicado em Lês Temps Modernes,

percebemos que a invenção da escola foi marcada pelo pensamento de Fanon.

Quanto à ação educativa, buscamos referência em Paulo Freire, não

somente por seu pensamento-ação ter influenciado o ideário existencialista

católico, revestido do nacionalismo anticolonialista, mas por este ter diretamente

relação com a linha de pensamento que norteou os educadores ligados à Prelazia

de São Félix do Araguaia. Outro aspecto relevante sobre o autor liga-se ao fato de

ter sido ele o primeiro brasileiro a buscar respostas que exigiram a

problematização do passado como forma de compreensão do presente, princípios

atotados pela liderança local-regional, os quais haveremos de revelar ao longo da

narrativa.

Todavia, a escola edificada no citado espaço continuará preservando

em si dimensões que não permitem ser tocadas, mas, como já mencionado,

apresentaremos algumas de suas faces passível de leitura. Nesse sentido,

ampliamos as lentes, apresentando uma extensão do primeiro objetivo, com o

propósito de interpretar os valores, as buscas, as recusas de seus protagonistas,

cuja dimensão pode ser percebida nos entremuros e para além dos muros da

escola do século XXI, portanto, a arte de ensinar e a história ensinada. Para

tanto, buscaremos vestígios da ação do professor de história, suas preferências e

recusas, bem como os silenciamentos sobre os momentos em que se plantou a

pedra fundamental da educação popular e democrática no Brasil Central.

Como forma de balizar os diálogos com as fontes, estruturamos os

diálogos seguindo uma sequência ou lógica de construção da narrativa Sobre a

Page 24: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

24

escrita da história, Certeau (1994), Hobsbawn (1998) e Chartier (1999) serviram

de embasamento teórico. Para entender a ocupação das terras no Araguaia,

amparamos nossas leituras em Martins (1979), Esterci (1987), Valverde (1980),

Barrozo (2008), Oliveira (2016). Sobre educação, em Freire (1979, 1980, 1982,

1991, 2000), Gadotti (1995) e na educação popular em Nidelcoff (1994) e

Brandão (2006). Sobre o ensino de história, nos valemos dos escritos de Nadai

(1988), Bittencourt (2004), Ribeiro (2006), e, nessa mesma esteira, para abordar o

currículo dialogamos com Sacristán (2000), Ribeiro (2005), Santos (2009). Em

relação à tecnologia em tempos de sociedade em rede, em Castells (1999), Lévy

(1993), Kensky (2007), entre outros cujos diálogos que serão apresentados ao

longo da narrativa.

Como já mencionado, o estudo se pautou na seleção das matérias

contidas no jornal Folha Alvorada, aliada ao diálogo com a literatura sobre o

tema, no sentido de atender a proposta de estudo, no sentido de reconstruir,

pautado no cotidiano das escolas, a concepção de sua função social e sua

importância na edificação de um projeto de sociedade do século XXI.

O trabalho se inscreve na essência de uma preocupação: a de

contribuir para a reflexão sobre sua invenção pautada nos movimentos sociais que

coadunaram o projeto de uma escola popular e democrática e a memória histórica

referente à construção da escola no Brasil Central, na fronteira territorial e

econômica de Mato Grosso. Nesse sentido, busca-se explicar aspectos da

organização social, com recorte específico na escola enquanto instrumento de

poder, permeados de significados extraídos pela prática „artes de fazer‟, como

invenção e experiências do ensino de história na educação básica.

Apetecemos, ao apresentar a narrativa produzida sobre a invenção da

escola, revelar sua importância na construção social no tempo, motivo pelo qual a

transformou, regra geral, em marco fundante de um projeto político de sociedade,

seja voltado para a manutenção do poder, seja para sua des-territorialização. Ao

eleger a escola como objeto de pesquisa, buscamos entender sua dimensão plural,

sua diversidade e, especialmente, seu sentido social no tempo. Sua materialidade

requer pesquisa e, não a havendo, portanto, em hipótese alguma compreender uma

Page 25: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

25

escola de educação básica sem considerar sua dimensão histórica, temporal e

territorial.

Pensamos ainda em contribuir para a compreensão da reinvenção da

escola revelando as táticas adotadas nesse processo por parte de seus inventores, o

jogo complexo das relações dicotômicas estabelecidas entre os atores ali

envolvidos. Por um lado, a comunidade em torno de um pensamento de rebeldia

(subversividade) e resistência, e, do outro, os representantes do Estado, portanto, a

escola no Araguaia-Xingu, por ter surgido no contexto da ditadura militar e em

um espaço de luta pela terra, entre seus condenados e os beneficiados

latifundiários, foi marcada pela história dessa mesma escola e seus escolares.

Pensar a escola no tempo requer entender a lógica social em sua

invenção, revelando, na aparente homogeneidade, a heterogeneidade, a

multiplicidade de sentidos presentes nas e pelas ações fundadoras. Perceber, na

instituição, muito mais que sua aparente fragilidade material, sobretudo enquanto

fortaleza pretendida pelas famílias, de um lado, e do „Estado‟ ordenador, de outro,

representado pelos assentados e pelos detentores do poder político-administrativo.

Para emoldurar alguns traços desse quadro em permanente construção,

não basta revelar a relevância da escola nos sertões Araguaia-Xingu, mas

apresentar como ela se tornou instrumento de poder na organização das

comunidades semeadas no Brasil Central, no contexto do governo militar, em

tempos de entreguismo das terras ao grande latifúndio, nacional e internacional,

elo fundamente da leitura e mundo à leitura da palavra.

Para operar com precisão o descortinar de um passado vivido, porém,

pouco compreendido no conjunto dos sujeitos históricos, foram importantes o

aclarar dos enigmas que quase sempre se fizeram indecifráveis por permanecerem

aprisionados em um tempo – o presente – e em um espaço, o lugar onde

ocorreram os fatos. Requereu, portanto, reunir fragmentos sobre os processos na

perspectiva de revelar os sujeitos na produção do cotidiano das escolas. Ao fazer

isso, a narrativa colabora no repensar de uma escola no tempo por meio de uma

fenda.

Abrir essa brecha temporal e extrair dos registros deixados como fonte

para as reflexões, fez da pesquisa ponto de partida para duvidar sobre a

Page 26: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

26

naturalização dos processos. A invenção da escola de educação básica no estado

de Mato Grosso, mais especificamente no Brasil Central, nas décadas de 1970 e

1980, com alcance ao início do século XXI, foi marcada por um projeto de escola

que ia muito além de sua estrutura física, mas de um projeto cujo sentido abrigava

em um contexto histórico, sociopolítico e cultural próprio daquela espacialidade

composta por sertões, cidades e povoados do Araguaia-Xingu mato-grossense,

merecedor de novos olhares.

Mato Grosso vivenciava a expansão de interesse dos grandes

latifúndios, com ampliação dos projetos de colonização sobre extensas áreas de

terras habitadas milenar, e como resultado dos conflitos de terra, também

protagonizados pelos latifundiários no Nordeste e Sul do país, grande número de

famílias expropriadas buscaram um „pedaço de chão‟, para de ele tirar seu próprio

sustento. É nesse contexto que a escola, e em especial o professor, assediados pelo

poder político, se viam diante de uma função social que o qualificava de

enfrentantes do analfabetismo, como ponta de um iceberg, cujas funções serão

apresentadas no presente tópico.

Não bastava cumprir a Lei n. 5.692/71, em especial seus artigos 29 a

40, que regiam sobre a formação de professores e especialistas para atuar no

ensino de 1º e 2º graus, feita em níveis que se elevassem progressivamente,

ajustando-se às diferenças culturais de cada região do País. Os professores

buscavam, por conta própria, formação suficiente para atuar como docente no

Araguaia-Xingu.

Devo dizer que o uso farto das matérias publicadas na Folha Alvorada

se deu por conta de entendermos ter sido este o meio pelo qual se estruturaram os

pilares da escola na e pela comunidade, cujo sentido ganhava proporção à medida

que as matérias, ao tempo em que anunciava acontecimentos, revelavam, por meio

de expressões carregadas de „ensinamentos‟, de orientação às famílias ligadas à

terra e vivendo como posseiros à margem do sistema de propriedades

oficializadas pelo Estado brasileiro.

As imagens copiosamente apresentadas cumpriram uma função

similar, a que fez durante as primeiras décadas de edificação das escolas no

Araguaia-Xingu, pois todas, sem exceção, integravam uma forma de linguagem

Page 27: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

27

didática, assim como o texto na literatura de cordel. Embora não tenha o propósito

fazer uma história da imagem, tampouco uma análise sobre as poesias, abre-se um

vasto campo de pesquisa, pois, em determinadas situações, especialmente por se

tratar de um período de governo onde a repressão aos movimentos sociais, à

produção de narrativas „alternativas‟ que fugissem à ordem imposta pelos órgãos

de controle do governo era uma tática „subversiva‟, um mecanismo de fugir aos

rigores impostos pelo governo opressor. Assim, as imagens-textos constituíram,

por si, um discurso, um projeto que revelaremos ao longo da tese.

Todavia, além de desnudar o projeto de educação popular e

democrática entre o Araguaia-Xingu mato-grossense, acercamos de avalia-lo

quatro décadas e meia depois, buscando, por meio de pesquisa aplicada por

formulário (online e impresso) sobre como a história do processo de invenção da

escola foi ensinada em sala de aula pelos professores. Ainda, a partir das

respostas, traçamos um perfil mínimo dos colaboradores, na perspectiva de

entendê-los sujeitos das transformações vivenciadas pelos escolares em seu

cotidiano, neste primeiro quarto de século.

Nesse particular, entender a relação que eles estabeleceram com o uso

das tecnologias sociais digitais, no cotidiano, pois, contraditoriamente, temos

vivenciado, em outras espacialidades, a subutilização das tecnologias nos

processos de mediação e aprendizagens no contexto escolar. A contradição se

avoluma quando afirmamos que a escola é a instituição responsável por preparar o

cidadão do futuro.

Entendemos que as relações sociais, por si, se transformam à medida

do avanço dos processos comunicacionais (suportes tecnológicos), o que exigiu

igualmente atitudes mais comunicacionais, e também na educação, novos

processos de mediação, novas metodologias no fazer do professor de história no

século XXI. Para análise das respostas, utilizamos os princípios objetivos e

subjetivos da educação popular e democrática como pressuposto de que a prática

social constitui a fonte de todo o conhecimento, uma vez que os programas

educativos devem (deveria) partir de uma problemática concreta vivenciada (vida

cotidiana) e subjetiva (conhecimento e interpretações, formas de expressão,

linguagem, valores, manifestações culturais e artísticas) e suas necessidades.

Page 28: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

28

Assim, a busca por respostas conduziram-nos a perguntar a esses

protagonistas: como o professor de história se coloca diante do desafio de ensinar

história para aprendentes do século XXI? Que estratégias utiliza para ensinar

história, já que em tempos de cibercultura se vê diante de uma ampliação sem

precedente de informações? Que tecnologias são utilizadas para esse fim? Como

o professor de história pensa a escola do futuro? Essas e outras questões

ampliaram as reflexões ao final da narrativa.

A escolha desse público foi, de certa forma, aleatória, digo isso em

função de inicialmente ter enviado o link do formulário online para os Centros de

Formação dos Profissionais da Educação. Igualmente fizemos uso de quatro

grupos formadores, via Whattsapp10

. Dessa feita, montamos uma base de dados a

partir das respostas dos 21 colaboradores espalhados por 4 cidades, em um raio de

300 km de distância, todas situadas na região pertencente à Prelazia de São Félix

do Araguaia e que atuavam em escolas urbanas e rurais. Para não fugir ao critério

metodológico, as cidades encontram-se inseridas no recorte espacial da pesquisa

que resultou na tese.

A investigação permitiu identificar e analisar as representações sociais

do grupo, por meio da utilização dos dados obtidos através de questionários de

associação livre e de um quadro contendo respostas espontâneas, sendo 34

palavras (expressão indutora) às quais deveriam, sob o olhar do professor de

história, acrescentar 3 palavras que lhe vinham à mente para cada uma delas. O

resultado foi interpretado por associação decrescente de análise temática e, em

seguida, transformado em uma frase, de forma tal que pudéssemos extrair um

sentido coletivo, gerado a partir da expressão indutora inicial. Já os resultados das

questões de múltipla escolha, dentre as quais havia aquelas em que o colaborador

tinha que justificar a resposta, e, por fim, uma descritiva, a qual provocava o

professor a descrever a escola de 2030, a escola do futuro.

10

Três grupos de professores e acadêmicos da Universidade do Estado de Mato Grosso – núcleo

pedagógico de Confresa – curso Ciências Sociais e Vila Rica Licenciatura em Computação,

Luciara- Pedagogia – todos já haviam concluído o curso, porém o grupo permanece ativo. Um

grupo de Ciências Humanas formado pelo CEFAPRO de Confresa, além de ter enviado por e-mail

aos gestores dos CEFAPROS pedindo-os que encaminhassem aos gestores das escolas que, por

sua vez, haveriam de passar aos professores de história. O link foi enviado no mês de novembro de

2017. Tivemos que adotar outras estratégias, as quais apresentaremos no Cap. 4.

Page 29: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

29

Aproximar nossa análise com os pressupostos das representações

sociais liga-se à necessidade de entendê-la a partir dela, vislumbrando o quanto

ela influenciava nos comportamentos, especialmente os de sala-de-aula, em

decorrência da posição „privilegiada‟ do professor, em especial o de história, em

relação à posição social investida de poder frente aos seus aprendentes, uma vez

que muito daquilo que é lançado em sala, pela „fala do professor‟, tende a se

tornar „verdade‟, até que não seja possibilitado aos discípulos outras fontes de

acesso que sirvam de contraponto ao que fora dito, o que deveria ser algo comum

no tocante à organização social do conhecimento, numa escola de educação

popular e democrática, a dialética do conhecimento. Será que isso ocorre nas

escolas de educação básica do século XXI? Essa é uma questão cujas respostas

apresentaremos ao final da narrativa.

O trabalho está dividido em quatro capítulos. O primeiro traz por

título A escola como arte de inventar de um povo nos sertões do Araguaia-Xingu,

momento inaugural no qual são apresentadas as fontes, os lugares geográficos,

bem como o processo histórico que resultou no reordenamento dos espaços,

especialmente após a política de „ocupação dos espaços vazios‟, apresentando o

contraponto do discurso. Também desvelamos quais eram as categorias ali

presentes, apontando para a invenção da escola naquele processo litigante.

No segundo capítulo, Escola como pedra angular na formação social

contra a inumana „desintegração‟ de índios, posseiros e peões no Brasil Central,

procuramos apresentar o contexto e os significados da escola para as famílias de

posseiros e peões espalhados pelas cidades e sertões daquela territorialidade,

apresentando ainda como lidam seus inventores com a violência e as lutas do

cotidiano.

No terceiro capítulo, Ensino de história e „subversividade‟: nem amar,

nem deixar, unir, denunciar e resistir, apresentamos os dilemas do professor ao

ensinar a história em tempo de ditadura e diante de uma história oficial. Pautado

nas fontes, procuramos contextualizar os desafios do professor em educar para a

liberdade, produzindo um currículo de uma escola popular e democrática.

Segundo Roger Chartier, “[...] o historiador do tempo presente é contemporâneo

Page 30: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

30

de seu objeto e, portanto, partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas

categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais”.11

No quarto e último capítulo, que traz como título A reinvenção da

escola popular e democrática entre o Araguaia-Xingu mato-grossense:

contribuições à história e ao saber fazer do professor no século XXI no Brasil

Central, procuramos apresentar a base teórica que sustentou o projeto da escola

popular e democrática e a disputa pela memória em torno da invenção da escola-

educação no Brasil Central.

Em seguida revelamos os percalços e resultados de uma pesquisa

aplicada aos professores que atuam na disciplina de história sobre a representação

que os mesmos têm sobre o processo de „invasão‟ das tecnologias sociais digitais

no contexto escolar, bem como as expectativas sobre a escola em 2030 (a escola

do futuro). Concluindo o capítulo, apresentamos os desafios do professor em

mediar aprendizagens sobre o conhecimento histórico à luz da educação popular

frente à cibercultura, entendendo-a enquanto uma realidade no presente, fruto das

relações oriundas do desenvolvimento tecnológico neste primeiro quarto de

século.

Entendemos que o Araguaia-Xingu, assim como a educação escolar

brasileira vivem uma encruzilhada histórica, um momento singular que decidirá

seu futuro, que, de certa forma, carrega consigo o drama colocado aos povos que

se instalaram na parte central do Brasil, na segunda metade do século XX, em

plena ditadura militar, cujo drama se encontra presente, afirmando-se com certa

soberania, voltando-se para a solução dos problemas locais, ou continuará

sofrendo os revezes da marcha para o progresso de poucos.

A partir de agora, convido ao leitor a acompanhar a invenção e

reinvenção da escola de educação básica, considerando o cotidiano que

inventamos no passado e no presente, a partir do qual revelaremos a escola e seu

lugar social a partir de um roteiro desvelador do caminho trilhado pela pesquisa,

às vezes acompanhado, mas, na maior parte do caminho seguimos a passos lentos,

solitários e exigentes. Cabe dizer que nesta história da qual nos apresentamos

11

CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand,

1999, p. 216.

Page 31: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

31

como narrador, e acabamos „fazendo‟ a história dos outros, sendo, parte de minha

própria história enquanto educador, cuja narrativa é a senha para abrir novas

janelas de significados, neste e em outros tempos banzeiros da história.

Page 32: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

32

CAPÍTULO 1

A ESCOLA COMO ARTE DE INVENTAR DE UM ‘POVO’

NOS ‘SERTÕES’ NO ARAGUAIA-XINGU MATO-

GROSSENSE

Tem que dar o peixe, ensinar a pescar, às vezes tem de ensinar

onde está o rio e tem de ajudar a conquistar o rio também.

Pedro Casaldáliga12

Escola, essa generosa invenção, se fez edificada com e por inspiração

de um povo e, entre ele, um colonizador, sentindo, vivendo e registrando sob o

calor do sol desde o nascente ao poente, acompanhando a fluidez das águas e seus

banzeiros, alimentando sonhos e arquitetando utopias entre os colonizados, nas

cidades e nos sertões13

. Uma edificação recheada de pedras-de-tropeços

espalhadas pelo opressor, mas, como as águas de enxurradas, as contornou

inundando-as, de forma a não parar no meio do caminho, cavado para e pela

caminhada dos oprimidos.

12

Entrevista concedida por Pedro Casaldáliga ao jornal Diário de Cuiabá, Caderno 02, Sessão

Cidades, de 23 de fevereiro de 2003, p. A4, Cuiabá/MT. 13

Pensamos o sertão como o oposto à cidade, conferindo a ele o uso histórico originário do latim

sertones. Não temos a pretensão em reforçar, tampouco negar o sentido ideológico atribuído ao

termo, pois fora utilizado desde o período colonial. A referência ao sertão reforça a existência de

fronteiras entre o campo e a cidade, e, para o Araguaia-Xingu, seus usos auxiliaram na

alimentação de duplo ideário, a esperança do acesso a terra, por parte das famílias de baixo poder

aquisitivo, e, por outro, seguindo o projeto dos governos militares na divisão das terras às

empresas agropecuárias (latifúndio), escamoteou a existência de grande contingente populacional

indígenas e de famílias que habitavam as margens dos rios e as matas. Eni Orlandi enunciou um

dos melhores exemplos de análise de documentos históricos sobre o povoamento do sertão, e ou a

expressão ocupação do sertão, estudando-o a partir da análise do discurso no Brasil, em sua obra

Terra à vista, onde interpreta os sentidos existentes nos textos de capuchinhos e viajantes

franceses dos séculos XVI a XVIII, buscando entender como os argumentos que aparecem nesses

textos influenciaram a formação de certa forma de ver o Brasil. (ORLANDI, Eni Pulcinelli). Terra

à Vista: discurso do confronto – Velho e Novo Mundo. São Paulo; Campinas: Cortez; EdUnicamp,

1990.

Page 33: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

33

Essas serão as águas que haveremos de navegar desde suas nascentes,

atentos aos movimentos e passagens pelas matas, cidades, sertões, córregos, lagos,

varjões, corixos, baias e rios, lugares onde os pescadores iniciantes haveriam, em

coragem e esperança, apropriar-se do conhecimento que os levasse ao peixe, ao

domínio da prática da pesca, aos segredos dos rios e terras banhadas pelo

Araguaia-Xingu mato-grossense. Igual desafio foi enfrentado pelo lavrador, que,

sem conhecer e dominar seus segredos, não os fazia capaz de ela tirar seu

sustento.

Identificar os primórdios em que se deu a invenção da escola no

Araguaia-Xingu não seria possível se não a concebêssemos conectada com a

invenção do povo, pelo povo e para o povo. Entender esse processo possibilitou

interpretar a escola no tempo, pois, embora a pesquisa e, consequente narrativa

apresentem suas singularidades, próprias das circunstâncias da produção,

antecipamos que essa invenção não se encontrava isolada, tampouco ilhada pelas

enchentes dos rios Araguaia-Xingu, mas ligada ao processo de produção de

saberes e práticas de uma guerrilha distinta daquela protagonizada e rechaçada

pelo Exército brasileiro, embora não tenha permanecido imune às brutalidades da

ditadura e dos governos opressores, resistindo e fomentando sua reinvenção14

.

Em Mato Grosso, a guerrilha se deu em outro campo, no da educação.

Nesta batalha pareia, as escolas se tornaram palco de combates permanentes, onde

os oprimidos duelaram com seus opressores – „tubarões‟ e governo – os primeiros

representando o capitalismo latifundiário, e, o segundo, o Estado Brasileiro15

.

Portanto, recuperar a memória de semelhantes duelos é escrever a história na

14

A Guerrilha do Araguaia teve lugar nas regiões sudeste do Pará e norte do então estado de Goiás

(atual Tocantins), abrangendo também terras do Maranhão, na área conhecida como „Bico do

Papagaio‟. Ocorreu entre meados da década de 1960, quando os primeiros militantes do Partido

Comunista do Brasil (PC do B) chegaram à região em 1974, quando os últimos guerrilheiros foram

caçados e abatidos por militares especialmente treinados para combater a guerrilha e determinados

a não fazer prisioneiros (PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz). Memória social da Guerrilha do

Araguaia e da guerra que veio depois. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências. Humanas. Belém,

v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez. 2011. 15

O termo tubarão foi largamente utilizado a partir do ano de 1977, nas matérias publicadas pelo

Jornal Alvorada, se referindo ao fazendeiro, e em algum momento à besta fera. Portanto, uma

categoria praticante das violências cometidas contra o povo.

Page 34: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

34

Dimensão de Walter Benjamin, uma construção referenciada num „tempo

saturado de ágoras‟16

.

Nessa perspectiva, demarcamos o tempo, o lugar e o processo de uma

invenção. Iniciamos, assim, falando de um tempo preciso, aquele situado em

finais do segundo quarto do século XX, durante o governo de Getúlio Vargas,

quando o Brasil conheceu seu mais novo projeto integracionista, a „Marcha para

o Oeste‟, elegendo o centro do país enquanto nova fronteira expansionista, espaço

de ocupação e exploração da riqueza dos sertões. Para tanto, o governo brasileiro

consignou em seus projetos estratégias para a distribuição de grandes parcelas de

terra a serem entregues aos „novos desbravadores‟, empresários financiados pelo

poder público que se tornariam oficialmente os maiores latifundiários que o

estado de Mato Grosso conheceu no século XX. Demarcamos a temporalidade nos

anos 2018, em razão do avanço da „nova fronteira‟ agrícola no Araguaia-Xingu,

cujas dimensões superaram, em muito, o projeto dos governos militar-civil neste

século, quando o projeto capitalista seguiu a trilha do agronegócio, inaugurando

novas formas de expropriação da terra. Igualmente, a data está vinculada aos

desafios do professor de história em ensinar esta disciplina em tempos presentes.

Com o projeto da década de 1940, a parte central do vasto continente

brasileiro foi transformada em cenário de bonança e progresso para uma centena

de grandes empresas e seus latifúndios defendidos pelo aparato do Estado, e, de

outro lado, contraditoriamente, inúmeras nações indígenas, banidas de seus

territórios, e centenas de famílias sem-terra, vitimadas por um processo de

concentração fundiária no Norte e Nordeste do país, e ali se assentando e lutando

pelo direito à posse de chãos contíguos, entre os rios Araguaia e Xingu, cujo

processo se intensificou na segunda metade do século XX. Tornados invisíveis no

discurso do grande „vazio demográfico‟ brasileiro, nessa narrativa, foram

protagonistas de um processo e autores de uma invenção, pedra angular na

organização social no tempo, a escola.

Embora nossa pesquisa privilegie o espaço-tempo a partir da década

de 1970, voltaremos nossas lentes em rápidas visitas às décadas anteriores, como

16

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da

cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense,

1994.

Page 35: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

35

forma de denunciar equívocos cometidos pelo governo militar, ao propor a

entrega das terras e riquezas naturais (madeira, minérios) ao capital estrangeiro,

em total desrespeito à soberania nacional e aos brasileiros habitantes das terras

mato-grossenses. Sigamos a rota do discurso.

Na década de 1940, Getúlio Vargas, imbuído do propósito de avançar

a „fronteira civilizatória‟ e incorporar seus territórios à unidade nacional,

encarregou o Ministro João Alberto Lins de Barros para dar cabo a seu projeto,

criando a Fundação Brasil Central, responsável pela Expedição Roncador-Xingu.

Iniciada em 1943, suas incursões percorreram o sul da Amazônia, mantendo

contato com diversas etnias indígenas até aquele momento „desconhecidas‟ pela

administração do governo brasileiro. Essa expedição derivou em farto acervo

documental, cuja história se funde com a dos irmãos Villas Boas: Leonardo,

Cláudio e Orlando.

Ainda que a expedição resultasse em farto conjunto etnográfico, tais

registros foram „usados‟ como discurso e estratégia para alimentar o „vazio

demográfico‟, desenhando outra história que não aquela vivida pelos povos do

Araguaia-Xingu, ignorando o processo histórico que resultou na busca de um

povo por um „lugar ao sol‟ e, para seu sustento, a coleta, a transformação da terra

pelo trabalho, em alguns casos em riqueza extraídas das minas diamantíferas do

Araguaia e seus afluentes, cuja temporalidade remonta finais do século XIX e

primeiras décadas do XX;17

Sobre as reconfigurações territoriais do Vale do Araguaia, Soares,

(2004), analisando a região a partir da primeira década do século XX, oferece

elementos para a compreensão da constituição do povoado Mato Verde, atual

cidade de Luciara. Em sua narrativa, apresenta diferentes práticas de domínio de

espaço territorial praticado pelos trabalhadores sertanejos não indígenas em terras

banhadas pelo rio Araguaia e seus afluentes, na busca itinerante pelo caucho –

17

Luís Antônio Soares, em entrevista à Dona Adalta, antiga moradora de Luciara, filha do Sr.

Lúcio da Luz, considerado homem rico da época, colheu informações sobre o patrimônio por ela

herdado. Afirmou Dona Adalta que tudo teve início nos garimpos do leste mato-grossense, onde

esteve no início da década de 1920. Esta entrevista compôs o escopo documental da sua

dissertação de mestrado, defendida em 2004. Estas e outras informações poderão ser encontradas

In SOARES. Luís Antônio Barbosa. Trilhas e caminhos: povoação não indígena no Vale do

Araguaia – MT, na primeira metade do séc. XX. Dissertação (Mestrado em História) –

UFMT/ICHS, 2004.

Page 36: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

36

Castilloa elástica, e na procura pelos minerais, que, por conseguinte, resultaram

na necessária escolha de matas para o cultivo de suas roças de subsistência, o

domínio de técnicas de uso dos varjões, onde poderiam criar algumas cabeças de

gado18

. Tais empreendimentos constituíram razões de permanência na terra,

reunindo condições para a formação dos primeiros núcleos „urbanos‟ em meio ao

vazio de políticas públicas para a constância e prosperidade dos povos originários

e primeiros migrantes.

Sobre os indígenas, não há precisão em seu contingente populacional,

mas, sobre os não indígenas Soares19

aponta para importantes registros deixados

pelo missionário dominicano em relação a um fenômeno populacional. Em 1872,

havia nas regiões do Pará e Amazonas 329 mil habitantes e, em 1900, número que

saltou para 695 mil. O sul do Pará, mais precisamente no arraial da Conceição do

Araguaia, pode servir de exemplo, pois, no início “[...] não era mais que um

arraialzinho de outrora” 20

, mas, na passagem do século XIX para o XX, tinha se

tornado cidade e cabeça da comarca, com uma população de 6 mil almas, e seu

território contava com mais de 15 mil habitantes espalhados pelas beiras dos rios,

nos campos e nas matas que se estendiam em direitura ao Xingu.

Igualmente, além do crescimento populacional, a região percebeu uma

diversificação na produção econômica, que, de extrativista, passou a ser também

criatória, como consta nos relatórios do explorador francês Henri Condreau,

elaborados em 1897, que, ao passar pelo povoado de Sant‟ana da Barreira,

descreveu que os habitantes eram principalmente criadores, e o número total de

animais da espécie bovina ultrapassava 2.500 cabeças21

.

Segundo Otávio Guilherme Velho (1981) e José de Souza Martins

(1997), os grupos sociais que foram para aquele espaço geográfico constituíram a

denominada Frente de Expansão, cujo movimento resultou diretamente no

alargamento da fronteira e no contato interétnico no interior do Brasil.

18

Ibidem, p. 23. 19

Ibidem. 20

AUDRIM, 1946, 102 apud SOARES, Luís Antônio Barbosa. Trilhas e caminhos: povoação não

indígena no Vale do Araguaia–MT, na primeira metade do séc. XX. Dissertação (Mestrado em

História). UFMT/ICHS, 2004. 21

MARTINS, Dalísia Elizabeth. As comunicações fluviais pelo Tocantins e Araguaia no século

XIX. Goiânia: Oriente, 1973. p. 116 apud SOARES, op. cit. p. 35.

Page 37: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

37

José de Souza Martins publicou importante reflexão, em livro

intitulado Fronteira, afirmando que a “[...] fronteira é a fronteira da humanidade”

e ela aparece frequentemente no limite do humano. Porém, “[...] além dela está o

não humano, o natural, o animal”, chamando atenção para a necessidade de “[...]

entendermos que a fronteira tem dois lados e não um lado só, e o suposto lado da

civilização [torna-se] mais fácil e mais abrangente estudar a fronteira como

concepção de fronteira do humano” 22

. Embora seja tentador ultrapassar essa raia

lindeira, nosso trabalho também traz como perspectiva a dimensão humana da

fronteira, procurando evidenciar especificidades de uma invenção em construção.

Ao lançar nossas lentes sobre as famílias não indígenas e sua relação

com a terra e a produção dela advinda, observamos que em meados do século XX

“[...] a terra ainda não tinha o sentido moderno de propriedade, cujo valor era

atribuído por hectare ou alqueire, pois, a existência de cerca era somente para que

o gado, criado de forma extensiva e que não prejudicasse a plantação”.23

A terra, embora não tivesse valor comercial naquele momento, ela

tinha valor de uso e, em muitos casos, coletivo, o que possibilitou a criação do

gado à solta no varjão, sem necessidade de cercas dividindo a criação. Conforme

Soares24

, no início deste século, havia em Luciara mais de 40 retiros em uma vasta

área de terra comum, na margem esquerda do rio Araguaia, e outros no rio

Xavantinho.

A inexistência da relação terra-capital alimentou a saga dos

capitalistas e governos militares, para quem os „espaços vazios‟ significavam, de

fato, dois vazios, um relacionado aos valores capitalistas sobre a exploração terra

e, o segundo, de programas e projetos por parte do governo, os quais fossem

capazes de minimizar as dificuldades encontradas pelas famílias ali residentes.

Convém acrescentar que a ausência do Estado se limitava ao atendimento das

demandas dos pobres residentes na região, não significando que estes ficassem

fora do grande projeto econômico, visto que peças fundamentais para atender tal

22

Ver VELHO, Otávio Guilherme. Frentes de Expansão e Estrutura Agrária. Rio de Janeiro:

Zahar, 1981. MARTINS, José de Souza. Fronteira – a degradação do Outro nos confins do

humano. São Paulo: Hucitec, 1997. 23

SOARES. Luís Antônio Barbosa. Trilhas e caminhos: povoação não indígena no Vale do

Araguaia – MT, na primeira metade do séc. XX. Dissertação (Mestrado em História) –

UFMT/ICHS, 2004, p. 83. 24

Ibid.

Page 38: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

38

empreendimento, pois seriam utilizados como „trabalhadores‟ dele, tendo por base

uma relação já conhecida e adotada na Amazônia brasileira25

.

O vazio esteve ocupado por uma sequência de deslocamentos e

ocupações passível cronologicamente de observação, a saber, „Mato Verde‟, que

anos depois da chegada de seu fundador, Lúcio da Luz, na primeira década do

século XX, alterou sua nomenclatura para Luciara; Furo de Pedra, no ano de

(1909); São Félix do Araguaia, em 1942, Lago Grande e Santa Terezinha, em

1943, e Porto Alegre do Norte, no ano de 1946, refutando, portanto, a tese de

vazio demográfico.26

Logo, semelhante vazio não se ligava a um conceito físico-geográfico,

mas era gerado pela intencionalidade de colocar em prática uma política de

aniquilamento do humano, pela voracidade do capital nacional-internacional o

qual objetivava construir uma representação enquanto forma de ruína histórica das

categorias índios e pobres, abrindo sendas para o projeto e, nele, a projeção da

figura dos novos desbravadores e semeadores do „progresso‟ empresarial,

representada pelo latifúndio.

Uma reconfiguração do espaço em marcha, a reterritorialização da

fronteira de expansão Araguaia-Xingu, por meio de medidas drásticas, com

abertura de picadas, derrubada de árvores e gente para plantar capim, formando

pastos e preenchendo „os vazios‟ por bois.

25

A exploração do trabalho já era conhecida e praticada naquele espaço geográfico desde finais do

século XIX e primeira metade do XX. Conforme Otavio Ianni, havia uma teia de relações em

torno da exploração do caucho e da produção da borracha, o exportador localizado em Belém e

ligado aos bancos financiava a casa aviadora, a qual explorava os seringalistas; estes, por sua vez,

exploravam os seringueiros. Igualmente em relação à criação de gado, o vaqueiro não recebia

remuneração em numerário, pois a divisão pela produção era uma prática na qual o trabalhador

recebia um percentual das crias do gado que cuidava (1/4), exemplo de divisão, mas isso variava

conforme o acerto. Com a queda da produção da borracha, restava-lhes, Portanto, ou trabalhar

como vaqueiro na construção de curral, casas, ou tocar roça. In Otavio Ianni. A luta pela terra:

história social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 47. 26

Esta região aparece na literatura com várias denominações: Médio Araguaia, quando tem como

referência o rio Araguaia, desde sua nascente à sua jusante com o rio Tocantins; Baixo Araguaia,

quando se toma por referência o rio Araguaia no estado de Mato Grosso. Todavia, como

circunscrevemos nossa pesquisa à territorialidade da Prelazia, chamaremos de Araguaia-Xingu,

correspondendo aos municípios de Luciara, São Félix do Araguaia, Santa Terezinha, Confresa,

Porto Alegre do Norte, Canabrava do Norte, Alto Boa Vista, São José do Xingu, Santa Cruz do

Xingu, Novo Santo Antônio, Serra Nova Dourada e Bom Jesus do Araguaia, por serem estes os

municípios onde foram edificadas as primeiras escolas na região.

Page 39: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

39

Sobre essa política díspar, adotada pelo governo em relação à

distribuição de terras, Barrozo27

argumenta:

Aos grandes empresários, o governo ofereceu crédito

subsidiado, incentivos fiscais e apoio logístico. Para os

agricultores pobres, ele acenou com a possibilidade de lotes em

projetos de colonização e assentamentos rurais, em geral

distantes das cidades, sem infraestrutura, sem apoio técnico e

financeiro.

Essa dinâmica teve por base uma política voltada à reterritorialização

da espacialidade pelos „novos‟ usufrutuários da terra, em sua maioria advindos do

Sudeste e Sul brasileiro, dividindo a terra em grandes latifúndios, somados, como

já dissemos, ao capital internacional, sob o discurso de desbravar o inferno verde,

como era chamada a Floresta Amazônica nos sertões do Araguaia-Xingu28

.

Segundo Guimarães Neto, o processo de reterritorialização dos

espaços por meio das políticas oficiais seguiram os interesses econômicos e

políticos (estratégicos), definindo a região do Araguaia-Xingu como polo

Agropecuário, onde a concentração fundiária deveria ser levada a cabo com a

implantação de uma lógica tecnocrática que incluía a organização de um Grupo

Executivo de Terras do Araguaia e Tocantins (GETAT), no Sul do estado do

Pará.29

Tal decisão, segundo Guimarães Neto, tomou forma de intervenção

política, a fim de exercer controle sobre os conflitos sociais30

. Afirmou ainda que

o projeto pode ser dividido em três fases diferentes, ainda que todas elas tivessem

27

BARROZO, J. C. (Org.) Mato Grosso: do sonho à utopia da terra. Cuiabá: EdUFMT; Carlini &

Caniato, 2008, p. 11. 28

Para efeito de entendimento geográfico, a narrativa da tese faz a cobertura sobre a mesorregião

nordeste mato-grossense, Araguaia-Xingu corresponde a uma extensão territorial de 177.345 km2,

assim definido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 29

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política. Trabalhadores

rurais, conflito social e medo na Amazônia (1970-1980). Revista Mundos do Trabalho.

Florianópolis, v. 6, n. 11, p. 129-146, janeiro-junho 2014. 30

Fruto de pesquisa sobre a “Memória e história plural: mundos do trabalho, territórios das

migrações e microcosmos da violência”, Regina Beatriz revela as políticas governamentais civil-

militar, instaladas no Brasil em 1964, procurando estudar os conflitos sociais na Amazônia

relacionados às políticas e dispositivos governamentais no controle da ocupação das terras pelos

trabalhadores procurando entender a problemática a partir dos testemunhos da violência contra

trabalhadores e conflitos no Araguaia na área de abrangência da Prelazia de São Félix do

Araguaia.

Page 40: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

40

sido alimentadas pela ideia da Amazônia enquanto território vazio a ser ocupado,

carregando consigo algumas especificidades, a saber:

A primeira pautada pela mudança na política de incentivos

ficais [...] Na segunda, entre 1970 e 1974, durante o mandato na

Presidência da República do general Garrastazu Médici, foi

dada prioridade aos projetos de colonização na Transamazônica,

aos projetos energéticos e à ampliação da rede viária terrestre

[...] Na terceira fase, a partir de meados dos anos 70, o governo

federal, em substituição ao modelo capitalista que inspirou as

práticas SPVEA e parte das desenvolvidas nos primeiros anos

de existência da SUDAM, orientou sua intervenção econômica

com base nas vantagens comparativas de que dispunha a

Amazônia em relação a outras regiões do país, para contribuir

ao desenvolvimento econômico nacional.31

Essas ações por parte do Estado tiveram por incremento o controle de

acesso a terra e ao mercado de mão de obra, conforme registrou Guimarães

Neto32

, pois, ao tempo em que dificultava o acesso da terra às famílias pobres,

criava-se um contingente populacional potencialmente disponível para o trabalho

de derrubada da floresta, plantação de pastos e lida com o gado.

Do ponto de vista jurídico-cartorial, o projeto governamental não

sofreria resistência para sua execução, pois, no âmbito local-regional, a terra „não

tinha dono‟, visto serem reservadas à União.

Segundo Meirelles33

, no Brasil, todas as terras foram, originalmente,

públicas. Assim, sua transferência a particulares deu-se paulatinamente, por meio

de concessões, vendas, doações, permutas e legitimação de posses, daí a regra de

que toda terra sem título de propriedade é de domínio público.

A partir do golpe militar de 1964, o Estado ampliou a política de

exploração das riquezas naturais, direcionando a economia para atividades de

larga escala (extrativista, monocultora e pecuária), em nome do progresso e da

integração nacional, apoiando e „incentivando‟ a formação de grupos de

investidores com capital internacional para o desenvolvimento econômico do país,

31

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Op. cit., p. 132. 32

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil

contemporâneo. Cuiabá: UNICEM, 2002, p. 16. 33

MEIRELLES, Helly Lopes. Direito administrativo brasileiro. 21 ed, São Paulo: Malheiros,

1996, p. 459.

Page 41: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

41

muito embora os incentivos fiscais, certamente, representassem a maior parcela de

investimento financeiro.34

Nesse contexto é que buscamos entender a edificação da escola,

tomando os registros de memória registrados, anunciados e defendidos como

resistência dos povos do Araguaia-Xingu mato-grossense. Assim, a busca pela

fonte conduziu-nos à consulta do periódico católico Folha Alvorada, procurando

entender o viés da formação sócio histórica local, observadas as questões

relacionadas à escola, de onde vertia o ideário denunciador de estratégias e táticas,

arregimentando pessoas em torno de um projeto contrário ao que havia sido

orquestrado pelo governo conluiado com o capital.

Os arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia, atualmente

digitalizados, se mostrou generoso para com a pesquisa, a partir da qual

recolhemos pistas sobre um cenário de incontáveis contendas, dentre as quais

foram recortadas àquelas que estiveram diretamente ligadas à invenção da escola.

Analisa-la sob o olhar do historiador e professor de história tem por premissa

contribuir na construção de modelos explicativos de como aquela comunidade

concebeu a escola, quais fundamentos teóricos sustentaram seus pilares, que

dificuldades encontraram para sua edificação e, especialmente, que revezes essa

invenção sofreu adiante do quadro caótico de violência que amoldurou a luta pela

terra.

Pensar a formação da escola naquelas paragens fez-se duplamente

significativa, primeiro, por entender as características que marcaram sua origem e,

segundo, por se tratar de uma instituição em permanente construção, contribuindo

com reflexões pertinentes à sua transformação e reinvenção, já que ela compôs o

contraponto da práxis que materializou saberes e medidas no conjunto de ações,

intervindo nos conflitos sociais gestados em meio à violência política que

34

No mesmo ano em que se implantou o governo ditador no Brasil, 1964, foi construída a primeira

escola na região do Araguaia-Xingu, pelo Padre Francisco Jacques Jentel. O Padre Chico, como

era chamado pelas pessoas do lugar, nasceu em Meriel, na França. Ordenado sacerdote, foi para

África para ingressar na Fraternidade dos Irmãozinhos de Jesus. Em 1954, veio para o Brasil

trabalhar como missionário da prelazia de Conceição do Araguaia, a qual, naquela época, fazia

parte a Missão Tapirapé, com quem viveu dez anos de sua vida. Em 1964, mudou-se

definitivamente para Santa Terezinha, local onde construiu a escola que serviu e ainda serve de

marco da educação no Araguaia-Xingu (Alvorada, folha da prelazia de São Félix do Araguaia. São

Félix. 1979. A 16.0. 63 P1.17).

Page 42: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

42

envolvia a questão fundiária instituída pelo Estado, visando não alterar a política

agrária no Brasil.35

Diante deste cenário, abre-se um grande leque de dúvidas: cumpriu a

escola sua função social de preparar as famílias para a resistência e enfrentamento

das mazelas sociais? Se o fez, como? Com quais recursos? Embora tenhamos

consciência de que, por maior vontade que houvesse, trata-se de um quadro de

respostas impossíveis de ser respondidas em sua completude, dado os limites

apresentados pelas fontes, assim como pelos contornos da própria pesquisa.

Muitos foram os „banzeiros‟ que passaram despercebidos pelos inventores da

Folha Alvorada, bem como pelos navegantes daquelas águas que inundavam o

cotidiano e a história do Araguaia-Xingu.

Além do mais, mesmo que, para nossa pesquisa, a Folha Alvorada

representasse fonte de primeira grandeza, deve-se considerar que sua produção e

divulgação passou por crivos escriturários de origem, seja na escolha do tema ou

fato a ser relatado-divulgado, ou até mesmo no momento de sua reprodução, tendo

passado pelo crivo de um conselho editorial.

Todavia, o periódico da Prelazia tornou-se relevante para a construção

da tese, uma vez que os „grandes‟ jornais em circulação no Brasil, nas décadas de

1970 e seguintes, jamais publicariam as matérias divulgadas pela Folha Alvorada,

por inúmeras razões: a primeira está ligada à questão econômica, uma vez que

escrever matérias para vender jornal para algumas famílias espalhadas pelo sertão

Araguaia-Xingu não se apresentava rentável; o segundo motivo atrela-se à questão

política, sendo prática de qualquer governo, especialmente os que estiveram no

comando durante o governo ditador, somente veicular matérias autorizadas.

35

A violência aparece em maior ou menor intensidade em todos os trabalhos publicados sobre o

Araguaia-Xingu, seja nas páginas dos livros de antropologia/etnologia, geografia, sociologia e

educação. Todavia, ela tinge de vermelho os trabalhos sobre a história da ocupação daqueles

sertões, uma espécie de ingrediente principal nessa trama da vida real. Assim, em nossa narrativa

haveremos de, igualmente, tocar nesse tendão de Aquiles da organização social, porém, haveremos

ao longo do texto de revelar quais significados foram dados à violência, e, em particular, aqueles

percebidos no quadro em que aparece a escola, procurando revela-la em seu conjunto, enquanto

um atentado à dignidade da pessoa humana, seja ela física ou psicológica.

Sobre a política agrária, segundo Guimarães Neto (op. cit., p. 133) essa política adotada esteve

voltada para manter o status quo da política agrária expressa pelas relações entre “militares” e

“civis” (grandes empresários e proprietários de terra na Amazônia, representantes do poder

judiciário e legislativo, entre outras categorias sociais).

Page 43: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

43

Assim, a questão política se fez relevante, para nosso trabalho, pois,

contrariando a „lógica‟ adotada por outros meios de comunicação, quanto ao

silenciamentos intencional de alguns eventos, negligenciando a existência de

habitantes naquelas paragens. A Folha Alvorada, contrariamente, fez com que a

realidade vivida pelas famílias fosse conhecida por elas, bem como pelos mais

diversos órgãos oficiais no Brasil e fora dele, cujas matérias, como veremos ao

longo da tese, estabeleceram contraponto com as narrativas oficiais, ora

afirmando, ora negando, a exemplo de que as ações da prelazia estivessem ligada

à „Guerrilha do Araguaia‟, equivocadamente atribuída a Mato Grosso.

Essa era uma estratégia adotada pelos meios de comunicação oficial,

ou matérias pagas por estes, na tentativa de ganhar a opinião pública e, sobretudo,

justificar as inúmeras investidas militares-civis contra a prelazia, mais

especificamente contra os padres „comunistas, guerrilheiros e subversivos.

Contudo, a guerrilha armada não avançou os limites de Mato Grosso.36

Revelar os segmentos sociais que demandaram a edificação da escola

para dela se servir, bem como os processos, dificuldades e avanços decorrentes,

ilustrarão as páginas do capítulo inaugural da presente tese. Adotamos um olhar

de faroleiro, para perceber a escola enquanto instituição e em que circunstâncias

específicas ganhou relevo na formação da sociedade e do povo que coabitava as

cidades, povoados e sertões do Araguaia-Xingu, nas últimas cinco décadas.

Entender sua invenção mapeando suas características, como símbolo

de luta das famílias que dela necessitavam, é igualmente entender as táticas de

guerrilha na visão de Peixoto37

, uma história suspensa no tempo, porque tanto seu

desfecho, infamado por execuções e desaparecimentos, quanto seus ideais se

perderam nos meandros das lutas de apagamento da memória, mas também

perceber a existência de práticas de inclusão, por meio de um currículo que

abordava os problemas locais. Por fim, prospectar, em seu cotidiano, práticas de

36

Ao longo desta narrativa serão revelados os sentidos dados ao chamar os padres e os professores

de guerrilheiros. Adiantamos que essa foi uma estratégia discursiva do governo militar que, ao

usar os veículos de comunicação a seu favor, visou preparar a opinião pública, condenando por

antecipação àqueles que defendiam o direito do povo do lugar, e, assim, justificar o uso da força

contra aqueles que se opunham ao projeto arquitetado para o Brasil Central. 37

PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz. Memória social da Guerrilha do Araguaia e da guerra que

veio depois. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum. Belém, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez.

2011.

Page 44: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

44

resistência e liberdade enquanto irradiadoras de esperança para o homem à deriva

do Estado, uma vez deixado às margens das políticas públicas.

Como afiançamos anteriormente, lançar um olhar sobre a invenção da

escola para posseiros, indígenas, peões e sua relação com os fazendeiros,

políticos, comerciantes e polícia – revelando “[...] as astúcias, o golpe, artes de

fazer” 38

, possibilitará entender a constituição do Povo: posseiros, religiosos,

professores – leigos, peões, jagunços, gatos e demais categorias que fez (faz) a

História Humana dos sertões entre o Araguaia-Xingu, no estado de Mato Grosso.

Eis o motivo primeiro da presente narrativa, visto que a busca por respostas nos

moveu à pesquisa, a qual revelaremos ao longo da tese.

Visitar a seara do tempo e perceber os valores conceituais parece-nos

pertinente, à medida que os conceitos passam a qualificar certas categorias sociais,

alertando o leitor para que possa situar suas reflexões acerca do termo posseiro,

pois, em nosso trabalho eles são entendidos como agricultores que, juntamente

com a família, ocuparam (ocupam) pequenas áreas de terras devolutas ou

improdutivas que não estavam (estão) sendo utilizadas e que pertenciam

(pertencem) ao governo, ou trabalhadores rurais que tinham (têm) a posse, mas

não a documentação oficial que provasse que eles são seus donos e detentores da

propriedade da terra39

.

Embora existissem outros instrumentos para a „regularização‟ da

propriedade da terra, foi o Estatuto da Terra, criado pela Lei n. 4.504, de 30 de

novembro de 1964, e regulamentado pelo Decreto n. 55.889, de 31 de março de

1965, que inaugurou o Plano Nacional de Reforma Agrária, administrando

recursos por meio do Fundo Nacional de Reforma Agrária. Essa autarquia, dotada

de personalidade jurídica e autonomia financeira, diretamente subordinada à

presidência da República, teve por objetivo atuar paralelamente ao Instituto

Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA) e ao Instituto Brasileiro de

Reforma Agrária (IBRA), emergindo enquanto tentativa de aliviar as tensões

sociais que, no início da década de 1960, tinham como principal motor as

38

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 101. 39

Criado pelo Decreto n. 1.110, de 9 de julho de 1970, sob a ordem do Presidente Emílio

Garrastazu Médici. Sobre o termo posseiro ver FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua

portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 372.

Page 45: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

45

questões vinculadas à propriedade da terra. No entanto, as primeiras medidas do

IBRA visaram revogar alguns atos de desapropriação decretados pela

Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), em Mato Grosso, Goiás,

Pernambuco, Rio de Janeiro e Maranhão.

Para realizar a reforma agrária, o IBRA se propôs a elaborar, como

primeira tarefa, um cadastro dos imóveis rurais, preparado entre 1965 e 1966. Aos

poucos, porém, o órgão foi abandonando qualquer preocupação reformista. O

marco dessa alteração foi à promoção do Encontro de Ocupação do Território,

cuja principal proposta foi a de que não se multiplicassem as desapropriações de

latifúndios, a não ser quando amigáveis e realmente imprescindíveis. Por outro

lado, este encontro defendeu a aceleração não só da titulação na fronteira e nos

núcleos de colonização e povoamento, como também do contato com firmas

privadas que receberiam colonos, sobretudo nordestinos, selecionados pelo IBRA

e pelo INDA. Finalmente, em 1969, o artigo 7º do Decreto-Lei n. 582, de 15 de

maio, oficializou a transferência para o IBRA das atribuições referentes à

colonização.40

Todavia, em 1970 o INDA e o IBRA foram extintos, dando origem

ao Instituto Nacional e Reforma Agrária (INCRA).

Observa-se, portanto, que a questão da terra no Brasil continuou sendo

objeto de contenda e historicamente marcado por avanços e retrocessos, cujo

processo deixou desemparados aqueles com menor poder aquisitivo, pois o

próprio Estatuto da Terra não cumprira sua função, e o INCRA, intimamente

ligado ao projeto de colonizador do governo Médici, não conseguiu alterar a

estrutura fundiária do país, cumprindo, o Estatuto, a função principal para a qual

fora criado, qual seja, manter a política de concentração de terra. Esse foi o

contexto responsável pelo Brasil Central ganhar novos contornos, e,

descortinando um panorama de luta e resistência dos posseiros e indígenas para

sua permanência nas terras contíguas aos rios Araguaia-Xingu mato-grossenses.41

Nem os posseiros e tampouco os indígenas contavam com quaisquer

serviços do Estado, dentre outros destacamos a escola enquanto arte de inventar

40

Boletim IBRA informa; O Estado de S. Paulo; Folha de S. Paulo; Instituto da Reforma Agrária. 41

O Parque Nacional do Xingu foi criado pelo Decreto n. 50.455, de 14 de abril de 1961, assinado

pelo presidente Jânio Quadros e regulamentado pelo Decreto n. 50.084, de 6 de agosto de 1968, e

n. 68.909, de 13 de julho de 1971, mantendo um perímetro com inúmeras alterações, foi

finalmente demarcado em 1978.

Page 46: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

46

de um „povo‟ nos „sertões‟ no Araguaia-Xingu mato-grossense, obedecendo, neste

capítulo, o recorte temporal 1970-1980.

Para um diálogo com as fontes, acrescentamos algumas questões

subsidiárias às já citadas anteriormente, considerando as distâncias e os poucos

recursos das famílias: o que eram as escolas? Como foram edificadas nas cidades

e nos sertões, sem estradas, sem transportes? De quais tecnologias se valiam os

professores para exercer a função docente? Quais eram as temáticas tratadas por

eles ao ensinar história? Que estratégias foram criadas para que as escolas se

mantivessem de pé, frente às dificuldades vividas pelo povo pobre habitantes

daqueles sertões?

É possível que a adoção do termo „sertões‟ faça parte do discurso

como prática de lugares por quem só conheceu a vida urbana. Assim, ao usá-lo

sem reserva, incluindo os adotados historicamente, a exemplo da expressão

„progresso‟, contribuíram favoravelmente na ocupação dos „vazios‟ demográficos,

cortando grandes áreas de terra para a criação das extensas fazendas. Assim,

sertão deixava uma brecha para a consolidação do projeto arquitetado pelo

governo e latifundiários.

Dessa feita, o silenciamento dos povos, já mencionado anteriormente,

cumpriria tripla função: a primeira, esconder as famílias de posseiros vivendo em

terras que foram passadas à „esmo‟ para os fazendeiros formarem seus latifúndios;

e, a segunda, no momento do uso da violência para a expulsão do contingente

indesejado, procurando minimizar as consequências do conflito; já a terceira está

ligada à tentativa de desviar a opinião pública pelas matérias (artigos, livros,

matérias jornalísticas, radiofônicas, televisivas), apresentando esse projeto como

sendo benéfico para o país, sob o velho e afamado discurso – integrar para não

entregar - porém, a Folha Alvorada cumpriu o contraponto dessa estratégia,

anunciando, inclusive, o entreguismo das riquezas existentes no Brasil Central

praticado pelo governo brasileiro ao capital estrangeiro, e por essa razão a Folha

Alvorada recebia a pecha de ser produto da ação de guerrilheiros comunistas.

A pesquisa possibilitou perceber que, para entender o processo

histórico que resultou na invenção da escola, seria necessário decifrar alguns

códigos que, ao longo da tese, haverão de ser revelados, pois, viver e conviver nas

Page 47: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

47

últimas cinco décadas no Araguaia-Xingu foi e continua sendo um grande desafio,

afinal, se tinha como discurso o vazio demográfico, e hoje temos o vale dos

esquecidos. Tais afirmativas suscitam uma dúvida: quais são e serão os novos

discursos „colonizadores‟, quais serão as políticas adotadas para servir ao grande

produtor, em detrimento das famílias e suas pequenas propriedades?42

Portanto, requer averiguar: A terra era para quem dela precisava? Os

latifundiários necessitavam de tanta terra para viver? Como a escola contribuiu

para a produção-reprodução da cultura sobre a terra? No decorrer desse capítulo,

será possível identificar que a invenção da escola, desde seu princípio, foi

marcada por um problema que movia a todos: a luta pela terra, a luta pela vida.

Contrariando a máxima de uma descrição objetiva do passado,

servimo-nos desta para apresenta-lo no presente, por meio de algumas faces

reveladas no cotidiano das escolas, dentre outros o da violência, da organização

coletiva, da escola popular e democrática, da produção e mediação de

aprendizagens, mais especificamente por meio da história ensinada. Entendemos

ainda que, por se tratar de práticas e discursos, reificar o entendimento da

invenção da escola contribuirá para decifrarmos a sociedade que a alimentou e

continua nutrindo. Igualmente, isso só poderá ocorrer a partir da produção de

novas práticas, discurso e ações – a reinvenção da escola do século XXI.

Apresentados os contornos históricos iniciais, por onde projetamos o

foco da pesquisa – o território Araguaia-Xingu – delimitar as balizas cronológicas

e conceituais da pesquisa torna-se relevante. O marco temporal inicial remonta a

década de 1970, sendo que 2018 delimita o final. Porém, para o primeiro capítulo,

limitaremos nossa narrativa à década de 1980.

A invenção da escola, objeto de análise em que ancoramos o primeiro

capítulo, é caracterizada por vasta fonte documental produzida durante o processo

de reterritorialização do Araguaia-Xingu, por retirantes, posseiros, grileiros,

jagunços, fazendeiros, peões, padres, bispos, professores, pais e mães de famílias,

prostitutas, políticos, dentre outros viventes nos territórios imemoriais indígenas

42

Compete afirmar que, embora a região tenha sido marcada pela implantação, com o avanço da

agricultura de larga escala, dos projetos de assentamento, atendendo, assim, a uma pequena parte

das famílias de posseiros da região, ocasião em que as pequenas propriedades foram cedendo

espaço para a manutenção e alargamento do latifúndio monocultor.

Page 48: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

48

existentes e registrados pela

Folha Alvorada, hoje disponível

nos arquivos da Prelazia de São

Félix do Araguaia. Já em sua

primeira edição, publicada no mês

de fevereiro de 1970, anuncia as

razões que cercavam sua

invenção: a) Correio de Amizade,

b) Programa de Renovação, e c)

Mensagem de Evangelho.

Anunciou em sua

primeira edição - Uma „folha‟ de

sol e de sereno, sustentada na

alegria de todos, nas comuns

necessidades dos trabalhos de

melhoramento a que estavam

sendo chamados. Noticiava ainda

que, a partir do mês de março, as viagens, acostumadas com pouso de uma noite

ou duas, pela estrada do Araguaia e pelo rio das Mortes, haveriam de se prolongar

com duração variável de semanas, ou até meses e que se revelavam, de forma

poética, na luta que haveria de travar cotidianamente – dia e noite, cuja

espacialidade apresentamos na (Figura 1) ao lado.

Contudo, é em sua edição de número três, publicada no mês de maio

1970, que a Folha Alvorada dedicou um longo editorial à educação, cuja matéria

iremos melhor apresentar no segundo capítulo da tese. Porém, para o momento,

faz-se importante apresentar o Hino do Ginásio Estadual Araguaia, cuja letra,

conforme revela a matéria, era de Adauta Luz Batista e do Padre J. Maria Gil:

Neste povo a esperança floresce,

Nova luz já começa raiar,

O Ginásio Estadual Araguaia

Nossas mentes vem iluminar.

Mocidade eia, avante eia, avante

Que o Brasil sobre nós ergue a fé

Page 49: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

49

Esse imenso, colosso, gigante,

Vamos todos erguê-lo de pé.

O Brasil quer a luz da verdade,

Do esforço e da promoção,

Nós iremos marchando adiante,

Desfraldada a bandeira da união,

Sob o céu desta Pátria querida,

Como raios de um mesmo sol,

Empenhados na luta estaremos:

Construir um Brasil bem melhor. 43

Assim, o tema sobre educação ganhou ênfase, especialmente ao

anunciar os problemas e soluções alcançados pela comunidade, inaugurando um

campo de batalha em torno da invenção da escola. Tais dimensões haveremos de

revelar no decorrer da presente narrativa.

Para a construção do capítulo atual, estabelecemos diálogo com as

fontes, procurando uma aproximação com os sentidos, por um lado, „dados‟ pelos

detentores do poder, especialmente pelo governo militar-civil aos „subversivos‟

„comunistas‟, plantando o medo e a insegurança, objetivando fragilizar as ações

desenvolvidas pela Prelazia na construção de uma frente de oposição aos

interesses do Estado em aliança com os grandes fazendeiros, representando a

resistência em defesa pela manutenção das famílias na terra, pelo direito à vida, à

propriedade, à saúde, às condições básicas de trabalho e produção de alimentos

para sua subsistência, por meio daquilo que se chamaria, nas décadas seguintes,

de agricultura familiar, e em especial à educação.

Portanto, em meio a esse duelo travado no Araguaia-Xingu é que

procuraremos perceber como a escola foi inventada, se e como ela se tornou a

protagonista desse processo, que herança deixou aos atuais escolares e como

estes, passados cinco décadas de existência, constituíram espaço para sua

reinvenção.44

Igualmente, fizemos uma breve reflexão sobre a atuação do poder

público mato-grossense em relação à educação básica, à oferta de acesso à escola

43

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03 P3.3.

Sem grifos no original. Cabe aqui observar que a coautora do hino do GEA era filha do fundador

da cidade de Luciara. 44

A reinvenção da escola será tema central do quarto e último capítulo da tese.

Page 50: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

50

pública, à edificação do espaço físico, à formação e remuneração do professor e, a

partir do qual serão apresentados os „sentidos‟ da escola de educação básica

delimitada na territorialidade do Araguaia mato-grossense, no contexto da

reterritorialização do espaço geográfico das terras contíguas entre as bacias

hidrográficas Xingu-Tapajós e Araguaia-Tocantins, contornos do Brasil Central.

Os limites da jurisdição da prelazia, conforme apresentados nos mapas

(Figura1), refere-se ao território

da Prelazia de São Félix do

Araguaia, criada no dia 13 de

março de 1970, pelo papa Paulo

VI, por meio do decreto Quo

commodius, definindo que a

mesma teria como confinantes:

ao norte, a Prelazia de Conceição

do Araguaia, que atualmente

delimitam os estados do Pará e

Mato Grosso; a leste, com a

Prelazia de Cristalândia, a Oeste,

com a Prelazia de Diamantino,

ou seja, os rios Araguaia e

Xingu, e, ao sul, a linha traçada

em direção noroeste, desde os

rios Curuá e das Mortes até o rio

Xingu45

.

A região desenhada

nos mapas (Figuras 1 e 2),

conforme observado, manteve os

mesmos contornos geográficos até contemporaneamente, comportando 25

45

O mapa 1 foi produzido e publicado na edição de número 4 da Folha Alvorada, no mês de julho

de em 1970, anunciando a criação da Prelazia de São Félix do Araguaia. Já o Mapa 2 (Imagem 2),

apresentado na Imagem (2) foi extraído de um sítio produzido pela Articulação Xingu Araguaia

(AXA), que segue com atuação militante iniciada na década de 1970, hoje formada pela Comissão

Pastoral da Terra (CPT), a Associação Nossa Senhora da Assunção (ANSA) e a Associação Terra

Viva (ATV). O terceiro mapa, Imagem (3) foi produzido pelo ISA – Instituto Socioambiental.

Page 51: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

51

municípios entre os rios Araguaia-Xingu, que, em 2017, conforme dados do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, somam 276.901 km2.

Concluído o tópico onde apresentamos os contornos histórico e

geográficos da prelazia de São Félix do Araguaia, em seguida desenhamos os

caminhos trilhados na pesquisa.

1 – A aurora da educação revelada pela Folha Alvorada

As matérias publicadas pela Folha Alvorada, primeiro periódico

produzido na região, anunciou a aurora da educação escolar, uma robusta defesa

da organização dos pobres em torno da escola. Dessa massa documental

selecionamos aquelas que trataram de assuntos relacionados à educação,

considerando o contexto, bem como seus objetivos, e procurando analisar a

extensão dos desafios enfrentados pelas famílias que dependiam do acesso à

escola de educação básica, lançando alguns questionamentos, tais como: que

sentido teve a escola diante do Projeto Governamental de „desenvolvimento‟ do

Nordeste mato-grossense? Serviu ela de anteparo para as famílias dos posseiros,

peões (sertanejos) e indígenas e mais legítimos habitantes da região, naquele

momento sob o julgo de projetos empresariais de colonização incentivados pelos

governos militar-civil? Convém lembrar que a região privilegiada de estudo, na

década de 1970, correspondia à jurisdição de dois municípios, Barra do Garças e

Luciara.

A garimpagem na Folha Alvorada revelou dimensões de uma escola

pouco encontrada na grande imprensa, que, durante os governos militares-civis,

sofreu restrições pesadas por parte da censura oficial, especialmente no que se

refere às críticas sobre aqueles que serviram aos mandos do Estado, em nosso

caso, os policiais militares, os do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento

Florestal (IBDF), a polícia federal, e mais diretamente as forças arregimentadas

pelos fazendeiros, grileiros e suas ações contra os marginalizados, posseiros,

indígenas, peões, revelando dimensões da escola pouco reconhecida pela grande

imprensa, dentre outros desassistidos pelo Estado brasileiro.

Outro fator importante, e também já mencionado, foi à preocupação

das matérias de tomar os problemas locais enquanto bandeira de luta, muito

Page 52: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

52

embora aquilo que chamamos de problemas locais ocorressem, em maior ou

menor grau, em todo o território nacional. Assim, ao evidenciar os problemas

vivenciados pelas famílias, tornava-se meio de tomada de consciência dos grupos

periféricos às decisões governamentais, o que passaremos a tratar dos lugares,

espaços e sua relação com a invenção e reinvenção da escola.

1.2 – Os indígenas antes da organização social dos „brancos‟

Embora nosso objeto seja a invenção e a reinvenção da escola no

Araguaia-Xingu mato-grossense, e ter como circunscrição os limites da Prelazia

de São Félix do Araguaia, a escolha pela territorialidade requer entender três

razões estrategicamente sobrepostas, a primeira, perceber que, ao desenhar um

mapa jurisdicional para a atuação dos membros da Prelazia, a presença de

indígenas representava território a conquistar, mas também a colonizar com os

ensinamentos cristãos, lembrando que, antecipando a estes, existiu o território

imemorial indígena tracejado pelos Estados luso e brasileiro, resultando em vários

mapas político-administrativos que, igualmente, não consideraram quaisquer

divisões anteriormente estabelecidas pelas nações indígenas. Por fim, uma terceira

dimensão, a busca por „determinar‟ a formação escolar no viés da oficialidade.

Assim, a educação escolar e a própria instituição escola tratava-se de

uma invenção repleta de contradição, pelo fato de ser inventada pelos não

indígenas e válida „para todos‟, sendo caracterizada por um projeto que nem

sempre contribuiu para a superação de problemas vividos por seus escolares,

„brancos‟ pobres. Igualmente, essa escola inventada pelo „tori‟, branco na língua

Iny Karajá, não considerou, ao longo dos séculos, a necessidade de aprendizagem

dos povos indígenas.

Portanto, rastrear o conjunto de esforços dedicados à construção de

uma escola popular e democrática no Araguaia-Xingu é mais que revelar a

memória da luta, mas reconhecer passo a passo sua reinvenção, cujo processo

marcou em definitivo a vida, individual e coletiva, de inúmeras comunidades

formadas pelas famílias ao longo da raia lindeira aos rios Xingu Araguaia. Já em

Page 53: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

53

relação aos indígenas, essa é uma história cujas páginas amargam um „vazio‟ e

estão aguardando muitos caracteres.

Assim, reconhecer a presença indígena antes dos não indígenas e do

consequente empreendimento do Estado em suas mais variadas formas de

demarcação de seus territórios, antes dos posseiros, da igreja, da escola, dos

tubarões, do latifúndio e da pata de vaca, símbolo do „capital‟ na região, trata-se

de um compromisso para com a existência e respeito à história desses povos.

Seguimos, em poucas frases, delinear sua existência.

A região nordeste de Mato Grosso, conforme Oliveira46

, até meados

do século XX, foram habitadas por dezenas de povos indígenas falantes de quatro

troncos linguísticos, Tupi, Aruaque, Carib e Gê, os quais estavam assim divididos:

a) Porção centro norte – Kaiapó, Juruna, Txukahamãe e Tapirapé;

b) Porção centro sul: Carajá, Xavante, Aweti, Matipuy, Txikão, Kuikure,

Kamaiurá, Nahkuá, Waurá, Iwalapiti, Kalapalo e Trumaí.

Esses grupos indígenas, após diferentes contatos e com a passagem

cruel do processo de „colonização‟, foram reunidos em reservas indígenas, alguns

no Parque Nacional do Xingu, existente desde início da década de 1950 e

oficializado em 1961. Os Tapirapé, em Santa Terezinha; os Carajá, em Luciara e

Ilha do Bananal; os Xavante, por se tratar de uma „grande‟ nação, foram

espalhados em várias reservas, e atualmente estão em Pimentel Barbosa, Areões,

Meruri, São Marcus e, mais recentemente, depois de quase meio século de luta,

voltaram ao território originário, sob o qual foi criada a maior fazenda do mundo,

Suiá-Missú – hoje, Marãiwatsede.

Por conta do processo histórico de reterritorialização, ocorrido no

Araguaia-Xingu mato-grossense, descreveremos de forma sucinta o procedimento

que regeu as sobreposições de territórios, agora governados por riscos em papéis

carimbados e regulados pela Lei do branco, desconsiderando, portanto, os arranjos

estabelecidos entre os Carajá, Tapirapé, Xavante e posseiros, caracterizando uma

ação opressora onde os interesses do capital especulativo encontrou anuência dos

46

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção

e violência. São Paulo: Iandé, 2016, p. 272-273.

Page 54: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

54

governos militar-civil em detrimento dos oprimidos.47

Seguimos apresentando um

pouco dos povos diretamente atingidos pela demarcação das empresas

agropecuárias no nordeste mato-grossense.

1.2.1 Karajá

Os Karajá são povos indígenas do tronco linguístico Macro-Jê,

autodenominam-se Iny e são subdivididos em Karajá, Javaé e Xambioá, ocupando

o território nas margens do rio Araguaia, de Aruanã até Xambioá, numa extensão

de, aproximadamente, 2 mil km. Os primeiros contatos com o não indígena se

deram em meados do século XVIII, sendo que no seguinte foram obrigados a se

instalar na colônia militar D. Pedro II, junto aos Kayapó, seus inimigos

tradicionais. Essa foi, sem dúvida, uma estratégia para aniquilá-los, sob o discurso

de „amansá-los‟.

Em finais do século XIX, os Karajá ainda somavam 4 mil índios, mas,

no final do século XX eram apenas 1.78548

. Estavam divididos em Karajá, 1.225,

Javaé, 500, e Xambioá, 160. Por serem nações ribeirinhas, no tempo da seca

ocupam as praias do rio Araguaia, alimentando-se de peixes e tracajás. Já no

período das chuvas vivem nas terras mais altas, onde cultivam roças. Assim, a

cultura Karajá gira em torno do universo do rio Araguaia. Segundo eles, num

tempo imemorial místico vivia o povo abaixo do leito do rio e, de maneira casual,

o homem descobriu a superfície. Assim, foram descobrindo a luz, o mel e a morte.

Como ela se revelou, estampada num tronco ressequido de uma árvore, sua

principal entidade espiritual, Aruanã, que provem do rio e lagos adjacentes.

Com a criação do Parque Nacional do Araguaia, em 1959, e do Parque

Nacional Indígena Araguaia, em 1971, com 1.395.000 ha, pode-se perceber um

aumento populacional para 2.250 índios, em 1994. Em Mato Grosso existem três

47

O termo “Xavante” era utilizado no século XVIII para designar, indistintamente, os Xavante e

os Xerente, que naquele período viviam no norte de Goiás, entre os rios Tocantins e Araguaia, no

Planalto Central brasileiro. Essa região era majoritariamente ocupada por tribos da família

linguística Jê, tronco linguístico Macro-Jê, à qual pertencem os Xavante e os Xerente.

Posteriormente, Xavante passou a ter uma aplicação mais restrita, designando três grupos: os Oti

Xavante, Opayé Xavante e Akwén Xavante. MAYBURY-LEWIS D. A Sociedade Xavante. Rio de

Janeiro: Francisco Alves, 1984. 48

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. op. cit., p. 273.

Page 55: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

55

pequenas reservas Karajá demarcadas, AI São Domingos, com 5.705 há, em

Luciara; AI Tapirapé-Karajá, com 66.166 ha, em Santa Terezinha e Luciara; e AI

Aruanã II, no município de Cocalinho.

Todavia, não bastasse à demora da criação de reservas, mesmo após

ela, o território Karajá foi por inúmeras vezes invadido, até mesmo por parentes

do dono do cartório do 2º Ofício de São Félix, o que explica, segundo

reclamações do senhor Edson Beiriz, o silêncio e não resposta ao ofício enviado

pela FUNAI sobre a certidão de registro da Área S. Domingos49

. Assim, no

mosaico de terras e águas do Araguaia pertencentes ao povo Karajá, ocorreu uma

ampla reterritorialização, pois, deslocar um povo das terras onde a adaptabilidade

se fez ao longo dos séculos, e que para eles, a terra é garantia de vida, constituiu

problema. Assim, da mesma forma que a terra não tinha valor comercial, estava

repleta de outros que, para acultura do branco e do Estado por este criado, não

passavam de números a ser mensurados em hectares, alqueires ou quilômetros

quadrados.

1.2.2 Tapirapé

Os Tapirapé se autodenominam „Tap irãpe‟. Seu território tradicional

estendia desde a cabeceira do rio Tapirapé até a divisa do Pará. Mas, por conta de

seus inimigos tradicionais, os Kayapó e Karajá, ocorreram raptos de mulheres e

crianças. Segundo Oliveira50

, os poucos Tapirapé, que foram vistos pelos brancos,

na primeira década do século XX, eram na maior parte mulheres e crianças

raptadas pelos Karajá. Krause, explorador do Araguaia em 1908, contou que estes

índios praticavam o rapto quando os homens da tribo se afastavam da família para

ir comerciar com eles, num banco de areia estacionado no rio Tapirapé.

Dessa relação conflituosa ocorreram inúmeros casamentos entre

Tapirapé-Karajá, resultando em culturas híbridas entre os dois povos, o que

decerto contribuiu para que surgisse a necessidade de adaptações, assimilação e

acomodação, requerendo, portanto, a reconstrução de identidades diferentes das

49

Ibid., p. 275. 50

BALDUS, Herbert; WAGLEY, Charles. Tapirapé: Tribo Tupi no Brasil Central. São Paulo:

Nacional/EdUSP, 1970, p. 45.

Page 56: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

56

que tinham seus pais, e, por conseguinte, surgem um novo contexto, novas

relações de poder a ser estabelecidas, seja pela língua, pela organização familiar e

social.51

Os Tapirapé, em decorrência do contato, em meados do século XX

chegaram a apenas 51 pessoas. Em 2014, conforme Siasi/SESAI (2014),

totalizavam 760. Não bastasse sua quase dizimação, os projetos da

Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e em especial a

Cia Tapiraguaia, „adquirente‟ da área de terra entregue pelo governo federal e

pertencente aos Tapirapé, somados ao avanço dos grileiros, tornou ainda mais

incerta sua sobrevivência.

Em 1983, o governo federal, através de Decreto, criou a AI Tapirapé-

Karajá, com área de 66.166 ha, porém, sua maior parte fica inundada no período

das chuvas, entre os meses de novembro a maio.

Em 1993, os Tapirapé iniciaram uma luta para recuperar sua terra

tradicional, pois sofreram um processo de desterritorialização da Urubu Branco,

com a formação das fazendas, passando naquele ano a viver novamente na área.

Um relato de Josimar Tapirapé, publicado pelo Instituto

Socioambiental (ISA) (1996), possibilita entender um pouco dessa história:

A comunidade TAPIRAPÉ tem vontade de ir no Urubu Branco,

essa área os mais velhos nunca esqueceram porque primeiro,

nossos antepassados habitavam lá; naquela aldeia tinha muita

gente e vivia sempre feliz. As aldeias também eram muitas.

Naquela região os Tapirapé conhecem quase tudo. Então os

velhos não querem se esquecer daquela terra e não querem

deixar as fazendas destruir os cemitérios dos avós, irmãos, pai,

mãe que estão enterrados lá. Então nós estamos lutando por

aquela terra, para voltar naquela terra de novo. Porque aquela

51

Em 2016, orientei monografia de final de curso de Maria Oldeíde Pereira Gomes, defendida no

curso de Ciências Sociais da UNEMAT, núcleo pedagógico de Confresa. O trabalho é fruto de

pesquisa etnográfica realizada entre as etnias Karajá e Tapirapé, na aldeia Hawalorá, localizada no

município de Santa Terezinha-MT, na Terra Indígena Tapirapé/Karajá, onde moram indígenas

dessas duas etnias. Na aldeia Hawalorá existem casais formados por membros das etnias Karajá e

Tapirapé A pretensão da monografia foi a de investigar como ocorreram os matrimônios

interétnicos e quais os critérios adotados para definir a identidade étnica dos filhos dos casais

Karajá com Tapirapé. Para tanto, foi apresentada a cultura Karajá, a cultura Tapirapé, assim como

a forma de organização social destas etnias. O trabalho se fez relevante no sentido de contribuir

para a compreensão das dinâmicas sociais pós-contato, bem como perceber como os povos

indígenas reordenam suas formas tradicionais de organização social. Para saber mais, ver Gomes,

Maria Oldeíde P. Culturas híbridas: Karajá e Tapirapé e a reconstrução de identidades. Confresa,

2016. Monografia (Licenciatura em Ciências Sociais) – UNEMAT, 2016.

Page 57: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

57

terra não foi vendida pelos Tapirapé; eles vieram abandonando

aquela terra é só por causa da guerra do Kaiapó; se a guerra

passava o índio.

Tapirapé queria voltar de novo na aldeia Tapi‟itawa, mas como

só sobrou 40 pessoas não tinham coragem para voltar. Então o

governo aproveitou e vendeu para as fazendas e agora ele está

falando que os índios Tapirapé estão querendo invadir o Urubu

Branco. Estamos querendo é voltar naquela terra, onde primeiro

nossos antigos moravam. Nós índios precisamos da terra, não

para estragar as matas, não é para vender a terra depois de

conseguir as demarcações. Lutamos para conseguir a terra para

vivermos e produzir alimentos ali, para salvar as famílias.

Agora os fazer ficam invadindo a terra do índio e quando toma

a terra do índio fica um pouco de te depois vendem para outros

fazendeiros, vendem para outro e a terra vai sendo vendida para

todo mundo. Os índios nunca venderam uma terra para

fazendeiros, nunca invadiram a terra da fazenda. Só lutam por

causada terra quando querem voltar naquela terra que é deles.52

Assim, no mosaico de terras e águas do rio Tapirapé, afluente do

Araguaia, pertencente ao povo Tapirapé, a porção territorial, que, para esse povo

representa garantia de vida, com a chegada dos brancos tornou-se problemática.

1.2.3 Xavante

Os Xavante são membros da nação Jê. Sua autodenominação é A´úwe,

vivendo na porção leste do estado de Mato Grosso, região do Araguaia. Os

Xavante, originalmente, ocupavam territórios diferentes e eram subdivididos em

três grupos, e cada qual experimentou formas distintas de contato. Na década de

1950, conforme Oliveira53

, eram estimados em 2.000 indivíduos. O primeiro

grupo habita a AI Pimentel Barbosa e AI Areões. O segundo foi para a missão

Salesiana de Meruri e rio das Garças, já ocupada pelo povo Bororo, fugindo do

confronto com os fazendeiros e procurando fugir das epidemias. O terceiro grupo,

em 1956, abandonou o território da área do rio Couto Magalhães e foi para

Meruri. Todavia, existiu um quarto grupo que ocupava a região do rio Suyá

Missu, o qual foi expulso de seu território tradicional.

52

CARTA ESCRITA POR JOSIMAR TAPIRAPÉ em nome da comunidade Tapirapé. apud ISA,

1996, p. 664 citado por OLIVEIRA op. cit., p. 282-282. 53

LOPES DA SILVA, 1980 apud OLIVEIRA, 2016, p. 282.

Page 58: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

58

Não poderíamos mensurar o quão difícil foi esse processo de

desterritorialização dos povos indígenas, porém, os registros apontam que o povo

Xavante foi o mais prejudicado pela invasão agropecuária na Amazônia, pois em

seu território se tencionou o maior número de projetos financiados e incentivados

pela SUDAM, causando, de imediato, uma expulsão sem precedente, timbrada por

genocídios anunciadores do “vazio demográfico”. O ponto de partida se deu com

a formação do extenso projeto Agropecuária Suiá-Missu, que viria a se tornar a

maior fazenda do mundo, tendo como primeiros proprietários o grupo OMETTO e

o empresário Ariosto da Riva. A invasão e desmate da área ocorreu em meados da

década de 1960, e em 1972 foi vendida ao grupo italiano Liquifarm.

O latifúndio da Agropecuária Suiá-Missu e posteriormente Liquifarm

foi integralmente instalado em território do povo Xavante. Tal fato não poderia

ficar incólume e, consequentemente, o conflito se tornou o mais bem registrado de

que se tem notícia. As narrativas, reportagens, manifestos, ordem judicial,

intervenção da polícia federal retratam a ação de desintrusão e retirada dos

„posseiros‟ e fazendeiros ali instalados. Porém, a ação conjunta das formas

militares e federal não representou o fim do conflito, pois ele continua ainda

latente na região, manancial de importantes estudos.54

Assim, no mosaico de terras e águas do Rio das Mortes, afluente do

Araguaia (bacia hidrográfica Araguaia-Tocantins) e Suiá-Missú, afluente do rio

Xingu (bacia hidrográfica Xingu-Tapajós), pertencentes ao povo Xavante, o

processo de desterritorialização e reterritorialização é, para essa nação indígena,

garantia de vida. Assim, a luta pela terra se tornou um problema.

Concluímos esse tópico com a sensação de não ter registrado nestas

poucas linhas o suficiente para informar ao leitor do quão doloroso foi o processo

de histórico pelo qual tais povos foram submetidos, especialmente em relação às

estratégias de dominação e resistência. Todavia, permanece na linha do horizonte

a possibilidade de retornar ao tema, procurando entender, do ponto de vista

54

Para saber mais, ver ROSA, Juliana Cristina da. A luta pela terra Marãiwatsede: povo Xavante,

agropecuária Suiá Missú, posseiros e grileiros do Posto da Mata em disputa (1960-2012).

Dissertação (Mestrado em História) – UFMT. Instituto de Ciências Humanas e Sociais, PPGHis.

Cuiabá, 2015.

Page 59: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

59

educacional escolar, como se deu a invenção da escola e que importância à mesma

teve entre esses povos, uma escola alienígena entre os indígenas.

Todavia, compartilho, em rápidas palavras, uma experiência como

coordenador de formação em tecnologia educacional da Secretaria de Estado de

Educação, pois, ao tempo em que contribuía para com o processo de formação do

povo A‟úwe Uptabi (povo verdadeiro), na TI Marãiwatsede, esse tentame

possibilitou-me entender um pouco da educação escolar indígena organizada

naquela comunidade.55

Seguimos com nosso propósito navegar em águas

turbulentas e procurando avaliar as paragens onde se deu a invenção da escola não

indígena.

1.3 - A escola entre lugares e espaços praticados e os banzeiros no Araguaia

O tópico que ora iniciamos tem por propósito entender, em seu

contexto, a dinâmica da escola edificada no Araguaia-Xingu, pois estudar a

invenção da escola em sua conjuntura requer, além da busca pelas fontes,

reconstituir seu passado, sua gênese, dando voz aos seus protagonistas, consciente

de que, mesmo que apetecesse, jamais haveria de reproduzi-la em sua completude,

pois, como uma maldição ao presente, o passado da instituição escolar guarda

características que sempre escaparão aos olhos do observador no presente.

Ao abordar a invenção da escola no passado, essa intenção resulta de

um exercício para reconhecê-la no presente, portanto, trata-se de um exercício que

opera a abstração, recompondo sua história, mas dando sentido e significado para

essa invenção, eis o propósito do presente tópico.

Ao lançar as lentes sobre a literatura, especialmente à delineada em

forma de poesia, identificamos com muito detalhe, o êxodo pelo qual as famílias

55

A atividade ocorreu no último trimestre de 2013, em parceria com o Ministério da Educação-TV

Escola, executada por meio da Coordenadoria de Formação em Tecnologia Educacional-SEDUC e

CEFAPRO de São Félix do Araguaia, momento em que oferecemos oficinas de produção de vídeo

entre os povos Xavante da TI Marãiwatsede e Hadori, povo Karajá na TI São Domingos, às

margens do rio Araguaia, cujas ações resultaram em um documentário. Para essa atividade

contamos ainda com a presença do técnico formador do CEFAPRO de Juína, Maike Zaniollo, e

um convidado especial, o professor Caimi Waiassé, Xavante, cujo trabalho foi registrado e

publicado em

https://www.youtube.com/watch?v=6HpWxAKQsrM&index=1&list=PLZNX3jq4R_dCcu9pwW3

Mk8BqMyqsfVh4Y . Acesso em 03 de fevereiro de 2018.

Page 60: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

60

foram obrigadas, em ritmo incerto, a buscar formas de sobrevivência. Esse

processo é anunciado por Santos (2015, p. 58) na poesia Suprefática:

Padin ciço anunciô

Terra boa nus gerias

Muié ajunta uns mininu

Qu‟eu vô pegar us animais

Num isqueça a farofa

A cabaça d‟agua i as rêdi

Vamu tê vida farta

Lá nais bandêra verdi

Nu sertão a vida tá fraca

A terra num dá mais ligumi

Tá fartanu di tudu

Só não u coroné e‟ uns pistume

A vida tá suprefática

Suprefática di mais

Antis tinha di tudu

Agora já num tem mais

Resorvemu intão partir

Arreunimu uns cumpaêru

Cum‟a matula na istrada

Viagemu treis mêis intêru

Na viagi cabô farofa

Quais caba disposição

A tropa toda cansada

Ai, ai meu Deus

Nunca vi tanta afrição

Febri, maleita i lastrina

Meninada passo mal

Us mais véi grantamu nu firmi

Já é Ia du Bananal (Ilha do Bananal)

Enfrentamu muitus bichu

Onça, porcão i tudu mais

Pra armá nossa chochinha

I amansá essis gerais

Dispois de tudo pronto

Qui num tem pirigu mais

Chega u fazendêru c‟uns papé

Querenu a terra pra trais

A vida tá suprefática

Suprefática de mais

A terra qui era nossa

Agora já num é mais

Muié ajunta uns minunu

Vô procura otrus gerais.56

O autor, filho da terra, ao escrever Embiras, o fez como num

emaranhado de lembranças e atualidades, de histórias contadas, rimas faladas, de

saberes de vidas, tendo, de forma poética, retratado as injustiças e descasos no

processo de inerência causada pelo êxodo rural, e a busca pela transformação das

gerais.

Assim, problematizar o passado é uma forma de entendê-lo, não no

pretérito, mas no presente. Assim, pensar a invenção da escola no Araguaia-Xingu

revelando seu cotidiano é lançar mão de uma estratégia de sentir, ouvir e enxergar

56

SANTOS, Edilson Pereira, Embiras. São Paulo. Ed. Giostri. 2015, p. 58.

Page 61: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

61

seus dilemas, discursos e suas formas passadas no presente, esboçando novos

contornos ao projeto de uma escola popular e democrática.

Procuramos produzir uma narrativa sobre a escola em sua

complexidade, uma vez que ela é muito mais que uma distribuição arquitetônica

de paredes, carteiras, salas de aula, visto que ela foi e é produto e produtora de

imaginário, de libertação e de subordinação, dependendo dos interesses dos

detentores do poder e do coletivo, não obstante, em permanente contendas.

Igualmente contraditórios se revela o discurso sobre o conceito de

distância e de isolamento, na tentativa de eleger um espaço em detrimento do

outro, uma prática, em detrimento de outras, visto nos referir às investidas dos

discursos tentando imprimir e rotular as escolas periféricas aos grandes centros,

parecendo as do campo como inferiores. Como forma de contrapor essa esse

movimento perverso, haverá os educadores de se perguntar: sob quais aspectos o

emissor está se referindo, pois, a escola ali inventada, enquanto produto social no

Araguaia-Xingu, embora tenha sido edificada nas mais variadas localidades,

mesmo permanecendo em seu lugar (espacial e social) de origem, fez e continua

fazendo parte de uma relação dinâmica de troca, de emissão e recepção de

discursos, mas também de permanências e de passagens.

Assim, para afirmar se ela se fez forte ou fraca requer estudos em

relação ao papel social que desempenhou, o que certamente vai muito além do

domínio da leitura e da escrita, há que observar um conjunto de fatores presentes

naquele cotidiano, seus espaços de luta e resistência, como observaremos ao longo

da presente narrativa.

A realidade vivida pelos escolares será muito mais complexa daquela

que conseguirmos retratar-narrar, seja em relação ao tempo cronológico, seja em

relação às circunstâncias do lugar vivido. Como delineou Certeau, “[...] o lugar é

uma configuração instantânea de posições. Implica uma relação de estabilidade”.57

Assim como uma construção cultural e simbólica, ele não é algo palpável,

portanto, não se trata de uma matéria empírica, o espaço deve ser definido

57

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 201.

Page 62: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

62

enquanto prática do lugar, formulada pelos sujeitos em seus itinerários cotidianos,

simbolizando o lugar a partir das interferências, tanto corporais quanto cognitivas.

Reside aí à dificuldade de lidar com alguns predicados subjetivos, as

emoções, reações, a paixão pelo lugar, mas igualmente o descontentamento, o

ódio, a repulsa, o que torna complexa a narrativa de um dado momento e a relação

de poder ali estabelecida. Cabe ainda observar que, uma vez subjetiva, uma

posição frente a determinadas decisões pode mudar, assim como pode alterar o

projeto de escola decorrente do espaço praticado.

Ainda sugere Certeau que o espaço é o lugar de ações e práticas.58

Assim, adiantamos que a escola inventada, por mais vestígios que tenha deixado,

ainda se mantem distante daquela vivida, seja em relação ao tempo, ou aos valores

que permeiam seu cotidiano no século XXI.

Dessa forma, reconstruir a escola inventada em seus primórdios, no

Araguaia-Xingu, requer um esforço de compreensão de seu contexto, das famílias,

dos aprendentes e profissionais que nelas atuaram, muitos dos quais só se fizeram

presentes nos registros, por meio de imagens ou escrituras deixadas,

intencionalmente ou não, como, no caso, os registros publicados na Folha

Alvorada ou nos diários do Bispo Pedro Casaldáliga e também em entrevistas,

dentre outras fontes compulsadas na construção da presente narrativa.

E nessa relação de significados e embricamento da memória com o

lugar, procuramos interpretar, do ponto de vista histórico, os comportamentos de

um coletivo presente naquele tempo edificado e historicizado, percebendo a escola

enquanto lugar que fez (faz) parte da vida das pessoas, pois nelas foram (são)

construídos sentimentos afetivos, relações de convívio, disputa de poder, lugar de

sonhos, esperanças, enfim, espaços de experiências merecedoras de serem

narradas. Dessa feita, narrar à escola inventada no Araguaia-Xingu é abrir uma

janela para o pertencimento, ao estranhamento e à interpretação das relações ali

estabelecidas.

Salientamos que os registros se tornaram fundamentais para que, com

olhares atentos, pudéssemos entender a ausência de falas, o não dito e o não

anunciado, bem como os usos do lugar e a transformação da escola em espaços

58

CERTEAU, Michel de. Op. cit.

Page 63: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

63

praticados nas e pelas páginas de a Folha Alvorada, uma guerra proclamada pela

narrativa na defesa daquele empreendimento, com valores políticos entrelaçados

entre os anunciados no âmbito da igreja, da escola e das famílias.

O maior desafio talvez não seja o de identificar os valores que nos

aproximam da escola do último quarto do século XX, mas, principalmente,

encontrar uma distância segura deles, para, a partir da distância, poder interpretar

as diferenças existentes entre esta (presente) e aquela (passado) e vice-versa,

permitindo, assim, os distanciamentos do eu professor e do eu pesquisador e,

consequentemente, percorrer o necessário espaço para a construção da narrativa.

Nesse exercício de inventar, as imagens construídas sobre a escola no Araguaia-

Xingu ficam restritas a uma abordagem sobre o passado sustentado pela pesquisa,

sem a pretensão de desvelar, por completo, a complexidade da realidade vivida.

A escola edificada no citado espaço continuará preservando em si

dimensões que não permitem ser tocadas, todavia, há uma dimensão passível de

leitura. É justamente essa dimensão que havemos de manusear, de interpretar os

valores, as buscas, as recusas de seus protagonistas, cuja dimensão pode ser

percebida nos entremuros e fora dos muros da escola do século XXI, portanto, a

arte de ensinar e a história ensinada. Para tanto, buscaremos vestígios da ação do

professor de história, suas preferências e recusas.

Debruçar nossas lentes sobre os primórdios da escola edificada no

Araguaia-Xingu mato-grossense auxilia ampliar o ângulo de visão, à medida que

extrapolamos a quadrilátera sala de aula, bem como o próprio espaço escolar,

observando aspectos da sociedade envolvente que não pode aqui ser entendida

como periférica, pois parte-se da concepção da invenção da escola enquanto

produto de relações de forças capazes de interferir duplamente em seu

funcionamento interno, bem como nas relações com o meio social onde foi

edificada, cujas características, muitas vezes, poderão colocá-la fora do campo de

visão, requerendo, portanto, uma revisitação.

Desta forma, inúmeras serão as questões que fugirão à nossa seleção

do campo de análise, mas que, de posse de outras abordagens e metodologias,

poderão revelar formas até então desconhecidas. No alcance de nossas lentes,

procuramos entender o conjunto de categorias que interagiram com a escola, e, a

Page 64: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

64

partir dela, delinear formas de reinventar seus papéis e os de seus protagonistas,

pois o peão tem seu contexto, o Bispo tem seu lugar, o índio também, assim como

o posseiro, o professor, o aluno, os pais, o jagunço, o tubarão e todos têm a 9 pop

possibilidade de reinventar o lugar e se reinventar.

Assim, a escola pode ser entendida como fruto da ação de identidades

plurais, pela justaposição de elementos, pois uma escola, enquanto unidade, por

mais forte que seja o discurso ou projeto, ela sempre manterá o espaço dos

desvios, em aparente unidade.

A aprendizagem, igualmente, será distinta entre os aprendentes, assim

como o conhecimento histórico formado em camadas distintas, considerando que

cada ação (arte de ensinar), em hipótese, muda de acordo com as especificidades

de cada sujeito histórico, seja por conta da formação do professor, pela realidade

social vivida pelo coletivo da escola, considerado o gênero e sua representação

social, pela particularidade ao abordar o assunto arranjado nas páginas dos

manuais, pela inventividade e usabilidade dos meios tecnológicos, das diretrizes

educacionais, sendo os próprios conceitos socialmente estabelecidos, portanto,

não estão imunes ao tempo, cuja temática será tratada no quarto e último capítulo

da presente narrativa.

Cada grupo social inventa uma escola a seu modo. Dessa forma,

abrimos recintos para a busca de mais uma dimensão do ver a escola, agora,

enquanto espaço de vivência dos filhos das famílias que, na época, eram rotuladas

como pobres.59

Essa abertura fará com que possamos ampliar o rol de questões

acerca do sentido dado ao pobre, como este se comportou diante das decisões dos

gestores escolares, que dificuldades encontrou e que alternativas buscou para que

seus filhos fossem à escola, como reagiu ao programa escolar, em relação ao

professor, ao ano, aos bimestres, às semanas, dias e horas previamente

programadas para acontecer o conjunto de ações pedagógicas, e, em especial,

quanto ao ensino de história.

Outro elemento importante que, de certa forma, marca a invenção da

escola, e de modo geral transcende à espacialidade geográfica Araguaia-Xingu, é

o de transformação, mudança, alteração, coexistência da permanência e auto

59

Ao longo da narrativa, o termo pobre aparecerá inúmeras vezes, portanto, para facilitar

adotaremos o conceito como categoria de excluídos sociais.

Page 65: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

65

mutação, muito além da própria representação do espaço físico, mas sua dimensão

ética, estética e política, que rigorosamente a edifica, uma invenção histórica a ser

historicizada nas páginas da presente tese. Um navegar, um barco em movimento.

Esse elemento é o que garante a permanência e o sentido de existência, pois, do

contrário, deixaria de existir. Assim, concluímos o tópico na assertiva de que a

narrativa sobre a invenção da escola requer rigor no tratamento das fontes, cuja

projeção se fará presente no próximo tópico.

1.4 - Contextualizando a produção da Folha Alvorada: inventando fontes

Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar Eu venho lá

do sertão, Eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão e posso

não lhe agradar. Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar E

a morte o destino tudo, a morte o destino tudo Estava fora de

lugar, eu vivo pra consertar.

[...]

E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando. As

visões se clareando, até que um dia acordei.

[...]

E o dono de gado e gente, porque gado a gente marca Tange,

ferra, engorda e mata Mas com gente é diferente Se você não

concordar não posso me desculpar Não canto pra enganar, vou

pegar minha viola Vou deixar você de lado, vou cantar noutro

lugar.60

A busca por entender a fonte no tempo requer a necessária

compreensão do sentido, ou da intenção de sua produção. Ao longo dessa

narrativa, a Folha Alvorada será explorada em todas as suas dimensões. Todavia,

sem perder o foco, a invenção da escola será nossas lentes. Para o momento,

tomamos a música Disparada por ser lembrada logo na segunda página da

segunda edição do periódico, em março de 1970, a qual trazia como título do

tópico Desenvolvimento dos Povos, cuja redação assim foi escrita: “Você se

60

Disparada. Letra de Geraldo Vandré e música de Theo de Barros, foi vencedora do Festival da

TV Record, em 1965, dividindo o primeiro lugar com A Banda, de Chico Buarque de Holanda. Há

de lembrar que o autor da letra, Geraldo Vandré, nascido na Paraíba e educado no Rio de Janeiro,

vivenciou todo o período do golpe militar de 1964 e ainda muito moço esteve ligado aos

movimentos estudantis, numa época de nacionalismo exacerbado e, de outro lado, de

inconformidade com as injustiças sociais imperantes no Brasil. Dessa forma, os meios musicais e

literários, a exemplo da Folha Alvorada, era o canal por onde lideranças intelectuais do país

conseguiam tocar as camadas mais pobres e ainda permanecer „imunes‟ à perseguição militar.

Page 66: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

66

lembra daquela música „Disparada‟? Dizia assim: „O tempo foi passando, as

visões se clareando até que um dia acordei‟. Continua o texto afirmando que:

Quem acorda pode: - ficar „acordado‟ para dormir de novo. - levantar para „agir‟ e

fazer alguma coisa”.61

As metáforas escolhidas para chamar atenção do leitor - o tempo foi

passando e as visões se clareando até que um dia acordei, seguido da advertência

- uma vez acordado, pode-se voltar a dormir ou agir, está diretamente relacionado

à necessidade de acordar, aprender a dizer não, deixar de ver a morte sem

chorar. Ao tempo em que lançava uma crítica à forma „pacífica‟ com que as

pessoas reagiam às imposições do opressor, abordava a falta de recursos, e,

principalmente, a carência de escola para que seus filhos pudessem estudar.

Ao tomar a instituição escolar como objeto e a partir dela ler a Folha

Alvorada se revelou um grande desafio, primeiro por a escola ter tido espaço

privilegiado no periódico, tanto quanto as matérias de cunho religioso, mas, em

especial, por elas serem carregadas de advertência, de orientação e

„ensinamentos‟. Portanto, percebia-se ali um manancial a ser visitado, por se tratar

de testemunho escrito dos atores sociais envolvidos diretamente naquela trama.

Nesse particular, “[...] conceder direito à memória daqueles que têm pouco ou

quase nenhum lugar na história, homens e mulheres desconhecidos”, conforme

Guimarães Neto.62

Longe da intenção de construir análise exaustiva dos movimentos

historiográficos sobre as fontes, o propósito aqui é apresentar de forma sintética as

razões da eleição do jornal Folha Alvorada como relevante fonte de pesquisa,

embora não seja a única de que lançamos mão, porém ela se destaca. Cabe

observar que, desde o advento dos Annales, ocorreram mudanças na concepção de

fonte documental, ocasião em que as mesmas ampliaram-se significativamente.

Com semelhante alargamento passaram a ser aceitos, enquanto campo empírico,

desde objetos de cultura material, obras literárias, séries de dados estatísticos,

imagens iconográficas, diários particulares, enfim, houve uma espécie de

61

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.02 P2.2. 62

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política. Trabalhadores

rurais, conflito social e medo na Amazônia (1970-1980). Revista Mundos do Trabalho.

Florianópolis, vol. e, n. 11, janeiro-junho de 2014 p. 137.

Page 67: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

67

revolução documental, naquilo que se chamou história-problema, com apelo à

interdisciplinaridade e à inovação.63

Antes de delinear metodológica e teoricamente, procuraremos

entender o periódico Folha Alvorada. Sentimos a necessidade de compreender sua

origem, o lugar sociointelectual de sua prática – o sentido de sua produção por

meio da escrita, campeando elementos histórico-culturais, o espaço-tempo e a que

corrente de pensamento-ação ele pertenceu, antes mesmo que tivesse sido

publicada sua primeira edição no Araguaia-Xingu mato-grossense, no ano de

1970. Feito isso, passaremos, então, a explorá-lo enquanto fonte histórica.

Embora não seja aqui nosso propósito delinear a história dos jornais,

faz-se importante destacar que estes, no Ocidente, tiveram como precursor o Acta

Diurna, surgido em Roma, no ano de 59 A.C, sendo o mais antigo jornal

conhecido naquele hemisfério, meio pelo qual Júlio César informava ao público

os mais importantes acontecimentos sociais e políticos, especialmente os

circunscritos às principais cidades.64

Portanto, o Acta Diurna, assim como todo

gênero de jornal, revela-nos três aspectos importantes, o primeiro sua razão de

existir – a divulgação de informações sobre os mais importantes acontecimentos

sociais e políticos; sendo o segundo de levar ao leitor-público – aquilo que era de

„interesse de Roma‟, portanto, o que o Imperador gostaria que fosse divulgado e,

por fim, devendo ser publicado nas principais cidades, e não em todas, inventando

o leitor, visto que destinado a um público privilegiado.

Seria essa a intenção da Folha Alvorada, considerando que não se

tratava de um jornal produzido pelo governo. Indagamos: em que cenário ela

surgiu e que razões fizeram com que, mesmo sendo presos e ameaçados de morte,

seus idealizadores e produtores continuaram escrevendo e publicando matérias

contrárias à força política e econômica brasileira da década de 1970 em diante?

Estas e outras respostas haveremos de apresentar ao longo da narrativa, porém,

63

CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na História do Brasil. São Paulo:

Contexto/Edusp, 1988, p. 21. Sobre esse tema ainda pode-se encontrar rica análise em REIS, José

Carlos. Escola dos Analles: A inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000; BARROS. José

D‟Assunção. Teoria da História. Petrópolis: Vozes, 2012. 64

Outras importantes informações sobre a história dos jornais podem ser acessadas no sítio da

Associação Nacional dos Jornais, por meio do link http://www.anj.org.br/jornais-breve-historia-2/

Acessada em 27 de novembro de 2017. Embora o jornal impresso esteja cada vez mais sendo

substituídos pelos jornais digitais, disseminados na web, conforme dados da Associação acredita-

se que um bilhão de pessoas leem um jornal todos os dias.

Page 68: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

68

para o momento, convido-os a visitar a gênese da Folha Alvorada, antes que ela

se apresentasse em formato impresso, materializando o conjunto de saberes

presentes em sua concepção, o que requer buscar o manancial do pensamento

revolucionário em outro continente.65

Convido-os, assim, a visitar seu berço no Velho Continente, mais

precisamente no tempo-espaço em que viveu e formou seu principal idealizador,

Pedro Casaldáliga Plá. Nascido em Pere Casaldàliga i Pla, no município de

Balsareny (província de Barcelona, Espanha), aos 16 de fevereiro de 1928, foi

ordenado padre pela Congregação Claretiana, em Barcelona, aos 24 anos. Depois

de ter passado pela missão da Guiné espanhola, veio para o Brasil em 1968, com o

intuito de fundar, na prelazia, os chamados „Cursilhos de Cristandade‟. Todavia,

seus feitos ultrapassaram as fronteiras desta instituição, atingindo diretamente as

dimensões materiais e sociais das famílias espalhadas entre o Araguaia-Xingu

mato-grossense. O contato com o povo do lugar onde foi ordenado Bispo, de

imediato, fez com que assumisse caminhos pelos quais não imaginaria trilhar, o

que o levou ao encontro de muitas outras pessoas, tanto religiosos quando leigos,

e, entre os dois grupos, os educadores. Assim, a rede de sociabilidade possibilitou

a invenção da escola.

Segundo Valério66

, foi durante as décadas de 1940 e início de 1950

que o sacerdote realizou sua formação. Fruto da geração do silêncio, estudou em

ambiente conservador, moralista e tradicional. Depois de aprender latim em casa,

com o vigário da cidade, entrou no seminário de Vic, onde o tio mártir havia

estudado, no prédio da Gleva, às margens do rio Ter.

Mairon Valério afirma ainda que as privações enfrentadas por Pedro

Casaldáliga nos tempos de seminário, como o frio, a fome e a proibição de

produzir seus escritos, aparecem como preparação para as futuras privações a

serem enfrentadas no Brasil, onde se depararia com o calor, a umidade, as doenças

tropicais, as distâncias naturais, perpassando, durante seus estudos, pela censura e

65

Embora a Folha Alvorada não fosse produzida pelo governo, serviu de instrumento deste para

desqualificar o trabalho da prelazia, conforme o Bispo denunciou em carta ao Papa João Paulo II,

em 22 de fevereiro de 1986. El boletín de la Prelatura fue editado de forma falsificada por los

órganos de represión del régimen y así fue divulgado por la gran prensa, para servir de cargo de

acusación contra la misma Prelatura. CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de

textos 1968-1988, Claves Latinoamericanas, México 1990, p. 169. 66

VALÉRIO, Marion Escorsi. Op. cit., p. 74.

Page 69: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

69

a necessidade de superação, acumulando importante experiência intelectual,

quando assumiu a direção de várias revistas colegiais de exemplares únicos, como

afirma em sua autobiografia.67

Como observado anteriormente, a territorialidade entre as bacias

hidrográficas responsáveis por banhar o Brasil Central era ainda espaço pouco

atendido pela igreja católica, sendo a criação da prelazia de São Félix do Araguaia

uma necessidade, por um lado, e estratégia, por outro, ampliando assim o domínio

da igreja católica sobre os povos ali residentes e chegantes. Conforme publicou na

edição da Folha Alvorada, no mês de maio-junho de 1996, tão logo criada, foi a

Prelazia entregue aos cuidados dos padres claretianos, da província Claretiana de

Aragon, Espanha. Consta ainda nessa edição que Casaldáliga chegou ao Araguaia

em julho de 1968, “[...] o Padre Pedro Casaldáliga, o irmão Manoel Luzon,

ordenado padre em agosto de 1971 e, em seguida, também da Espanha vieram os

Padres Leopoldo Belmonte, Pedro Mari e José Maria”.68

É importante lembrar que, em tempos tenros do então padre Pedro

Casaldáliga, havia uma hegemonia católica sobre a sociedade espanhola, o que

contribuiu para a consolidação de uma cultura do consumo de massa, carente de

preocupações políticas e intelectuais, mas de grande popularidade e difusão

pública, as quais favoreceram o entretenimento, a produção e publicação de

jornais. Assim afirmou Escribano:

Na cidade de Sabadell, local de sua primeira missão sacerdotal,

teve a oportunidade de exercer a atividade jornalística que tanto

o atraia. Dirigiu a revista Euforia!, Publicação da juventude

católica que durou apenas oito números, pois as pequenas

dosagens de espírito crítico e reformista, somada a uma linha

editorial mais próxima dos setores mais renovadores da Igreja,

acabou precipitando seu desaparecimento.69

67

Ibidem, p. 75. 68

Alvorada (1996), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1996

A16.15.03 P.08.10. 69

ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha. Campinas, SP, EdUNICAMP, 2000.

p 34. Obra biográfica lançada primeiramente na Espanha, numa edição catalã: Descalço sobre la

terra vermelha – Vida del bisbePere Casaldáliga. Barcelona: Adiciones 62, 1999, e

posteriormente traduzida por Antônio Carlos Moura para o português e publicada pela Editora da

Unicamp, em 2001

Page 70: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

70

Ao analisar a Folha Alvorada, considerando o ano em que teve início

sua produção, assim como a forma com que as matérias foram escritas, ela se

tornou objeto a ser vigiado pelos opressores e cuidado por parte dos oprimidos. A

Folha Alvorada representou importante meio de denúncia das violências

cometidas pelos „tubarões‟ e seus comandados (incluindo as autoridades policiais,

componentes do executivo e demais agentes da ditatura militar) contra as famílias

de posseiros, peões e membros da Prelazia. Igualmente, por parte dos oprimidos, o

periódico se transformou em instrumento de poder comunicacional, de tal feita

que a cada edição fosse esperadas as notícias da Prelazia, uma vez que eram

devidamente informados sobre todo o Araguaia-Xingu, a luta pela terra, a

educação e uma variedade de informações relevantes e necessárias para que

continuassem sobrevivendo naqueles „sertões‟. Como o próprio jornal anunciou

em sua primeira edição em 1974:

Alvorada na terra e na vida da gente.

Sol quente e chuva brava sobre o Araguaia.

O Araguaia traz tudo em seu banzeiro,

Basta saber olhar.

O verão seco da perseguição

Machucou, doeu e ensinou.

Mas quem tem coragem e Esperança está de pé.

ALVORADA vem dizer que a vida continua.

ALVORADA é um momento de palestra para nós,

Que fazemos parte do Povo de Deus,

Que se arranchou neste sertão, entre o Araguaia e o Xingu.70

Como observa no texto que abriu a edição do ano de 1974, anunciava-

se a Alvorada na terra e na vida da gente do povo do Araguaia-Xingu, utilizando a

metáfora de que o Araguaia trazia de tudo em seu banzeiro, bastando saber olhar.

Anunciava o sol quente, a chuva brava, o verão seco da perseguição, momentos de

dificuldade que machucavam e doíam, mas que era momento de aprendizagem, de

esperança, anunciando que a vida continuava. Porém, mesmo denunciando a

perseguição, a vida continuava para o Povo de Deus, os pobres.

Portanto, a Folha Alvorada se transformou em palco de contendas,

onde os oprimidos prevaleciam frente às desordens cometidas pelo opressor.

70

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, janeiro de 1974

A16.0.12. P.1.2. Destaque no original.

Page 71: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

71

Nesse sentido, as características apontadas por Escribano se confirmaram em

relação à inclinação do bispo à atividade jornalística, porém, esta pesquisa,

tomando a Folha Alvorada como fonte, possibilitou perceber não só sua

habilidade com a escrita, mas, diante do contexto vivido pelas famílias no

Araguaia-Xingu, sobretudo sua criticidade e vontade de revolução, que certamente

inundava as páginas do periódico, alimentando e encorajando as famílias para a

resistência.

Concluímos o tópico com a afirmativa de que o periódico que

elegemos como fonte, com o propósito de, a partir dele, conhecer a escola de

educação básica do Araguaia-Xingu, ao tempo em que traduzia, no âmbito da

igreja, um sentido mais progressista, denunciava com intensidade as violências

praticadas pelos „mandados‟ dos tubarões e do governo, cujo tema será tratado no

tópico a seguir.

1.4.1 Os „tubarão‟ predadores infestam a Folha Alvorada, as águas e terras do

Araguaia-Xingu

Na edição de outubro de 1977, um ano depois do assassinato do Padre

João Bosco, em Ribeirão Bonito e Cascalheira, cujo episódio haveremos de

retomar no Capítulo 3, a edição a Folha Alvorada trouxe quatro importantes

matérias, a primeira se referiu a uma reunião ocorrida em Genebra, na Suíça, no

mês de julho, onde estiveram presentes 293 representantes das Igrejas Cristãs,

momento em que denunciaram a tortura, o regime Apartheid na África do Sul e a

situação econômica internacional. Em específico sobre a tortura, por ser praticada

em vários países (em particular no Brasil), ficou convencionado que deveriam

desmascarar as pessoas e os governos que usavam dela, pois se tratava de uma

gravíssima ofensa à pessoa humana71

.

A segunda anunciava a existência de uma carta aos brasileiros,

resultado de um encontro no dia 11 de agosto, em São Paulo, em alusão aos 150

anos da existência dos cursos de advogados no Brasil, ocasião em que os juristas

71

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977

A16.0.49 P.2.8.

Page 72: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

72

defendiam a verdadeira democracia na qual as leis deveriam ser realmente

respeitadas e que o povo elegesse diretamente todos os seus representantes.

Denunciava ainda a ilegalidade do uso da força governamental para manter a

ordem e o poder, pois a primeira deveria ser mantida pela lei maior, a

Constituição.

Seguiu acusando a violência contra lavradores no Maranhão, no Pará e

em Mato Grosso. No Maranhão, quase 1.050 famílias estavam impedidas pelos

fazendeiros de fazer suas roças, sendo pressionadas a abandonar as terras que

ocupavam. No Pará, 150 lavradores tinham sido espancados, amarrados pelas

mãos, amontoados num caminhão e transportados até a sede da fazenda. Tal ação

tinha sido cometida por soldados levados por avião dos fazendeiros até o local, e

lá foram novamente espancados pelos capangas, exigindo a desocupação de 218

famílias de lavradores. Já em Mato Grosso, na cidade de Rondonópolis, 300

famílias de posseiros que ocupavam uma área de 10.000 hectares, há 18 anos,

estavam sendo ameaçadas de expulsão. Muitas de suas casas haviam sido

incendiadas enquanto as famílias estavam nas roças.72

A terceira matéria na mesma edição trouxe por título: Cercando o

povo: a interminável história das fazendas, denunciando o ataque da CODEARA

contra o povo de Santa Terezinha que, no mês de junho do ano de 1978, o prefeito

de Luciara, Sr. Sebastião Gomes da Silva, junto com o Coronel Clóvis Rodrigues

Barbosa, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, aceitaram a

doação da fazenda de 517 hectares de terra para a área urbana. Porém, ninguém de

Santa Terezinha foi consultado. Abandonando, portanto, o acordo feito no ano de

1972, entre a Prefeitura e a Companhia, cujos parâmetros tinha sido feito diante

de militares, representantes do INCRA e da Companhia de Desenvolvimento de

Mato Grosso, o qual garantia a doação de 2.446 hectares. Perguntava a matéria:

será que esses acordos valem alguma coisa? E a fiança dos militares? Por se tratar

de uma questão que resultou em grande contenda, será retomada posteriormente.

A quarta e última matéria, para nosso trabalho, se fez relevante por

revelar o primeiro momento em que se publicou, na Folha Alvorada, a metáfora

72

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977

A16.0.49 P.2 e 3.8.

Page 73: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

73

tubarão. Trata-se de um texto contornado por um traço, como se representasse um

limite e fora dele alguns peixes menores ao redor, sendo perseguidos por um

tubarão. Fora do quadro a expressão: A ILHA, e dentro do quadro trouxe por

título QUEM ESTÁ POR TRÁS DA POLÍCIA, QUERENDO INTIMIDAR

NOSSOS MISSIONÁRIOS NA ILHA DO BANANAL?

Descreve a matéria que o Padre Falieiro e a Irmã Edna, missionários

na Ilha do Bananal, cuidando da missão indígena e das muitas famílias de

sertanejos que lá moravam, no dia 31 de agosto receberam a estranha visita de

„sete policiais da Polícia Militar com carabinas apontadas‟ para os presentes.

Segue a matéria afirmando que os policiais eram de Gurupi-Pará. A polícia,

armada e ameaçadora, sempre acompanhada do bate-pau Getúlio, levou os

missionários para o 4º posto fiscal da FUNAI, em São João do Javaé, e lá

exigiram documentos do padre e da irmã. Falaram muito mal do Bispo Pedro,

com as velhas falácias de sempre, prometendo voltar e fazer a „festa‟.73

Noticiava ainda que o Sr. Albertino tinha pedido autorização, por

escrito, para ir, com os índios da aldeia que ele comandava, tirar os missionários.

Porém, nem estes, nem o Povo se espantaram muito com essas perseguições,

muito pelo contrário, isso criou mais união no Povo e maior consciência, e a

Missão estava dando maior fruto, revelando, naquele momento, a importância de

se conhecer aquela história da Ilha do Bananal:

1 – Que os missionários da Ilha e toda a Prelazia de São Félix

somos os primeiros a defender os direitos dos índios, na Ilha do

Bananal e em qualquer outra parte;

2 - Que a Igreja tem o direito e o dever de missionar e que

defenderá esse direito e esse dever, na Ilha e em qualquer parte;

3 - Que, sendo a Ilha do Bananal área federal – Parque Indígena

ou Florestal -, são as Autoridades Federais as que devem tomar

providências urgentes e corretas para resolver a gravíssimo

problema da Ilha de um modo justo para todos;

4 - Que o Povo sertanejo da Ilha tem também os seus direitos,

num lugar certo e sossegado, e que o Governo do Brasil não

pode esquecer esse Povo sempre tocado, sempre retirante;

5 - Que as escusas de certos elementos da FUNAI somente são

interesse de lucro e exploração do patrimônio dos índios;

73

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977

A16.0.49 P.6.8. Destaque do original.

Page 74: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

74

6 - Que os prejudicados nisso tudo serão os próprios índios e os

sertanejos, quer dizer, os pobres; não os turistas, nem os

grandes criadores que colocam seu gado na Ilha e que pagam à

FUNAI o imposto que lhes é descontado do imposto de renda.74

Concluímos o tópico destacando o fato de ser emblemática a

utilização da metáfora „tubarão‟, visto tratar-se de uma forma didática de

denunciar a perseguição feita aos indígenas e sertanejos residentes na Ilha do

Bananal, cuja expressão passou a ser utilizada, como já afirmado anteriormente,

pelo povo do lugar, ao se referir aos grandes proprietários de terra, especialmente

aquelas transformadas em grandes agropecuárias. No tópico a seguir serão

revelados aspectos que anunciam a importância da fonte Folha Alvorada para o

ensino.

1.4.2 Eu já li isso na ALVORADA: os posseiros „analfabetos‟

No dia 29 de agosto de 1977, o tenente Víctor Moreira Kewitz,

executor do Projeto Fundiário Vale do Araguaia, com sede em Barra do Garças, e

o Advogado Vanderlei, do INCRA de São Félix, estiveram em Porto Alegre do

Norte para uma reunião com os posseiros, momento em que os chamou de

„invasores‟. O tenente disse que o povo falava incentivado, momento em que um

ali presente disse que Deus deixou a terra para todos. Naquele momento, o tenente

disse que „Eu já li isso na ALVORADA‟.75

Ao relatar o episódio publicado na edição do mês de outubro, a

resposta dada pelo Bispo e seus colaboradores foi a de que seria bom que o

tenente Víctor soubesse que: a) ALVORADA aprendeu isso da consciência de

todos os homens honestos de todos os séculos e de todos os países; b) Não foi a

ALVORADA que inventou a justiça e a irmandade; c) é bom que soubesse também

que a ALVORADA não inventa os direitos e as necessidades do Povo: o Povo sabe

muito bem o que precisa. Seguindo a descrição do ocorrido, o advogado Vanderlei

chamou os posseiros de „analfabetos‟, que não sabiam nem ler para conhecer as

leis.

74

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977

A16.0.49 P.6.8. Destaque no original e grafia como no original. 75

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977

A16.0.49 P.7.8. Mantivemos no presente tópico a palavra ALVORADA em caixa alta, conforme

está escrita na matéria.

Page 75: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

75

Da contenda, resta um fio para que possamos analisar o analfabetismo,

fruto da violência herdada historicamente pela concentração da renda e

dificuldade de acesso e fomento à exclusão, servindo também, em circunstâncias

públicas, enquanto mecanismo de inferiorização da pessoa analfabeta, portanto,

uma faca de dois gumes, ou dupla violência cometida pelo Estado, representado

no evento pelo tenente Víctor. Igualmente, quando em resposta, o Bispo afirmou

que não era a Alvorada (Folha Alvorada), pois não inventou a justiça e a

irmandade, não estava somente afirmando a posição de subversividade, mas a

prática dos jornais plantarem notícias falaciosas, as quais estaremos apresentando

ainda neste capítulo.

Percebia, portanto, a forma pela qual o governo atuava, por meio dos

órgãos oficiais, para oprimir os pobres, inclusive colocando pessoas infiltradas em

meio às famílias e usando o nome do Bispo Pedro Casaldáliga, como ocorreu no

mês de julho de 1977, em Canabrava, logo após a visita do tenente Víctor e do

advogado Vanderlei, como constava uma carta enviada ao Bispo, cujo excerto foi

publicado na Folha Alvorada:

[...] chegou um cara aqui um tanto quanto estranho. Diz vir de

Goiás. Chegou com um gravador e com ideias um pouco

„esquisitas‟. Diz que se animava a tirar uma posse até dentro da

Suiá. Disse para outro que tinha recebido autorização direta do

bispo Pedro para entrar em qualquer fazenda. Isso é uma grande

mentira, naturalmente, e talvez seja mais uma cilada para acusar

o bispo.76

O conflito se dava em todos os campos e lugares, porém, a

circularidade das informações se tornara vital para a resistência, seja no sentido de

denunciar os falsários, ou no sentido de enfrentar os „abusos‟ cometidos pelas

autoridades, que nem sempre ficavam sem resposta, como ocorreu em Canabrava

no dia do „interrogatório‟ feito pelo advogado Vanderlei e pelo tenente Víctor.

Anunciou a matéria da edição do mês de outubro de 1977 que todas as

suspeitas e acusações e o medo dos inquisidores foram bem respondidos por um

chegante de apenas 15 dias, que procurava em Canabrava um pedaço de chão para

alimentar seus filhos:

76

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977

A16.0.49 P.7.8.

Page 76: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

76

[...] se vem um „dono‟ e põe todo mundo pra fora e os posseiros

não podem morar, o jeito será se reunir grupos de 30 a 100 e

sair vadindo (sic), aonde acha uma coisa pra comer avança em

cima, pega, come mesmo, tenha dono ou não tenha. Se encontra

uma vaca alheia, já mata ela. Se não der tempo de comer ela

porque o dono já está em cima para matar, então bebe o sangue

dela e já mata a fome com aquilo.77

Um segundo participante disse também:

Pai de família com nove ou dez filhos, não vai tolerar ver seu

filho chorar de fome, de necessidade e sem poder trabalhar só

porque não tem onde, o chão estando aí. Deus não acabou com

a terra. A terra existe.78

O advogado Vanderlei indicou aos posseiros pegar a indenização e

começar a vida em outro lugar. Em resposta ao advogado, perguntou um posseiro:

Aonde começa a outra vida com a indenização? Aonde vai viver, de que?

O advogado não soube responder. Disse apenas que o governo,

infelizmente, não tinha condição de amparar a situação de todos os pobres do país.

Por se tratar de uma narrativa feita posteriormente à reunião, é

possível que tenha passado por edição, anunciando com certa seletividade o fato,

inserindo ou extraindo parte das falas. Todavia, haveremos de indagar: o discurso

inventava táticas de guerrilha em meio à guerra de narrativas entre as categorias

ali presentes? Seria a comunicação, tendo por meio a Folha Alvorada, e por

método ativo a rede, recurso fundamental para a resistência? Que fazer se a

maioria das pessoas não dominava a leitura e a escrita? Não objetivamos

responder tais questões antes que possamos perceber como a educação e a escola

foram inventadas nas páginas da Folha Alvorada.

Diante da necessidade de comunicação, em tempos em que o telefone

móvel não existia, a Folha Alvorada cumpriu o importante papel de informar e

instruir, em rede, os missionários que chegavam e iam para as comunidades,

disseminando, assim, informações importantes, como veremos adiante. Todavia,

atenção especial será dada à questão da educação, percebendo no líder religioso a

dimensão do profeta, mas, especialmente, arquiteto de uma invenção social, ao

tempo em que edificava a igreja e a escola, revelando, nessa medida, que todo

77

Ibidem. 78

Ibidem.

Page 77: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

77

missionário haveria de ser educador, não somente na materialização de um

templo, mas na construção consciente de um espaço que possibilitasse a principal

arma aos oprimidos contra os opressores, o conhecimento.

Esse periódico, do qual extrairemos informações que deram suporte a

boa parte dos argumentos da tese, usa uma linguagem didática com dupla

dimensão, trazendo um manancial infinito de informações que, se analisadas em

conjunto, compõe verdadeira enciclopédia de ideias e ideais arranjados

pedagogicamente como forma de atingir a todos os públicos, pois, como já

mencionado, a maioria das matérias publicada na Folha Alvorada teve por

objetivo informar, formar e denunciar, porém, a última ganhou relevância, pois,

embora tivessem como alvo os latifundiários e seus aliados, não relutavam em

denunciar a falta de compromisso das famílias com a comunidade, com o bem

comum. Portanto, ao tempo em que inventava um veículo de comunicação

eficiente, inovava práticas sociais e institucionais, portanto, reinventava a

sociedade e as instituições.

Não era incomum narrar os feitos e seus feitores com nome, lugar e

contexto e, em alguns momentos, estampando memórias, para que o leitor que não

acessara as edições anteriores pudesse ter contato com o ocorrido e refletir,

especialmente em relação à escola. O periódico, igualmente, serviu de mecanismo

de mobilização, meio pelo qual, reiteradamente, convocava as famílias para união,

seja na organização do trabalho, por meio de mutirão pelos posseiros nos sertões

ou na cidade, na organização dos sindicatos, dos clubes de mães, das buchudas

(gestantes), das comadres e dos jovens. Enfim, para um maior envolvimento das

pessoas na busca por solução aos problemas comuns, a exemplo da educação,

saúde e luta pelo pedaço de chão. Em nossa narrativa, a escola ganha relevo.

Hora em diante, revelaremos algumas razões pelas quais a Folha

Alvorada se tornou rico manancial para nossa pesquisa, por publicar

abundantemente o tema da escola de educação básica. Por conta de a fonte ser

generosa em relação à invenção da escola e da educação, darei a primeira

pincelada em um quadro que se revelará ao longo de quase todos os capítulos.

O envolvimento direto da equipe editorial do periódico com os

problemas sociais fez com que a Folha Alvorada servisse de instrumento de

Page 78: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

78

reflexões, denúncias, orientações, prestações de conta, de crítica aos assentados no

poder, fugindo, portanto, do campo da reprodução de matérias veiculadas por

outros jornais do país, observando que viviam a ditadura militar e, por

conseguinte, a censura. Requer ainda observar que, além dos jornalistas, muitas

matérias foram produzidas pelos locais e todas em formato de entrevistas,

sugestões e poesias voltadas para toda comunidade leitora (alfabetizada e não

alfabetizada), sendo que sua responsabilidade recaia sobre o Bispo Pedro

Casaldáliga.79

Nosso mapa, nossa gente, foi o imperativo pelo qual a Folha Alvorada

apresentou a primeira matéria sobre a criação da Prelazia de São Félix do

Araguaia, um veículo de comunicação eficiente que levava informações variadas,

numa troca dinâmica de mão dupla. Essa foi à forma hábil adotada pelo Bispo

Pedro Casaldáliga para informar a, aproximadamente, 50 ou 60 mil habitantes

espalhados pelos quase 150.000 km2 nas beiras do Araguaia, Mortes, Xingu,

Jaburu, Tapirapé, Cristalino e outros „rios e lugares‟. Observamos que, além de

comunicar os ocorridos na região e fora dela, dedicava narrativa no sentido de

orientar, estimular e formar opiniões sobre os acontecimentos, por meio de „ações

formativas‟ na escola de educação básica.

A Folha Alvorada, desde sua primeira edição até a de número 318, no

ano 48 de sua existência (2017), cumpriu o propósito de veicular informação,

conhecimento, denúncia e estímulo à vida e ao trabalho, numa troca de

experiência com e da comunidade. Sempre contemporâneo aos fatos, foi e

continua sendo produzido na fronteira mato-grossense.80

Esse veículo de comunicação sempre foi caracterizado pela

participação popular, todavia, em seus primeiros anos de existência sofreu duras

críticas, a ponto de, em 1973, por conta da repressão, ter suas edições apreendidas

pelos militares.81

Contudo, compete observar que, embora houvessem enormes

79

Nos primeiros anos da edição, o bispo Pedro Casaldáliga tinha como colaboradores a irmã Irene,

o padre Falieiro, Pontim e Moura, esses últimos eram jovens da pastoral. Todavia, ao longo dos

anos muitos outros vieram a compor a equipe de edição, mas, como será apresentado ao longo do

trabalho, havia muitos outros colaboradores em cada lugar para onde eram enviados os jornais e de

onde eram originárias as matérias. Mas, a maioria das edições era por ele assinadas. 80

Atualmente, o processo de impressão é feito em Goiânia. 81

Marluce Scaloppe (2013) afirma que, ao buscar informações no Centro de Pesquisa e

Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV),

Page 79: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

79

distâncias entre as comunidades, as dificuldades não representaram obstáculo para

sua circulação, superando, inclusive, o mais relevante sobre os outros, o

analfabetismo, pois, em muitos lugares havia o hábito de as pessoas lerem para

aquelas que não sabiam ler.

Avaliando as consequências sobre a repressão contra a equipe do

periódico Folha Alvorada, Valério82

afirmou que a Rede Globo noticiou, em

horário nobre, no início de julho de 1975, sem mencionar a fonte da notícia, que

haviam sido apreendidos em São Felix do Araguaia exemplares do boletim

Alvorada, da própria Prelazia, contendo um texto da China comunista,

supostamente ilustrado com cruz e foice.

Prontamente, Casaldáliga repeliu a denúncia, afirmando que tais

panfletos datavam de 1973 e que haviam sido urdidos pela força de repressão que

ocupara São Félix em 19 de agosto daquele mesmo ano, e que foram espalhados

pelo próprio exército em outras áreas do país, inclusive dentro de outras igrejas.

Aproveitando-se da situação, acusou as difamações que a imprensa fazia de outros

bispos ligados à teologia da libertação, como Dom Paulo Evaristo Arns (arcebispo

de São Paulo) e Dom Ivo Lorscheider (secretário geral da Conferência Nacional

dos Bispos do Brasil - CNBB) 83

.

Assim, a produção do jornal, mesmo que não tivesse a pretensão de

circular com regularidade em outras cidades, que não jurisdição da Prelazia, seu

conteúdo crítico provocava a ira dos opressores. Igualmente serviu de fonte de

estudo comparativo por membros da própria igreja.

Perguntado pelo Frei Clarêncio Neotti, de Petrópolis-RJ, em 1977, –

em vias de desenvolver um trabalho de pesquisa comparativa entre os periódicos

da Igreja Católica no Brasil da época – se além dos objetivos anteriormente

mencionados o informativo exercia outro tipo de função na diocese, como de

formação, de subsídios litúrgicos, roteiros para reflexão, mostrando tendências

ideológicas formativas na notícia, a resposta foi a de que a folha atendia todos os

encontrou os documentos retirados da Prelazia de 1973, dentre eles as edições da Folha estavam

na pasta do General Antônio Carlos Muricy que, nos anos 1970, integrou uma comissão mista,

composta por autoridades do governo e da Igreja e tinha por objetivo discutir os atritos entre os

militares e a Igreja. 82

VALÉRIO, Mairon Escorsi. Op. cit., p. 48. 83

MOURA, Carlos ET al. A Igreja dos Oprimidos. São Paulo: Brasil Debates, 1981. P. 197.

Page 80: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

80

propósitos por ele elencados e que, logicamente, tinha a ideologia da equipe

responsável, pois, “[...] cabeça sem ideologia não seria cabeça pensante”.84

Porém,

a equipe fazia questão da máxima precisão e objetividade nas notícias. Além

disso, servia como subsídio de reflexão para os grupos, clubes e sindicados já

mencionados e que, para que não perdesse a qualidade jornalística, a equipe

contava com profissional da área.

Em 1976, informaram aos seus leitores e colaboradores que, a partir

daquela data, a Folha seria distribuída nas casas e as inscrições poderiam ser feitas

depois das missas, nos clubes ou na casa dos padres, sendo que os inscritos, a

título de contribuição, pagariam R$ 1,00 (um cruzeiro) por número do periódico.

Portanto, a Folha Alvorada era paga e, depois do rádio, certamente se tornou a

maior fonte de informação da região do Araguaia-Xingu.

Para entender a escolha do nome da Folha Alvorada, usaremos o

termo para muito além de seu significado substantivo, o que vem antes do sol

nascer, ou, etimologicamente, do particípio do verbo alvorar, mas sim com o

sentido que tinha no momento de sua criação, motivos de anunciar festividades,

celebração a percorrer as cidades e os sertões, entoando cânticos e mensagens,

pronunciando e anunciando a necessidade de união entre as famílias de todos os

patrimônios e com cunho evangelizador, enfim, pedagogicamente anunciar e

defender a igualdade entre os povos e a libertação. Concluímos o tópico

afirmando que as matérias publicadas na Folha Alvorada, sem exceção, tinham

caráter crítico-reflexivo-formativo, cuja temática observamos a seguir.

1.4.3 – O contexto sob o viés crítico-reflexivo da fonte

Para entender esse veículo de comunicação/informação no Araguaia-

Xingu que, lançado na década de 1970 e que continuou cumprindo a função pela

qual foi criado, sendo interrompido por imposição da ditadura militar, requer uma

leitura com foco em mapear as bandeiras de luta de seu idealizador, a libertação,

a igualdade, a união e a fé. E, como dissemos, nenhuma dessas bandeiras seria

84

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1977

A16.0.45 P.1.2.

Page 81: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

81

exitosa sem a educação. Tomando as quatro dimensões, convido retomar a

música lembrada em sua edição de 29 de março de 1970, contextualizando a

mensagem.

Para concluir o tópico, retomamos as razões pela escolha da música

Disparada para figurar na edição inaugural da Folha Alvorada: a letra se assentou

no fato de ela fazer comparação entre a exploração das classes sociais pobres

pelas mais ricas e a exploração das boiadas pelos boiadeiros, mas também entre a

maneira de se lidar com gado e de se lidar com gente.

Pelas razões já apresentadas e muitas outras a serem reveladas nessa

narrativa, elegemos a Folha Alvorada enquanto fonte privilegiada, por se tratar de

registro histórico, de biografia e de memória, manancial ímpar para essa e muitas

outras pesquisas sobre os povos do Araguaia-Xingu.

Porém, outras duas fontes se fizeram relevantes para a pesquisa. Trata-

se de observação participante e formulário online e impressos aplicados aos

professores atuantes na disciplina história, por amostragem em algumas cidades

que hoje compõem o mosaico entre cidades e sertões do Araguaia-Xingu mato-

grossense, cujas dimensões serão apresentadas no último capítulo da tese. Ditas as

razões da pesquisa, o período histórico, a espacialidade e as fontes, passamos a

apresentar o perfil educacional da população do Araguaia-Xingu, na década de

1970.

1.5 - Perfil educacional das famílias: sinais do tempo e do lugar

Neste tópico apresentamos o perfil socioantropológico e educacional

das famílias que habitavam o Araguaia-Xingu na década de 1970, traçado a partir

da primeira Carta Pastoral produzida pelo Bispo Pedro Casaldáliga, extraído de

uma pesquisa realizada por um dos professores pertencentes à equipe da Prelazia e

que atuava no Ginásio Estadual do Araguaia - GEA, em São Félix do Araguaia.85

O propósito é revelar em que circunstâncias e quais foram os desafios enfrentados

85

Por ser o primeiro ginásio oficialmente edificado em São Félix do Araguaia, e por ter sido o

único construído pela Prelazia com o apoio dos fazendeiros, dedicamos um tópico para revelar o

que foi o GEA.

Page 82: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

82

para a construção das primeiras escolas de educação básica da região e, por

conseguinte, mapear as características sócio históricas e culturais dos aprendentes.

Segundo a Carta Pastoral, fruto de fecunda pesquisa sobre os sinais do

tempo e do lugar, redigida e publicada em 10 de outubro de 1971 pelo bispo da

Prelazia de São Félix do Araguaia, Pedro Casaldáliga e equipe, ao apresentar o

número de habitantes da região, com base no recenseamento do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística de 1970, Barra do Graças contava com

28.403 habitantes86

e chamava atenção para divergência dos números, pois,

segundo o líder religioso, esse número deveria ser bem maior, cuja comprovação

poderia ser encontrada nos dados de 1971 da Secretaria Municipal de Educação e

Saúde do Município, superando 52.000 (cinquenta e dois mil habitantes). Já

Luciara, o segundo município que completava a espacialidade aqui analisada,

contava com 5.332 habitantes.87

Confere avalizar que o fluxo migratório de pessoas, em decorrência da

natureza do trabalho, para „formar‟ fazendas na região resultava em uma migração

interna sem precedente. Eram „levas de peões‟, o que tornava esse número

populacional bastante flexível, sendo que a maioria era trazida de outras partes do

Brasil para abrir as matas e para a lida com o gado nas grandes fazendas,

conforme publicação do Centro Ecumênico de Documentação e Informação

(CEDI):

O peão pode ser caracterizado como aquele trabalhador braçal,

que na atual situação trabalhista criada pelos latifundiários,

trabalhava (trabalha) no regime de empreitada, não tendo

nenhum vínculo empregatício com a fazenda, tal como os gatos

e os operários de moto serra. Os peões podem trabalhar sob dois

sistemas de remuneração básicos, com o gato (ou sob

subempreitada), ou em sociedade.88

86

CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja em conflito com o latifúndio e a marginalização social. S.

Félix, 10 de outubro de 1971, p. 3. Dito pelo próprio autor, “[...] não houve nenhuma editora que

quisesse publicar a carta pastoral. Tivemos que fazê-lo em duas gráficas clandestinas. Uma delas

era uma gráfica comunista. Por isso, o livro não traz referência de editora”. In: ESCRIBANO,

Francesc. Op. cit., , p. 48. Ver também Valério, Mairon Escorsi. Op. cit.. 87

CASALDÁLIGA. Pedro. Carta Pastoral – Uma igreja da Amazônia em conflito com o

latifúndio e a marginalização social. Prelazia de São Félix do Araguaia 1971.

http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/dompedro/01CartaPastoralDomPedro.pdf. Acesso

em 10 de junho de 2017. 88

CEDI, Centro Ecumênico de Documentação e Informação, “Povos Indígenas do Brasil 1983” In

Acontece. São Paulo, n. 14, 1984, p. 19.

Page 83: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

83

Além dessa população flutuante, acrescida das centenas de famílias

habitantes no Araguaia, viviam „espremidos‟, ameaçados pelos opressores

proprietários das grandes fazendas de gado, somava-se outro grupo, composto

pelos pobres trabalhadores braçais.

Além desses dois, que acabaram por sofrer as mesmas consequências,

nas décadas de 1970 a 1980, a região ainda recebeu novos projetos de colonização

que resultaram nos núcleos de Canarana, Água Boa, Nova Xavantina e Vila

Rica.89

Com o surgimento dos projetos de colonização desenvolvidos ao

longo da década de 1970, esse quantitativo populacional cresceu em média 85% e

essa nova leva de migrantes, oriundos quase que em sua totalidade dos Estados do

Sul e Sudeste, ali chegaram, incentivados pelos projetos de colonização. O

resultado desse movimento redundou na ocupação das terras na Amazônia Legal.

Portanto, o Araguaia-Xingu representava, aproximadamente, 10% da população

do estado de Mato Grosso.90

Assim, a carta pastoral, ao tempo em que apresenta a origem do

elemento humano daquelas paragens, descrevia-os como sertanejo-camponeses

nordestinos, oriundos do Maranhão, Pará, Ceará e Piauí.91

Apontava a

89

Os projetos de colonização no Araguaia implantados por particulares com incentivo do Estado

foram: Canarana, colonizada pela Cooperativa 31 de Março Ltda., de Tenente Portela (RS), em

terras dos índios Xavante, hoje deslocados para a Reserva Indígena Pimenta Bueno; Água Boa foi

colonizada pela CONAGRO, do “pastor Norberto Schwantes” também em território Xavante,

cujos índios foram deslocados para a reserva Areões; e Nova Xavantina, igualmente colonizada

pela CONAGRO, em território Xavante, deslocados para a reserva Areões e São Marcos ou

Sangradouro e Vila Rica da Colonização Vila Rica, no extremo nordeste de Mato Grosso. PIAIA,

I. I. Geografia de Mato Grosso. 3. Ed. ver Camp. Cuiabá: EdUNIC, 2003. Universidade Federal

de Mato Grosso 40 anos: trajetória, personagens e/Organizadores, Elizabeth Madureira Siqueira,

Nileide Souza Dourado e Roberto Silva Ribeiro. – Dados eletrônicos. – (Cuiabá: EdUFMT, 2011,

2003, p. 31-32). 90

Estudos sobre a questão demográfica em Mato Grosso apontam que, no início da década de

1970, o Estado tinha cerca de 600 mil habitantes nos 34 municípios, e que a grande maioria estava

distribuída nas cidades localizadas no centro-sul do Estado, mais especificamente na baixada

cuiabana. A partir dos projetos de colonização até o final de 1970, esse quantitativo populacional

cresceu em média 85% comparado a 1960, consequência de nova leva de imigrantes oriundos

quase que em sua totalidade dos Estados do Sul e Sudeste do país incentivado pelos projetos de

colonização e ocupação das terras na Amazônia Legal In MORENO; HIGA, Geografia de Mato

Grosso: Territórios, Sociedade, Ambiente. Cuiabá: Entrelinhas. (2005b, p. 71-73). 91

A carta pastoral é, regra geral, uma carta aberta assinada por um bispo e dirigida aos clérigos e

leigos de sua diocese contendo conselhos, instruções ou consolações. Portanto, percebe-se que a

carta pastoral redigida por Pedro Casaldáliga tinha o princípio de disseminar uma análise

conjuntural das condições socioeconômica, política e educacional da nova Prelazia recém-criada.

A carta divide-se em oito partes, a saber: Introdução, Parte I – Situação geográfica, Parte II –

Page 84: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

84

precariedade e o escasso recurso quando de sua chegada, uma vez que, “[...]

vinham quase sempre providos de rede de dormir, muitos filhos, algum cavalo

magro e os quatro trens de cozinha carregados numa sacola”.92

Além de leitura atenta sobre a conjuntura nacional, a carta apresentava

resultados de uma pesquisa local realizada pelo Prof. Hélio de Souza Reis, em São

Félix do Araguaia, durante o ano de 1970. Nota-se que, de forma enfática, o

estudo exibe a principal fragilidade da sociedade local, qual seja, o alto índice de

pessoas analfabetas e que, “[...] os poucos estudos os transformavam submissos às

situações de repressão, pois o „[...] sertanejo nunca conheceu a lei do protesto, das

greves, do direito ou do uso da razão. Todo seu cabedal histórico estava dentro

das quatro paredes de um mísero rancho e na prole que aparecia

descontroladamente”.93

Como era comum para o Brasil daquela época, ter elevado número de

filhos significava uma alternativa de se obter mão de obra para a lida na roça,

além de que o uso de contraceptivos, além de ser um tabu entre as famílias mais

abastadas, a igreja orientava para que não fossem utilizados. Porém, em relação à

Prelazia, embora houvesse a defesa para com o sacramento e o matrimônio, bem

como orientação para as „buchudas‟, a denúncia em relação aos cabarés não

percebi qualquer publicitação com o propósito de impedir uso do condon, a

camisinha de vênus, como era conhecido na época.

Já em relação aos indígenas mais próximos às cidades e aos sertões, as

três etnias, já referenciadas no início deste capítulo, cederiam espaço para as

grandes fazendas agropecuárias, a carta considerou que “[...] estes constituíam

uma pequena parte dos moradores”.94

Os Xavante, na concepção da prelazia, eram “[...] caçadores, fortes,

bravos e há poucos anos ainda semeavam o terror naquelas paragens”. Os Carajá

“[...] bastante nobres, pescadores, comunicativos, fáceis à amizade, festeiros,

artesãos do barro, das penas dos pássaros e da palha das palmas”, já atingidos

Panorâmica sócio pastoral, Parte III – Latifúndio, Parte IV – Posseiros, Parte V – Índios, Parte VI

– Peões, Parte VII – Política local, Parte VIII – Nossa atuação. 92

CASALDÁLIGA. Pedro. Op. cit. 93

CASALDÁLIGA. Pedro. Carta Pastoral – Uma igreja da Amazônia em conflito com o

latifúndio e a marginalização social. 1971, p. 4. 94

CASALDÁLIGA. Pedro. Op. cit., p. 4.

Page 85: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

85

diretamente pelo turismo, pelas doenças, pelo uso de drogas e prática da

prostituição, visto que agredidos e adoecidos pelo contato prematuro e desonesto

com a chamada civilização.95

Os Tapirapé, “[...] lavradores, mansos e sensíveis, mui comunitários e

de uma delicada hospitalidade”.96

Já os Xinguanos, embora habitassem quase 1/3

da jurisdição da Prelazia, tiveram pouco contato com os conflitos sociais da raia

lindeira ao Araguaia e seus tributários, conforme Casaldáliga (1971).

Como terceiro grupo, na classificação contida na carta, estavam “[...]

os estrangeiros de espírito, fazendeiros, gerentes e pessoal administrativo das

fazendas latifundiárias, quase sempre sulistas, um pouco „super-homens‟,

exploradores da terra, do homem, da política” 97

. Além destes, eram constituídos

também por funcionários da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e de outros

organismos oficiais, bem como por comerciantes e marreteiros, motoristas,

boiadeiros, pilotos, policiais, vagabundos, foragidos e prostitutas, mas,

principalmente, por peões: trabalhadores braçais contratados pelas fazendas em

regime de empreitada, vindos de todo o canto do país. Muitos deles, após se

libertar dos serviços das fazendas, acabavam se tornando moradores da região.

Para entender um pouco de como esse amálgama resultava em

desafios a serem superados por meio da educação escolar, fizemos uso da

pesquisa socioantropológica produzida pelo prof. Hélio, também publicada na

carta pastoral, para montar um quadro descritivo sobre o racismo (modo de

tratamento ao diferente de formas preconceituosas):

Tabela 1 – Expressões sintomáticas

Sulista Sertanejo (nordestino)

O sulista fala essa gente, esse povo, aqui

nunca viram (sic), não sabem nem se são

índios mesmo.

O índio não é considerado gente pelo

sertanejo. Ninguém confia em índio.

Cristão Índio

Branco Preto

Expressões sintomáticas: O governo nos trata como Carajá/Quando índio atua, reage,

se comporta „normalmente‟/Age que nem gente/Feito gente/Fulano tem cabelo bom,

sicrano tem cabelo ruim.

Fonte: Carta Pastoral Casaldáliga (1971).

95

Ibid. 96

Ibid. 97

Ibid., p. 5.

Page 86: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

86

Observa-se na classificação feita pelo professor em seu relatório de

pesquisa, que as categorias sulista e sertanejo se referiam ao índio. O preconceito

se revelava nas expressões: essa gente, esse povo – significa o afastamento de

origem do não pertencer, revelando o outro, o diferente. Igualmente

apresentavam, no discurso a superioridade pelo outro não ter tido acesso às

informações que compunham seu cotidiano – não sabem nem.

Todavia, as expressões sintomáticas selecionadas pelo professor em

relação ao índio demonstram, de ambas as categorias, o desrespeito a esse

segmento, parecendo que quatro séculos e meio de ocupação das terras brasileiras

não foram suficientes para entender a racionalidade humana dos „índios‟. Pois, a

expressão „age feito gente, que nem gente‟, ou, o „governo nos trata como Carajá‟

apontava os conteúdos a serem tratados no contexto escolar. Portanto, o desafio da

escola, dos escolares e especialmente dos professores de história era o de

possibilitar acesso às informações e produzir reflexões sobre a história dos

diferentes povos e culturas ali presentes.

No campo moral, a citada Carta apontava que a cultura da vingança

era expressa como se fosse prática quase hereditária das leis primárias, ferindo de

morte a moral, “[...] pela justiça tomada pelas próprias mãos”, pela valentia,

embriaguez, infidelidade conjugal, fragilidade da família, sexualidade, “[...] entre

primitiva e mórbida, tropical e de compensação, a prostituição é praga”. O

exemplo era o „Pingo‟, cabaré local, que funcionava em plena cidade de São Félix

do Araguaia, para escândalo das famílias e dos menores, porém, “[...] a maioria

das raparigas já tinham sido casadas e largadas dos maridos e normalmente o

casamento (ajuntamento) se dava em idade prematura, antes dos 18 anos”.98

Competia à escola, não só tratar do analfabetismo, mas, em especial,

trazer à tona a problemática em relação à falta de perspectiva das mulheres, pois,

como observamos, as adolescentes, em tenra idade, viam na prostituição uma

forma de conseguir uma „vida melhor‟, acabando „amigadas‟ com peões e, quase

98

Ibid., p 6.

Page 87: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

87

regra, abandonavam o companheiro pelos mesmos motivos que a levaram a ele se

unir: a falta de perspectiva.99

Ao analisar o conjunto característico da população em relação à

formação familiar, os valores e as condições de vida se apresentavam como

sinônimo da falta de conhecimento, de planejamento familiar e da inexistência de

perspectivas futuras. Assim, ampliamos o elenco de perguntas: Seria a escola

elemento importante para a superação dessa condição social das famílias da

região? Seria a educação escolar, em seu intramuros, capaz de dar resposta a essas

questões? Como as mesmas eram estampadas nos manuais didáticos utilizados no

ensino de história? As respostas nos motivaram a busca.

Continuando o delinear da carta, uma tensão maior surgiu quando o

bispo afirmou que a alienação política e social era extrema, dados revelados pela

pesquisa e publicada na carta, apontando que 42% dos entrevistados ignoravam o

nome do prefeito; 80%, o do governador; 79%, o do presidente da República. E,

perguntado o que achavam dos políticos: 33% respondeu que “[...] não conhecia

essa gente, não se preocupam com isto, não tinham opinião formada, não tinham

paixão por isto” 100

, não se falava, porque não se poderia falar por conta das

represálias – da política ou do comércio – o que eram quase automáticas, “[...]

pobre não tinha vez, peão não era gente, era fuá desse povo” conforme anunciava

a carta.101

As respostas obtidas em relação à representação política, a partir da

pesquisa do professor Hélio, possibilitaram-nos afirmar a existência de uma

„tecnologia do corpo‟, um investimento político localizado e usado por uma

instituição (comércio) ou aparelho do Estado (política), como define Foucault:

[...] analisar o investimento político do corpo e a microfísica do

poder supõe então que se renuncie – no que se refere ao poder –

à oposição violência – ideologia, à metáfora da propriedade, ao

modelo do contrato ou ao da conquista; no que se refere ao

99

Embora não seja o objeto de pesquisa, tampouco temos sistematizado material para coleta de

dados obtidos em viagens para as cidades que compõem o quadrilátero de terras e delimitados para

a pesquisa, é comum perceber adolescentes e jovens alimentando redes de prostituição,

normalmente se deslocando de uma cidade para outra, especialmente para aquelas onde impera o

agronegócio. 100

Ibid., p. 7. 101

Ibid.

Page 88: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

88

saber, que se renuncie à oposição do que é interessado e do que

é desinteressado. Trata-se de recolocar as técnicas punitivas –

quer elas se apossem do corpo no ritual dos suplícios, que se

dirijam à alma – na história desse corpo político [...] de uma

maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e

corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os

colonizados.102

As réplicas dos populares sobre os políticos, se analisados a partir da

ótica foucaultiana, percebemos um não lugar, uma fuga produzida pela vigilância

dos ditos „detentores do poder‟, do mando, das decisões sobre a sociedade local.

Quanto à relação familiar, a situação da mulher, em geral, era

humilhante. Ela não decidia nada, sequer se apresentava e tampouco poderia

reclamar. Os casamentos no queimo, ou por imposição do noivo por parte dos

pais, ou por causa da notável diferença de idade entre homem e mulher, ou pelo

absoluto despreparo fisiológico, psicológico, sociológico, pedagógico e pastoral

dos cônjuges, a família passava por fácil quebra.

Não havia, portanto, uma planificação familiar, sendo a educação dos

filhos a base do cipó, do grito, do respeito e obediência inapeláveis e desprovidos

de diálogo. Já os filhos de criação constituíam figura habitual, pois as famílias se

desagregavam facilmente.

A partir desse desenho, pode-se afirmar que havia diferenças abissais

entre aqueles que tinham poder de mando (opressores) e aqueles que não o tinham

(oprimidos). Todavia, entre eles havia muitas semelhanças, especialmente em

relação à ignorância, ao machismo, ao preconceito com o diferente, à falta de

estrutura familiar, ao censo crítico, aos posicionamentos „ingênuos‟ ou

„cautelosos‟ em relação à política, pois, a leitura das matérias publicadas sob a

forma de denúncia, pela Folha Alvorada, afirmavam a existência de vários tipos

de morte, as por causas naturais, em menor número, e a morte matada,

encomendada, sendo esta última muito comum. Assim, concluímos o tópico com

uma afirmativa de que a falta de estudo, a ignorância e as poucas condições de

reagir à situação de miserabilidade configuravam o traço mais marcante da

102

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 30-31.

Page 89: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

89

violência cotidiana sofrida e praticada por boa parte das famílias no Araguaia-

Xingu, o que dará sequência no tópico a seguir.

1.5.1 - Em cena a síntese de uma invenção

Esse tópico tem por objetivo continuar montando um imenso quadro

composto por informações extraídas da carta pastoral e da leitura das matérias da

Folha Alvorada. Diferindo da maioria das cartas pastorais que tomamos por fonte

de pesquisa, traduz em seu conjunto questões latentes do cotidiano das práticas

culturais reprováveis, sob o ponto de vista material e espiritual. Todavia, o

documento foi produzido com riqueza de detalhes, portanto, registro histórico

relevante para a presente pesquisa, revelando e denunciando as violências

praticadas pelo grande latifúndio contra os mais fracos. Mas, para o momento,

ficamos com a descrição da carta no tocante ao universo das pessoas que não

tinham acesso às aulas.

A educação apresentada na carta pastoral detalha que havia grande

porcentagem de crianças e rapazes da região que não tinha acesso à escola e que

existia apenas uma só professora, ou duas, estando os alunos, de diferentes idades

e graus, misturados (classes multisseriadas) 103

.

Uma questão embala nossas dúvidas e alimenta o desejo de saber

quem eram os professores na gênese das escolas no Araguaia-Xingu, e por que a

“[...] educação era importante tão quanto a Transamazônica”, como afirma o

Bispo na citada carta? O religioso não só oferece uma resposta, que, para nós, é

temporária, mas o faz com um sentido de denúncia: “[...] a prefeitura de Barra do

Garças nomeava várias professoras conhecidas publicamente como prostitutas”

104. Que sentido teria uma prática dessa? Será que os pais dos alunos assistiam

calados a tais decisões? Ou reagiam, exigindo seus direitos?

Não basta, portanto, analisar o perfil dos profissionais que atuavam

nas escolas como professores, se eram ou não qualificados, mas, em princípio,

103

Em alguns trechos da tese estaremos substituindo a categoria aluno por aprendente, por

entender que a o termo aluno nega sua dimensão proativa no processo de mediação e

aprendizagem. 104

Ibid., p. 22.

Page 90: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

90

observar quais foram as „senhas‟ de ingresso no magistério público na região, ou

seria a escolha desses profissionais tomada pelos políticos assentados no poder?

Estariam os gestores públicos criando uma espécie de cabide de emprego,

simplesmente para acobertar mais uma face da violência, usando, mais uma vez, o

povo para, de alguma forma, se beneficiar com tal prática? Havia investimentos

suficientes para a edificação das escolas? Seriam as mesmas mantidas pelo poder

público?

Conforme registrado na Folha Alvorada, geralmente, era o povo ou a

Prelazia que enfrentava (era responsável) a construção do prédio escolar, pois,

além do Estado e do poder municipal não arcar com a edificação, igualmente não

investiam em infraestrutura, pois era comum a falta de carteiras, cadernos, livros,

quadro-negro, giz, dentre outros. Assim seguia aquele cotidiano de problemas

estruturais na educação básica dos finais do século XX.

O ordenado dos professores do curso primário era de Cr$ 100,00 (cem

cruzeiros) e Cr$ 125,00 (cem e cento e vinte e cinco cruzeiros), pagos com atraso

de seis meses e até de um ano inteiro. Os professores do Ginásio Estadual, cuja

construção fora realizada pela Prelazia, e que estaremos detalhando no tópico

(1.3.3), recebiam Cr$ 120,00 (cento e vinte cruzeiros) mensais, e com atraso

superior a 4 meses. A irmã, diretora do Grupo Escolar de São Félix do Araguaia

teve que desafiar, no ano de 1970, a política caprichosa do Secretário Municipal

de Ensino de Barra do Garças, para a própria sobrevivência da instituição.

Apraz antecipar que o quadro de profissionais das escolas,

especialmente o do sertão, nos primeiros anos de existência das instituições

escolares, constituía em problema a ser superado, primeiro por não haver interesse

por parte do poder público de contratar professores formados para atender a

demanda, e o salário, além de ser irrisório, era pago com muito atraso, o que

ampliava exponencialmente os problemas educacionais.

Outro desafio dos professores era o de encarar problemas em relação à

pela falta de higiene, pois, os parcos conhecimentos sobre as causas das doenças

contribuíam para o quadro caótico vivido por muitas famílias, seja pela

precariedade de recursos, ou por conta das crendices, portanto, por falta de

Page 91: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

91

duvidar das explicações estapafúrdias em relação às formas de contrair doenças,

tendo sido a pior das causas, sem dúvida, a ignorância.

O conhecimento relativo à saúde era quase inexistente, como descreve

a carta, “[...] a higiene era precária, e se fazia grande o prejuízo com as crendices e

superstições”.105

O povo não tinha noção do valor da saúde, desconhecendo os

meios de evitar a contaminação, “[...] não conheciam a existência de germes e

vermes não temendo insetos que tinham abrigo comum à família”. As crianças

“[...] andavam nuas e descalças até os 6 anos de idade, depois adotavam uma

tanguinha”.106

Era comum, antes de aprender a andar, arrastarem-se pelo solo de

terra batida, contaminada pelas excreções dos animais e de pessoas, pisadas „no

mato‟ onde eram feitas as necessidades fisiológicas e trazidas no solado dos

calçados, ficando, assim, expostas a variadas infecções e infestações.

Embora a carta não tenha aludido para a questão da falta de recursos

para adquirir roupas adequadas para uso cotidiano, bem como a construção de

banheiros para uso cotidiano, o acesso à cidade tornavam os gastos ainda maiores,

tal que, em muitas matérias publicadas na Folha Alvorada, eram estampados, com

bastante regularidade, o preço dos alimentos básicos, sendo a carestia pauta

recorrente de denúncia.

Os alimentos, a exemplo da carne, mesmo a dos açougues, ficava

exposta a poeira, moscas e mosquitos, além de serem acondicionadas fora da

geladeira, chegando a casa já estava deteriorada e contaminada. Vale lembrar que

não havia energia elétrica na maioria dos povoados da região. Somente Luciara

contava com um motor gerador de energia, o qual era ligado por 3 horas durante a

noite. Continua ainda o relato de que a carne-seca ficava dias e dias ao sol,

suspensa nos quintais e sem qualquer proteção. Quando surgiam os problemas

intestinais, ninguém os relacionava aos alimentos ingeridos, a exemplo da carne

em início de putrefação e infeccionada por muitos tipos de germes.

A descrição das crianças – no referido documento – forma um quadro

horroroso da vida humana: “[...] as crianças se apresentavam com verminose e

anemias, sendo poucas vivas, com olhar parado e sem brilho, esclerótica amarela e

105

Ibid. 106

Ibid.

Page 92: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

92

mucosa descoradas, abdome distendido, com intenso meteorismo. Os dentes ao

nascer já se estragavam e a segunda dentição tinha o mesmo destino”.107

Os recém-nascidos não tinham assistência de saúde, ocorrendo, na

época, alta taxa de mortalidade infantil nos quatro primeiros anos de vida, por

tétano umbilical e infecções gastrointestinais. Alertava ainda a carta que as

gestantes não tinham assistência médica, seja a parturiente ou a puérpera. Na

maioria das vezes elas davam a luz no seu próprio barraco, em condições

higiênicas precárias, não dispondo, portanto, de infraestrutura elementar e humana

para um atendimento condigno.108

Dava a luz rodeada dos demais filhos, de

vizinhas e, às vezes, assistida por uma „curiosa‟ que, em alguns casos, complicava

mais a situação, fazendo uso de crendices e superstições.

A água retirada do poço ou do rio era colocada em potes, sem

torneirinha ou qualquer tratamento. Embora ficasse fresquinha, era tirada com

vasilhas já usadas, levadas por mãos, muitas vezes sujas, ou mergulhando o copo

no recipiente, proliferando os germes nos potes.

Com certo espanto, observava que as pessoas enfrentavam a doença,

própria e alheia, com sangue frio e a suportavam como um mal contra o mal que

não valia a pena lutar. Igualmente se fazia em relação à morte, que eles „acolhem‟

como a chuva depois da seca. Nem mesmo o choro era comum, tamanho o

sofrimento, somente quem testemunhou poderia ter condição de relatar, fazendo-o

com grande angústia, uma vez que percebiam a vida infra-humana do povo do

lugar.

Assim, a invenção deveria dominar os problemas cotidianos como

forma de não esperar que viesse de fora a solução, mas que, com um sentimento

de pertença e emanados pelo espírito coletivo, haveriam de encontrar formas de

resistir, criando táticas para superar o quadro de vida infra-humana.

Destacou ainda que o povo não tinha consciência dos próprios direitos

enquanto pessoa humana. Em casos de acidente, com fratura de membros, o

paciente ficava em repouso até conseguir andar ou movimentar-se, sem ter noção

107

Ibid. 108

Não há como negar a memória quando ela se faz presente, nascido no interior do estado de

Mato Grosso, em 1972, as condições de nascituro “no sítio” eram similares às descritas na carta.

Como parteira, tive minha avó. Com pouco estudo, as circunstâncias a fizera prática.

Page 93: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

93

sobre a possibilidade de uma redução e contenção provisória, até a mobilização

definitiva. Eram comuns pessoas coxas e com membros defeituosos serem aceitas

passivamente, visto que superados por sua impressionante coragem.

Conforme descrevia as doenças em nomes populares e científicos,

eram comuns entre os povos, como malária, hepatite infecciosa, úlcera de Bauru,

desidratação aguda (adultos e crianças), verminose de todos os tipos,

principalmente ascaridíase, teníase, ancilostomíase, acarretando profundas

anemias, afecções venéreas, blenorragia, cancro mole (cavalo), cancro duro,

linfogranulomatose inguinal (mula) e granuloma venéreo (cavalo de crista).

Anunciava ainda a carta pastoral que havia também alguns casos de

picadas de cobra, escorpião e aranha, tétano umbilical, geralmente letal, além de

afecção dentária e desnutrição. Tais constatações foram extraídas de um relatório

sobre a Prelazia, elaborado pela Irmã Maria de Fátima Gonçalves. Segundo o

Bispo, haveria de acrescentar a essa lista, o reumatismo, as afecções respiratórias,

a leishmaniose e a perda de visão, muito frequentes.

Em relação à habitação, afirmou que estas eram geralmente feitas de

barro cru, algumas de barro cozido, outras de pau-a-pique com cobertura de folhas

de coqueiro. Somente mais tarde surgiram algumas olarias e as casas de tijolo e

cimento, com cobertura de telha. Normalmente, as casas não tinham forro, as

instalações sanitárias eram bastante precárias, em geral localizadas no fundo do

quintal e com fossa rente ao chão, com base de madeira sem cobertura e em local

incômodo, sem porta, protegido apenas por uma „cortina‟ de saco de estopa, que

se agitava ao sopro do vento e onde à noite se abrigavam galinhas e muitos

insetos.

A essa „casinha‟ dava-se o nome de mictório, muito comum em todo o

interior mato-grossense. Embora com certa raridade, ainda são encontrados nos

sertões, não faltando relatos de haver aquelas crianças que, descuidadas, caem na

abertura das tábuas.

Em relação ao lixo, além de não haver coleta, os quintais e as ruas

recebiam o resíduo que pessoas menos cuidadosas não queimavam. Não havia

sequer cuidado de armazenar os descartes em latas. Inclusive, em algumas

pensões, jogava-se pela janela todo tipo de lixo, restos de alimentos eram

Page 94: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

94

rapidamente procurados e devorados por cães, galinhas e porcos, os quais

frequentavam os mesmos aposentos, usando muitas vezes as mesmas vasilhas que

os moradores e visitantes. Os ambientes eram infectados de moscas, mosquitos,

baratas e ratos. As fossas, sobretudo, eram verdadeiros viveiros de baratas,

afugentadas à noite pela chama de uma vela ou lampião, dando um espetáculo às

vezes dramático, quando a pessoa não estava acostumada e era surpreendida pela

fuga das baratas que, aflitas, procuravam o interior da fossa.

Em relação à alimentação básica, afirmou o líder religioso que era

constituída por arroz, feijão, carne, farinha (de mandioca), peixe e banha. Notava-

se ausência de fruta, verduras e leite, embora este existisse no início do inverno

chuvoso, quando havia pastos em abundância. Mas, na seca desaparecia o pasto,

sendo que no inverno ficava tudo alagado e as estradas intransitáveis, dificultando

acesso aos recursos externos do lugar. Não se comia verduras, devido à

dificuldade de cultivo (pragas, época da seca, falta de adubo), mas também à

preguiça e ao preconceito, pois falavam que verdura era „comida de lagarta‟, e o

„capim era apenas para boi‟.

Afiançou o documento que muito dos alunos ginasianos, iam às aulas

sem fazer a refeição matutina, pois a merenda não era praticada pelos mais pobres.

Assim, um povo subalimentado era presa fácil das doenças. O resultado da

pesquisa publicada na carta pastoral concluiu que, se houvesse higiene e boa

alimentação, 80% das doenças desapareceriam nos sertões.

Em tempos de chuva não havia correio na Prelazia e que as estradas

de terra alagavam perigosamente, se tornando intransitáveis, não havendo também

esgotos, luz elétrica (exceto, como antecipamos, a cidade de Luciara, que contava

com energia elétrica por três horas por noite), tampouco água encanada, nem ruas

encascalhadas.

Quando necessitassem de sair do lugar, havia ônibus duas vezes por

semana, sendo que a partir de outubro de 1970 perfaziam três, fazendo a linha

Barra do Garças-São Félix, cujo trajeto era feito em um dia e meio de viagem.

Havia ainda um ônibus por semana, de Luciara a Barra do Garças. Os voos feitos

pela Viação Aérea São Paulo – VASP, além de operarem com aparelhos

primitivos e só duas vezes por semana, eram muito caros, acima de Cr$ 1.200,00,

Page 95: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

95

para percorrer de São Félix à Goiânia. Normalmente se utilizava com maior

frequência a navegação dos rios da Morte e Araguaia, por meio de barcos e

lanchas (voadeira), além de canoas.

Se tomarmos por parâmetro o salário do professor e o custo de uma

viagem de avião, chegaremos à conclusão de que um ano de trabalho, sem

descontar nada do seu total, alcançaria o necessário para pagar apenas uma

passagem de avião. Assim, ao professor e à grande maioria das famílias ali

residentes não tinham o direito de ficar doentes, ao ponto de ter que viajar de

avião, pois, caso isso acontecesse eram fortes candidatos a sucumbir.

Os comerciantes se unia de tal forma aos fazendeiros que, juntos,

estabeleciam o poder dominante da política em interesses combinados. Usavam

do argumento de que o custo alto se dava por conta dos fretes, na tentativa de

„justificar‟ os preços abusivos e por não haver qualquer controle fiscal, chegando

a se pagar 50% a mais sobre o preço normal.

Essa distância também acarretava a ausência da administração

pública, causando o desequilíbrio social, o desinteresse e esquecimento por parte

das autoridades frente à impossibilidade de investimento de recursos públicos,

adicionado ao protesto por parte do povo, o que tornava, os 700 km de São Félix a

Barra do Garças, barreiras difíceis de serem superadas.

A escola foi um caminho seguro pelo qual se alcançava o interior das

famílias, entendendo seu cotidiano e suas dificuldades, cujo diagnóstico se tornou

possível a partir da análise de algumas expressões como: Merenda, só na época

das vacas gordas, uma fome crônica que, segundo a pesquisa sociológica feita

pelo professor Hélio de Sousa Reis, „comemos macarrão uma vez por ano‟, as

refeições normais do sertanejo eram três: café, almoço e janta. Os demais, de

maior poder aquisitivo, tomam café com pão, uma vez que a maioria degustava

café com „isca‟ (alguma mistura) ou „bolo de sopapo‟ (bolo de farinha), sendo que

muitos só tomavam café magro, sem „isca‟.109

Concluímos esse tópico entendendo que o desafio dos professores era

imenso, pois as fragilidades de formação, herdadas pelas famílias de meados do

século XX, eram de toda ordem, seja em relação aos aspectos familiares, de

109

Ibid., p. 23.

Page 96: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

96

moralidade, de inexistência de condições dignas de saúde, de alimentação, de

higiene, enfim, careciam de conhecimentos sistematizados possíveis de serem

obtidos caso tivessem tido acesso à educação escolar. É sobre esses temas que

continuaremos abordando a seguir.

1.5.2 - O como e os porquês da invenção em marcha

A fome da instrução não é menos deprimente que a fome de

alimentação110

.

O Brasil da década de 1970 tinha mais de trinta milhões de

analfabetos e, por conseguinte, outros tantos milhões de não votantes, que não

contribuíam oficialmente enquanto cidadãos eleitores, para o destino da Pátria.

O governo brasileiro e a escola daquele contexto haveriam de assumir

esse compromisso social. Tamanho era o impasse para o desenvolvimento do país

que o Ministro da Educação, Sr. Jarbas Passarinho, consagrou aquela década

como sendo a „década da educação‟. A preocupação tinha razão de existir, pois,

conforme relatório sobre o desenvolvimento humano do Programa das Nações

Unidas - PNUD/Instituto Pesquisa e Estatística - IPEA (1996) 111

, a população

brasileira por nível percentuais de educação pode ser observada na tabela que se

segue:

Tabela 2 – Evolução da distribuição da população por nível de educação (%) –

Brasil 1960 – 1990.

Nível de educação 1960 1970 1980 1990

Analfabetos 46 43 33 22

Fundamental 1ª fase 41 40 40 40

Fundamental 2ª fase 10 12 14 19

Médio 2 4 7 13

Superior 1 2 5 8

Fonte: Relatório sobre o desenvolvimento humano, 1996. Brasília: PNUD/IPEA, 1996.

110

Palavras contidas na carta do Papa Paulo VI sobre o desenvolvimento dos povos, aludindo

sobre os grandes problemas do mundo. Extraídas de matéria publicada na Folha Alvorada com o

título Alfabetização. Assim, o GEA iniciou suas atividades no mês de agosto de 1970, atendendo,

assim, “[...] o povo esquecido, desesperançado” pois a “fome de cabeça é maior que a fome de

barriga”. Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03

P3.3 111

PNUD/IPEA. Relatório sobre o desenvolvimento humano. Brasília: PNUD/IPEA, 1996.

Page 97: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

97

Como observado, 43% da população brasileira na década de 1970 era

composta de analfabetos, e, considerando que a maioria das famílias eram

composta de migrantes dos Estados do Nordeste brasileiro, esse índice poderia ser

ainda maior. Parece-nos que o quadro educacional da formação média e superior

no Brasil, durante a ditadura militar, era no mínimo vergonhoso.

Seguimos apontando as razões primeiras da edificação de uma escola,

pois, além do combate ao analfabetismo, ela se tornaria um instrumento de poder

da comunidade para manutenção da vida nos sertões e cidades do Araguaia-Xingu

mato-grossense. Assim, continuamos delineando a composição desse quadro da

vida real.

As dimensões do cotidiano tratadas nos tópicos anteriores

possibilitam-nos entender, com justeza, os porquês das notícias sobre a educação

encontrarem espaço privilegiado em quase toda edição da Folha Alvorada. A

escolarização ofertada pelas instituições de educação básica, semearia saberes

fundamentais para a necessária transformação da sociedade. Para tanto, as lições

escolares irradiariam noções de cidadania pautadas em problemas comuns à

região, e, em seu contexto, ganharia sentido a invenção de uma escola edificada

pelas famílias dos posseiros, e não aos „estrangeiros‟ de espírito, pois estes,

embrutecidos pela ganância, pela ignorância, adicionada à violência,

distanciavam-se cada vez mais do verdadeiro sentido da vida e sua ligação com a

terra.

Convém lembrar que a escola inventada no Araguaia-Xingu não era,

em definitivo, pensada para os filhos dos fazendeiros, não que eles fossem

proibidos de frequentá-la, mas, assim como seus pais, uma escola para indígenas,

posseiros e peões não atendia aos anseios dos filhos das elites, tampouco poderia

ser comparada às que eles tinham acesso nas grandes cidades. O deslocamento

dos detentores do capital para a região do Araguaia-Xingu somente ocorria com o

intuito de resolver algum problema que seus funcionários, gerentes, capatazes,

capangas e jagunços não conseguissem resolver, sendo que seus filhos só iam ao

sertão de avião, a passeio.

Para fins didáticos, sequenciaremos os fatos referentes à educação

narrados cronologicamente pelo periódico, objetivando entender o processo que

Page 98: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

98

resultou na edificação da escola inventada naquelas paragens e, por conseguinte,

analisar como esta instituição contribuiu para a resolução dos problemas das

pessoas do lugar. Espaços de luta, de vida e de morte.

Em dezembro de 1970, afirmou a Folha Alvorada que, para o Brasil, a

educação era tão importante quanto a Transamazônica, sendo ainda muito mais

importante do que um campeonato de futebol, pois se falava naquele ano em

acabar com o analfabetismo dos adultos, cujo intento era merecedor de todo

apoio, mas isso não se tornaria realidade na medida em que se tentasse exterminar

com o analfabetismo dos maiores, deixando as crianças sem estudo, por causa do

salário de fome pago aos professores, além dos atrasos no seu pagamento. Pode-

se, a partir desse relato, afirmar que era „expressivo‟ o número de analfabetos

entre os maiores de idade.

Portanto, não há como negar a existência de um elo entre os

problemas sociais vividos pelas famílias em relação à falta de acesso à educação

escolar e aos programas empreendidos pela prelazia, como se pode observar em

um de seus empreendimentos no Araguaia, conforme registros do ano de 1970:

[...] a procura de uma vida digna para todos os sertanejos. Com

boas condições alimentares e higiênicas para crianças e adultos;

ensino; terra e moradia garantidas. [...] a construção e o

funcionamento do Ginásio – mesmo sendo estadual – significou

desde o início uma árdua dedicação dos Padres da Prelazia,

assistida economicamente por amigos católicos da Espanha e,

em exemplar colaboração leiga nacional, pelos professores

Eunice Dias, Elmo Malagodi, Luis Gouvêa de Paula e Hélio de

Sousa Reis.112

Ao abordar a questão do trabalho missionário realizado por

convidados do Bispo Pedro Casaldáliga, no ano de 1970, dentre os quais ex-

seminaristas, universitários e recém-formados contrários à repressão militar, a

exemplo do prof. Hélio conforme (OLIVEIRA, 2016, p. 152-153), o qual afirmou:

Eu, como a quase totalidade dos companheiros que viemos no

início para o Araguaia, éramos ex-seminaristas [...] Em nossa

adolescência e começo da juventude, presenciamos e vivemos

os agitados anos 60. [...] o Golpe Militar de 1964 com a

112

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1970

A16.0.04 P.3. Sem destaque no original.

Page 99: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

99

implantação da ditadura. Em 1968 a revolta dos estudantes na

França [...] neste ano já estudávamos filosofia na Pontifícia

Universidade Católica de Campinas – (PUC-CAMP).

Participávamos intensamente do movimento estudantil:

passeatas contra a ditadura, contra o reitor muito autoritário [...]

acreditávamos no valor da vida religiosa, mas dentro do espírito

de pobreza, no compromisso com os pobres e a transformação

social.113

Outras razões afiançam a importância da Universidade de Campinas

na formação do corpo de professores atuantes no GEA e na própria Prelazia,

conforme noticiou a Folha Alvorada em dezembro de 1970:

Os professores do Ginásio de São Félix saem agora de férias

para São Paulo, de férias até certo ponto, porque eles durante as

férias cursam os seus estudos universitários, na „Anchieta‟

Paulistana. O Elmo e o Hélio voltarão para o ano próximo, com

mais outros 3 colegas. Porém o Luís e a Eunice ficarão lá.

Tchau, Luis e Eunice.114

Noticiava ainda a mesma edição que a prelazia recebeu visita do

querido colega Pe. Antonio Canuto, responsável pela turma dos professores do

Ginásio, lá em Campinas., que veio acompanhado do amigo Sr. Darcy Monassi.

Também chegaram os professores Luis Goya, que lecionava geografia e história

no ginásio115

. Seguimos mapeando o quadro docente do ponto de vista da

capacidade de desenvolver suas atividades, para em seguida pontuar sua

edificação.

O Ginásio Estadual Araguaia – GEA foi edificado em São Félix do

Araguaia, no ano de 1970, distrito de Luciara. Mas, o que nos arrebata a atenção é

o fato de os professores serem leigos, e a grande maioria ligada à Prelazia, que,

naquele ano de 1971, contava com sete sacerdotes. O bispo e quatro padres eram

espanhóis e claretianos. Os dois padres franceses de clero diocesano, pertencentes

à antiga Prelazia de Conceição do Araguaia, vinculavam-se à Prelazia de São

113

OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. A educação e a luta no Araguaia (Mato Grosso). Tese

(Doutorado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo, 2016, p. 152-153. 114

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1970

A16.0.07 P.1.6. Sem destaque no original 115

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1970

A16.0.07 P.1.7.

Page 100: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

100

Félix do Araguaia e residiam em Santa Terezinha, sendo um deles há dezesseis

anos, e outro há cinco.

Os registros da carta pastoral davam conta de que, em 16 de fevereiro

de 1971, chegaram a São Félix, para trabalhar na prelazia, cinco religiosas de São

José, e em 18 de junho foi incorporada mais uma irmã à comunidade. Elas se

dedicaram à catequese, à enfermagem e ao ensino e promoção humana em geral –

todas eram brasileiras. Tanto em São Félix como em Santa Terezinha havia leigos

brasileiros atuando no ensino ginasial, primário e na alfabetização. Em São Félix,

cinco leigos „universitários‟, e cinco em Santa Terezinha, um casal e três rapazes,

todos vinculados à prelazia.

A carta pastoral assinalou ainda que nos primeiros anos muitas foram

as visitas regulares, uma por mês, a toda a região, sertão, beira de rios e povoados,

com extraordinária despesa, mas em 1970 foram às mesmas interrompidas por

exigência do ginásio e pelo descontentamento de um serviço que se tornava

rotineiro, ineficaz e até alienante, mas com um ponto altamente positivo, o de

conhecer a região mais amiudadamente.

A ausência do Estado no cumprimento dos direitos constitucionais, em

especial no referente à educação pública, será mais bem abordada no segundo

capítulo da tese, momento em que traremos para o trabalho as políticas públicas

para a educação a partir da década de 1970. Percebe-se, nessa década, a

inexistência de investimentos em educação, problema crônico na região do

Araguaia-Xingu, ampliando o universo das gentes esquecidas no coração do

Brasil, cuja falta foi, no caso da obra do Ginásio Estadual Araguaia, suprida pela

prelazia.116

Assim, o conhecimento e experiência educacional da Igreja, e da

própria vivência pessoal do bispo e colaboradores serviram de fermento para a

decisão de enfrentamento do problema educacional, a construção do „Ginásio

Estadual Araguaia‟, de São Félix do Araguaia. Como afirma o bispo, “[...] uma

116

Segundo prestação de contas – do que é de todos – emitida pela Prelazia sobre a origem dos

bens e investimentos realizados, aponta que o antigo “Ginásio dos Padres” iniciou sua construção

em 3 de agosto de 1969, sendo inaugurado em 23 de maio de 1970. Afirmou ainda que o Ginásio

era estadual, mas o prédio e o professorado eram da Prelazia, sendo este dirigido por ela, até a

repressão que acabou com ele. O imóvel foi registrado no Cartório de Imóveis da Comarca sob o

n. 2.568, em 18 de maio de 1976.

Page 101: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

101

aventura quixotesca, necessária [...]”.117

Até aquele momento, poucas eram as

famílias que pretendiam que seus filhos cursassem o segundo grau, pois, se o

desejassem, haveriam que mandá-los a Barra do Garças ou Goiás, o que faria com

que as forças novas da juventude se distanciassem da família e do lugar,

provavelmente para não voltar mais. Entendia ser necessária a permanência dos

jovens para cumprir a renovação humana-social dessa juventude mais maleável,

mais aberta e crítica.

Afirmou o bispo que não pretendia que o Ginásio fosse da Prelazia,

tampouco da Congregação, mas, por conta das muitas demoras e irregularidades

do estado de Mato Grosso, pagando os professores com exíguos salários,

funcionou no ginásio as três primeiras séries, tendo um padre como diretor e uma

irmã secretária, portanto, sob a direção da prelazia.

Depois de cooperar com pressões e suplências ao ensino primário de

toda a região, em 1971, uma irmã foi diretora do Grupo Escolar de São Félix, e a

equipe de Santa Terezinha manteve os custos com um primário particular e um

curso de madureza ginasial noturno, vencendo as manobras da prefeitura de

Luciara, que iremos descrever ainda no presente capítulo.

Assim, a pedra fundamental da Escola no Araguaia-Xingu foi plantada

em São Félix, uma escola edificada para ser mantida pelo Estado, o que ocorreu,

porém de maneira fragilizada, pela ausência de investimentos necessários da parte

do poder público. Isso foi uma prova de que Mato Grosso não tinha, naquele

momento, nenhum interesse em atender as demandas por educação, tão

necessárias para a vida nos sertões e cidades do Araguaia-Xingu.

1.5.3 - A Educação entre a cultura de resistência e a libertação do povo

Nós – Bispo, padres, irmãos, leigos engajados – estamos aqui,

entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo, real e concreto,

marginalizado e acusador.

Pedro Casaldáliga118

117

CASALDÁLIGA. Pedro. Carta Pastoral – Uma igreja da Amazônia em conflito com o

latifúndio e a marginalização social. P. 26. 118

CASALDÁLIGA. Pedro. Op. cit., p. 28.

Page 102: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

102

Neste tópico e de forma sintética apresentamos como a prelazia, por

iniciativa própria, inaugurou o caminho que seria percorrido, mesmo que

vagarosamente, pelo poder público, na edificação de ginásios no Araguaia-Xingu,

com o propósito de atender a formação escolar aos jovens que concluíam os anos

iniciais do ensino fundamental. Ainda sobre essa questão, discorreremos sobre a

origem do recurso aplicado na edificação do Ginásio Estadual Araguaia. Também

revelaremos a existência de uma ruptura entre a Prelazia e os „tubarões‟,

proprietários das grandes fazendas que se instalaram na região, cujo desiderato

custou um preço imensurável para os religiosos, bem como para os professores e

seus projetos socioeducacionais, a serem empreendidos por meio das escolas.

Essas duas dimensões serão retomadas nos tópicos a seguir desse capítulo.

A apresentação do registro de inauguração do Ginásio Estadual

Araguaia, no dia 23 de maio de 1970, anunciava que “[...] a educação é o grande

meio de libertação do povo”, proclamando ainda que essa unidade de ensino –

GEA veio abrir novos horizontes para São Félix e cidades circunvizinhas. As

despesas para sua construção importaram em CR$ 70.040,00 (setenta mil e

quarenta cruzeiros), fruto de doações. Dentre os doadores estavam às fazendas

vizinhas, até então sem atrito com a Prelazia, conforme a Tabela 3:

Tabela 3: Recursos aplicados na edificação do GEA e seus respectivos doadores

Doadores Valor em CR$

Doações de amigos da Espanha e do Brasil 42.365,00

Suiá-Missú (+ limpeza do terreno, serviços de caminhão e parte da

madeira do telhado)

5.000,00

Guanabara 500,00

3 Marias 500,00

Agropecuária Roncador 500,00

Francisco Vilela 500,00

Outras fontes (Leilões) donativos dos Padres Claretianos, CNBB, CRB – Confederação

dos Religiosos do Brasil, organização „Adveniat‟.

Fonte: Folha Alvorada. Prelazia de São Félix do Araguaia (1979) A16.0.64 P.01.14.

Ao observar o quadro, percebe-se que o maior volume de recursos

aplicados na construção do Ginásio Estadual Araguaia veio de doações da

Espanha (quarenta e dois mil, trezentos e sessenta e cinco cruzeiros), seguidas

pelas contribuições da Agropecuária Suiá-Missú (cinco mil cruzeiros e mais parte

Page 103: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

103

da madeira para o telhado e serviços diretos), das Fazendas Guanabara, Três

Marias, Roncador e Francisco Vilela (quinhentos cruzeiros cada). Os demais

recursos foram obtidos em leilões, donativos dos padres claretianos, da

Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Confederação dos

Religiosos do Brasil (CRB) e da organização Adveniat, além do apoio do povo da

cidade. As carteiras escolares foram doadas pelo Colégio Claretianos de Rio Claro

e também graças à doação do Colégio de Itu, das Irmãs de São José.

Em 1975, depois de ter sido alugado ao estado de Mato Grosso,

deixou de ser ginásio, passando a servir aos clubes de mães, jovens e meninos,

com aulas noturnas de alfabetização, complementação, reuniões, encontros e

assembleias. Em 1977 foi ampliado e passou a servir como centro comunitário,

atendendo à cultura, beneficência, promoção humana e serviços pastorais da

prelazia.

Foi nesse mundo marginalizado e acusador que o Ginásio Estadual do

Araguaia inaugurou a edificação da primeira escola vinculada ao estado de Mato

Grosso, embora, como percebemos, essa era uma forma de cobrar a

responsabilidade do Estado para com a educação das famílias da região, viventes à

margem dos programas e serviços públicos, mas também se revestiu de um tom

acusador, por conta de ser o ano de 1971 o da publicação da „declaração de

guerra‟ para com os opressores „tubarões‟.

Assim, concluímos o tópico afirmando que a construção do Ginásio

Estadual Araguaia trouxe importantes ganhos para toda a região, não só por

atender a educação escolar ginasial, aos filhos das famílias do lugar, mas

principalmente por inaugurar outras dimensões da educação até então inexistentes.

Trata-se do atendimento noturno à alfabetização de adultos, que, em 1975 atendeu

naquele espaço o Movimento Brasileiro de Alfabetização Mobral – MOBRAL.119

.

Ali também foi cedido espaço para o primeiro curso de férias para a

formação de professores, em 1978, inaugurando um projeto maior que resultou,

em finais da década de 1980, no INAJÁ e, em 1990, nos cursos de formação

superior „Parceladas‟ da UNEMAT – programa de formação de professores em

serviços, os quais, haveremos de retomar no quarto e último capítulo da narrativa.

119

O MOBRAL foi instituído pelo Decreto n. 62.445, de 22 de março de 1968.

Page 104: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

104

Voltaremos nossas lentes para entender quem eram os escolares,

professores e alunos, e quais desafios cercavam os primeiros na arte de ensinar

nas escolas do Araguaia-Xingu.

1.6 - Os desafios do „ser‟ escolar no Araguaia-Xingu na década de 1970

Dedicamos esse tópico para compor o quadro de alunos por escola,

seguindo a publicação da Folha Alvorada e seus respectivos „lugares‟, mas

igualmente revelar quem eram seus professores. Embora esse quadro seja uma

constante ao longo da narrativa, pois a categoria professor habitou incontáveis

matérias no periódico, haveremos de saber quem foi o professor de história, como

e que história ensinava. Inicialmente lancemos nossas lentes sobre sua formação.

O cenário mato-grossense da década de 1970, no tocante à formação

de professores de nível superior, era bastante incipiente, como percebemos na

Tabela 2 (tópico 1.5.2), uma vez que só 8% da população eram formadas em nível

superior, lembrando que esse era a somatório dos habilitados em todos os cursos,

portanto, específico na área de educação e esse índice cairia drasticamente. Tal era

a ausência de políticas públicas para formação superior que o estado de Mato

Grosso só pôde contar com a Universidade Federal, criada em dezembro do

mesmo ano de 1970, pela Lei n. 5.647, a partir da fusão da Faculdade de Direito

de Cuiabá, criada em 1952, conforme Siqueira et al. (2011)120

, tornando-se

reconhecia pelo Decreto Federal n. 43.449, de 3 de dezembro de 1959.

Na mesma esteira foram incorporados o Curso de Filosofia, instituído

pela Lei n. 1.754, de 9 de novembro de 1962, estruturado em Filosofia, Ciências e

Letras, e implantado a partir do ano de 1966, com os cursos de Matemática,

História Natural, Geografia e Letras.

Não bastasse às dificuldades docentes nas escolas interioranas de

Mato Grosso, por conta da falta de infraestrutura, pela inexistência de oferta de

cursos de licenciatura, tampouco o magistério, somavam-se os atrasos constantes

no pagamento dos salários dos professores, conforme anunciou a Folha, em

120

Universidade Federal de Mato Grosso 40 anos: trajetória, personagens e/Organizadores,

Elizabeth Madureira Siqueira, Neide Souza Dourado e Roberto Silva Ribeiro. – Dados eletrônicos.

– Cuiabá: Delft, 2011.

Page 105: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

105

outubro de 1970: “Várias professoras heroicas deste sertão ficam esperando o

pagamento durante meses e meses”.121

Ao tempo em que afirmava serem os professores do curso primário

peças fundamentais na formação e progresso de uma nação, acusavam ser

incompreensível o fato de o salário mínimo de Mato Grosso ser de apenas CR$

140,00 (cento e quarenta cruzeiros) e que, com esse recurso, os pobres professores

não chegavam a ganhar sequer um salário mínimo. Assim, não nos surpreende a

falta de profissionais para atuar em educação, posto que os incentivos

inexistissem.

Talvez o termo heroico não fosse tão descomedido, pois, conforme a

carta para o desenvolvimento dos povos, emitida pelo papa, acenava para o

desequilíbrio entre os que tinham e os que nada tinham, cuja diferença poderia ser

compreendida se colocasse a humanidade numa balança: um reduzido grupo de

pessoas privilegiadas – ricos, poderosos, exploradores, tendo estes o prato cheio; e

a turma infinita dos pobres – sem recursos, doentes, sem instrução, sem moradia

digna, sem-terra – incluindo o professor, todos de prato vazio.122

Faço uso desta citação para afirmar que, para transformar esse quadro,

dentre as alternativas estava à instrução, mas, seguindo a inquirição feita naquele

periódico: como fazer isso se, conforme dizia um sertanejo da Paraíba “Uma

cabeça num corpo com fome só pensa em comer!” 123

Alertava a 2ª edição da Folha Alvorada que, perante a situação de

injustiça do „nosso‟ próprio sertão, o indivíduo não pode ficar dormindo ou

acordado comodamente, sem movimentar, ou levantado, em pé, caminhando com

coragem e em união com os outros124

, isso porque existiam alguns latifundiários

de prato cheio e muitos pobres sertanejos retirantes de prato vazio.

Ao conclamar o povo para assumir uma postura proativa em relação

aos seus direitos frente às injustiças, por ser final de ano e encerramento do letivo,

o periódico aproveitava para parabenizar alunos e professores do ginásio, dos

grupos de Luciara, Pontinópolis, Lagoa e das escolinhas espalhadas por todo o

121

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1970.

A16.0.05 p. 4-4. 122

Ibid. 123

Ibid. 124

Ibid.

Page 106: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

106

sertão. Dizia ainda que em Santa Terezinha não havia ginásio, mas, mesmo assim,

o povo poderia continuar seus estudos após terminar o primário, por ter

principiado um curso de madureza ginasial, dirigido pelos professores Francisco e

Rosa.

Em 1971, o ginásio de São Félix começou com quatro turmas: 3ª série,

2ª série, e duas salas de 1ª série. Já o primário funcionava em três períodos,

manhã, tarde e noite, além de um curso especial de educação de adultos

(MOBRAL). Em seguida, Pontinópolis, Santo Antônio e Lagoa conseguiram

finalmente ter escola. No ano seguinte, o número de alunos no grupo escolar São

Félix alcançava o montante de 610 alunos frequentes, funcionando em três

períodos, incluindo o noturno, com luz elétrica, por iniciativa dos senhores

Telesforo e Vitor. Para melhor entender como estavam organizadas as escolas e

seus respectivos alunos, montamos a tabela que se segue:

Tabela 4: Escolas e respectivo número de alunos matriculados

Local Número de alunos matriculados

Grupo de São Félix do Araguaia 610 (1971)

Pontinópolis 160 (1972), 280 (1978)

Serra Nova 230 (1972) 360 (1977)

Santa Terezinha (6 professores)

Porto Alegre (a escola foi derrubada em

1971 pela Frenova, mas o professor Altir

está ensinando na nova Escola que o povo

levantou).

252 alunos (1978), no meio do ano já

eram 342 com nove professores tendo 38

alunos cada professor (A16.0.56 p.6.14)

Cascalheira 320 (1978)

Canabrava – tinha em 1978 mais de 200

famílias de posseiros. Em 1979 já eram

300 famílias

Desde 1975 tem uma escolinha

construída pelo povo e dirigida pela

equipe pastoral da Prelazia e algumas

moças do povoado. (A16.0.57 p.6.12) Fonte: Elaboração do Autor, com base na Folha Alvorada (várias edições).

Os dados foram elaborados a partir de informações obtidas entre os

anos de 1970 a 1978. Ao observar os números extraídos a partir das matérias da

Folha Alvorada é possível evidenciar que nem todos os lugares alcançaram duas

ou três sequências, para que fosse possível comparar, mas, no caso de

Pontinópolis, de 160, em 1972, passou para 280 alunos, em 1978; Serra Nova, de

Page 107: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

107

230, em 1972, passou a 360, em 1977; Porto Alegre do Norte, de 252, no início do

ano de 1978, em meados do mesmo ano já contava com 342.

Pautado nesse quadro é possível afirmar que, embora as condições

críticas de sobrevivência, por conta das dificuldades enfrentadas pelas famílias,

elas permaneciam e gradativamente matriculavam seus filhos nas escolas. Isso

está diretamente ligado ao fato de que a união dos núcleos familiares nas

comunidades, organizando-se em mutirão, possibilitou a realização de

estabelecimento de condições básicas para que seus filhos pudessem estudar.

Concluímos esse tópico na certeza de que, de posse dessas

informações, foi possível ter ideia sobre a invenção da escola em suas dimensões

humanas e física, muito embora essas questões estarão melhor tratadas a seguir.

1.7 - Entre a alegria de ler, escrever e a tristeza de contar: 200 cruzeiros por

cabeça de gado humano

Estamos condenados ao Latifúndio capitalista. Morra o homem, viva

o boi!

Casaldáliga, 1973125

Tomar a correspondência de autoria de Dona Isaulina, ao lado, serve-

nos de base para enaltecer aspectos importantes da invenção da escola edificada

no Brasil Central, no início da década de 1973. Trata-se de um documento

histórico, à medida que a consideramos fruto de uma ação transformadora, seja no

sentido de um simples agradecimento, seja por avaliar suas dimensões de poder

no complexo cenário vivenciado por Dona Isaulina.

Muito mais que uma simples correspondência, a carta representou sua

ruptura com uma herança nada agradável, não ser alfabetizada, além de não

dominar os códigos e linguagens escritos a impedia de deixar esse importante

registro para que pudéssemos, de forma singular, conhecer sua conquista e

perceber que, a partir dessa obtenção, poderia dialogar com seus contemporâneos,

utilizando da leitura e escrita na produção de uma carta, muito usual para a

circulação da mensagem à distância naqueles tempos.

125

CASALDÁLGIA, Pedro. Conflitos de terra e carrancismo em Campos Limpos, Mato Grosso.

1973 A19.2.06 P.6.6.

Page 108: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

108

O mesmo significado deve ser dado à tarefa do historiador,

responsável por oferecer sentido, tendo em vista produzir mais que uma mera

descrição126

, mas construir narrativa que permita a existência do sujeito, não

somente enquanto unidade na diversidade, mas sua ação política,

independentemente da condição social, idade, sexo, origem, local de residência,

cidade ou sertão, é abrir um diálogo, construindo uma narrativa enquanto fruto de

sua invenção.

A complexidade da relação estabelecida naquelas paragens

contribuiria para um conhecimento histórico a reboque de narrativas altruístas, ou,

em contrário pessimista, e, se assim o fosse, se filiaria às intencionalidades

induzidas pela necessidade em defender este ou aquele segmento social. Não

sendo esse nosso propósito, mesmo que esta seja uma narrativa engajada, apesar

dos esforços aplicados para não incorrer em imprecisões.

Nesse sentido,

procuramos revelar a

riqueza do cotidiano

estabelecido por seus

agentes a partir de seus

registros, os mais singelos,

a exemplo da escritura de

uma carta, um quadro de

pesquisa, uma matriz

curricular, uma matéria

fazendo alusão às datas

cívicas, procurando revelar

uma sequência de dados

tecidos no „sentido‟ da

invenção da escola desde

seus primórdios, a

exemplo do Ginásio

Estadual Araguaia.

126

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Traduzido por Maria

Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990, p. 63.

Page 109: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

109

Igualmente, perceber algumas pedras de tropeços durante a repressão

militar ao caminhar dos escolares representa mais um importante tijolo da

invenção da escola. Para tanto, requereu ampliação do leque das fontes

documentais e, por conseguinte, sua análise.

Seguindo esse propósito, serviremos de uma carta-denúncia escrita

pelo Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia sobre o mesmo „lugar‟ e ano em

que Dona Isaulina redigia sua mensagem. Penso que, ao entender a rede de

sociabilidades traçada por meio da análise dos documentos, entendendo-o em seu

contexto, possibilita ampliar a lente sobre esse lugar - chamado vulgarmente de

„tirolândia‟ (nos campos limpos – Ribeirão Cascalheira).

A carta-denúncia foi escrita pelo Bispo Pedro Casaldáliga, sob o título

Conflitos de terra e carrancismo em campos limpos, município de Barra do

Garças-MT127

. A trama envolve trezentas e cinquenta famílias residentes naquelas

paragens, sendo 85% posseiros „tocados‟ do Norte e do Centro do país pelo

latifúndio, e que aqui viviam à espera da reforma agrária.

Seguia a carta: “O clima de far-west (sic) tomou aquele lugar,

iniciando pelas arbitrariedades policiais e pelos despejos de peões”. Ao tempo

em que denunciava o despejo dos peões, alertava para o tráfico de pessoas, cuja

prática alimentava a maquinaria de exploração:

[...] só no último mês foram mais de mil e quatrocentos que

passaram pela pequena „cidadezinha‟, grande parte deles foram

levados para a Fazenda Bordon S. A. traficados por um

marreteiro que, cobrava 200 cruzeiros por cada cabeça de gado

humano trazido de Santa Helena do Estado de Goiás.128

Denunciou o Bispo que a cada dia aumentava a insegurança pela falta

de punição aos indivíduos perigosos, a exemplo dos capangas e pistoleiros

trazidos pelos senhores Zacarias Guedes e Paulo Guasca e seus filhos. Eles,

mesmo não apresentando qualquer título da terra, vinham ameaçando e

expulsando os posseiros, até à bala.

127

CASALDÁLGIA, Op. cit. 128

Ibid.

Page 110: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

110

Na mesma carta é possível perceber que a professora Ilda, citada na

missiva da senhora Isaulina e em passagens anteriores, contribuía para que as

famílias dos posseiros tivessem acesso a informações vitais para sua permanência

na terra, como fora anunciado pelo bispo sobre a viagem empreendida por

membros da equipe da prelazia ao povoado de Ribeirão Cascalheira, como bem

expõe o relato:

No dia 15, nós, Pe. Manuel e Ilda, fomos de tropa até a casa do

posseiro Bento – 6 léguas. Lá nos esperavam outros posseiros,

moradores da gleba do seu Z. (sic) os outros moradores do

Gengibre e São João. Todos esses posseiros nos colocaram a

par da problemática cada vez mais tensa que existe entre eles e

os que se dizem „donos‟ daquelas terras [...] nós tentamos

esclarecer-lhes o Decreto-Lei número 70.430, assinado pelo

Presidente da República no dia 17 de abril de 1972.129

A partir desse relatório produzido pela equipe da prelazia e reforçado

em carta circunstanciada pelo bispo, é possível afirmar a existência de uma ação

direta da escola enquanto instituição, representada pela professora Ilda e pelo

padre Manuel. O mesmo fato foi assim narrado pelo Bispo em seu diário: “E1

lugar está em clima de espanto. Zacarías, el 'carrancista', el cacique local, em

conflicto con unos posseiros y ofendido en sus intereses egoístas”.130

Observou o bispo que o carrancista e cacique local, querendo impor

sua verdade a qualquer custo, em desacordo com a orientação que os residentes

daquele sítio estariam recebendo, do Padre Manuel, instruções de como deveriam

agir diante daquele imbróglio.

Aludia aos direito dos posseiros em defesa de sua permanência na

terra, pois o Decreto-Lei, assinado pelo Presidente Emílio G. Médici, dentre

outras prerrogativas, em seu Artigo 2º assegurou às pessoas domiciliadas na área

dos empreendimentos “[...] formem elas ou não, coletividades urbanas, não

poderão ser deslocadas de suas moradias ou da posse de terras que por elas

cultivadas sem audiência prévia do Ministério da Agricultura”. O referido Decreto

reforçava o disposto no artigo 2º § 3º da Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964

129

Ibid. 130

Diário de Pedro Casaldáliga. Yo creo em La Justicia. Registro feito no dia 19 de março de

1972, p. 30.

Page 111: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

111

(Lei de Terras), “A todo agricultor assiste o direito de permanecer na terra que

cultive, dentro dos termos e limitações desta Lei, observadas sempre que for o

caso, as normas dos contratos de trabalho”.131

Essa ação de esclarecimento cumpriu duplamente seu objetivo, seja na

orientação às famílias para não se tornarem vítimas dos „grileiros‟, seja no sentido

de afirmar sua posição frente às violências praticadas pelos malfeitores,

evidenciando a contradição do Estado frente à questão, que, requeria reagir aos

desmandos, como afirma a carta denúncia:

[...] após a visita, o seu Zacarias começou a criar problemas

conosco iniciando uma campanha de difamação, no Patrimônio,

contra o bispo Pedro, o Pe. Manuel, as irmãs Beatriz, a

Madalena e a professora Ilda: Seríamos comunistas e

subversivos, seríamos imorais, o Padre não seria Padre etc.132

Portanto, lutar pelo direito das famílias à luz da legislação, orientar e

formar o cidadão para que pudesse defender-se dos opressores, naquele caso o

senhor Zacarias, tornou-se razão suficiente para que estes fossem chamados de

subversivos, de não serem padres, mas sim comunistas.

Dessa feita, a situação tornou-se ainda mais tensa naquele povoado e

sertão, explodindo por ocasião da resolução do problema da escola e das

professoras. Sem consultar a ninguém, o senhor Zacarias foi até Barra do Garças,

sede do município, para apresentar quatro professoras, inclusive sua própria filha,

para substituir as que ali exerciam suas funções.

Os pais, desaprovando essa atitude, fizeram uma reunião, estando o

senhor Zacarias presente, com o objetivo de pedir ao Secretário de Educação a

nomeação da Ilda, como professora e coordenadora da escola local. Mesmo diante

do descontentamento do senhor Zacarias e de suas inúmeras ameaças, 77

moradores assinaram o documento e, posteriormente, enviaram-no ao secretário

em Barra do Garças, por intermédio de representante.

Descontente com a situação, no dia 13, por volta das 14 horas, o Sr.

Zacarias foi procurar o Pe. Manuel, que estava sentado no alpendre da casa e, de

131

CASALDÁLGIA, Pedro. Conflitos de terra e carrancismo em Campos Limpos, Mato Grosso.

1973 A19.2.06 P.2.6. 1973 A19.2.06 P.2.6. 132

Ibid.

Page 112: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

112

forma grosseira, inquiriu-o sobre uma carta do bispo ao posseiro Bento. O padre,

por sua vez, tentou, com calma, explicar-lhe, mas de nada adiantou, o padre foi

empurrado e derrubado de costa para a rua, momento em que duas mulheres,

Beatriz e Madalena, ao ouvirem os gritos, colocaram-se entre a vítima e o

agressor, que já estava puxando seu revolver 38. Mas, diante da atitude corajosa

das mulheres, saiu murmurando palavras ininteligíveis, evento anunciado na

página 2 do citado relatório.133

Em uma incursão sobre o ocorrido e seus desdobramentos, é possível

perceber que a atuação da escola não só foi manifesta pelos movimentos de

resistência em prol da permanência das famílias na terra, como também, por outro

lado, seu domínio serviria estrategicamente para neutralizar a ação proativa dos

professores, nomeando outros em seu lugar. O conflito e a disputa foi o prato do

dia.

De certa forma, embora o Decreto-Lei ordenasse possíveis avanços

em relação ao direito à propriedade pelos posseiros, tornava-se impraticável sua

aplicação, pois o sistema sofisticado de opressão adotado no latifúndio capitalista

sobrepunha ao direito das famílias do lugar, tendo em vista que o problema dos

posseiros se tornou um pesadelo social, sob o discurso dos malfeitores, apoiados

pelo cabo Messias Martins dos Reis e do soldado João, da Polícia Militar, que

passaram a caminho de Luciara anunciando publicamente que iriam trazer o

capitão de Barra do Garças e o Exército, todos para apoiá-los, porque o povo

estava contra. Falava ainda “[...] que se tratava de um prodigioso complexo de

Segurança Nacional, e que acabara de descobrir „Guerra Civil‟ e „Guerrilha‟ e os

culpados eram os amigos do Padre, os verdadeiros ofensores”.134

E os amigos dos

padres eram os professores ou pessoas que se levantavam em sua defesa.

Em meio ao cenário de conflito aberto, entre grileiros, peões e a força

estatal, representada pela polícia a serviço dos fazendeiros, a escola de educação

básica se fazia presente, marcadamente responsável por contribuir no domínio da

leitura e da escrita, com o sentido de cotizar a resistência das famílias dos

posseiros ali residentes, cujas condições continuarão sendo apresentadas a seguir.

133

Ibid. 134

Ibid.

Page 113: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

113

1.8 - Em contextos „integração‟, „segurança‟ e „desenvolvimento‟ que ensina a

Escola senão a subversão?

Nesse tópico abordaremos as estratégias discursivas dos opressores

para justificar as violências por eles praticadas, a exemplo do Sr. Zacarias contra o

padre Manuel.

Entre os anos de 1973 e 1974, por conta das denúncias publicadas

pelo Bispo, o que resultou em diligências à sede da Prelazia em São Félix, onde

ocorreu sequestro de documentos em 1974, mas, mesmo diante da repressão, a

Folha Alvorada continuava cumprindo a importante tarefa em anunciar as

mazelas vividas pelas comunidades, para que seus filhos pudessem estudar.

Em junho de 1974, o jornal anunciava o caos na escola e a cabra em

Serra Nova:

[...] a escola está caindo, paredes já não tem, no inverno se

chovia, não havia aula, no verão, não dava para suportar o sol‟.

Entretanto, „[...] uma cabra achou o lugar bem agasalhado para

aí parir seus cabritinhos, quem sabe se para aprenderem os

alunos, na própria escola, os mistérios da vida.135

Bem defronte às ruínas da Escola, fora colocado, por um grupo do

Projeto Rondon, um mastro de bandeira. Na base dele havia uma significativa

inscrição: Integração, Segurança e Desenvolvimento. Ao que parece, o slogan não

servia para todos, pois já estavam na segunda metade de junho e a Escola ainda

estava com suas atividades funcionando de forma precária. No início do ano, o

secretário de educação de Barra do Garças, Sr. Juracy, havia mostrado para a

diretora da Escola o recibo da verba destinada à construção da nova sede escolar,

onde seria construída e quando estaria pronta. Observava ainda que até o giz para

escola tinha que ser arrumado por particulares.136

A esperança fazia emergir, em tom de denúncia, as palavras de Pedro

Casaldáliga sobre a absolvição do Padre Francisco Jentel, de uma condenação

injusta cometida pela Auditoria Militar de Campo Grande, do crime de

„subversão‟, „comunismo‟ e „guerrilha‟ a que tivera sido acusado Jentel, em julho

135

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974 A16.0.17 P.3.4. 136

Ibid.

Page 114: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

114

de 1974, pelo Superior Tribunal Militar de Brasília. Porém, a causa do Padre era a

causa do povo, que assistia seus direitos sempre ser desrespeitados, tendo sido o

citado padre o espantalho da subversão, porém, sua absolvição não resolveu o

verdadeiro problema, afirmava Pedro Casaldáliga.137

Anunciava ainda que em toda a Ilha do Bananal, em Santo Antônio,

Barreira Amarela e beira do rio das Mortes; no Ribeirão Bonito e na Cascalheira,

no Barreiro, Piabanha e Matinha; em Porto Alegre; em Serra Nova e sertões

contíguos; na Chapadinha; e nas proximidades de Luciara e São Félix “[...] o povo

sertanejo ou posseiro não tem terra nem perspectiva de um futuro humano”.138

Em março de 1975 foi noticiada que a triste e velha história

continuava – os índios que não morreram no primeiro choque contraíram doenças

e vícios adquiridos das tais frentes pioneiras, ou foram tangidos como rebanhos

para áreas estranhas, precisando fazer alarde para conseguir sua reserva de terra.

Certamente, estava se dando o registro das ações de deslocamento dos povos

Xavante, cujas terras atravancavam a implantação dos projetos das colonizadoras,

já mencionados anteriormente.139

As ameaças feitas diretamente ao bispo e por boatos espalhados em

Cuiabá, Barra do Garças e São Félix sobre sua possível expulsão, segundo matéria

publicada em outubro de 1975, “[...] é para esmorecer os defensores dos direitos

pela terra, escola, saúde e melhora de vida”.140

E que, desta vez a repressão seria

pior do que fora em 1973, contando com a presença de vários búfalos que

carregariam todos os amigos dos padres. Os búfalos a que se refere o documento

trata-se da aeronave militar, utilizada na região pelas forças armadas.

Buscamos tais informações para afirmar que as escolas e a educação

básica, estruturadas para atender a população, que não era outra senão a dos filhos

das famílias ali residentes – posseiros, indígenas, peões –, igualmente as colocava

em suspeição, haja vista que boa parte dos professores comungavam com o

ideário da igreja católica ali defendidos sob a liderança do bispo Pedro

Casaldáliga.

137

Ibid. 138

Ibid. 139

Ibid. 140

Ibid.

Page 115: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

115

Os boatos veiculavam informações maldosas, como a de que iriam

fechar a igreja, a escola e prender todos os que estivessem dentro, por serem todos

os amigos dos padres considerados igualmente comunistas.141

As incertezas e ameaças contra o povo e aos professores colocavam

em dúvida a continuidade dos trabalhos educacionais nas principais escolas do

Araguaia-Xingu, e essas ações tinham, em grande medida, o apoio do Estado, e

em muito ultrapassavam as fronteiras não indígenas. A exemplo, citamos uma

visita ameaçadora na aldeia Tapirapé, no dia 29 de setembro de 1975, momento

em que a Dra. Giselda, geóloga, o Dr. Alceu e o Sr. Quirino, agrimensor, todos da

Fundação Nacional do Índio, acompanhados do Dr. Eduardo, um dos diretores da

Companhia Tapiraguaia, e do chefe do Posto Indígena, Sr. Juraci Andrade, que,

de forma desrespeitosa e agressiva para com os índios, as irmãzinhas e o casal de

professores da aldeia, foram ali para impor arbitrariedades, criando confusão e

gerando medo. Tomaram por calúnia à proposta da demarcação da Reserva

Tapirapé, apresentada à FUNAI pela Assessoria para Terras Indígenas do

Conselho Indigenista Missionário (CIMI).142

Durante a visita, que parecia muito mais uma diligência policial, os

índios foram ameaçados de ser transferidos para o Parque Nacional do Xingu,

caso não aceitassem a demarcação imposta. Todavia, diferente do que se

pretendia, um membro da aldeia reagiu afirmando que eles “[...] não eram criação

da FUNAI para ser levados de um lado para outro e que os tapirapé iriam morrer

ali mesmo”.143

De forma contundente, os representantes do Estado afirmaram que a

missão, representada pelas irmãzinhas há mais de 20 anos, deveria se preocupar

com o trabalho espiritual, sem se envolver com os problemas da terra.

Aquele episódio foi marcado por duelos de titãs, tendo, de um lado, os

representantes do Estado, a serviço do poderio dos tubarões, e, de outro, os

defensores dos menos favorecidos. Em resposta à afirmação do representante da

Tapiraguaia sobre a existência do parque do Araguaia para os Tapirapé, na Ilha do

Bananal, e que ali tinha mato suficiente para eles. As irmãzinhas intervieram

141

Ibid. 142

Ibid. 143

Ibid.

Page 116: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

116

dizendo que a terra de uma aldeia não era somente para o cultivo imediato, mas a

base para manter os valores da cultura de um povo, e que enquanto os

representantes do latifúndio olhavam para a produção, eles “[...] viam antes o

homem”.144

Dra. Giselda disse textualmente: “Vocês escutam o que vou dizer: Em

nome do Presidente da FUNAI, Dom Pedro está proibido de entrar aqui...”. De

pronto, os professores disseram que eram sustentados pelo bispo da prelazia no

trabalho na aldeia. A

Dra. Giselda

comentou com um

colega, segundo

relato: “Quando o

diabo não aparece,

manda um

secretário”.145

Mais uma

razão para afirmar

que a oferta da

educação básica para

os indígenas, naquele

momento, se dava com o apoio da prelazia, tendo à frente docentes leigos.

Percebe-se ainda que naquele tempo, embora os meios de

comunicação ainda encontrassem barreira da distância, por não terem redes de

telecomunicação e tampouco Internet, com os dispositivos digitais, a prelazia

exercia função disseminadora das informações, por meio do periódico Folha

Alvorada, compartilhando reflexões importantes com a população, fosse à das

144

Ibid. 145

Parece-nos que a esfera estatal não planejava atender à demanda da sociedade formada no

Araguaia-Xingu, pois, em junho de 1974 o Governo estadual, por meio do Secretário de

Administração, Lenine Campos Póvoas, e Secretário de Educação e Cultura, Prof. Antônio S.

Areias, publicaram um concurso público para educação com 1.800 vagas, todavia as cidades

contempladas seriam: Cuiabá, Campo Grande, Corumbá, Dourados, Três Lagoas, Rondonópolis,

portanto, nenhuma vaga foi direcionada para as cidades do Araguaia. Somadas às outras situações

já apresentadas, não fosse à ação direta da Prelazia na defesa das famílias de terem acesso à escola

no Araguaia-Xingu, certamente continuariam alimentando o batalhão de analfabetos espalhados

nos rincões do Brasil. (Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 4ª P.4.52.6).

Page 117: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

117

cidades, povoados ou sertões, a exemplo da crítica feita à falta de proteção aos

lavradores, conforme noticiou no mês de outubro de 1975:

[...] o problema desta região é mesmo a terra. E este é o

problema do Brasil. Nunca devemos esquecer que 10 milhões

de famílias brasileiras ligadas à agricultura estão sem terras, ou

sem terra suficiente para sobreviver. A agricultura no Brasil

ocupa 13 milhões de pessoas, a indústria ocupa só 5 milhões.

Entretanto o número de lavradores protegidos pelas Leis

Trabalhistas é menor do que o número de operários, bem ou

mal amparados, por essas Leis.146

Observa-se que, além de conseguir manter uma rede de comunicação

regional, veiculava informações sobre a conjuntura nacional, possibilitando que

todos pudessem ter a dimensão da importância da agricultura no Brasil. Também

reivindicava atenção para o fato de os lavradores daquele espaço territorial não

serem protegidos pelas leis trabalhistas. A exemplo da Figura 4, tratava-se de uma

matéria sobre a greve nas escolas do Paraná e de São Paulo.

Finalizamos esse tópico sem a pretensão de exaurir a temática, pois, a

pecha de subversivos, guerrilheiros e comunistas pareceu-nos uma tática

discursiva para liquidar o direito de reivindicar „direitos‟, seja em defesa da terra

dos índios, ou de sua posse, e em defesa de melhores condições de trabalho.

Assim, seguimos o processo histórico que resultou no princípio da edificação da

escola no Araguaia-Xingu mato-grossense, na década de 1970, abordando

algumas tramas vividas em seu cotidiano.

1.8.1 - Que os olhos passem a ver aquilo que realmente precisamos ver: formação

política, greve, subversão e outros episódios

Sobre o movimento reivindicando direitos, organizado pelos

professores, o periódico Alvorada, em setembro de 1978, noticiou a greve de

professores que assolava os estados do Paraná e São Paulo, afirmando que não

eram somente os trabalhadores das fábricas que reclamavam baixos salários, visto

146

Ibid.

Page 118: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

118

que as péssimas condições não caracterizavam só na região do Araguaia, onde as

coisas andavam duras para os professores.

Compartilhava ainda que os docentes, quando entrassem em greve,

deveriam escrever às autoridades e aos pais de alunos explicando os motivos da

paralização: baixa qualidade do ensino, salário reduzido e más condições das

escolas. Pelas razões anunciadas, iam parar as aulas até que o governo, não só

aumentasse seus salários, mas que contemplassem as demais reivindicações.147

Fazendo isso, o orientativo afiançaria a tomada de consciência de que

havia um movimento nacional reivindicatório de melhores condições salariais.

Alertava ainda que o protesto grevista poderia resultar em acirramento, como o

vivenciado pelos professores paulistas que, naquele momento, estavam sofrendo

muitas pressões e ameaças, mas, ainda assim, não desistiram do movimento.

Na mesma edição da Folha Alvorada foi noticiado o mau exemplo do

secretário da escola Santa Terezinha, Cleoviton Nerys Costa, que, por raiva do

aluno e presidente do Centro Cívico, Jonas, certamente um contestador do direito

dos alunos e da comunidade, e por não ter coragem de enfrentá-lo, deferiu-lhe um

tiro à traição e que o ato criminoso foi acobertado pelo delegado Rui Milhomem,

pois, no dia seguinte ao ocorrido, deixou-o viajar na aeronave do Estado. Afirmou

ainda que a referida fuga não passava de algo combinado, pois o avião que ia

buscar e levar dinheiro em Cuiabá, não trazia nenhum remédio sequer, não

transportava doente, mas levava um fugitivo.

Em março de 1979, em episódio no qual o povo pedia a substituição

da Diretora da Escola de 1º Grau Santa Terezinha, o jornal anunciou que o aluno

Jonas permaneceu paralítico, devido ao tiro desferido pelo secretário da escola.148

Com propósito didático no tocante ao delineamento da tese, seguimos

fazendo paralelos entre a forma pela qual se organizava a escola e os grupos

residentes nos sertões e povoados do Araguaia-Xingu buscando confrontar as

ações desenvolvidas em torno da defesa da educação no Araguaia-Xingu, hora

adiante, revelando o movimento da Educação popular de Paulo Freire, por

entender que havia semelhanças, seja em relação à leitura do contexto e das ações

147

Ibid. 148

Ibid.

Page 119: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

119

para sua transformação. Para tanto, tomamos as ações propostas pela comunidade

de base.

Nesse sentido, faremos elegemos os temas apresentados durante o III

Encontro Intereclesial das Comunidades de Base que, dentre outros relacionados

à Igreja, o quarto tópico teve por foco:

a) Procurar conhecer a realidade local, do nosso município e

dos municípios vizinhos, para fazer uma corrente que se

liga entre nós, descobrindo o que está por trás daquilo que

os poderosos procuram esconder de nós, a fim de que os

nossos olhos passem a ver aquilo que realmente precisamos

ver;

b) Fazer essa análise com boa participação de todos, de modo

que o nosso esforço cresça sem nunca voltar atrás;

c) Assumir a nossa condição de classe oprimida, pois temos de

fazer um trabalho acreditando uns nos outros, já que os

nossos interesses são iguais.149

Ao analisar os pontos acima relacionados, é possível afirmar que as

bandeiras levantadas e defendidas por meio da Folha Alvorada, da mesma forma

que tinha por leitores famílias de posseiros e peões, igualmente eram lidas pelos

fazendeiros, políticos, funcionários públicos, professores etc. De certo, tais

bandeiras poderiam facilmente ser interpretadas como sendo uma afronta aos

interesses dos detentores do poder e do capital, associando a origem dos

movimentos aos „comunistas‟ e „subversivos‟.

Seguia ainda orientação de como deveria o povo conhecer a realidade

e, a partir dela, organizar-se:

a) Sempre em pequenos grupos, onde o povo encontra o povo;

b) Através de uma ação avaliada, para que seja correta;

c) Procurando estudar a realidade, principalmente a história

das sociedades, segundo a nossa maneira de entender essa

história, pelos olhos de quem constrói e sustenta a base

social.150

Seguindo as orientações publicadas na Folha Alvorada, em finais da

primeira década de existência da escola, bem como do próprio periódico, é

possível perceber a dialética entre o contexto e as necessidades de transformá-lo.

149

Ibid. 150

Ibid.

Page 120: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

120

Porém, inaugurava a prerrogativa de fomentar aprendizagens sobre a “[...] a

história das sociedades sob a nossa maneira de entender, pelos olhos de quem

constrói e sustenta a base social [...] 151

, portanto, o povo. Assim, seguimos

mapeando tal litígio.

1.9 - Escola: uma invenção em litígio

As massas devem poder reunir-se, discutir, propor, receber

instruções. Os cidadãos devem ter a possibilidade de falar, de

se expressarem, de inventar.152

A escola é uma instituição temporal marcada pelo conteúdo e forma

pela qual as pessoas a inventam. Assim, perceber o espaço escolar no tempo é um

desafio para o historiador, todavia, não basta conhecer seu projeto, mas, entende-

lo num processo de permanente transformação, ora em águas calmas, ora em

banzeiros.

Como criação social, a escola se inventa, competindo ao professor de

história perceber que, ao ensinar essa „disciplina‟, na escola de educação básica,

ele participa de um processo maior de configuração social, seja pela manutenção

do projeto opressor, ou pela libertação do oprimido. As duas escolhas o fará

partícipe de um processo político que, distante de ser neutro, suas escolhas

resultarão na manutenção do ideário colonizador ou na revolução para sua

descolonização, entendendo que, ao denunciar a opressão, contribuindo para o

esclarecimento do povo, o faz capaz de reivindicar seu lugar, seu direito, seu ser,

tornando visível à própria existência através da reinvenção da sua condição de

sujeito socialmente localizado.

Como observado, objetivamos neste capítulo, a partir da leitura dos

registros sobre a escola no Araguaia-Xingu, mapear os conflitos em seu cotidiano

e, partindo deles, percebê-la enquanto pedra angular esculpida nas e pelas

intenções de um jogo de poder estabelecido entre opressores e oprimidos, e, na

medida do possível, reconhecer como se deu esse processo, pois pensamos que, ao

151

Ibid. 152

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 128.

Page 121: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

121

compreender a escola enquanto pedra angular, cabe aos educadores entender o

quão relevante é sua função social no tempo.

Observou-se ainda que, mesmo em momentos de aparente

neutralidade, opressores e oprimidos fermentam seus projetos de sociedade. E a

escola foi à primeira instituição a ser assediada, ora mantendo-se a serviço do

colonizador, ora em verdadeiro campo de batalha por movimentos de

transformação operados em favor do oprimido, numa disputa emoldurada por

argumentos, mas que se valia também da força, da violência.

Assim, entendemos que nossa jornada exploratória, até o momento,

possibilitou perceber que a violência, além de ser consequência de atos praticados,

uma vez revelada origem, emanou possibilidades de transformação, récita pela

qual foram arregimentadas as táticas das famílias pobres contra as estratégias do

fazendeiro, sustentado pelo braço forte do Estado opressor. Embora não seja

pretensão inventar um vencedor, há que reconhecer que em momentos

sobressaíram os fazendeiros (usando da força), ora as famílias dos posseiros

apoiados pela prelazia. Mas há que se perfilhar que, se os argumentos não se

faziam suficientes, os oprimidos também fizeram valer sua força.

Conforme Fanon (1965), toda a segurança nova e revolucionária do

colonizado dimana disso.153

Se, com efeito, a minha vida tem a mesma

importância que a do colono, o seu olhar já não me fulmina, já não me imobiliza,

e sua voz não me petrifica. Já não me perturbo na sua presença. Praticamente, eu

aborreço-o. A sua presença não me afeta, preparo-lhe tais emboscadas que em

breve não terão outra saída a não ser a fuga.

O contexto colonial caracteriza-se pela dicotomia que inflige ao

mundo. Segundo Fanon, a descolonização unifica esse mundo, arrebatando-o de

forma radical a sua heterogeneidade, unificando-o sobre a base da nação ou da

raça.154

Lançar olhares sobre a escola no tempo possibilita interpreta-la como

um ponto de partida na formação social, com regras historicamente praticadas,

que, além de repositório das convenções, constitui espaço onde tais valores se

desabrocham, revelando o ser de cada um dos escolares, professores, alunos e pais

153

Ibid. 154

Ibid.

Page 122: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

122

e, em seu conjunto, os interesses dos grupos sociais por meio de uma política

repleta de regras e valores, a partir dos quais vão sendo lapidados por meio do

atrito, uma vez que só o homem historicamente construiu esse laboratório para

nele desencadear o processo de mediação e aprendizagem que, a seguir,

continuamos a apresentar.

Pinçamos alguns fatos ocorridos em uma escola do quadrilátero

Araguaia-Xingu, que, sem muito esforço do observador atento, poderá se

reproduzir em todas as escolas de educação básica do país, portanto, passível de

serem observados no tempo, para neles encontrar as razões da busca. Em nosso

caso, por conta de a escola ter sido inventada em um período histórico e numa

espacialidade onde o conflito foi marcado por atos de violência, assistidos a

„olhos nus‟, não havia preocupação por parte dos opressores de permanecer no

anonimato, revisitaremos alguns desses episódios.

Para esse retorno, apresentamos alguns „sentidos‟ atribuídos ao

conceito de violência, observando que, ao anunciar, o periódico o fazia na acepção

de denúncia. Todavia, nosso propósito não será o de analisar as dimensões

atribuídas à violência, tampouco produzir análise profunda sobre o tema, muito

embora apareça ao longo da narrativa, mas, para o momento, ponderar como os

professores se colocaram diante de tal „prática‟.

Conforme publicado na Folha Alvorada, “[...] violência é toda

violação dos direitos humanos, [...] é tirar o índio de sua terra, [de seu modo de

vida]. [Violência] é deixar sem-terra o lavrador, deixar tantas famílias sem

moradia, tantos trabalhadores sem serviço, [tantas] crianças sem escola, [tantos]

doentes sem atendimento”.155

Violência é a carestia da vida, o salário de miséria. Violência é a

guerra, a política suja, a política perseguidora, a fabricação de armamentos.

Violência é desprezar o negro, o velho, a mulher, a criança. Violência é a

vingança, a bebedeira, a prostituição, o desrespeito. Assim, contra a violência, a

fraternidade, contra a injustiça, a união, contra a perseguição, a coragem e contra a

malandragem, a sinceridade.156

155

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Março de 1983

A16.2.02 P.8.14. Sem grifo no original. 156

Ibid.

Page 123: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

123

Ao dar „nome‟ à violência, percebe-se com clareza que seus

proponentes estão a denunciar a sociedade capitalista burguesa, colocando-se, de

um lado, os detentores do capital, e, de outro, os expropriados e explorados.

Igualmente como consequência dessa divisão social, as mazelas, como a falta de

acesso à escola, à saúde, a entrega aos vícios, à prostituição, à discriminação e aos

assassinatos.

Resta-nos entender como essas „des-ordem‟ poderiam alcançar o

progresso? Como elas se revelaram no interior da escola, na década de 1970, no

Araguaia-Xingu? Por se tratar de uma escola edificada pela comunidade, ficou

isenta das investidas dos agentes do governo, da política? Para o alcance das

respostas, revisitaremos o episódio ocorrido em Santa Terezinha, em 1978, e com

desfecho em 1979, com sua ocupação por, aproximadamente, 100 pais de família.

É possível que tenha sido o primeiro movimento dessa natureza no estado de

Mato Grosso.

Em 1978, o secretário da instituição escolar, Cleoviton, atirou no

aluno Jonas. Além de não ter sido preso, ele continuou recebendo o salário

normalmente. E, no início do ano de 1979, Cleomenes Neres, irmão do secretário,

com o apoio de políticos de Barra do Garças, foi nomeado vice-diretor. De posse

no cargo, chegou demitindo D. Alzira e, para espanto de todos, retirou Regina

Borela, considerada melhor professora da escola. Tais decisões fizeram com que a

comunidade se levantasse contra as decisões antidemocráticas, ocupando a escola.

Aquela comunidade, ao tempo em que tinha sofrido disputa com a

Companhia de Desenvolvimento do Araguaia – CODEARA, pela posse da terra, e

igualmente experimentado formas de resistência por meio da união, aprendendo

que retroceder não era a melhor solução na busca por seus direitos como o padre

Chico (Francisco Jentel). Sobre o episódio ocorrido em 1972, Pedro Casaldáliga

registrou em seu diário, aos 6 de março de 1981, nove anos depois:

Hemos celebrado, em Santa Terezinha, en espíritu de júbilo

popular, la victoria del pueblo. Aquel 3 de marzo de 1972,

cuando los posseiros enfrentaron a la Codeara y a la policía,

Page 124: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

124

para defender la construcción del ambulatorio local, para

defender su derecho a la tierra.157

O confronto com a CODEARA continuou sendo, por muitos anos,

motivo de comemoração. Todavia, o problema ali posto não se limitava à defesa

do ambulatório, mas era muito mas amplo, tratava-se da defesa ao direito pela

terra onde havia sido edificado bem como os ideários daquele povo. Idêntica

situação pode ser observada em relação à escola, o problema não era somente o

fato ocorrido com a tentativa de homicídio do aluno Jonas, tampouco a demissão

da professora e da zeladora, mas sim o direito por uma escola onde as decisões

deveriam ser tomadas no coletivo e de forma democrática. Assim, esse era o

amálgama em que se destacava as instituições e em seu entorno uma trama repleta

de litígio própria daquele espaço de luta.

Como observado até o momento, à sociedade inventa sua escola em

meio a disputas pelo poder, que em nada considera a história de luta das pessoas

que a edificaram e do que nela se ensinou, não havendo tampouco preocupação na

definição do currículo que traduz sentido ao que a comunidade entende como

relevante para a formação e construção de conhecimento por parte do aprendente,

e possíveis conquistas das famílias.

Tomando o caso por parâmetro, é possível afirmar que no campo de

batalha o professor de história atuava procurando valorizar a memória, pois, ao

valorizar a memória poderia transformá-la em forma de resistência às investidas

por parte dos „agentes‟ representantes deste ou daquele partido político. Assim,

observemos o desdobramento do caso.

Não havendo acordo entre as partes, uma vez que os ditos

representantes do governo e as famílias não cederam, a questão acirrou, e as

pessoas disseram que não sairiam enquanto não viesse alguém para resolver o

empasse. Permaneceram a noite toda, e também o dia seguinte, afirmando estar

preparados para aguentar o tempo que fosse necessário. Quem estava do lado de

fora da escola ia mandando café, bolo, guaraná e farofa para que pudessem

alimentar os que permaneciam dentro.

157

En rebelde fidelidad. Diário 1977-1983. Tercer libro del diario de Pedro Casaldáliga, publicado

originalmente por Desclée, Bilbao, 1983.

Page 125: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

125

Para que todos soubessem a razão daquela ocupação, os que estavam à

frente do movimento, confeccionaram um boletim explicativo para que toda

população compreendesse o significado daquele movimento, e também

escolheram um professor para levar a questão perante as autoridades em Cuiabá.

Ainda, para reforçar a paralização, redigiram uma carta e enviaram-na para o

Presidente da República e outra para o Ministro da Educação.

Tal iniciativa possibilita-nos afirmar que, além das autoridades

atuantes na Secretaria de Estado de Educação, em Cuiabá, o Ministro da Educação

e o próprio Presidente da República tiveram conhecimento dos fatos ocorridos na

Escola de Santa Terezinha. Portanto, os acontecimentos que marcaram a invenção

da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ficaram conhecidos nacionalmente,

especialmente em relação ao imbróglio decorrentes da luta pelo poder sob a

gestão dos processos políticos local a cerca da organização escolar.

Ao analisar os eventos ocorridos em Santa Terezinha, em finais da

década de 1970, torna-se mister reconhecer que a política esteve e continua ainda

sendo o meio pelo qual toda escola pública é pensada, organizada, e, em alguns

casos, devastada, conforme este ou aquele projeto engendrado pelas „forças

políticas‟, e, claro, implementada na defesa do interesse de grupos de interesses,

incluindo os dos partidos políticos.

Também há a formação de grupos que não, necessariamente, possuem

engajamento em torno de partido político, até porque, muitos cidadãos não têm

„filiação‟ declarada, entendemos, portanto que, no caso do Araguaia-Xingu, a

causa da educação é maior que as defendidas pelas agremiações.

Parece-nos emblemática as iniciativas em torno de ações partidárias a

tentativa de utilizar a educação como instrumento de „dominação‟. Nesse sentido,

falar de uma „escola sem partido‟ é, de um lado, uma farsa, mas também

estratégia, por se tratar de uma ação política procurando tirar da escola um

importante conteúdo que pode lhe conferir condições para a transformação da

sociedade, a politização do aprendente e da comunidade de entorno.

Tal episódio lembra-nos Fanon158

, quando afirmou que esse mundo

hostil, pesado, agressivo tem o objetivo de rejeitar com toda a sua força a massa

158

FANON, Frantz. Op. cit., p. 6.

Page 126: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

126

colonizada, pois o poder de mando naquela escola se fez representar, não pelo

inferno, mas por um paraíso ao alcance da mão a ser protegido por terríveis cães

de guarda, os jagunços como veremos a seguir.

Como resposta imediata ao movimento, começou a se espalhar na rua

o boato de que iriam atacar o povo lá dentro e que deveriam sair, mesmo que

fosse à base de tiro: “Teve gente que assuntou a conversa deles, e diziam até que

ia pegar o padre, que não pisou na Escola naqueles dias”.159

Mas ninguém se

assustou, porque estavam lá só a fim de conversar.

Cabe-nos intuir que, embora não tivesse sido percebida a presença da

liderança „político-religiosa‟ do padre Canuto, os „boatos‟ conduziram para o

reconhecimento da existência de uma relação direta entre o comportamento da

comunidade escolar à „presença‟ do padre.160

Na noite da ocupação da escola pela comunidade, o Geraldo Dentista,

o Zulmiro, o Rogério e o Paraíba andaram pela rua, no carro do Geraldo, dando

tiro para todos os lados. Um deles atingiu o braço do Carlinhos, filho do Abdias,

de 12 anos. Outras pessoas armadas, integrantes da Aliança Renovadora Nacional

(ARENA), andaram lá perto. Tais eventos nos permite admitir que o limite da

democracia, vivenciado naquele movimento e organizado pela comunidade

escolar, era o da violência armada, orquestrada pela imposição político-partidária.

Igualmente se percebeu que, quando não há mais argumentos, se usa a força. Eis a

face da ditadura em tempos de invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-

grossense, eis o ingrediente presente nas ações de um governo onde as decisões

são tomadas sem que haja consulta popular. 161

159

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.70 P.7.15. 160

Conforme publicação da Folha Alvorada Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São

Félix, a 16.15.03 P.08.10, apresentando retalhos de nossa história no ano de 1996, afirma que

vários padres diocesanos incorporaram ao trabalho da igreja, a exemplo dos padres franceses de

Santa Terezinha. Mas, em 1971, foi de Campinas, estado de São Paulo, entre outros missionários,

o Padre Antônio Canuto. Parte de sua experiência no Araguaia foi relatada em texto publicado na

Comissão Camponesa da Verdade. Relatório final. Brasília, dezembro de 2014. P. 112-126. 161

Sobre a politização da comunidade, Norberto Bobbio, propõe quatro modelos explicativos

sobre a filosófica política, tratando-a como determinação da categoria “política” e, filosofia

política enquanto procura do critério de legitimidade do poder quando a filosofia procura

responder à questão dos fundamentos da necessidade da obediência ao poder político. BOBBIO,

Norberto. Teoria geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de

Daniela Beccaccia Versiani. 11 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

Page 127: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

127

Observar os ocorridos naquela localidade serve-nos para compreender

as origens do pensamento dos defensores de uma escola „sem partido‟, onde

reprime as pessoas para que não possa esboçar resistência, mecanismo pelo qual

se persevera na intenção de eliminar as „condições‟ de criticidade suficientes para

rebelar-se em favor de algumas causas justas, naquele caso, a garantia da

permanência de pessoas à frente dos processos educacionais, os quais atendiam

aos anseios das famílias da localidade.162

Ao avaliarem que aquele movimento estava abrindo espaço para se

transformar em caso de pistolagem, os participantes que lá estavam resolveram se

retirar, pois ninguém ali tinha uma arma. Como iriam se defender? Com o próprio

corpo? Talvez essa não fosse a melhor lição a ser ensinada e tampouco apreendida

pelos escolares.

Esse episódio contribui para que se possa compreender que a invenção

da escola no contexto da ocupação das terras no Araguaia-Xingu ocorreu em meio

à organização da comunidade para o enfrentamento das decisões arbitrárias por

parte de alguns políticos da região em relação à escola. Igualmente, esse episódio,

marcado pela ocupação-permanência-desistência, revela a transformação do lugar

– escola – em espaço inventado pela comunidade, que, certamente, saiu vitoriosa,

como veremos em seguida.

No dia seguinte à ocupação, chegaram três aviões de Barra do Garças,

tripulados por policiais, acompanhados do delegado de ensino, Arilson. Andaram

no carro do Geraldo e deram apoio e cobertura aos pistoleiros. O Arílson deu

razão a eles, dizendo: “Também, o que vocês queriam que eles fizessem?”.163

162

O movimento de Escola sem Partido ganhou espaço depois do golpe ao governo de Dilma

Rousseff. Conforme editorial do jornal El Pais, o afastamento definitivo de presidenta da

República é, sem dúvida, o capítulo mais vergonhoso da história política brasileira. Por trás dos

protestos “espontâneos” contra o governo havia entidades, como o Movimento Brasil Livre

(MBL), financiado pelo DEM, PSDB, SD e PMDB; Vem pra Rua, criado em 2014 por um grupo

de empresários para apoiar a candidatura do senador tucano Aécio Neves à Presidência da

República; e Revoltados On-Line, gerenciado pelo empresário Marcello Reis, que não esconde sua

simpatia pela ideia de intervenção militar e que possui ligações com o deputado federal Jair

Bolsonaro (PSC-RJ), pré-candidato à Presidência da República. In.<

HTTPS://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/31/opinion/1472650538_750062.html > acesso em 10

de dezembro de 2017. 163

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.70 P.7.15.

Page 128: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

128

A polícia ficou circulando no carro do Geraldo e do Batista. No

começo, disseram que o caso dos tiros não era com eles, mas, por fim, fizeram um

inquérito ouvindo pessoas da Escola Municipal, a saber, a diretora, três pais, um

aluno e até os pistoleiros. Essa medida causou grande revolta, pois, segundo a

matéria, as autoridades pisavam e cuspiam no povo. Parece-nos emblemático o

aparelhamento utilizado pelos „representantes‟ do Estado, os quais objetivavam

fazer valer seu poderio – político-administrativo e de mando, utilizando da força

paraestatal de jagunços e pistoleiros.

Porém, havia no horizonte uma esperança, pois o representante

mandado a Cuiabá foi recebido pelo Secretário de Educação, todavia, segundo a

avaliação da maior autoridade da educação de Mato Grosso, o ocorrido em Santa

Terezinha não passava de agitação do padre Canuto e da Regina, diretora. Um

equívoco absurdo, o que comprovava a posição contrária à decisão do povo, pois,

no mês de fevereiro, quando começou o atrito, a professora Regina não estava em

Santa Terezinha e que durante esse tempo o padre Canuto permaneceu muito mais

fora do que em Santa Terezinha.

Parece-nos que o imbróglio não parou pela fala do Secretário, pois,

passados alguns dias chegaram dois funcionários da Secretaria de Educação e

foram conversar com os professores das duas escolas na presença dos pais, estes

últimos diziam insistentemente que queriam uma solução.

Conforme a matéria, na escola Estadual constataram muitas

irregularidades, mais do que se tinha notícia. Ao final, consultaram o povo para

saber se queriam que D. Hilda permanecesse diretora, tendo sido a resposta

positiva, mas, deveriam ainda contratar professores capacitados, prometendo uma

resposta para a semana seguinte.164

Concluímos esse tópico afirmando que, o fato de ter uma sociedade

unida em defesa dos direitos coletivos, não significava que a mesma estivesse

livre de desavenças, especialmente no tocante à escola pública, pois parece-nos

que, antecedendo a um projeto de escola, existia um conjunto de forças políticas,

em muitos casos partidárias, e que, por conta dos jogos de interesse, praticavam

apadrinhamentos e/ou conchavos que resultaram em decisões contrárias ao

164

Ibid.

Page 129: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

129

desejado pela coletividade, como foi o caso das escolas em Santa Terezinha.

Portanto, a invenção de uma escola democrática depende de uma sociedade

igualmente democrática e vice-versa.

1.10 - A invenção da Escola democrática e as incertezas no Brasil Central

Além de plantar mandioca, a gente deve plantar sabedoria. Só

bicho não gosta de ler. Você não é bicho.165

Neste último tópico do capítulo procuro revelar a forma pela qual a

comunidade participava das decisões sobre a escola, seja na escolha dos

professores, ou na união em torno da resolução dos problemas e fragilidades

encontrados para que a mesma pudesse „funcionar‟. Aqui, toma-se por

empréstimo o conceito máquina e produzir um comparativo. Para que a escola

cumprisse sua função para a qual foi inventada, requereu uma sequência de

engrenagens, combustível, técnica, método, calibragem espaço-tempo, velocidade

e, principalmente, revisão periódica, para evitar sua inoperância, e, por

conseguinte, deixar de cumprir a função para qual foi criada.

Assim, a escola enquanto aparelho social é uma instituição

indispensável à informação, formação e transformação dos membros da

comunidade, prescindindo de um conjunto ordenado de práticas diversas, cuja

função é a de contribuir no preparo dos escolares para viver a diversidade

histórica, política e cultural.

Podemos inferir dois problemas a serem superados, um estrutural, a

exemplo do pensamento (representação) sobre a escola, herdado de longa data,

visto que estruturado na herança do não acesso pelas famílias menos providas de

capital, ao lado da superação de questões conjunturais, semeadas pela coragem e

determinação de algumas lideranças, a exemplo de Pedro Casaldáliga, sua equipe

e redes de sociabilidades.

165

As palavras de efeito na frase reforçam o sentido dado à escola inventada no Araguaia-Xingu, o

projeto de uma instituição engajada na busca pelo distanciamento à ignorância, por meio da

aprendizagem, que, além de plantar mandioca, haveria de plantar sabedoria. (Alvorada (1977),

Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 41 P2.5).

Page 130: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

130

Igualmente, faz-se necessária a observação de que, a função social da

escola requer que seus tentáculos alcancem resultados dentro e fora do espaço sala

de aula, pois, por esta pertencer a um contexto social no tempo, suas premissas

são a de revelar os problemas e contribuir para sua superação, eis a tônica que

emanou a orientação e a formação das famílias residentes nas cidades e sertões do

Araguaia-Xingu, como observamos a seguir.

A leitura do cotidiano no Brasil Central encharca os olhos de projetos

de vida, sonhos e buscas, emoldurados por tempos de sofrimento e de luta pela

terra, interceptados pelos interesses capitalistas avalizados pelo Estado,

permeando de incertezas a vida de posseiros e indígenas. Nesse amálgama se

destacava a união das famílias, professores e lideranças religiosas em torno da

edificação da escola, como espaço de interação social, visto sua organização em

torno dos clubes, associações e sindicatos, tal que, não fosse à persistência e

vigilância, a qualquer momento poderia chegar um intruso, tubarão ou grileiro,

apoiado pelas forças policiais do Estado, e até mesmo seus representantes direto, a

exemplo do delegado de ensino, exigindo que desistissem de suas causas, de seus

direitos por meio de força opressora da fala, da ameaça, ou pela bala, vitimando os

oprimidos como já mencionados anteriormente.

O conflito pela terra, como podemos observar ao longo da tese, por ser

desigual, em algumas ocasiões não permitiu a prevalência das forças

Page 131: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

131

arregimentadas pelos tubarões, mas sim a dos oprimidos lavradores, quando esses

se colocavam vigilantes e unidos em defesa de seus direitos, muitos dos quais,

eram proclamados pela prelazia, na Folha Alvorada, e por uma rede de

sociabilidade formada por lideranças locais. Em decorrência dessa pedagogia

histórico-social, a formação da Delegacia Sindical, como pode ser verificada na

Figura 5 acima.

Todavia, esse era um dos primeiros passos a ser dado na busca da

libertação e da opressão. A escola, e os processos advindos dela, haveriam de ser

um instrumento de poder, porém, como realizar esse intento, se o Estado não

cumpria com sua obrigação constitucional de edifica-la? A solução seria, portanto,

continuar construindo.

Uma vez erguida, não poderiam se iludir, mas se manter atentos para

que os professores fossem pagos. Já em relação aos tubarões, a comunidade

deveria continuar vigilante, pois era comum fazendeiros mandar seus jagunços

amedrontar as famílias, disparando contra alunos, pais e professores, ou colocar

fogo, impedindo as famílias de terem seus filhos frequentando a escola. É como

haveremos de tratar no terceiro capítulo da tese.

Partindo das razões acima elencadas, cabe a seguinte indagação: como

o Estado, principal responsável pela criação das leis, fazia vista grossa da Emenda

Constitucional n. 59, de 1969, artigo 176, a qual preconizava ser o ensino

primário (é) era obrigatório para todos, dos sete aos quatorze anos, e gratuito nos

estabelecimentos públicos. Igualmente requer indagação as competências dos

municípios, pois, conforme rege a constituição de 1988, este deveria aplicar 20%

do orçamento na educação, dentre outros custeios na construção de escolas.

Parece-nos que, se a partir da constituição cidadã os parâmetros orçamentários

ainda são poucos praticados pelos municípios, antes dela é que tais premissas não

passava de mero discurso.

Como observado, a Folha Alvorada publicou, em 1974, a inexistência

de condições físicas e humanas para atender aos seus filhos, o que responde as

questões iniciais, como veremos a seguir.

Em 1974, na época de recomeço das aulas em Cascalheira, as

professoras convidaram os pais dos alunos para reformar, mais uma vez, o edifício

Page 132: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

132

da escola. Conscientes de seus direitos, os progenitores se recusaram a executar a

obra e comunicaram à prefeitura: “Esta casa que foi feita pelo povo não está mais

servindo. Há quatro anos que estamos concertando o rancho sempre esperando

pela prefeitura. Estamos esperando uma decisão. Enquanto isso nossos filhos não

vão à escola”.166

Ao falar da invenção da escola, para que não sejamos tomados por

uma representação anacrônica, descrevo como paira em nosso imaginário e logo

em seguida, em contraste, a sala de aula em que abrigava e muitos lugares, ainda

habitam os

escolares.

A sala

de aula que

convencionou o

modelo

arquitetônico

„moderno‟ carrega

consigo o sentido

da escola na

cidade,

especialmente no

que diz respeito ao modelo de salas sequenciais, construídas de alvenaria,

medindo cada sala 6 x 8 m, quase sempre pintadas de paredes brancas, com

barrados azul, cinza ou verde, com portas desembocando em longos corredores, o

que tornava mais fácil o policiamento dos corpos, com janelas altas impedindo

que os estudantes pudessem olhar para o horizonte, limitando-se a enxergar o

professor, e centrando foco na principal tecnologia de distribuição da informação,

o quadro verde-oliva. Ou, atualmente, brancos com vidros sobrepostos para uso de

caneta marcador.

Para romper com esse paradigma do tempo presente, cuja convenção

aprisionou as mentes inventivas dos pensadores da arquitetura da escola,

166

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974. A 16.0. 15 P2.2.

Page 133: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

133

apresentamos uma foto conforme Figura 6 acima, publicitada em finais da década

de 1980, pela revista Nova Escola.

Igualmente se faz importante asseverar que a expressão escola, do

ponto de vista da estrutura física, em sua primeira versão, por conta da

rusticidade, não passava de uma casa feita de pau-a-pique, com cobertura em

madeira roliça e palha de coqueiro trançada de forma tal que não molhasse quem

estava em baixo quando chovia, pisando em chão batido.

Tal característica estava presente na maioria das residências edificadas

entre o Araguaia-

Xingu, o que, de

certo, requer nossa

atenção por

expressar valores

culturais aos quais

fazemos vista

grossa. Nesse

sentido, o terreiro,

especialmente o da

frente da casa para

Cantuário, era o

„chão de morada‟

onde as famílias

estreitavam os laços de amizade e respeito, onde eram socializados os saberes, a

alimentação, a organização social (trabalho, religiosidade e lazer). Assim,

[...] eles [...] viviam toda uma vida numa intensa relação direta

com a terra, representada pelo terreiro [...] e do terreiro é que

pudemos perceber claramente a lógica da reciprocidade mútua

do dar, receber e retribuir, se estabelecendo as dimensões do

viver dessas pessoas.167

167

CANTUÁRIO. Maria Raimunda dos Santos. “Oh de casa! Oh de Fora! Vamos chegando e

vamos entrando”: lavradores às margens do Araguaia mato-grossense (1950-1990). Dissertação

(Mestrado em História) – UFMT – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, ICHS, 2012, p. 38.

Page 134: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

134

Este foi o espaço em que viveu o professor Antônio Soares da Silva, o

Caçula, conforme observamos na Figura 7.168

Por conta das distâncias, os professores deveriam residir próximos à

escola, visto não terem condições para se deslocar diariamente até a cidade, o que

exigia custos acima daquilo que poderiam dispor.

No sentido contrário, poucas eram as visitas feitas pelos secretários de

educação à comunidade. A Folha Alvorada anunciou a chegada do secretário

desta pasta, o Sr. Juraci que, ao aparecer na escola, manifestou surpresa por ela

não estar funcionando. Todavia, preocupado e abatido estava o povo, não só com

as péssimas condições do edifício da escola, base das aulas para seus filhos169

.

Publicou também a Folha Alvorada que, no mês de junho, em Serra Nova, a

escola estava caindo e as paredes já não se sustentavam de pé. No inverno e

quanto chovia, as aulas eram suspensas, e no verão não dava para suportar o calor.

O giz para escola tinha que ser doado por particulares.170

Santa Terezinha, que pertencia à cidade de Luciara, é que vinha

sofrendo mais gravemente o problema com o ensino, em decorrência da

desajustada política municipal, pois já estavam no mês de junho e ainda não havia

lugar para funcionamento da escola pública. Embora houvesse algumas iniciativas

particulares na organização de um supletivo para seus filhos maiores, elas não

eram suficientes para atender a demanda.171

Também no mês de março de 1974, quem leu o periódico se deparou

com a notícia de que a escola municipal de Porto Alegre estava funcionando

desde o dia 4 de março, mas a criançada iria antecipar suas férias a partir do dia

168

Sobre uma necessidade de reinventar a escola que atendesse as expectativas de uma escola

inovadora, do ponto de vista arquitetônico, retomaremos a sua possível reinvenção no último

capítulo da tese, onde apresentaremos um modelo de escola que possa dialogar com o espírito do

tempo e atender às demandas dos escolares do Século XXI. 169

Ao que parece, o professor Juraci, em 1978, por ocasião do sepultamento do corpo do “peão do

trecho”, foi obrigado a continuar abrindo a cova, seguida de prisão e serviços forçados na

delegacia, tornou-se secretário de educação, mas tal hipótese não foi possível confirmar por conta

de não haver pistas sobre o sobrenome. 170

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 17 p 3-

4. 171

Embora Santa Terezinha contasse, em 1975, com 1.443 pessoas e 238 casas, conforme pesquisa

realizada no mês de agosto Alvorada (1975), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São

Félix. 1974. A16.0.46 p 2-6, só passou a ser distrito de Luciara em 1976, por pelo Decreto-Lei n.

3.758. (Alvorada (1976), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1976. A 16.0. 27

p. 2-2).

Page 135: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

135

20 de abril, por conta das exigências da colheita. Percebia-se, que, com a nova lei

de ensino, cada escola poderia, a partir daquela data, formatar seu próprio

calendário, adaptando-se às necessidades locais.172

Já no mês de abril de 1978, a citada Folha Alvorada recuperou

informação relativa a um abaixo-assinado subscrito pelos pais, no mês de

fevereiro daquele ano, o qual foi enviado ao prefeito, solicitando respostas sobre:

material escolar; contratação e pagamento dos professores e construção da escola,

esclarecendo no mesmo documento que tais ações não deveriam sofrer

interferência da fazenda Piraguassu, e que os trabalhadores do lugar é quem

deveriam trabalhar na obra da escola.

Parece-nos que a intenção não se limitou à edificação da escola pela

fazenda, mas o Diretor também deveria ser um professor que trabalhava na

fazenda, ordenando ao secretário municipal que a irmã Mercedes e os professores

de Porto Alegre do Norte matriculassem os alunos, que chegava a 252. Feito isso,

o prefeito e o Tokuriki (secretário) escolheram o prof. Márcio para dirigir o

estabelecimento de ensino, visto ser ele docente da Fazenda Piraguassu. Essa

posição foi rechaçada pelo povo, pois, além de não ter nenhum grupo escolar

próprio, mas apenas casas alugadas, eles não iriam aceitar um diretor

representante da citada fazenda.173

A sequência de fatos garimpados na Folha Alvorada e apresentados

até o momento torna possível afirmar uma crescente atuação das famílias em prol

da edificação e funcionamento das escolas, pois, além de participar das reuniões e

de reivindicar seus direitos, não mediam esforços para suprir a ausência do poder

público, seja na edificação, reforma e até mesmo na aquisição de materiais

necessários para que seus filhos pudessem estudar. Igualmente se opunham a

qualquer direcionamento externo à comunidade, especialmente os emanados das

fazendas, e exemplo da Piraguassu. Neste último caso, percebe-se a tentativa

orquestrada entre os interesses da citada propriedade de controlar a escola,

colocando pessoas da fazenda para edificar o imóvel, bem como nomeando um

diretor de „sua confiança‟. Não fosse a reação das famílias, possivelmente esse

intento teria se realizado.

172

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974. A 16.0. 14 p1-1. 173

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0. 54 P3.8.

Page 136: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

136

Cabe salientar, mesmo que as incertezas colocassem em risco a

permanência no lugar, as famílias, envolvidas por um sentimento e atitudes

reivindicatórias por uma escola pública democrática, obtiveram êxito em suas

reivindicações, pois, em janeiro de janeiro de 1979, as escolas de São Félix e

Luciara tiveram convênios firmados com o Estado, a partir do qual seriam

beneficiadas com verba suficiente para edifica-las. São Félix firmou cinco

convênios no valor de 222 mil cruzeiros, conforme publicação no Diário Oficial,

de 4 de dezembro de 1978. E, seguindo o planejamento do secretário Salomão

Baruki, o recurso seria assim aplicado: 150 mil cruzeiros destinado à ampliação

da Escola Estadual José Fragelli; 41 mil cruzeiros para Escola Municipal de

Pontinópolis; 41 mil cruzeiros para escola Municipal Rio das Mortes e 60 mil para

a Escola Municipal de Serra Nova.

Já a cidade de Luciara firmou quatro convênios, somando um total de

210 mil cruzeiros, sendo: 150 mil para as Escolas Municipais de São José do

Xingu e Canabrava do Norte; 37 mil em serviços de reforma da Escola do Lago

Grande e 25 mil para obras da Escola Antônio Rosa.174

Ao tomar por base as informações contidas no periódico, é possível

intuir que a cobrança das famílias, pelo cumprimento aos preceitos constitucionais

junto ao poder público e ao atendimento às reivindicações, além de ter ocorrido

em prol de uma questão legal, o era também moral, pois tratava-se de atender as

famílias com menor poder aquisitivo, e os investimentos básicos não poderiam ser

empecilho para a construção de um projeto popular de escola que fizesse a

diferença na vida daquelas pessoas.

Parece-nos ser essa uma questão de fundo, afinal, a finalidade da

escola pública no Araguaia-Xingu foi a de atender as famílias pobres, visto que

desprovidas de poder econômico, e a possibilidade de romper com aquela herança

histórica vergonhosa, visto que os pais não tivessem frequentado escola e não

terem sido alfabetizados, não desejavam tal infortúnio para seus filhos.

Em Mato Grosso, no ano de 1980, conforme Oliveira175

, existiam

254.586 crianças em idade escolar, entre 7 e 15 anos, sendo que, destas, somente

174

Ibid. 175

OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. A educação e a luta no Araguaia (Mato Grosso). Tese

(Doutorado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

Page 137: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

137

80.103 estavam matriculadas. Portanto, a rede pública de ensino atendia, no

primeiro grau, somente 31% da população em idade escolar. Já no segundo grau

existiam 251.255 jovens no primeiro grau entre 15 e 19 anos, dos quais somente

22.334 se encontravam matriculados. Assim, uma parcela mínima do universo

potencialmente escolar tinha acesso ao ensino médio176

. Ainda conforme Oliveira,

as lutas pela educação em Mato Grosso estão diretamente ligadas àquelas relativas

aos direitos humanos, tão necessários à construção da cidadania, faceta que, no

Araguaia-Xingu, ganhou relevância.177

Para as demais, segundo as publicações do periódico, as causas

apontadas foram a falta de terra para plantar, a carência de trabalho garantido, de

salário justo, de assistência à saúde, de moradia apropriada e de comunicação.

Havia ainda uma questão que atingia a maioria da população, qual seja, o das

famílias separadas: mulheres sem maridos e maridos separados de suas mulheres,

deixando, por conseguinte, os filhos desamparados, sob cuidado de algum

membro da família e até mesmo de estranhos, uma das características das

sociedades oprimidas.

Asseveramos que a edificação da escola no Araguaia-Xingu,

independente do espaço-tempo vivido, das dificuldades e arbitrariedades

encontradas frente aos desmandos da administração pública e da iniciativa

privada, da perseguição da polícia e dos tubarões, compõem um quadro que

estampa uma situação que serviu de ingrediente para que as famílias tomassem

para si a edificação da escola, enquanto bandeira de luta de uma causa maior, uma

vida digna. Se o coletivo de pais se afastasse desse propósito, a escola passaria a

perder sua função socialmente pensada, ficando fragilizada diante dos interesses

sorrateiros dos detentores do poder opressor, com sua maquinaria capitalista de

exploração humana.

Portanto, a história não nos permite naturalizar a ideia de que todas as

escolas foram iguais, concebidas com o mesmo propósito, seguindo o mesmo

ritmo e produzindo os mesmos resultados, pois nos parece que esse modelo

de São Paulo. Departamento de Geografia. Área de concentração: Geografia Humana. USP. 2016,

p. 66 citando BARBOSA, 1992). 176

Ibid. apud GOHN, 2011, p. 346. 177

Ibid.

Page 138: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

138

educativo jamais se tornaria igual para todos, no máximo, tal pensamento servia

apenas para acalentar o desejo daqueles que viviam no urbano. Se observados os

discursos dos operadores da educação entre o Araguaia-Xingu, havia uma recusa

em comparar sua realidade escolar a um único modelo de escola, pois, haveria de

ali se pensar a escola como ela deveria ser, diferente do ponto de vista

organizacional, em conteúdo e forma. Conforme Paulo Freire, educador

contemporâneo às décadas de invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-

grossense, pautado em sua longa trajetória de luta pela educação:

[...] é preciso que a educação esteja - em seu conteúdo, em seus

programas e em seus métodos - adaptada ao fim que se

persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se

como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros

homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história

[...] uma educação que liberte, que não adapte, domestique ou

subjugue.178

A forma pressupõe, sob o prisma histórico social, ser a escola pensada

sob pilares da democracia, todavia, os arranques servirão de sustentação para que

esta seja edificada, pois, não há „modelo‟ a ser seguido, assim como não há

democracia se essa não for praticada.

A pesquisa apontou que as qualidades de uma escola democrática não

podem ser transplantadas de um para outro estabelecimento, de uma comunidade

para outra. A construção de uma escola democrática requer alguns aspectos

fundamentais: a necessidade da existência da escola em sua materialidade, o

engajamento dos diversos sujeitos de seu entorno; um espaço-tempo para que seus

atores possam assumir um projeto de escola comprometido socialmente, e a

existência de instrumentos que possibilitem um diálogo permanente para que as

tomadas de decisões sobre os processos atendam, enquanto instituição, sua função

social.

Apraz afirmar a inexistência de um modelo ideal de escola

democrática que permanece intocável, pois ela, hoje, poderá se tornar uma escola

marcada amanhã, pela tirania. Não existem formas de pensar a construção de um

projeto de escola democrática se esta não for fruto do diálogo e do contraditório.

178

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança, 13 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 45.

Page 139: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

139

Assim, as páginas onde serão narradas a história de uma escola democrática ideal

ainda estão em branco, aguardando novas narrativas. Para tanto, democracia

também se aprende, não no sentido dado, mas sim no praticado.

Portanto, é nas escolas que surge espaço para os diferentes saberes,

tanto aqueles produzidos pelas academias quanto os herdados pelas famílias e, nas

e pelas práticas, tais saberes se ampliam, se fundem e se confundem muito além

das palavras, dos gestos, textos e intertextos, na alfabetização e no letramento,

uma vez que é na escola que muitos dos saberes são desnudados, muitos dos quais

vão sendo largados à margem, assistindo o barco da humanidade navegar na

terceira margem do rio “[...] nessa água que não para, de longas beiras [...] rio

abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio”, como provocou-nos a pensar Guimarães

Rosa.179

Concluímos que a escola é uma invenção e uma produção humana, e

não fruto da natureza, uma vez que não foi ela quem criou, se criou, mas sim os

homens e as mulheres, com ou sem a consciência sobre sua função no tempo,

talvez por essa razão, a fizeram tendo por base uma imagem, um desenho

arquitetônico, a distribuição das salas de aula, o uniforme, o material didático a

ser usado, o giz, o quadro negro, os livros, a organização do espaço-tempo, a

organização dos alunos para um atendimento simultâneo, as aulas expositivo-

explicativas, os trabalhos em grupo, o tomar a tabuada, o deixar de castigo,

aplicado quando os aprendentes não conseguiam atender as expectativas do

professor, as provas, os testes, os boletins, o dever de casa, a nota vermelha, a

recuperação e a reprovação, os mecanismos de controle, a disciplina do corpo, a

organização das carteiras em fila indiana, o ato cívico e a obediência ao professor.

Igualmente, os homens, especialmente as crianças e os adolescentes,

criaram a indisciplina e a rebeldia como ponto de fuga, o não querer assistir aulas,

o matar aulas para banhar no rio, o caçar passarinho, subir em árvores, provocar

os professores e os colegas no intervalo, ficar em silêncio como protesto, não

fazer a tarefa, não entregar o recado aos pais quando, por alguma razão, deixaram

de cumprir seus deveres, falar alto em sala de aula, manifestando seus desejos e

insatisfações.

179

ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ______. Ficção completa: vol. II. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409-413.

Page 140: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

140

Com esse propósito, lançamos algumas questões para o próximo

capítulo: Como os professores trabalhavam o conhecimento histórico, quais eram

as fontes de suas pesquisas, que temas eram escolhidos e qual era a história

ensinada? Por enquanto, orquestramos um fechamento temporário ao texto deste

capítulo inaugural, afirmando que, tanto a escola quanto os escolares têm e fazem

história, visto que pessoas que pensam, repensam, defendem ou negam

obstinadamente. Todavia, como cada uma tem seu „jeito‟, a invenção da escola do

Araguaia-Xingu será revelada nos próximos capítulos.

Page 141: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

141

CAPÍTULO 2

ESCOLA COMO PEDRA ANGULAR NA FORMAÇÃO

SOCIAL CONTRA A INUMANA ‘DESINTEGRAÇÃO’ DE

ÍNDIOS, POSSEIROS E PEÕES NO BRASIL CENTRAL.

Lutar contra o analfabetismo, temos de explicar. É necessário

que o povo compreenda a importância do que está em jogo. A

causa pública deve ser a causa do público180

.

A incursão sobre terras e águas, povoados, cidades e sertões do

Araguaia-Xingu desde a década de 1970, tendo por base as fontes, se mostrou,

desde o início da pesquisa um desafio duplamente gratificante: primeiro, por ter

provocado, aos olhares do observador, um manancial por onde verteu e continua

jorrando motivos para dezenas de outras viagens exploratórias, segundo, e em

especial, por ter, num processo interagente, contribuído para a definição do objeto

de pesquisa, cuja circunstanciação da invenção da escola de educação básica

convidou-nos a observá-la em sua reinvenção.

À medida que visitava as veredas do tempo e dos espaços constituídos

pelos inventores da escola, emoldurava uma série de quadros cujas cenas

180

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 128.

Como observamos ao longo do capítulo, a invenção da escola, objeto primeiro da presente tese, foi

marcada pelo pensamento de Fanon, sendo possível afirmar a existência de uma relação direta com

o pensamento-ação de Pedro Casaldáliga, um leitor atendo aos escritos dos pensadores Fanon e

Paulo Freire. Nesse sentido, é possível afirmar a prática de resistência e luta contra o opressor e a

metodologia adotada nas escolas do Araguaia das décadas de 1970 e 1980. Observa-se ainda que

Paulo Freire influenciasse o ideário existencialista católico com adoção do nacionalismo

anticolonialista. Tal afirmativa baseia-se na leitura de uma de suas principais obras, Pedagogia do

Oprimido, sendo Paulo Freire o primeiro brasileiro a abraçar Os condenados da terra, cujas

leituras, possivelmente, tenham ocorrido entre os anos de 1965 e 1968, quando ainda se encontrava

no exílio. Para maior aprofundamento, indicamos os artigo GUIMARÃES. Antônio Sérgio de. A

recepção de Fanon no Brasil e a identidade negra, publicado na revista Novos Estudos, CEBRAP.

SP. 2008, p. 99-114.

Page 142: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

142

clamavam por ser observadas, interpretadas e narradas, pois, embora

objetivamente fosse descrita por imagens e textos que teoricamente anunciava um

lugar no tempo, seus descritores, preocupados em comunicar, deixaram vestígios

que, se observados com a devida atenção, possibilita-nos entender a invenção da

escola em alguns dos „sentidos‟ dessa trama, um conjunto de ações coletivas,

somatória de todas as individualidades e particularidades, muitas das quais

compuseram nossa narrativa, uma trama infinita de pontos e contrapontos do

saber-fazer a escola de educação básica.

Já que a missão hercúlea de re-construir e dar materialidade às cenas

eternizadas nos quadros do cotidiano dos escolares espalhados pelos „sertões‟ seja

improvável, deixamos, ao prazer das descobertas e escolhas, sobressair a

sensibilidade do pesquisador em perceber, nos fragmentos, formas de explicar o

projeto de escola ali pensado e praticado.

Produzir o mosaico resultante dessa tessitura possibilita-nos perceber

alguns motivos dessa invenção, pretextos pelos quais se formaram as

comunidades em torno da escola, bem como suas formas de resistência, o que

garantiu, na década de 1970, na permanência das famílias naqueles sertões.

Referimo-nos às razões que moveram pessoas engajadas às causas educacionais

muitas das quais ligadas à prelazia, e, em ação coordenada, contribuíram para

transformar a escola em atalaia, enquanto mobilizadores imbuídos de uma causa

maior, a defesa de uma sociedade mais justa e igualitária.

Falar desse modelo de sociedade a fim de que não se torne um

conjunto discursivo e meramente panfletário, partiu-se da necessidade de dotar as

pessoas de um poder advindo do uso das letras e, por conseguinte, do

entendimento sobre o direito à propriedade, para além dos demais direitos

constitucionais pouco conhecidos e praticados no Brasil Central. Assim,

alfabetizar significava dotar as famílias de um mecanismo de defesa materializado

por meio da denúncia, da reivindicação, do estranhamento às relações

estabelecidas entre um Estado sob o jugo do governo ditador e os detentores do

capital, ali representados pelos chamados „tubarões‟.

Na busca por apresentar as memórias sobre as relações de poder

impostas pelo opressor ao oprimido estabelecido no Brasil Central,

Page 143: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

143

apresentaremos em seguida um texto publicado na Folha Alvorada, do mês de

outubro de 1977, que, em qualquer circunstância histórica, provoca reflexões que

podem ir desde a relação ao culto aos mortos, à exumação dos corpos, ao direito à

propriedade, às práticas de violência, além de outras inúmeras dimensões do

humano, e, para território de análise, o direito de acesso à informação e ao

conhecimento, por meio da escola de educação básica.

Embora não tenhamos como precisar a veracidade da estória descrita e

publicada, o que poderá ser ainda validada por outras pesquisas, a elegemos

relevante por entender que sua tessitura conferiu motivos de debates e reflexões

dentro e fora das salas de aulas do Araguaia-Xingu mato-grossense. O texto

extraído da Folha Alvorada e transcrito em seguida tem por título: Nem os sete

palmos:

Aqui no (Novo) Santo Antônio, todo mundo conhece bem o

Joaninha. Todos tem muita consideração por ele, bom folião,

trabalhador, alegre, amigo.

Hoje ele enfrenta toda dificuldade na Ilha do Bananal. Mas há

10 anos atrás, ele morava na Fazenda Tartaruga, que era

propriedade do Sr. Telécio. Lá nesse lugar há 10 anos, Joaninha

perdeu sua mulher e uma nenezinha de 7 dias que lá ficaram

enterradas.

Acontece que hoje, a Tartaruga, aquele lugar bonito na beira do

rio das Mortes e também na beira de uma estrada real, aquele

lugar onde tanta gente já parou cansada para passar uma noite,

onde cada viajante sabia que podia chegar arranchar e botar seu

animal no pasto. Acontece que a Tartaruga foi vendida a um

francês, por nome Michel, e passou a adotar o nome de Fazenda

Botafogo.

O que vamos contar agora aconteceu, portanto, na Fazenda

Botafogo. É um caso de horror, que por aqui nunca ninguém

tinha ouvido contar outro igual.

Michel colocou lá, como gerente, um homem tão mau quanto

ele. Desde que o gerente Jorge mudou para lá, os viajantes não

tem mais direito nem de beber água, avalia botar um animal no

pasto ou arranchar. Desse tipo de maldade, todo mundo já

conhecia, já tinha visto aqui e em outros lugares. Mas o que os

homens fizeram com o Joaninha foi um coisa impossível.

Arrancaram o cruzeiro e mandaram que ele arrancasse os ossos

da mulher, morta há 10 anos e da filha, e que levasse aquela

ossada embora, porque eles tinham precisão daquela terra para

plantar capim.

Page 144: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

144

A mulher de Joaninha, todos recordam, era uma mulher

trabalhadeira. Viveu lá nesse lugar de muriçoca, enfrentando

toda dureza junto com seu marido para amansar o lugar. Ainda

que fosse uma mulher atormentada de filhos, sabia receber bem

as pessoas que lá passavam. Joaninha enterrou lá uma boa

mulher e companheira e entregou nas mãos de Deus todo o seu

sofrimento.

E nós sempre pensamos que, nossa matéria é para ficar no chão

e não para ser arrancada. Até agora, a gente só ouvia dizer que o

pobre só tinha direito mesmo era aos sete palmos de terra. Mas

agora estamos vendo que nem esse direito é mais respeitado.

Joaninha retirou aqueles ossos com muito respeito e até mandou

o padre celebrar uma missa lá, naquela hora. Na cova da mãe,

os filhos choravam de emoção. E para Joaninha, era como se

sua mulher tivesse morrido outra vez.

Quando soube do acontecido, o povo ficou horrorizado. Muitos

choraram, ficaram sem dormir, só encabulados com esse mal

feito. E o pensamento de muitos foi este: „Se fazem assim com

os que já morreram o que não farão com aqueles que estão

vivos? Deus não acha bom isso. Esses homens não têm

coração.‟

Com os ossos de sua mulher e sua filha, que tanto mereciam

sossego e descanso, Joaninha tirou a benção da terra. A benção

da companheira pobre e boa, também levou o cruzeiro. Deus

não queria mais ficar nessa terra.181

Com reprovação religiosa ao ato, afirmando que Deus não acha bom

isso e que não queria mais ficar nessa terra, projeta a materialização de uma

trama social marcada pela trajetória de vida da família do Joaninha e filhos, que,

outrora, haviam passado por aquele aperreio, mas que aquele episódio não haveria

de passar incólume à opinião pública, especialmente aos leitores da Folha

Alvorada, naqueles e noutros tempos.

Observa-se que em sua narrativa invoca a figura do casal, Joaninha e

sua esposa, bons, trabalhadores que, em vida e morte, passaram pelo processo de

expulsão extremada da terra. Ao exigir que Joaninha dali tirasse os restos mortais

181

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1977. A

16.0. 70, p. 5-15. O texto foi aqui descrito na íntegra, por entender que essa narrativa tinha o

propósito pedagógico de anunciar, às famílias, a necessidade de resistir às mais variadas formas de

violência a que poderiam ser submetidas pelos opressores.

Page 145: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

145

de sua esposa e filha, foi a eles imputada a pena capital do não direito ao culto aos

mortos.

A exigência feita a ele, para extrair do chão os ossos, inaugurava nova

cláusula contratual para com a terra, não importando ser a fazenda Tartaruga do

senhor Telécio, ou seu novo nome - Fazenda Botafogo, adquirida pelo francês

Michel, mas consignava, em traços de barbárie, a fragilidade da família de

Joaninha que, além de não mais poder ficar naquele lugar, haveria de levar

consigo o cruzeiro, os restos mortais e a angústia de ser um „sem terra‟ a visitar

outras paragens. Porém, havia algo que a sagacidade dos tubarões não apagaria – a

memória, meio pelo qual alimentamos seu contínuo no tempo.

Ao ser publicado, o episódio revelou, em forma de denúncia, a

inexistência de limites por parte dos tubarões em relação à voracidade com que

tratavam a propriedade da terra, similar à exumação dos corpos, ali representada

pela retirada do direito de culto aos mortos enterrados a sete palmos de terra.

Certamente, semelhante temática é um convite para outras pesquisas,

porém, para o momento, ainda que não tenhamos como acompanhar os passos de

Joaninha e seus filhos, podemos afiançar que, ao publicar o ocorrido na fazenda

Botafogo abria-se uma senda à „sujeição‟ de Joaninha em retirar os restos mortais

de seus entes queridos e re-viver a morte de sua esposa e filha pela segunda vez,

transformado em ato de coragem, de resignação e, por conseguinte, de

instrumento de mobilização social por meio da comoção dos leitores da Folha

Alvorada.

Ao alertar para o fato de esses homens não terem coração, “Se fazem

assim com os que já morreram o que não farão com aqueles que estão vivos?”182

Essa é a esteira onde asseveramos nossa narrativa, no âmbito da escola da

educação básica, circulou a percepção do que fizeram com os que viveram o

contexto.

A tessitura do discurso publicada na Folha Alvorada, especialmente as

matérias sobre a escola, permite-nos afirmar uma intenção inaugural que superou

a dimensão de suas paredes, transbordando os limites das comunidades, numa

rede de tramas que, ao contrário de uma forma redutora e passiva, e ou isolada

182

Ibid.

Page 146: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

146

geograficamente, era capaz de discernimento acerca dos processos sócio

históricos, econômicos, políticos e culturais pertencentes a uma construção social,

própria daquele contexto.

Assim, apresentamos o objetivo deste segundo capítulo: abordar a

questão da escola enquanto decisiva na formação social do tempo, cuja narrativa

divide-se em três partes: na primeira, retomaremos o contexto sócio histórico que

ensejou sua edificação, revelando fatos não apresentados no capítulo anterior; a

segunda é a de perceber se a mesma, enquanto instituição, contribuiu para a

modificação dicotômica opressor x oprimido, pelo fato de a escola ter sido

edificada nas comunidades, o que possibilitou aos oprimidos pensar e agir

diferentemente às práticas de violência adotadas pelos primeiros (latifundiários

com o apoio do Estado)?, ou prevaleceu a lei do mais forte, com a destruição das

formas de organização social indígena, e transformando os sistemas de referências

da economia, de organização para o trabalho e igualmente entre as famílias de

posseiros, peões, meeiros, já tratados anteriormente, cujas consequências

reservaram trágicas ocorrências naqueles sertões? Por fim, a terceira e última

parte foi dedicada aos esforços de desvelar as bases teóricas presentes nas

reflexões e ações que resultaram na edificação da escola enquanto pedra angular

social na formação das comunidades entre o Araguaia-Xingu mato-grossense.

Como escola e educação popular poderiam firmar-se na base da

organização social num contexto onde a educação ainda não era uma política

pública prioritária para o governo militar? Poderíamos conferir àquela escola uma

educação popular? Teria sido ela democrática? Se o foi, quais aspectos lhe podem

conferir tais prerrogativas? O fato de ter sido inventada pelo povo e para o povo

conferiu consciência às famílias onde foi edificada? Haveremos de tratar dessas

nuances a seguir.

Conforme relatório do analista do Centro de Informações da

Aeronáutica (CISA):

Suscitar uma maior dominância no processo pedagógico

brasileiro e sul-americano que pudesse contribuir para uma

„educação popular conscientizada‟, levando em conta os graus

Page 147: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

147

de dominações impressos ao povo nos regimes tidos pela

esquerda clerical como ditatoriais.183

Pensar a escola como umas das mais elaboradas invenções sociais no

tempo, parece-nos um desafio bastante pertinente, porém, historicamente deixado

de lado, cujas razões carecem ser reveladas, pois entendemos que, a partir do

momento em que a escola for percebida com essa função, nos contextos

históricos, seja enquanto estratégia de permanência das estruturas sociais, ou por

sua superação, ao tempo em que a reconhece como atalaia, como domínio onde se

manifesta a resistência, igualmente poderá ser a ela atribuído o papel de

canalizadora de projeções para a transformação, pois é na escola de educação

básica onde se mobilizaram as táticas subversivas, em contraposição às estratégias

de dominação.

Mais uma pergunta nos move em direção às respostas, quem, para

quem e como foi inventada a escola no Araguaia-Xingu mato-grossense? Para

buscar tais respostas, visitaremos o contexto das famílias na década de 1970.

No dia 15 de setembro de 1971, ao escrever seu diário, Pedro

Casaldáliga afirmou que o índice de analfabetismo era predominante entre as

famílias, e via a educação das crianças enquanto saída para um futuro sonhado,

diferente do triste destino dos pais. Afirmava ainda que:

[...] interesaba más al pueblo que el propio derecho de tener

tierra y comer. Desde el primer momento de nuestra llegada,

nos llovieron las peticiones: íbamos a dar clase, construiríamos

colegio, organizaríamos internado, podíamos quedarnos con los

hijos ajenos, adoptarlos y educarlos... No se concebía la

presencia de unos Padres o de unas Hermanas que no abordasen

ese problema.184

Descrevia características do mundo colonizado, de sonhos pela

possessão, a que se referiu Fanon, especialmente no lado da fronteira habitada

183

GOMES. Paulo César. Os Bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da

espionagem. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2014. P. 52. 184

CASALDAGLIA, Pedro. Diário 1977-1983. En rebelde fidelidade. Tercer libro del diario de

Pedro Casaldáliga, Desclée, Bilbao, 1983.

Page 148: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

148

pelo colonizado.185

Todavia, embora o excerto possa conduzir-nos a certo exagero

de expressão, ainda assim merece atenção, uma vez que seria o direito à terra e à

alimentação menos importantes que a educação dos filhos? Continuaria a prática

de as famílias, sem as condições necessárias para a criação dos filhos, deixando-os

sob a tutela da igreja para que pudessem ter uma vida menos sofrida no „sertão‟

entre o Araguaia-Xingu mato-grossense?

Estaria registrando las peticiones dos posseiros para que seus filhos

fossem assistidos de saberes que a eles não foram possíveis, pela falta de

conhecimento das letras, possibilitada pelas classes (aulas) em espaços não

oficiais ou no interior das escolas? Ou se tratava de mais um desejo de Pedro

Casaldáliga em atender, dentre as inúmeras carências daquele povo, reveladas por

meio de suas vivências durante as „campanhas missionárias?‟

Como representante da igreja católica, como iria contribuir para tal

„missão‟, já que se tratava de um estrangeiro catalão cumprindo suas funções

religiosas no Araguaia-Xingu em plena ditadura militar? Que razões teria para

buscar solução para problema tão aclamado durante as reuniões com a

comunidade? Parece-nos um ponto de partida importante a seguir.

Como assinalamos, suas incursões foram iniciadas com as campanhas

missionárias, mecanismo utilizado para conhecer, compartilhar e colaborar com a

formação das famílias. Tais ações eram vistas como avanço, pois não eram

possíveis de serem praticadas durante as desobrigas, há muito praticadas pela

igreja católica em todo o Brasil. Porém, observou-se que, estando em maior

contato com a realidade das famílias, fazia emergir uma problemática – o fim da

reprodução do catolicismo e a emergência de um campo religioso plural, cujo

185

Nessa divisão bipolar, a zona habitada pelos colonizados, conforme Frantz Fanon, não era

complementar à habitada pelos colonos. Essas duas zonas opõem-se, mas não ao serviço de uma

unidade superior, regidas por uma lógica puramente aristotélica e obedecendo ao princípio da

exclusão recíproca. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro, é uma cidade

iluminada e asfaltada. A cidade do colono é uma cidade farta, indolente e está sempre cheia de

coisas boas, sendo, por fim, uma cidade de brancos e de estrangeiros. A cidade do colonizado, a

cidade indígena, a cidade negra (a exemplo do Araguaia as cidade nos sertões) eram povoadas de

homens de má fama. Ali se nasce em qualquer lado, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer

parte e não se sabe nunca de que. A cidade do colonizado é a cidade esfomeada, por falta de pão,

de carne, de sapatos, de joelhos, a chafurdar. O olhar que o colonizado lança sobre a cidade do

colono é um olhar de luxúria e desejo, revestido de sonhos de possessão. (FANON. Frantz. Op.

cit., p. 24).

Page 149: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

149

movimento se consolidava na década de 1970, por meio de práticas de

destradicionalização.186

Estava o líder religioso, por meio de registro diário, reforçando para si

o que havia firmado a partir da reivindicação feita pelo povo? Envidaria esforços

para construir escolas, embora essa fosse uma responsabilidade do Estado? E,

para que pudesse atender aos filhos das famílias mais longínquas, seriam

organizados internatos, onde as crianças e adolescentes pudessem permanecer

durante o período letivo?

Resta-nos, portanto, por meio dos registros deixados sobre essas

práticas, indagar: como se deu o processo, quem eram as pessoas engajadas na

ação, de que se valiam para cumprir tal desiderato? Cabe-nos igualmente, avaliar

se a tática utilizada contribuiu para superar o quadro de analfabetismo vivido

pelas famílias que habitavam o quadrilátero da prelazia, sob a jurisdição do Bispo

Pedro Casaldáliga. Por fim, que recursos utilizavam para sua materialização e qual

sua origem e destinação? Quem foram os protagonistas dessa escola? Do ponto de

vista pedagógico, a escola adotou mesmo o método Paulo Freire, como afirmara o

próprio Casaldáliga?187

Seria essa uma forma de dar novo sentido ao mundo das

famílias, tomando a palavra como instrumento de poder?

Conforme consta no diário de Pedro Casaldáliga, em abril de 1971,

quando as chuvas terminaram, ao tempo em que se deu início de uma nova

186

Em artigo de Carlos Alberto Steil e Rodrigo Toniol, intitulado O catolicismo e a igreja católica

no Brasil à luz dos dados sobre a religião no senso de 2010 (Debates do NER, Porto Alegre, ano

14, n. 24, p. 223-243, jul./dez. 2013), abordam a problemática da diminuição de católicos na

sociedade brasileira, como problema de adequação às respostas da instituição aos desafios da

evangelização, causando um enfraquecimento da relação entre a instituição e o catolicismo popular

tradicional, como um aspecto fundamental que abre um debate sobre a importância do campo

religioso plural, pois, segundo eles, esse foi um processo cultural levado a cabo por agentes leigos,

organizados em irmandades, associações, folias, reisados, congadas, capelinhas de beira de

estrada, santuários presididos por monges e beatos, o catolicismo e que se reproduziu no Brasil

enquanto movimento detentor de certa autonomia em relação à igreja católica enquanto instituição

eclesiástica. 187

Brandão procurou lançar luzes ao conceito de educação proposto por Paulo Freire. O estudioso

entende que, sob a perspectiva freiriana, a educação não se caracteriza apenas por práticas de

ensino institucionalizadas, como aquelas existentes nas escolas, mas considera que a educação

abrange todos os processos de formação dos indivíduos, de modo que toda troca de saberes se

constitui enquanto práticas educativas e pode se desenvolver nos mais variados ambientes sociais.

Portanto, para nossa reflexão, entendemos que três dimensões se fizeram importantes: o diálogo, a

conscientização e a libertação. Assim, a busca por respostas possibilitará entender a relação entre a

educação popular e a educação não formal, sendo elas permeadas por uma perspectiva dialética

educação-conscientização gerando a prática para liberdade. (BRANDÃO. Carlos Rodrigues, O que

é educação popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 47).

Page 150: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

150

experiência pastoral, as „Campanhas Missionárias‟ um tipo de „missão popular‟,

mas em âmbito do solo, para melhor atender as famílias do lugar, cujas ações

exigiam maior tempo de permanência que chegava à três meses de trabalho em

equipe, pois, concomitante às formações religiosas, ofereciam um curso de

alfabetização de acordo com o método Paulo Freire, adotando palavras do

cotidiano das pessoas e tomando-as de forma a facilitar a aprendizagem. Além

disso, afirmou o religioso que a permanência na comunidade possibilitava a

descoberta dos líderes locais, o cultivo do fermento das futuras comunidades.188

Conforme Oliveira, ao perguntar ao professor Hélio, sobre a

aproximação dele e seus contemporâneos de atividades docentes no Araguaia e

também com relação ao método Paulo Freire, respondeu que:

[...] o nosso primeiro contato com o chamado método Paulo

Freire foi em Campinas, em 1969, quando a fama do grande

mestre já corria o mundo. Já morávamos numa grande república

de estudantes. Ficamos sabendo do curso num colégio

particular. O Moura e eu nos inscrevemos. Era um negócio

muito sigiloso por causa da repressão. Foi muito bom, de alto

nível. O que mais me impressionava era a metodologia: o

debate, o diálogo, a dialética, as aulas práticas. Nessa época,

Paulo Freire já se encontrava exilado no Chile. O que

aprendemos, aplicamos no Araguaia.189

Inaugurava-se com essas ações não só a possibilidade de dotar as

pessoas de ferramentas para a leitura da palavra, mas seu alcance a uma educação

popular capaz de promover a integração e participação dos sujeitos na construção

da sociedade, por meio de uma educação comprometida com a politização do

educando e na qual o sujeito pudesse se tornar ativo, capaz de refletir e agir sobre

o meio, conforme Brandão:

Um novo paradigma de educação se volta contra a educação.

Depois ele se volta contra as condições sociais da sociedade

desigual. Mais adiante ele se afirma como a possibilidade de a

educação ser um instrumento que opera no domínio do

conhecimento a serviço do processo de passagem do povo, de

sujeito econômico a sujeito político, capaz de transformar as

188

O intelectual e líder religioso, ali, junto com sua equipe inaugurando o rompimento com os

silêncios insólitos, as reservas, o segredo, mergulhando no povo conforme Fanon (1965, p. 30). 189

OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. Op. cit., p. 153.

Page 151: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

151

relações sociais de que as da educação são apenas símbolo, uma

artimanha e uma dimensão190

.

Assumir aquele compromisso representava uma aliança para com a

comunidade, portanto, consistiu numa estratégia utilizada pelo líder religioso que,

em curto espaço de tempo teria que pagar alto preço, desde sua perseguição,

prisão e tentativas de morte, cujos episódios apresentaremos ao final deste

capítulo.

Já em relação à comunidade, tal decisão significava esperança, pois,

além da possibilidade de aprender a ler, escrever e contar, inaugurava a formação

de uma rede fomentando maior proximidade entre as instituições – família-igreja-

escola, unidas para um duradouro conflito. Porém, a educação faria emergir como

proposta re-escrever a prática, como asseverou Brandão.191

A educação popular surgia para repensar o sentido político do lugar da

educação. Voltemos ao processo inaugural da caminhada, e da escola engajada à

luta pela terra, Pontinópolis, ano de 1971.

As campanhas, conforme o Pedro Casaldáliga, se deram em

Pontinópolis, uma „aldeia‟ a 125 quilômetros de São Félix. E nela fomos, afirmou

Casaldáliga:

[...] definitivamente reconhecidos como a favor dos „posseiros‟

ou dos colonos sem-terra, assediados pelo latifúndio que se

formava com a anuência do governo. Naquela comunidade se

iniciaram as campanhas missionárias e também o duplo

desencontro com o Sr. Ariosto da Riva, que prometeu ir ao

povoado para conversar com os posseiros e com o latifúndio,

que ele representava.192

Conforme anotações no diário de Pedro Casaldáliga, do dia 18 de

maio:

Esperamos el domingo, inútilmente (todos los habitantes de

Pontinópolis y decenas de familias venidas de las proximidades,

leguas y más leguas, a caballo, hombres, mujeres y niños) la

venida del Sr. Ariosto aquí, a Pontinópolis. Una vez más faltó a

su palabra. Estábamos preparados para recibirlo, y con

argumentos dentro del ámbito mismo de la ley. ¡Ni Dios se hace

esperar así!, le dije yo, irritado, al pueblo...‟

190

BRANDÃO. Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 48. 191

Ibid. 192

CASALDÁLIGA, Pedro. Yo creo en la justicia y en la esperanza. El Credo que ha dado

sentido a mi vida, Desclée de Brower, Bilbao (España) 1976, p. 14.

Page 152: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

152

Aquella ira solidaria me valió la confianza definitiva de los

líderes del lugar ¡después de dos años de ya aparente

confianza!193

O não comparecimento de Ariosto da Riva àquela reunião na

comunidade, ao tempo em que assinalava a falta de compromisso do capital para

com as famílias ali residentes, ampliava a insegurança em relação à permanência

das mesmas em suas terras. Todavia, ao afirmar “Estábamos preparados para

recibirlo, y con argumentos dentro del ámbito mismo de la ley”194

, inaugurava

uma possibilidade de contestar a legalidade do direcionamento das terras

ocupadas pelos posseiros pelo governo e sua entrega ao latifúndio. Para tanto,

haveria de „educar‟ o coletivo de famílias para que, em união, pudessem defender

seus direitos.

Registrou ainda o missionário que durante as campanhas foram

descobrindo, definitivamente, os problemas do nosso povo, o conflito social

básico de uma região oficialmente destinada a ser pecuária de gado, área da

Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), onde o esterco da

vaca equivalia a um selo reconhecido de „integração nacional‟ e de desintegração

desumana de índios, posseiros e peões.

A expressão nosso povo, traduz com clareza uma intencionalidade, a

tentativa de pertencimento, superando as barreiras do estrangeirismo, fazendo uso

do termo „nosso‟ de propriedade, somando-se ao „nosso‟ de nossas causas e

futuras batalhas, fazendo a importante distinção de dois extremos, de um lado o

povo e de outro o latifúndio, a empresa a serviço da política do governo militar

com o discurso da integração nacional.

Afirmou ainda o líder religioso que “[...] aquel día copié también este

consejo de CONFUCIO: „Si quieres coger por un día, da de comer a los hombres.

Si quieres coger por un año, planta el grano. Si quieres coger para siempre,

instruye al Pueblo”.195

Portanto, revelava-se, de um lado, uma problemática e indicação do

caminho a seguir, pois a questão dizia respeito às precariedades a que o povo

193

Ibid. 194

Ibid. 195

Ibid.

Page 153: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

153

estava submetido frente ao imperialismo capitalista, pois, o não cumprimento do

combinado por parte do pretenso „dono‟ da terra apontava para a necessidade de

uma longa jornada de batalhas a serem travadas; a outra tinha como centralidade a

certeza de que só haveria sucesso se o povo se preparasse e agisse em união, pois

o desafio se avolumava no horizonte.

Duas são as hipóteses a serem lançadas àquele ato fundador, a

primeira ancora-se na seguinte interpretação: a ausência de Ariosto à reunião

representou o desprezo para com as famílias ali residentes, quais eram os

condenados a sair da terra. A outra, que pensamos um pouco mais plausível, era a

face bem conhecida da relação formal em que se manifestava o estado colonial,

estado latifundista196

, determinado a controlar a soberania política e a manter o

império controlador das terras que a eles (latifúndio) não pertencia, pois já eram

habitadas por outros - os posseiros e, antes deles, os indígenas. Assim, naquele

ato fundador, também inaugurou a resistência por meio de uma luta ideológica por

restaurar aquela comunidade estilhaçada pela dúvida.

Casaldáliga, ao sublevar-se, apelava para a consciência crítica, própria

daqueles que estavam fora de lugar, procurando desloca-los para outro campo, em

contexto, uma fuga de uma única versão de verdade, para que pudessem

arregimentar-se de argumentos e coragem em defesa de sua permanência na terra.

Todavia, para que tal intento fosse alcançado, necessitava preparar todos para que

pudessem compartilhar desse mesmo ponto de partida, crítico e revolucionário,

conforme Said:

A qual só pode ser alcançada com uma revisão das atitudes

perante a educação. Simplesmente insistir com os estudantes

para que se firmem em sua identidade, sua história e tradição,

em sua especificidade única, pode em princípio leva-los a

expressar suas exigências fundamentais de democracia e do

direito a uma vida assegurada e decentemente humana.197

Todavia, alerta-nos ainda o mesmo autor:

Precisamos ir além e situá-las numa geografia de outras

identidades, outros povos e culturas, e aí estudar como eles

sempre se sobrepuseram uns aos outros, apesar de suas

diferenças, seja por influência mútua, cruzamento,

196

Ibid. 197

SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 498.

Page 154: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

154

incorporação, rememoração, esquecimento deliberado, seja

evidentemente, por conflito.198

Tomamos por empréstimo uma questão abordada pelo mesmo autor e

a readequamos ao contexto estudado, que conseguiu o movimento pela libertação

das famílias de posseiros e peões do cativeiro do analfabetismo, escapando aos

processos homogeneizadores do Estado e afastando-se da centralidade

educacional, aqui representada pela política de Estado, que, como já mencionado,

proclamava os interesses do latifúndio. Concluímos o tópico afirmando que, em

meio às incertezas surgia um movimento por uma escola popular e democrática no

Araguaia-Xingu mato-grossense, mesmo que a peso de subversão, conforme

analisaremos no tópico a seguir.

2.1 - A escola entre a obsessão do governo militar e a crescente desumanização do

povo

Entre as misteriosas subversões no Araguaia mato-grossense e de um

governo militar estruturado na obsessão da Segurança Nacional estava a escola e a

sociedade, formadas por uma única realidade, um contexto que só pode ser

revelado por meio da pesquisa histórica que contribui na tessitura daquele passado

no presente, cujos atores não poderiam ser outros, que não as famílias que

povoaram as terras e águas da Amazônica Legal mato-grossense, circunscritas

entre os rios Araguaia-Xingu.

Como bússola da justiça, a educação proclamada é uma realidade

compartilhada em tom poético de denúncia, como a que fez Pedro Casaldáliga em

defesa do oprimido, no ano de 1984, em Proclama Subversiva.

Voy a cambiaros el revólver chulo

por un bolígrafo de cuentas.

Para que no os engañen nunca

ni los fazendeiros, ni los comerciantes,

ni el ministerio de hacienda.

¡Disparad hojas de libros

entre las hojas de la floresta!

198

Ibid.

Page 155: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

155

¡Bebed, en las noches claras,

la „pinga‟ de otra fiesta!

¡Emborrachaos de sabiduría

y de belleza,

sertanejos mozos,

hijos biennacidos

de los legítimos emperadores de América!

Muchachas, garzas torvas,

madres -niñas apenas-,

que guardáis en las arcas de vuestros ojos indios

todas las lunas de las abuelas:

¡aprended a lavar niños

y a conducir con ritmo vuestras piernas!

Hombres heroicos,

¡exigid la tierra!

Mujeres mártires,

¡exigid la diadema!

Viejos desollados por tantos caminos,

¡exigid la poltrona

y la libreta!

Dios se hace Pan de familia

sobre esta mesa.

Y en Brasilia y en Washington

ni lo sospechan.

¡Pero el sol y la lluvia

sellan

la única ley de Derechos Humanos

de validez cierta! 199

Observa-se que o autor chama a atenção, em linguagem poética, sobre

a necessidade de se substituir o revólver pela caneta, símbolo de estudo e domínio

das letras e dos números, registrada nas folhas dos livros em meio às folhas da

floresta, que a pinga de outra festa lhe deixasse bêbado de sabedoria. Homens

heróis que deveriam exigir sua terra; mulheres mártires exigiriam o diadema; já

velhos, a poltrona e os cadernos, e, ao fazê-lo, naquelas paragens, nem Brasília,

199

CASALDÁLIGA, Pedro. Cantares de la entera libertad. Antologia para a la Nueva

Nicarágua. Prólogo de José Coronel Urtecho. Manágua: IBCA – CAV – CEPA, 1984. 81 p.

Coedición de Instituto Histórico Centro Americano, Centro Ecumenico Antonio Valdivieso y

Centro de Educacíon y Promocíon Agraria. Col. Bibl. Antonio Miranda.

Page 156: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

156

nem Washington suspeitaria, mas o sol e a chuva selariam a única lei válida, a dos

Direitos Humanos.200

Embora a poesia seja merecedora de análise mais profunda, o

propósito aqui foi o de sintetizar a mensagem central do autor, qual seja, evocar a

atenção para os direitos humanos, pois a ignorância que levava aos conflitos,

muitas vezes banais, resultavam em violências de toda ordem, tendo a ignorância

principal ingrediente. Vale lembrar que um dos problemas a serem solucionados

era a falta de acesso às escolas, tanto na tenra idade quanto na velhice, a falta de

terra e de respeito para com a mulher, constituíam uma das faces da violência e da

desumanização das pessoas.

Tudo isso ocorria em decorrência dos interesses do capital, conhecido

por expulsar as famílias da terra, sem nacionalidade, pois a maioria das fazendas

pertencia a empresas estrangeiras, o que, de certa forma, colocava por terra o

discurso nacionalista e ufanista do governo militar brasileiro. Tratava-se de um

projeto criminoso de venda de terras a baixíssimo custo ao capital estrangeiro,

conforme analisou Oliveira (2016, p. 70) ao se referir ao falso nacionalismo

existente no documento que deu origem às bases do desenvolvimento capitalista,

por meio da Declaração da Amazônica:

Governo e homens de empresas do Brasil, reunidos na

Amazônia sob a inspiração de Deus e norteados pelo firme

propósito de preservar a unidade nacional como patrimônio, que

receberam indiviso, conscientes da necessidade de promover o

crescimento econômico acelerado da Região, como processo

indispensável, para atingir esse objetivo e a própria valorização

do homem que a habita.201

Percebe-se que o homem a ser valorizado seria apenas o

empreendedor, o capitalista, visto que o posseiro, bem como a escola, as

200

Em diálogo imediatamente posterior à defesa da tese, e, antes que depositássemos junto ao

Programa de Pós Graduação em História, como professor de licenciandos em Educação Física com

a disciplina história da educação ministrada na cidade de Luciara por meio do Programa

Parceladas, um dos alunos ali presentes, por nome de Osvaldo Ribeiro da Silva afirmou a

existência de uma tal „caneta de sete bicos‟, se referindo à prática dos empreiteiros e comerciantes

em alterar o valor e a quantidade dos produtos e ou serviços favorecendo sempre o empreiteiro ou

comerciante em detrimento dos analfabetos pobres e dos peões sob o julgo do sistema de

exploração do trabalho. 201

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção

e violência. São Paulo: Iandé, 2016, p. 70.

Page 157: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

157

associações, os clubes ou quaisquer iniciativas ali inventadas não passavam de

mais um estorvo aos interesses dos opressores, representados pelos empresários,

banqueiros e pelo governo brasileiro, pois, estes últimos pertenciam ao mesmo

„balaio‟, comungando do mesmo ideário. Estava, portanto, o representante do

governo com a Declaração da Amazônia a fazer valer o discurso do grande vazio,

para ocupa-lo com empresas agropecuárias.

Observamos que a década de 1970 foi marcada por inúmeros projetos

criados para a Região Amazônica, dentre eles o do Araguaia-Xingu. Só em Mato

Grosso podem ser destacadas as seguintes políticas territoriais e de fomento.202

:

- Criação da SUDAM – e para fomentar seus projetos a criação do

Banco BASA – Banco da Amazônia S/A financiador da instalação de grandes

grupos econômicos em projetos de agropecuária no Araguaia-Xingu;

- Criação do PIN – Programa de Integração Nacional, criado pelo

Decreto-Lei n. 1.106, de 16 de junho de 1970, com a construção das rodovias

Transamazônica, Cuiabá-Santarém e BR-080 (futura Brasília-Manaus), Cuiabá-

Porto Velho, Porto Velho Manaus, Manaus-Boa Vista e Perimetral Norte, sendo

que a faixa de 10 km de cada lado da rodovia serviria enquanto Programa de

„Colonização e Reforma Agrária‟. Já, 30% dos recursos financeiros dos incentivos

fiscais oriundos de abatimento dos impostos de renda seriam aplicados neste

programa.

Com o PIN, o governo do General Médici ficou conhecido com a

campanha ufanista „Integrar a Amazônia para não os entregar aos estrangeiros‟

que, como já afirmado, não passou de um engodo, pois a maioria dos projetos de

pecuária no Araguaia contava com capital estrangeiro;

- PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à

Agroindústria no Norte e Nordeste, promulgado pelo Decreto Lei n. 1.179, de 6

202

As informações sobre os Programas de Desenvolvimento da Amazônica Mato-grossense foram

extraídas da obra de Oliveira. Ariovaldo Umbelino. A fronteira Amazônica Mato-Grossense:

Grilagem, Corrupção e Violência. São Paulo: Iandé, 2016, p. 95-169.

Ainda sobre esse tema, são encontradas excelentes narrativas produzidas por JOANONI NETO,

Vitale. Amazônia na década de 1970. A fronteira sob o olhar do migrante. Revista Eletrônica da

ANPHLAC, ISSN 1679-1061, n. 16, p. 186 -206, jan./jul. 2014. http://revista.anphlac.org.br.

Acesso em 12 de fevereiro de 2018. Igualmente sobre tais empreendimentos e consequências para

o Araguaia, encontramos ricas reflexões em BARROS. João Carlos (Org). Araguaia: o (des)

encontro de diferentes agentes sociais. Cuiabá: EdUFMT, 2016.

Page 158: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

158

de julho de 1971, também pelo General Médici, tendo sido nomeado de „reforma

agrária‟ para os latifundiários;

- POLAMAZÔNIA – criado pelo Decreto n. 17.607, de 25 de

setembro de 1974: o planejamento do Programa de Polos Agropecuários e

Agrominerais da Amazônia consistiu na estratégia do governo militar em

„territorializar‟ os grandes monopólios na Amazônia. O programa criou 15 áreas

prioritárias, a primeira delas era o Araguaia Xingu.

- POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados,

instituído por meio do Decreto n. 75.320, de 29 de janeiro de 1975, do General

Geisel, teve por objetivo o desenvolvimento dos cerrados, visando a instalação de

obras de infraestrutura, sobretudo armazenagem, estradas, dentre outras.

- POLONOROESTE – Programa de desenvolvimento regional

integrado para ser implantado nas áreas cortadas pela BR-364 e financiado pelo

Banco Mundial. Em Mato Grosso esse programa foi utilizado para a regularização

fundiária;

- PRODECER – Programa Nipo-Brasileiro de Cooperação para o

Desenvolvimento Agrícola do Cerrado, com o plantio de arroz e soja, tendo por

objetivo a exportação para o Japão, em atendimento ao acordo JICA- Japan

International Coopetation Agency;

- PRODEAGRO – Projeto de Desenvolvimento Agroambiental de

Mato Grosso, voltado para realizar investimentos em diversos setores, com valor

aproximado a 270 milhões de dólares aplicados em 5 anos.

As informações arroladas de forma sintética objetivaram revelar os

inúmeros programas criados para fomentar o „desenvolvimento‟ da Amazônia,

todavia, como pode se observar, a maioria visava favorecer aos grandes

empresários. Portanto, para o governo militar, pouco importavam as mazelas pelas

quais passavam as famílias residentes no Araguaia-Xingu.

Para entender a consequência direta dessa política, a seguir,

apresentamos um quadro relacionando os projetos aprovados pelo governo federal

por meio da SUDAM, para a territorialidade demarcada pela presente pesquisa.

Embora os dados não estejam completos, é possível observar que a somatória da

área de terra em hectares alcançava 2.192.094 (dois milhões, cento e noventa e

Page 159: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

159

dois mil e noventa e quatro ha), exceto 15 projetos, cujos dados não aparecem no

quadro-síntese das terras distribuídas aos grandes latifundiários.

Quanto ao valor, em dinheiro, recebido por meio de incentivos fiscais,

os 66 projetos somaram Cr$ 272.064.000 (duzentos e setenta e dois milhões e

sessenta e quatro mil cruzeiros). Essa é uma amostra inconteste de que o governo

federal, sob o poder dos militares, agiu de forma a garantir muita terra e muito

dinheiro para pouca gente, contrariando, portanto, o discurso de valorização do

homem que ali habitava, pois, esse homem – o sertanejo, o posseiro, o peão e o

indígena – não existia nesse naco generoso de benesses.

Pela tabela a seguir se pode conhecer nominalmente os

empreendimentos agropecuárias, a quantidade de hectares e os valores recebidos

da SUDAM, por meio dos incentivos fiscais. Em destaque, as fazendas que, de

forma direta ou indireta, fomentaram a violência e fizeram jorrar sangue em solo

mato-grossense.

Tabela 5 - Projetos (Empresas) de pecuária aprovados pela SUDAM no Araguaia

mato-grossense

Seq.

Projetos de pecuária

Área em

(há)

Incentivos

fiscais em

(Cr$)

1 Agro Pecuária „7 de Setembro Ltda.‟ 18.582 2.025.620

2 Agro Pecuária Duas Âncoras 23.005 4.191.575

3 Agro Pecuária Médio Araguaia (AGROPEMA) 11.370 1.487.426

4 Agropastoril Barra do Garças 9.998 4.784.430

5 Agropastoril Campo Verde 64.819 6.565.129

6 Agropastoril Nova Patrocínio („Fazenda Porta da

Amazônia‟)

26.817 3.083.467

7 Agropecuária „Santa Rosa‟ 19.360 3.968.033

8 Agropecuária „Três Marias‟ 20.000 3.505.768

9 Agropecuária Alvorada Mato-grossense

(APAME)

29.703 4.332.496

10 Agropecuária Bela Vista 36.125 4.390.924

11 Agropecuária Brasil Novo 27.905 6.010.081

12 Agropecuária Califórnia Comércio e Indústria

(AGROINSA)

29.831 3.142.165

13 Agropecuária Cocal ---- 4.235.909

14 Agropecuária Colorado 5.413 1.526.140

15 Agropecuária do Araguaia (AGROPASA) 48.165 7.122.208

16 Agropecuária Duas Pontes ---- 812.719

17 Agropecuária Foltran 13.741 3.319.720

18 Agropecuária Guanabara 25.800 4.398.889

19 Agropecuária Nova Amazônia (FRENOVA) ---- 4.872.318

20 Agropecuária Planalto (AGROPLASA) ---- 4.405.941

Page 160: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

160

21 Agropecuária Remanso Açu ---- 2.989.015

22 Agropecuária Rio Manso ---- 2.307.809

23 Agropecuária Roncador 24.251 5.379.188

24 Agropecuária Santa Silvia 39.574 3.028.000

25 Agropecuária São Francisco do Xingu 21.000 3.921.364

26 Agropecuária São João da Liberdade ---- 6.213.140

27 Agropecuária São José 19.915 4.960.318

28 Agropecuária Suiá-Missú

Pertencente à multinacional Liquefarm, com

sede na Itália.

695.843 7.878.000

29 Agropecuária Tamakavy

Pertencente ao grupo Silvio Santos, proprietário

e estação de televisão.

24.999 5.144.623

30 Agropecuária Tapirapé („Fazenda Tapirapé‟) 27.614 3.109.694

31 Agropecuária Tatuibi 19.936 5.973.970

32 Buritizal Agropecuária 30.621 3.939.638

33 Cia. Agrícola e Pastoril S. Judas Tadeu ---- 5.955.380

34 Cia. Agro Pastoril Sul da Amazônia 24.200 4.288.877

35 Cia. de Desenvolvimento do Araguaia

(CODEARA)

Pertencente ao BCN – Banco de Crédito

nacional e a Noidore Agropecuária, cujo

proprietário ficou conhecido por ter

‘comprado’ prisioneiros na penitenciária de

Cuiabá-MT, para leva-los para trabalhar em

sua fazenda

196.497 16.066.900

36 Cia. Desenvolvimento Agropecuário de Mato

Grosso (CODEMA)

26.824 2.342.725

37 Colonização e Representação do Brasil

(COREBRASA)

52.272 3.130.000

38 Colonizadora e Representações Brasileiras

(COLBRASA)

24.969 6.774.833

39 Companhia Agropastoril Aruanã (CIAGRA) ---- 5.975.784

40 Companhia Agropecuária Sete Barras 19.360 6.320.477

41 Companhia de Desenvolvimento Garapu

(CODESGA)

9.000 3.207.265

42 Curuá Agropecuária 9.455 1.432.258

43 Elagro Pecuária 29.446 6.459.426

44 Empresa Agropecuária Ema 8.952 1.514.838

45 Fazenda Nova Kênia ---- 2.115.148

46 Fazenda Nova Viena 29.503 4.718.377

47 Fazenda Tanguro Agropecuária 33.562 2.149.072

48 Fazendas Associadas do Araguaia (FAASA) 10.000 1.413.288

49 Independência Agropecuária ---- 1.460.546

50 Joaçaba Agropecuária 9.744 1.417.255

51 Nativa Agropecuária ---- 1.593.654

52 Noidori Agropecuária ---- 2.663.771

53 Norte Pastoril Mato-grossense ---- 5.881.454

54 Pabreulândia Agropastoril do Brasil Central ---- 1.913.721

55 Pastoral Agro Pecuária Couto Magalhães 50.176 2.451.662

56 Porto Velho Agropecuária 49.994 6.193.496

Page 161: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

161

57 Rancho Santo Antônio 21.780 4.788.884

58 Rio Fontoura Agropecuária 14.864 3.754.920

59 Santa Luzia Agropecuária 4.930 1.959.037

60 Sociedade Agropecuária Brasil Central 31.110 3.729.142

61 Sociedade Agropecuária do Vale do Araguaia

(SAPEVA)

72.567 6.208.686

62 Tabaju Agropecuária 19.931 3.019.474

63 Tapiraguaia Agrícola e Pecuária 21.923 2.519.404

64 Tracajá Agropecuária 29.880 3.798.133

65 União Gaúcha Colonizadora Agropecuária

(SOGUACHA)

26.300 5.247.075

66 Urupianga Agropecuária 50.468 6.573.321

Totais 2.192.094 272.064.000 Fonte: SUDAM (1990).

Dos 66 projetos relacionados, cinco ganham destaque por

recorrentemente citados por conta de conflitos com os posseiros, somando ainda a

Agropecuária da Amazônia – Bordon (empresa ligada ao setor frigorífico), com

instalações em Campo Grande e Aquidauana, no atual Mato Grosso do Sul. Essa

empresa também era a maior companhia de ônibus de São Paulo, tendo ainda por

sócio o Banco Nacional de Minas Gerais, a Eletroradiobrás e David Nasser, um

dos repórteres mais conhecidos do Brasil.

Sobre esta questão, Oliveira203

afirmou que, dos 85 projetos

financiados pela SUDAM no Araguaia, 13 não foram identificados pelo

imageamento e tampouco localizados na pesquisa de campo feita pelo Instituto

Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Dentre as dificuldades de serem

identificados estava a falta de estradas, porém, afirma o autor que em suas

pesquisas foi possível confirmar que já haviam 760.390 (setecentos e sessenta mil,

trezentos e noventa hectares) desmatados, na primeira metade da década de

1970204

.

Assim, muitas pesquisas haverão de existir sobre a política de reforma

agrária adotada no Brasil da segunda metade do século XX e início do século

XXI, pois, há uma contradição entre o discurso e a prática. Talvez, a nível macro,

jamais teremos uma reforma agrária, pois, as leis, decretos e programas passam

pelo jugo dos detentores do poder de tomada de decisão, a exemplo a bancada

203

VALVERDE, O; FREITAS, T. L. O problema Florestal da Amazônia Brasileira. Petrópolis:

Vozes, 1980, p. 42. São Paulo: Iandé, 2016 apud OLIVEIRA. Ariovaldo Umbelino. Op. cit., p.

357. 204

Ibid.

Page 162: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

162

ruralista que votam as leis e invariavelmente indicam o Ministro da agricultura, os

quais, não o fazem se não para beneficiar seus protegidos detentores de capital.

Nesse sentido, alertava Pedro Casaldáliga,

El profesor José Martins nos recordaba: «No siempre la historia

es insurreccional y nunca es mágica». Reforma agraria no es un

acto institucional, decía alguien. «La gran transformación social

acontece a nivel local o no acontece». Lo que no significa que

no se deba preparar, localmente, la gran transformación global.

Revolucinando se hace la Revolución.

El capitalismo nunca hará, sin suicidarse, una reforma agraria

que sea para el bien real de la mayoría. Hará reformismos

agrários.205

A história insurrecional nem sempre acontece num passe de mágica,

assim, para haver uma transformação em larga escala ela precisa acontecer

localmente, ou então não acontece, portanto, requeria preparar pontualmente a

revolução, demarcando seu ponto de partida, pois, assim, revolução se faz com

revolução. Advertia ainda o prelado que não esperava que o capitalismo fosse se

suicidar, assim, o que estava acontecendo era reformismo agrário, naquele

momento em benefício dos latifundiários.

Analisar o distanciamento das práticas institucionais será uma forma

de, com maior clareza a dialética, apresentar os interesses, bem como o sentido

dado à educação nos primeiros anos em que a escola começou a ser inventada

nessa imensa área de matos, terras e água do Araguaia-Xingu mato-grossense.

Todavia, merece destaque o fato de existir algumas condições para

que as empresas se instalassem nessa região, porém não passavam de acordos

descumpridos:

Somente 42% dos projetos cumpriram as cláusulas contratuais

com a SUDAM, no tocante às habitações: havia 4 a 7 casas de

alvenaria por projeto, em média. O grau de instrução dos

informantes era, em 56% dos casos, de nível escolar primário.

Em 77% dos projetos não havia sequer escola primária.206

Conclui-se o presente tópico com a afirmativa de que as empresas

beneficiadas com os incentivos da SUDAM não cumpriram com as obrigações

205

En rebelde fidelidad. Diário 1977-1983. Tercer libro del diario de Pedro Casaldáliga, publicado

originalmente por Desclée, Bilbao, 1983. 206

OLIVEIRA. Ariovaldo Umbelino. Op. cit.

Page 163: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

163

para com os trabalhadores e suas famílias, seja em relação aos ambulatórios ou

médicos visitantes, ou mesmo em relação às casas de alvenaria, às cercas, à luz

elétrica e, principalmente, às escolas, os quais não saíram do papel. O não

cumprimento por parte das empresas eram passível de punição, caso constatada

pela fiscalizações da SUDAM, todavia, elas também engrossaram o rol das

irresponsabilidades daquele projeto capital privado + interesses do governo.

Assim, seguimos apresentando o cenário em que a escola foi inventada.

2.2 - A Escola e os „sentidos‟ de educação para quem trabalhava na terra

O silêncio sobre as cláusulas contratuais não cumpridas pelas

empresas nos projetos das grandes fazendas foi irrompido pelas vozes dos atores

sociais que sofriam na pele as consequências desse trama. Igualmente ecoava no

Brasil Central denúncias pela ausência do Estado nas questões fundamentais à

vida e permanência das famílias naqueles sertões. Muitos eram os crimes

cometidos contra as unidades familiares, porém, um dos mais gritantes foram

aqueles cometidos pelo governo militar, com o „entreguismo‟ das terras da nação

para as mãos dos empresários, banqueiros e ao capital estrangeiro, pois, os

tubarões, diferentemente do que preconizavam os contratos com a SUDAM, ao

lado da especulação imobiliária das terras se tornou prática comum, como

observado nas palavras de Zé das Trovas:

Uma promessa de progresso que nunca se cumpriu

Os tubarões estão querendo

a terra para revender.

Eles querem fazer comércio

não plantam nem para comer. 207

Retomo aqui um aspecto tratado no primeiro capítulo, para afirmar

que, além dos projetos empresariais não respeitarem o direito das famílias,

também contribuíram para sua ampliação. Formado o pasto e implantadas as

benfeitorias julgadas necessárias, os peões trabalhadores eram despedidos em

massa, sem qualquer indenização, deixando as famílias, em Mato Grosso bem

como fora deste, à deriva, num processo crescente de desumanização do povo de

207

ZÉ DAS TROVAS, lavrador da Prelazia de São Félix do Araguaia MT.CEDI, 1983, p. 12.

Page 164: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

164

um Brasil bastante conhecido porém, pouco atendido pelas políticas públicas tão

necessárias no país e em maior grandeza, entre o Araguaia-Xingu.

O êxodo pela concentração de terras em mãos de poucos, numa região

que, no discurso, deveria ser a redenção daqueles que da terra dependiam. Vida

extremada, morte anunciada, pois, com pouco ou quase nada, no limite da

penúria, sobrava razões para conflitos, embriaguez e disputas banais de

trabalhadores embrutecidos pelas circunstâncias, frente às poucas garantias de

sucesso pelo próprio trabalho.

A vida no campo foi marcada por formas distintas de trabalho, ou

produzindo na posse o suficiente para a subsistência, em suas roças e criação, ou

trabalhando nas fazendas. Havia três tipos diferentes de roça: a „misturada‟, onde

eram plantadas no mesmo espaço diferentes culturas, a „solteira‟, referindo-se às

roças maiores, a de quem possuía mais terra cultivável e onde o lavrador podia

plantar diferentes espécies de cultivares em espaços separados, ou dentro de uma

mesma roça, conforme a importância do „legume‟ no cardápio diário. E, por

último, a roça de monocultura eram típicas das fazendas que estavam sendo

abertas, cuja produção era destinada ao mercado.208

O primeiro tipo de roça aberta na mata exigia conhecimento, pois,

algumas famílias „novas‟, por não conhecerem as técnicas necessárias para o

cultivo, tiveram que aprender com os índios. Sobre essa questão, Maria Cantuário

registrou o depoimento do senhor Corino, um camponês natural de Goiás, de pais

maranhenses, morador da região desde a década de 1950:

Quando nós chegamos aqui, foi um sofrimento, muita gente

perdeu o plantio tudo passou fome. Derribava a roça, plantava

aquele mundo de semente e num dava nada, nem nascia, num é.

Era de encabular que diacho tinha, num é? Terra bonita,

aguada e os treim num nascia, roça perdia todo plantio e o

povo só perdendo os restim de semente que tinha trazido. Eu

encabulei e como tava sempre por ai no meio dos índios pela

aldeia, via eles colherem aquele monte de legume bonito, cada

mandioca que era de admirar. E aí fui suntar eles plantando,

num é. E vi aquele serviço, eles plantando as coisas na flor da

terra, ai preguntei pro cacique se aqueles treim iam nascer, ele

208

CANTUÁRIO. Maria Raimunda dos Santos. “Oh de casa! Oh de Fora! Vamos chegando e

vamos entrando”: lavradores às margens do Araguaia mato-grossense (1950-1990). Dissertação

(Mestrado em História) – UFMT – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, ICHS, 2012, p. 38.

Page 165: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

165

disse que sempre nascia, branco é que não sabia plantar. E

num é de ver minha fia que nois plantava os treim era fundo,

socava o enxadão era de conforça, fui prestar atenção

direitinho e vi que a terra de primeira era só uma camadinha,

ai depois que eu descobri cabou o tempo ruim, num é, logo todo

mundo aprendeu. Índio véio era o treim num é? Num são besta

não209

.

Assim, percebe-se que, ao falar de roça, torna-se necessário entender

que os fazendeiros opressores também fizeram uso do conhecimento dos índios,

brancos pobres, além de sua mão-de-obra, porém, numa escala de produção muito

maior, e, invariavelmente, além do uso de máquinas e equipamentos pesados.

Quanto ao aspecto da exploração da força de trabalho, ALMEIDA210

destacou:

A roça de monocultura, ou a roça do fazendeiro. Nesta roça

planta-se um único tipo de cultura, o arroz; ela se dá numa área

muito grande 10 a 50 alqueires e exige um grande investimento

em tecnologia avançada e capital, como o uso do trator, plantio

em curvas de nível, represa para irrigação, canais e pulverização

de agrotóxicos através de avião; e ela tem como única

preocupação, a produção para o mercado exterior. O posseiro,

por sua vez, a encara como uma roça fraca, pois prejudica a

terra, esgotando-a, e atrai pragas para região.211

Todavia, o trabalho no latifúndio, nas décadas entre 1970 a 2000, era,

em sua grande maioria, de peonagem, para a derrubada, formação e limpeza do

pasto, construção de cerca, acero e roçada de juquira. Também, após formada a

fazenda, a lida passava a ser com o gado.

Conforme Oliveira, nas fazendas, os trabalhadores tinham o que

oferecer, sua relação contratual, conforme relatório do Centro Ecumênico de

Documentação e Informação, era distinto em dois tipos.212

a) O contrato tipo cativo, aquele em que é tratado um preço por

hectare de serviço e os peões arcam com as despesas de alimentação, ferramentas

209

CORINO, Depoimento. In: CANTUÁRIO, 2012, p. 39. Maria Cantuário fez um inventário

etnográfico sobre o modo de vida de um grupo de lavradores descendentes de nordestinos que se

instalou à margem esquerda do rio Araguaia, hoje pertencente ao município de São Félix do

Araguaia, entre as décadas de 1950 a 1990. Os aspectos explorados são as relações dos lavradores

com a terra e água, bem como os laços de sociabilidade tecidos entre eles a partir das práticas de

produção de farinha e tecelagem de rede. Um belo trabalho de leitura fácil e rica em detalhes. 210

ALMEIDA, 1987, p. 37 apud CANTUÁRIO, 2012, p. 37. 211

Ibid. 212

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção

e violência apud CEDI, 1983, p. 19-20. São Paulo: Iandé, 2016, p, 344.

Page 166: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

166

e extraordinárias. O grupo de peões tem que ter as „tralhas‟ (panelas, talheres etc.)

de cozinha, sendo um deles o cozinheiro. Mas, todas as mercadorias têm que ser

compradas do gato, que, por sua vez, é o único que tem autorização para comprar

no armazém da fazenda;

b) O outro tipo de contrato é chamado de livre: e no qual, como diz o

próprio nome, a remuneração do peão é livre de quaisquer despesas. O gato

providencia a alimentação e leva a comida no local do serviço. O valor do

contrato livre é quase sempre a metade do estabelecido pelo contrato cativo.

Em geral, o gato determina a quantidade de serviço para cada peão

realizar, por exemplo, 5 hectares, na derrubada. Estes poderiam trabalhar

individualmente, ou organizarem-se em grupos de 4 ou 6 homens, para atuar em

área comum. Esses pequenos grupos de trabalho, tanto no sistema cativo, livre ou

de sociedade são chamados de times, existindo um representante desse grupo, que

é chamado de chefe do time.

Neide Esterci, ao falar da relação com o trabalho, afirma que:

O que está em jogo é a perda, por parte do trabalhador, de sua

condição de livre possuidor de sua força de trabalho: ele passa,

através da dívida, de livre a escravo: de possuidor de uma

mercadoria, a mercadoria.213

Já em relação à forma de pagamento pelo serviço prestado, havia

mecanismos de „segurar‟ o trabalhador coercitivamente, até que este pagasse suas

dívidas, quase sempre maiores do que lhe seria pago ao final da empreita, o que

revela tratar-se de instrumento que sujeição do trabalhador a quem compra sua

força de trabalho, trata-se do abono:

O abono é crucial no estabelecimento da relação, pois cria a

dívida e, portanto, garante a imobilização do trabalhador no

momento em que outras formas de coerção não têm condições

de se exercer. Suponhamos, por exemplo, antes de se deslocar

para o local de trabalho, mas, já depois de ter-se comprometido

com um intermediário que outro lhe ofereça melhores

213

ESTERCI, Neide, Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Petrópolis:

Vozes, 1987. P. 123. Faz-se importante apresentar o cotidiano, as relações de trabalho e formas de

exploração pois, as famílias exploradas eram as mesmas dos escolares.

Page 167: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

167

condições. Nesta situação, só o abono pode restringir suas

possibilidades de desistir do compromisso.214

Murilo Carvalho, em seu livro Sangue da Terra, apresenta um

episódio de violência bastante emblemático, verdadeira tragédia e degradação

humana:

Em 1970, quando a Polícia Federal invadiu a Codeara para

soltar cerca de 1.200 trabalhadores que estavam escravizados,

sem poder sair da mata, morrendo de maleita, guardados por

pistoleiros comandados por Décio. Segundo a própria política,

dezenas de corpos foram encontrados, enterrados em covas

rasas, trabalhadores que morreram de doenças ou foram mortos

por pistoleiros durante as derrubadas.215

Esgotados fisicamente e muitas vezes sem dinheiro suficiente para

voltar para sua terra de origem, esse trabalhador se dirige para as pequenas

cidades da região ou embrenhava nas matas, onde se instalava com lavoura de

subsistência, como posseiros, ampliando igualmente a demanda por escolas e

demais direitos constitucionais.

Reunidas as informações sobre as formas de organização da vida e

sua relação com a exploração do trabalho, seja na produção de sua subsistência ou

para alimentar a voracidade do capital, descortina-se a possibilidade de entender o

contexto das denúncias feitas por Pedro Casaldáliga, bem como a própria

invenção da escola enquanto pedra angular na formação social no Araguaia-Xingu

mato-grossense.

De posse dessas leituras, delineamos os sentidos dados à educação

lançados pelo líder religioso e sua equipe no horizonte, anunciados por meio da

Folha Alvorada como evocado por meio de matéria publicada no mês de maio de

1970216

, a partir da qual conseguimos mapear a noção de educação publicada pelo

mesmo periódico:

[a] educação significava romper com o desânimo, a apatia, o

medo. Significa ainda tornar-se dono de seu destino,

participante das decisões nacionais. Participar do poder, das

riquezas e da cultura brasileira. Educação significava saber e

214

Op. cit., p. 125. 215

CARVALHO, Murilo, Sangue da terra. A luta armada no campo. São Paulo: Brasil Debates,

1980. P. 68. 216

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03 p 2-3.

Page 168: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

168

poder escolher melhor os representantes do povo. Pensar com

a própria cabeça e andar com os próprios pés.

Educação significa tomar consciência de sua dignidade, é saber

que a pessoa humana tem valor que nenhum dinheiro pode

pagar. Educação significa ser liberto da miséria, do

analfabetismo, da superstição. É encontrar com mais segurança

a subsistência, a saúde, o emprego.

Educação significa não viver enganado ou dominado por

nenhuma força, significa não permanecer mais „deitado

eternamente em berço esplêndido‟, mas levantar-se e erguer a

cabeça, olhando confiante no futuro, ainda que nuvens negras

pairem sobre nossas cabeças. Um povo educado saberia

combater as raízes da violência, da injustiça e construiria

uma verdadeira democracia.217

Afirmava ainda a matéria que a educação ensina a agir com

inteligência, com liberdade e com responsabilidade. É viver uma maior união e

comunicação com todos, num ambiente alegre, de paz, de compreensão e de ajuda

mútua. A educação aumenta, nessa medida, a consciência da solidariedade e da

união entre o povo.218

A dimensão de educação descrita na matéria assinalava, portanto, as

bandeiras de luta e compromissos da escola para com a comunidade, bem como

da comunidade para com a escola. Tal desígnio esculpe na escola a pedra angular

da sociedade, um direito inalienável ao ser humano, naquele momento abatido

diante das injustiças, mazelas, sujeição ao capital, de aniquilamento e

invisibilidade, uma vez ignorados pelas decisões do governo e sem as condições

necessárias de ver e entender a realidade por falta de conhecimento. Pela

educação, deveriam estar preparados para alinhar-se ao coletivo, unir-se diante de

uma causa comum, preparando para viver a democracia, cujo passo primeiro seria

a permanência na terra.

Convém ainda salientar que toda a dimensão educacional foi tratada

enquanto desafio, pois, ao mesmo tempo em que era fruto de vivências históricas,

pertence ao espaço-tempo, à região do Brasil Central da década de 1970.

Pensamos que essa dimensão da educação precisa ser desejada, pois

emana questões de fundo para a formação social no tempo, cujas razões

prescindem de entender seus sentidos: para que construir projetos de alfabetização

217

Ibid. 218

Ibid. Em grifos no original.

Page 169: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

169

numa sociedade alfabetizada, não teria sentido anunciar a necessidade de valorizar

o ser humano, se ele fosse respeitado, não teria sentido almejar a superação de um

quadro de miséria, se vivessem a bonança, não teria sentido lutar contra o

desemprego em uma sociedade governada por gestores que se preocupassem em

garantir acesso ao emprego, não teria sentido lutar contra a desigualdade, numa

sociedade em que a igualdade se fizesse hodierna.

Igualmente, não teria sentido combater as raízes da violência se ela

não estivesse presente nas atitudes dos governantes, dos fazendeiros (tubarões),

dos grileiros, dos posseiros, dos pais e mães de família, do professor, do peão.

Não teria sentido cobrar por justiça numa sociedade justa, não teria sentido cobrar

pelo direito a um pedaço de terra e à propriedade se os posseiros não vivessem

diuturnamente a insegurança, sob ameaça de expulsão, numa eterna busca por se

ver livre da opressão. Portanto, todas as dimensões pensadas para a escola

compunham um conjunto de soluções a serem alcançadas pela comunidade, e isso

só se daria por meio da luta, da mobilização e pela resistência.

Assim, podemos afirmar que uma educação escolar ganhou sentido na

medida em que estivesse vinculada a um projeto que visasse superar os problemas

vividos pela comunidade, cujo limite não se confinava na leitura e escrita, na

codificação e decodificação da palavra, mas num currículo que contribuísse para

que o aprendente desenvolvesse uma consciência sócio histórica, em ações

engajadas em torno de um bem comum. Eis mais um propósito do presente

capítulo, perceber a dimensão da invenção da escola vivida no Brasil Central.

Entendemos ainda que a mesma seria a única instituição capaz de,

transversalmente, tocar o interior das famílias com poder de transformar o

aprendente e, a partir dele, seu entorno, numa relação dialógica de construção do

conhecimento disseminado pela mediação e aprendizagem de um currículo capaz

de servir enquanto instrumento de poder, através de práticas para a liberdade. Do

contrário, perdia-se o principal sentido da educação.

O lançar luzes à formação das comunidades no Araguaia-Xingu, no

terceiro quarto do século XX, possibilita-nos entender as razões que moveram a

equipe da prelazia, sob a liderança de Pedro Casaldáliga, a envidar esforços para

que a população pudesse ter acesso à escola. Pois, os inimigos do povo eram

Page 170: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

170

inimigos em comum ao pensamento humanista – o capitalismo, a ditadura e o

latifúndio, como expressou Casaldáliga:

Yo he pasado mucha rabia en este Mato Grosso y he meditado

mucho, con la boca llena de agua, como quien se ahoga, en la

violencia y no violencia y me ha tocado perdonar muchas veces

a los enemigos del pueblo que son, os lo digo con toda

sinceridad, mis únicos enemigos - mis adversarios, si queréis

que os hable como todo un obispo -. Eso, sin embargo, no me

impide - Dios sabe hasta qué punto acierto o yerro - continuar

detestando el capitalismo, la dictadura, el latifundio... Eso, por

el contrario, me obliga a hacer lo posible para que esos

enemigos „se acaben‟.219

Ali, os escolares, em meio à violência, esculpiam a escola. Um espaço

que deveria preparar as pessoas para combater o inimigo comum, os opressores

representantes do império capitalista. Que opção teriam as famílias senão

combater o inimigo? Afirmou o líder que Paulo Freire, “[…] el maestro de

América, ha dicho con lúcida precisión evangélica que el único modo de amar a

los opresores es hacer que nunca más puedan oprimir a nadie”.220

Conseguiriam erguer os pilares da escola, edificada sob o alicerce das

famílias pobres que habitavam o Araguaia-Xingu, porém, como resistir aos abalos

causados pela exploração? Seguimos refletindo sob essa edificação.

2.3 - Na escola, para ensinar precisa saber: inaugurando a formação de professores

no Araguaia-Xingu

Em janeiro de 1978, a Folha Alvorada anunciou um importante curso

de formação para professores, muitos dos quais, como já antecipamos, eram leigos

residentes da região, organizado pela Secretaria Estadual de Educação e

funcionando durante as férias, com duração de quatro anos, cujas etapas

ocorreriam nos meses de janeiro e fevereiro, coincidindo com as férias escolares,

para não atrapalhar o ano letivo.221

219

CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Claves

Latinoamericanas, México 1990, p. 245. 220

Ibid. 221

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 52 p 2-

10

Page 171: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

171

A Secretaria Municipal de Educação de São Félix do Araguaia

conseguiu levar o curso para aquela cidade, o qual teve início no mês de janeiro,

contando com a participação de, aproximadamente, 60 professores. Afirmou a

matéria que com ele iria melhorar muito a preparação dos professores e, com isso,

também a escola da região.

Com o atraso no repasse do recurso prometido pela Secretaria de

Estado de Educação, ficou decidido que o curso iria acontecer do mesmo jeito.

Para tanto, tiveram que pedir a colaboração das famílias de São Félix para

fornecer refeições, almoço e jantar, para os professores que viessem dos

patrimônios.

Assim, pode-se perceber que a comunidade se fez presente, tanto na

edificação da escola quanto na questão da formação de professores. Mas, a

declaração de uma colaboradora para que o curso sucedesse anunciou o sentido

que o professor tinha diante da comunidade, afirmando que não importava se o ele

tivesse formação, fosse branco, meio escuro ou preto, pois o importante é que

fosse inicialmente escolhido por eles e que participasse da vida da comunidade no

seu dia-a-dia, para que pudesse se tornar amigo dos filhos, afinal, era essa a

profissão escolhida para estar a serviço do povo.

Essa afirmação reforça nossa defesa que a escola inventada no

Araguaia-Xingu, em sua gênese, trazia consigo uma relação extramuros escolares,

devendo, obrigatoriamente, haver uma integração entre escola e comunidade. Essa

relação de proximidade fez com que muitos dos profissionais conferissem tal

papel à escola, conforme relatou o Prof. Hélio, em entrevista a Oliveira (2016, p.

158): “[...] o GEA [Ginásio Estadual do Araguaia] não era uma escola cercada de

muros (no sentido físico e metafísico), isolada, alheia à realidade. Estava atenta e

participativa dos acontecimentos, principalmente quando os conflitos na Prelazia

começaram a se intensificar”.222

Observa-se que, por parte da escola, havia essa relação proximal com

os problemas da comunidade, sem distanciamentos ou muros. O projeto de escola

222

OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. A educação e a luta no Araguaia (Mato Grosso). Tese

(Doutorado em Educação) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo. Departamento de Geografia. Área de concentração: Geografia Humana. USP. 2016,

p. 158.

Page 172: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

172

ali inventado traduzia razões

suficientes para se afirmar um

projeto mais amplo de educação

popular, uma educação para o

povo, preparando-o para os

desafios do cotidiano, qual seja,

a construção da resistência.

Quanto à

inexistência de muros físicos,

pode-se perceber na Figura 8.

Outro aspecto relevante,

especialmente naquele

momento, foi a participação de

alunos na defesa dos

professores e da própria equipe da prelazia, quando denunciaram a existência de

um agente infiltrado no grupo, conforme relato:

Foram os alunos que nos alertaram e ajudaram a desmascarar

um falso seminarista que enganou o bispo e passou 20 dias

infiltrado em nossa casa. Não passava de um agente, um

jagunço especial, contratado por uma fazenda.223

A edificação do Ginásio Estadual do Araguaia – GEA pela Prelazia, e

enquanto estratégia de direcionamento visou torna-la uma escola oficial, obteve

êxito parcial, pelas razões já apresentadas anteriormente, porém, enquanto projeto

social cumpriu com êxito as funções para as quais havia sido planejado. A partir

dele se formou uma rede de pessoas, embora insuficientes para atender a toda

comunidade.

Todavia, o corpo de profissionais que atuava no ginásio, mesmo

existissem aqueles que não contassem com curso superior, no período de férias se

deslocavam para São Paulo, onde continuavam os estudos universitários, como

consta em matéria publicada na Folha Alvorada, em dezembro de 1970:

223

Ibid.

Page 173: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

173

[...] os professores do Ginásio de São Félix saem agora de férias

para São Paulo, De férias até certo ponto, porque eles durante as

férias cursam os seus estudos universitários, na „Anchieta‟

Paulistana. O Elmo e o Hélio voltarão para o ano próximo, com

mais outros 3 colegas. Porém o Luís e a Eunice ficarão lá.

Tchau, Luis e Eunice.224

Essa fórmula, inaugurada em princípios de 1970 para a formação de

professores, serviu para dar continuidade à capacitação docente, voltada somente

para os professores leigos em cursos de férias, adotado na década seguinte pelo

Projeto Inajá e atualmente pelos cursos de Parceladas, da Universidade do Estado

de Mato Grosso, cujo tema haveremos de retomar no quarto e último capítulo da

tese. Entendemos que essa foi e continua sendo uma estratégia adotada para a

inclusão das famílias na formação escolar em todos os níveis, fundamental, médio

e superior. Assim, a invenção da escola de educação básica esteve ligada a uma

plataforma política popular, representando as outras faces dessa pedra angular.

Ao tempo em que a matéria revelava a estratégia para a preparação do

corpo de profissionais que atuava no GEA, o periódico regional divulgou dados

sobre o coordenador desse grandioso projeto para a educação no Araguaia mato-

grossense: “Recebemos visita do querido colega, Pe. Antonio Canuto, responsável

pela turma dos professores do nosso Ginásio, lá em Campina de S.P.”.225

Já no mês de abril de 1971 anunciou, a Folha Alvorada, a chegada de

novos professores: Luis Goya, para lecionar Geografia e História no Ginásio,

Vaime João Rocha, que orientaria uma turma de alfabetização de Adultos, o

Hélio, que também dava aulas no Grupo Escolar; e Antonio Carlos Moura

Ferreira, que iria trabalhar nas campanhas missionárias fora de São Félix.

Informava ainda que os professores Elmo e Hélio, como já era de conhecimento

de todos, voltaram para São Félix para mais um ano de trabalho.

Na mesma edição, anunciou que as cinco irmãs “[...] vieram para ficar

conosco e já estão em plena atividade”.226

As irmã Maria de Lourdes, enfermeira

formada e que estava coordenando a comunidade das Irmãs, era responsável pelo

224

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Dezembro de 1970. A

16.0. 06 p 2-4 225

Ibid. 226

Alvorada (1971), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1971. A 16.0.07 p 1-

06

Page 174: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

174

ambulatório; a irmã Lúcia se tornara a diretora do grupo escolar e orientadora do

clube de mães; a irmã Maria Noêmia, professora do grupo escolar e orientadora

do parque infantil aos sábados; a irmã Irene, responsável pela secretaria do ginásio

e também responsável pelas atividades musicais dos jovens, e a irmã Bernarda,

especialista em corte e costura, educação doméstica, a qual iria auxiliar no clube

de mães.

Observa-se, portanto, que o corpo de profissionais que deu início às

atividades docentes estava diretamente ligado à Prelazia de São Félix do

Araguaia, compondo a rede de sociabilidade do Bispo Pedro Casaldàliga.

Todavia, não eram eles suficientes para atender toda a demanda de professores

naqueles sertões, havendo necessidade de se preparar outros profissionais que

pudessem exercer tal desiderato, nos anos seguintes.

Dessa feita, passados mais de seis anos, com a crescente demanda por

preparar novos profissionais, foi organizado o já citado curso de formação para os

professores leigos, cuja maioria era „escolhida‟ pela comunidade, seguindo, assim,

o curso da história do Ginásio Estadual do Araguaia.

Com essa invenção, oito anos passados de sua edificação, pretendeu-

se melhorar a escola do sertão, conforme pode ser observado nas palavras do

poeta Dia, transcritas a seguir:

Novidade de 1978, do poeta Diá

Vou escrever um versinho

Que vai chamar atenção

De todos os moradores

Dessa grande região

Porém o que eu vou dizer

É que todos vão saber

O que é educação

Setenta e oito chegou

Trazendo uma novidade

Que é uma coisa importante

Pra nossa comunidade

Pois Deus tá nos ajudando

E estamos trabalhando

Para o bem da humanidade

É que o nosso secretário

Junto com o pessoal

Isto é: todas as pessoas

Da escola municipal

Foram lá em Cuiabá

E conseguiram para cá

Um curso sensacional

Esse curso realmente

Já está funcionando

Os professores são ótimos

Todos estão se esforçando

É nisso que a gente vê

O motivo e o porquê

Que o lugar vai aumentando

De Cuiabá também veio

Uma pessoa importante

A professora Dineva

Uma mulher elegante

Não é ela a diretora

Mas é a supervisora

Page 175: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

175

Entre os participantes

Veio duas professoras

Lá do Rio de Janeiro

Uma se chama Tânia

E tinha um jeito faceiro

Théia, a outra se chamava

Morena que agradava

A qualquer brasileiro

Eram ótimas professoras

Ensinavam legalmente

Só a parte da didática

Que era mais suficiente

Ninguém achou um defeito

Festejava de contente

Tem os outros professores

Que eu ainda não falei

Porém não passou de tempos

Pois agora eu me lembrei

É o povo da Prelazia

A fonte da alegria

Que jamais esquecerei

Deixamos os professores

Para falar do pessoal

Que mora nos patrimónios

E é de igual para igual

É gente muito importante

E também participante

Deste cursinho legal

Veio gente de Santo Antônio

Pontinópolis e Cascalheira

Serra Nova e Porto Alegre,

Parece até brincadeira

Também lá da Chapadinha

E de Santa Terezinha,

Encheu a cidade inteira

Ficou então alojado

Todo esse pessoal

Lá no ginásio dos padres

Lugar sensacional

Pois era lá realmente

Que esse tanto de gente

Fazia o seu carnaval

Houve também um problema

Que é bom a gente lembrar

É que o dinheiro do curso

Demorou para chegar

Mas o povo da cidade

Com a sua lealdade

Resolveu nos ajudar

Essa ajuda foi assim:

Depois de se combinar

Pra quem veio dos patrimónios

Ir almoçar e jantar

Na cada do pessoal

Pois só dá gente legal

Nesse excelente lugar

Passando então oito dias

Naquela felicidade

Outras coisas melhoraram

Que pra falar a verdade

O que a gente conseguiu

Sei que todo mundo viu

Que foi por grande amizade

O pessoal da cidade

Com aquele contentamento

Logo nos ofereceram

Dinheiro e fornecimento

Pra quando o nosso sair

A gente se reunir

E fazer o pagamento

Então o próprio ginásio

Foi logo tudo arrumado

O Secretário depressa

Deixou tudo organizado

De cozinheira a fogão

E de lá ... o boião

[...]

Depois surgiu um problema

Que era um tanto complicado

O que todos nós ficamos

Um pouco preocupado

Todo mundo confundido

Mas depois foi resolvido

E ficou normalizado.

O caso foi o seguinte

Quem viu pode até lembrar

Uma firma muito rica

Como a gente ouviu falar

E que ninguém conhecia

Veio dizendo que requeria

Do curso participar

Projed é o nome da firma

Que veio nesta função

Prometendo melhorar

As escolas do sertão

Page 176: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

176

Mas deu pra gente notar

Que eles queriam mudar

O ensino da região

Era um problema enrolado

Ninguém podia entender

Em duas reuniões

Não deu para resolver

Achamos que estava errado

Era tudo atrapalhado

Resolvemos não querer

Reuniu-se o pessoal

Para primeiro pensar

E vendo que as condições

Não davam para agradar

Então mandaram dizer

Que ninguém ia querer

Gente de outro lugar

Porque nosso curso estava

Se desenvolvendo bem

Professores excelentes

A gente tinha também

Pois não podia deixar

A nossa escola ficar

No domínio de ninguém227

.

227

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de

São Félix do Araguaia. São Félix. 1979.

A16.0.53 P7.8

Page 177: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

177

A transcrição do relato poético de Diá foi privilegiada pelo seu valor

pedagógico. De forma clara e precisa, o colaborador sequenciou uma avaliação do

curso. Nesse sentido, observo a necessidade em se compreender a poesia enquanto

atividade política, por se tratar de um texto que apresenta a história do curso, mas

também como exemplar no relato de experiências.

O texto, rimado, em forma de cordel, revela de onde vieram as

professoras formadoras, além de Dineva, de Cuiabá, outras duas professoras, Thea

e Tânia, do Rio de Janeiro. Também foram lembrados os professores da

Prelazia.228

Entendo relevante observar que a literatura de cordel na região do

Araguaia e, em especial, as publicadas na Folha Alvorada representou um espaço

de anunciação política, com personagens reais e não fictícios, inventando um

gênero novo, por estar ligado à escola, onde o desafio oral, agora escrito,

inventava inovadora forma de compartilhar, de divulgar e enquanto registro, como

o próprio curso de formação dos professores. O cordel é um gênero pelo qual as

pessoas passavam a ter acesso às informações trovadas em linguagem poética.

Nessa medida, o cordel é dirigido para um determinado público,

normalmente conectado com sua sensibilidade, qual seja, anuncia a importância

de um determinado acontecimento sem perder o rigor da descrição, sem deixar de

lado os atores envolvidos, sem manifestar a satisfação com a atuação do coletivo,

do social e evidenciando as fragilidades do Estado. Embora a educação não fosse

um tema tratado ordinariamente pela literatura de cordel, ali assumiu importante

papel, ao relatar a importância e a riqueza do curso, mas também a união e a

solidariedade entre o povo, sem deixar de denunciar o descompromisso do Estado

em relação ao custeio da educação.

Todavia, ao tomarmos as descrições do Poeta Diá, é possível perceber

algumas dificuldades na execução do curso, que começou animado, visto ter

228

O cordel são folhetos contendo poemas populares e de autores locais, cuja venda era feitas em

cordas, varal ou cordéis, deu origem ao nome. Os poemas de cordel são escritos em forma de rima

e alguns são ilustrados. Trata de uma produção de inestimável importância para a manutenção das

identidades locais. O cordel é um dos mais fortes exemplos da corrente em que o popular adaptou

e reconstruiu um veículo erudito – a literatura escrita. Ver SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário

de conceitos Históricos. 2 ed., 2. Reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009. P. 157.

Page 178: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

178

comparecido mais de 50 professores dos patrimônios, os quais se alojaram no

antigo ginásio Araguaia. O problema das refeições foi resolvido pelos moradores

de São Félix, que, além de oferecer suas casas, forneceram alimentação aos

professores. Depois de alguns dias, a Secretaria de Educação conseguiu crédito

nas casas comerciais e as refeições passaram a ser realizadas no próprio

alojamento.

Com mais ou menos oito ou dez dias do início do curso, chegou

também um pessoal de uma firma por nome PROJED, que também trabalhava

com educação. Mas, conforme noticiou a Folha, os participantes do curso

disseram que já havia professores suficientes, inclusive duas professoras do Rio

de Janeiro. E o povo achou melhor continuar só com o curso que havia sido

iniciado, não permitindo a participação de outros.229

Os professores dos patrimônios deram sua opinião sobre o curso,

cujos registros foram publicados pela Folha Alvorada, os quais apresentamos

abaixo:

1) Com uma equipe de professores muito organizada e que

trabalha muito bem, para o melhor funcionamento do curso

e com a participação de cada aluno;

2) Este curso é necessário para toda a comunidade destes

lugares;

3) Este curso para nós tem sido uma realidade, pois temos

aprendido e conhecido a comunidade;

4) Foi uma belíssima oportunidade para aumentarmos o

número de amigos. Ficamos gostando muito do pessoal da

cidade, eles nos prestaram muita atenção;

5) O curso estava correndo otimamente, com dignos

professores e uma turma muito legal, vivendo como irmãos.

Sei que isto para nós é uma grande satisfação.230

Já a segunda etapa do curso ocorreu em janeiro, com término em 25

de fevereiro de 1979 e, por conta das chuvas, os professores que viviam além do

rio Xavantim (Xavantinho) tiveram que ser baldeados, numa canoa, por mais de 6

229

Por mais que dedicasse meu tempo à pesquisa, não foi possível descobrir que firma era o

PROJED e o que pretendiam na região. 230

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.62 p 7-8

e Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.63 p 12-

17. Também noticiou sobre o curso a edição Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do

Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.64 p 6-14.

Page 179: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

179

horas, sem folga. Igualmente à primeira etapa, os professores falaram à equipe da

Folha Alvorada, deixando sua opinião, as quais foram publicadas conforme

verificamos a seguir:

1) O curso trouxe grande importância para toda essa região,

somos uma turma de 74 e em grupo vamos planejando

nossas atividades nas escolas, as brincadeiras, a música,

teatro, isso faz com que aumente nossa união, a nossa

coragem e segurança para essa luta contínua;

2) Trocamos muitas ideias, trabalhamos em grupo,

aprendendo que é bom ajudar os companheiros que têm

dificuldade;

3) Considero esse curso como um meio de desenvolvimento

dessa região, após a 1ª etapa, realizada no ano passado,

muitas coisas foram facilitadas dentro do ensino,

principalmente a organização e funcionamento das aulas. E

até mesmo no sentido de enfrentar as dificuldades que

aparecem nas escolas e na vida do povo;

4) O curso é importante porque dá mais segurança no ensino,

e o nível das escolas cresce e faz a gente sentir mais a

realidade e fazer os outros sentir também.231

Ao compararmos as avaliações sobre a primeira etapa com a da

segunda, percebe-se que o segundo encontro revelou aspectos que antes não

haviam aparecido, a exemplo da ampliação da metodologia, com brincadeiras,

música, teatro, trabalho em grupo, entre outros. Porém, a união do povo, o

trabalho colaborativo e o preparo para lidar com as dificuldades das escolas e da

vida se tornou, para nosso trabalho, relevantes, visto assinalar a função social da

escola na comunidade.

Em agosto de 1979, a professora Rosalina Francisca Gomes, de Santo

Antônio, compartilhou, com a equipe da Folha Alvorada, que, durante a segunda

etapa do curso, dessa vez executado por duas professoras de Santa Catarina, foi

proposto à diretora que mandasse uma delas para fazer estágio de alfabetização

nas escolas de lá. Naquele momento, ficou resolvido que iria a professora

Rosalina, que empreendeu viagem no mês de março para Santa Catarina, onde

permaneceu por três meses, em estágio numa classe de 1º ano. Segundo a mesma,

231

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.62 p 7-8,

A 16.0.63 p 12-17. Também noticiou sobre o curso a edição Alvorada (1979), Folha da Prelazia de

São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.64 p 6-14.

Page 180: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

180

ficou conhecendo na prática o uso de cartaz , que foi passado no curso.232

Para a

professora cursista, ela foi muito bem orientada, pois aprendeu muitas coisas que

poderiam ajudar o nosso lugar. Afirmou ainda que as técnicas que o método

utiliza são bem do nosso alcance.233

Em relação ao problema que a professora encontrava antes de fazer o

curso, era que a gente sempre tem dificuldade para encaminhar a alfabetização

das crianças, mas, depois do curso se sentiu mais segura, podendo ajudar os

companheiros nesse trabalho. Informou ainda que a viagem foi possível por conta

da colaboração do prefeito, que financiou muito alegre e satisfeito.234

Assim, concluímos esse tópico com o sentimento de que encontramos

o curso que serviu de motivador para a construção do Projeto Inajá, de formação

de professores leigos, para o qual dedicaremos parte do capítulo 4 da tese.

Algumas questões levantadas puderam ser respondidas, e as outras, parcialmente

objetadas, serão retomadas nos capítulos vindouros.

Da etapa do curso durante o terceiro ano, não foi possível obter

informações, porém, ao final do quarto ano de atividade nos meses de férias, em

1980, conforme noticiou a Folha Alvorada, 60 professores haviam se formado e, a

partir daquele momento, contavam com um diploma na mão, e um grande desafio

em construir uma escola que servisse para o “[...] filho do rico, do pobre, do índio,

do branco, do preto, da rapariga”.235

Havia, com tom imperativo, a esperança de

que os professores não se tornassem soberbos pelo diploma, pois “[...] estavam

sendo diplomados para fazer uma escola para o povo, para o povo da região”.236

Observa-se que, aproximadamente, dos 74 cursistas, 60 deles

concluíram. Considerando as dificuldades encontradas para o deslocamento e

permanência em São Félix, os limites orçamentários se deram por conta do baixo

salário, além do seu atraso e das dificuldades, no caso de pais de família, de deixar

de cuidar dos afazeres familiares, seja em relação à roça, seja em relação aos

232

No quarto e último capítulo apresentaremos os cartazes, trata-se do método de alfabetização

proposto por Paulo Freire. 233

Ibid. 234

Ibid. 235

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A 16.1.14.p 1-

.19. 236

Ibid.

Page 181: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

181

filhos. O resultado foi extremamente positivo, pois somente 14 não conseguiram

concluir o curso.

Como destacado anteriormente, a formação dos professores era de

extrema relevância, pois a invenção da escola passava pela qualidade no

atendimento aos filhos das famílias da região, e, por serem estes, em sua maioria,

professores leigos, deveriam estar preparados para os desafios que estavam por

vir, especialmente no tocante ao enfrentamento do assédio por parte do latifúndio

e igualmente por parte dos políticos, representantes do governo.

Sob os auspícios da comunicação engajada, a Folha Alvorada

publicou, no início de 1981, matéria exaltando a importância que foi o curso,

porém, alertava para que cada um deles voltasse para suas localidades, o fizessem

com o compromisso de contribuir com a disseminação de práticas ali aprendidas.

Há de se lembrar de que, para ser professor, normalmente estes eram

escolhidos pela comunidade, portanto, tinham o compromisso de liderar as ações

na comunidade enquanto enfrentantes.237

Observando que, conforme afirmou

Eliseu em entrevista à Oliveira238

:

As escolas com o acompanhamento dos agentes pastorais

tornaram-se uma segurança para a manutenção da posse de

terra. Pois as famílias se desestabilizavam com menor

frequência [...] Nas escolas acompanhadas pela Prelazia os

professores eram eleitos pela comunidade e recebiam

preparação por meio dos agentes pastorais. Para o

acompanhamento eram realizadas viagens de bicicleta com até

50 km de ida e na volta todos os dias.239

Portanto, havia uma cobrança em relação ao compromisso de cada um para

com as famílias e especialmente para com os filhos. Por ser um momento

inaugural no fortalecimento da escola, e entendendo-a enquanto pedra angular,

transcrevemos um excerto da matéria:

237

O termo enfrentantes foi adotado pelo bispo, em finais da década de 1970, para referir-se às

lideranças que, com o apoio da prelazia, haviam de alimentar a comunidade onde atuavam, através

de atitudes voltadas para amenizar os problemas por meio do trabalho em equipe, de luta, de

enfrentamento aos interesses dos tubarões representantes do latifúndio e também das

determinações dos políticos, o que só ocorreria se houvesse união, fé e esperança. 238

OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. Op. cit., p. 164. 239

Ibid. A afirmativa de Eliseu permite-nos afirmar que a escola tinha papel fundamental no

processo de resistência aos desmandos praticados contra as famílias no Araguaia-Xingu mato-

grossense e como pedra angular da sociedade no tempo.

Page 182: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

182

Durante quatro anos, janeiro e fevereiro foi um movimento

danado de professores de todos os patrimónios chegando a São

Félix. Era o curso de Professores, um curso da Secretaria de

Educação do Estado, para formar professores de 1º grau, com

maior segurança no trabalho de educar. Neste ano acabou o

curso, com muita animação, muito choro, muita despedida.

Sessenta professores se formaram e estão agora com bastante

ideia para levar o trabalho de suas escolas. Discutiram muito e

viram que não adiantava um diploma na mão, se não contarem

[com] a participação de pais e alunos. Viram que a escola é

escola se, juntos, forem construindo todo ano.240

Assim, concluímos o tópico afirmando que, do ponto de vista

histórico, não dá para afirmar a existência de uma escola se não a considerarmos

enquanto processo, até porque, se ela se manteve de pé ao longo dos tempos foi

por trazer em si o poder de se transformar de acordo com o tempo. Assim, pensar

a escola enquanto pedra angular da sociedade, a pensamos como uma instituição

capaz de se reinventar. Assim, abrimos o próximo tópico igualmente afirmando

que essa instituição também teve (tem) o poder de transformar a cultura, embora

seja essa uma tarefa complexa, como veremos a seguir.

2.3.1 – A escola revela preconceitos

Como já foi mencionado anteriormente, para que o curso fosse

executado, inúmeros foram os problemas, desde dificuldades financeiras até o

assédio de empresa privada (Projed) tentando, de certa forma, atrapalhar o

desenvolvimento do curso.

Mas, na mesma página em que anunciava a conclusão do curso, a

Folha Alvorada revelava uma problemática para a qual, durante toda a década de

1980, dedicaria inúmeras outras matérias. Uma em especial é merecedora de nossa

reflexão, pois não teria como mudar, independente das relações de poder

estabelecidas entre os locais, regionais e para além das fronteiras Araguaia –

Xingu. Trata-se do „problema‟ do professor negro que, conforme publicado ao

término do curso, os professores diplomados teriam como um dos maiores

desafios, convencer os pais de família de que o fato de ser negro não poderia

240

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.14 p 15-

19.

Page 183: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

183

servir de mote para sua condenação sumária, como pode ser observado em suas

observações publicadas na Folha Alvorada edição dos meses de fevereiro e março

de 1981:

- Alguns pais insistem para mudar o professor de seus

filhos, porque o professor é negro;

- Outros pais não acreditam no professor negro e vão

conversar diretamente com o diretor;

- Outros ainda ensinam respostas a seus filhos, falando da

cor da pele241

.

Ao tomar a matéria como ponto de partida para pensar o processo

histórico pelo qual passou e ainda passam as famílias que fixaram morada na

região Araguaia-Xingu, levando-se em conta sua origem e condição social, não

nos permite pensar o padrão de família burguesa e branca, a exceção das que,

naquele início de década chegavam da região Sul do Brasil com o mesmo

propósito, viver da terra. Assim, uma pergunta se faz importante: se a maioria das

famílias não era branca, que razões poderiam ter para alimentar preconceito racial,

que aqui se limita ao negro, porém, como já mencionado anteriormente, era

também estendido ao índio, a exemplo do trabalho realizado no Ginásio Estadual

do Araguaia, em 1971?

A resposta poderia ser dada sob o viés econômico, porém, penso que

as reflexões de Edward Said se ajustam suficientemente para entendermos esse

paradigma:

[...] o preconceito racial é fruto do imperialismo, pois ele

consolidou a mescla de culturas e identidades numa escala

global. Mas, seu pior e mais paradoxal legado foi permitir que

as pessoas acreditassem que eram apenas, sobretudo,

exclusivamente brancas, pretas, ocidentais e orientais. No

entanto, assim como os seres humanos fazem sua própria

história, eles também fazem suas culturas e identidades étnicas.

Não pode negar a continuidade duradoura de longas tradições,

de moradias constantes, idiomas nacionais e geográficas

culturais, mas parece não existir nenhuma razão, afora o medo e

o preconceito, para continuar insistindo na separação e distinção

entre eles, como se toda a existência humana se reduzisse a

isso.242

241

Ibid. 242

SAID, Edward W. Op. cit., p. 231.

Page 184: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

184

Ao publicar a matéria naquele momento importante, quando os

professores estavam se formando, é possível afirmar que havia intenção clara de

fazer com que eles e os demais perdessem o medo e, por meio de sua ação nas

comunidades e em comunhão com as famílias, pudessem contribuir para a

transformação da cultura que os prendia a alimentar o preconceito.

Assim, a invenção da escola em finais do século XX no Araguaia-

Xingu exibe, com bastante vigor, desafios que emolduram sua longa e difícil

função, a de problematizar sua matriz sócio histórica, não bastando ter braços

fortes e saber lidar com a terra, mas prover condições para, numa busca constante,

dominar as letras e os valores, na vivência de um currículo que considerasse suas

práticas. Todavia, essas „inovações‟ de nada adiantariam se não desmontasse o

„modelo‟ idealizado por algumas famílias em relação ao professor – branco, culto,

cumpridor de seus „deveres‟ respeitando o mando dos governantes. Essa prática

era uma das faces da violência já esboçada anteriormente e que, adiante, será

melhor delineada.

2.4 - Violências além e aquém das cercanias da escola

Violência é toda violação dos direitos humanos, é tirar o índio

da sua terra, é deixar sem terra o lavrador, as famílias sem

moradia, os trabalhadores sem serviço, as crianças sem escolas,

os doentes sem atendimento, a carestia, o salário miséria,

desprezar o negro, o velho, a mulher, a criança. Violência é a

vingança, a prostituição, o desrespeito.243

Ao inaugurar esse tópico aludindo sobre a violência, o fazemos por

meio da dicotomia da Figura 9, a seguir, pois, ao tempo em que apresenta um

homem empunhando um fuzil elevando-o ao alto, como num gesto de exaltação,

em ato subversivo, revela o símbolo da paz. Portanto, assim enxergamos a

invenção da escola, enquanto guerra e paz, em movimento de lapidação

permanente, fazia-se presente na vida da comunidade entre o Araguaia-Xingu no

tempo.

243

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.02 p 08-

14 Adaptação do texto sobre Violência o que é?, publicado em alusão aos 20 anos da Campanha

da Fraternidade (1983), O inimigo da irmandade é a violência.

Page 185: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

185

Entretanto,

haveremos de entender que,

assim como qualquer outra

instituição, a escola, seja

naquelas décadas quanto nas

seguintes, com alcance aos

dias atuais, está „sujeita‟ a

lidar diariamente com

incontáveis situações-

problema que envolve atos de

violência, oxalá se todos os

ocorridos resultassem em

aprendizagem, sem que

nenhum de seus atores,

tampouco seu patrimônio

físico, fosse prejudicado, bem

como um ato de violência

fosse revidado com seu

contraditório, neutralizando,

assim, uma possível tréplica.

Todavia, como, naquele

momento o cenário não era o

de não violência, a escola passou a ser palco de tramas, como observaremos no

episódio a seguir.

No mês de junho de 1983, noticiou a Folha Alvorada que Justino

Soares Nava244, aluno da 6ª série, em estado de embriaguez, começou a fazer

bagunça no corredor da escola e também em sala de aula, promovendo

quebradeiras. Mesmo que o professor Vilson Pereira o convidasse a se retirar,

244

Colaboraram com a ação depredando a escola as alunas Maria Helena Pereira Soares, Joselilda

Siqueira Carvalho, da 7ª série, e Justino Soares, da 6ª.

Page 186: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

186

antes que o discente saísse, acabou brigando com os colegas e ofendendo a todos

que ali estavam.245

Do lado de fora da escola, juntou-se a outros alunos e alunas, dentre

eles o cabo Castro, e começaram a quebrar os vidros e as telhas da escola.

Embora houvessem outros alunos, os policiais militares não fizeram nada, já que o

cabo estava apoiando o ato de vandalismo. O diretor Hélio Fernando de Souza

tentou conversar, mas o grupo continuava agressivo e não queria dialogar.

Depois do ocorrido, o prefeito pediu a presença da polícia para

guardar a escola. No dia seguinte, foram chamados os pais dos alunos

baderneiros, como afirmou a matéria, e, dentre outros o Sr. Pedro Pereira da Silva,

que imediatamente começou a gritar e a ameaçar o diretor. Fora da escola havia

um grupo de alunos, incentivados por Geneci, que, para animar, levou um litro de

pinga, prometendo colocar fogo na secretaria.

Afirmou a matéria que os “[...] policiais estavam ali, viam tudo de

perto, mas nada faziam”.246

Mesmo que os professores tivessem pedido apoio,

nada podiam fazer, pois tinha ordem do Major Costa Neto de atuar na parte

externa da escola.

Mas, pelo visto, havia um combinado entre os mandantes e os

mandados, afinal, como havia um grupo bebendo e ameaçando atiçar fogo na

secretaria, fora da escola, não seria motivo para que os „guardiões‟ da ordem

interviessem? De acordo com a notícia, no interior da secretaria da escola

cometeram o maior quebra-quebra, derrubando armários, mesas, arquivos, entre

outros.247

Compete-nos perguntar: quais eram os motivos destes terem se

matriculado na escola? Que razões fizeram com que promovessem a confusão? O

que pretendiam ao se embriagar para iniciar o conflito? Por que envolveram

outros alunos (as) para promover a quebradeira na escola? Seria uma insatisfação

com os professores? Com a escola? O que justificava a participação de um cabo

da polícia incentivando a ação? Por que os demais policiais, mesmo sendo alunos

245

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.05 p 08-

14. 246

Ibid. 247

Ibid.

Page 187: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

187

da escola, não tomaram partido no sentido de preservar a integridade dos

profissionais e do patrimônio público?

Nenhuma resposta às questões acima justificaria tal atitude, afinal, a

escola não deveria ser, em princípio, local a ser cuidado por todos? Havia passado

pouco mais de uma década de sua edificação, com o propósito de contribuir para a

„libertação do povo‟ da opressão. Estariam já superadas tais prerrogativas? Se

tomarmos a resposta oferecida pelo autor da matéria, percebemos que a escola

vivia plenamente seu desafio, pois, “[...] tratava-se de uma ação orquestrada por

um grupo pertencente ao partido político PDS que ainda não tinha aceitado a

derrota nas últimas eleições”.248

Confere arregimentar uma questão: teria sido a escola incapaz de

oferecer formação suficiente aos alunos para que pudessem discernir o certo do

errado? Seria a consciência sócio histórica capaz de afastá-los da vala comum dos

ignorantes, fazendo-os entender que a escola ali edificada não tinha sido fruto do

acaso mas desejada, pois muitos tiveram que lutar por ela? Essa questão será mais

bem elaborada e resultará em reflexões pertinentes no quarto capítulo da tese,

quando abordaremos os „limites‟ da história ensinada.

Voltando para o episódio, é possível afirmar que, quando a conquista

não se dá pelo argumento, a violência física impera. No dia 27 de agosto de 1983,

o presidente do PDS e o diretor da escola Estadual, Sr. Gaspar das Neves,

estiveram na churrascaria do senhor Raimundo Viana, fazendo provocações e

quebradeiras, e dizendo que não gostavam da gente da prelazia. Isso aconteceu

depois de poucos dias de a filha do senhor Raimundo, que era aluna da escola, ter

lido, perante a 1ª dama do Estado, um abaixo-assinado denunciando a

desorganização e arbitrariedade na escola249.

Por uma conclusão prévia, conferimos à violência qualquer ato

humano contra outro humano ou a qualquer ser vivo, quando resulta em

satisfação, sem mensurar os efeitos que causará a outrem. Embora não esteja

entre nos propósitos mapear a violência na escola inventada no Araguaia-Xingu

mato-grossense, durante e após a ditadura militar, penso que necessitamos ampliar

nosso olhar para mapear quais eram as práticas mais comuns de violência entre

248

Ibid. 249

Ibid.

Page 188: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

188

professores e alunos, entre professores e pais e, acima de tudo, procurar desvelar a

causa.

Igualmente, uma narrativa sobre a escola brasileira da década de 1980

pode ignorar o quão violento foi o Estado, à época com, aproximadamente, sete

milhões de crianças entre 7 e 12 anos, as quais não tinham acesso à escola. Dentre

as causas podem ser destacadas: falta de instituições escolares, carência de

material didático, baixa remuneração dos professores, falta de condições

financeiras das famílias para manter seus filhos frequentando uma escola.

Como se não bastasse, a década de 1980 foi marcada pela crise

brasileira, pois o país tinha feito dívida de quase 90 bilhões de dólares com o

Fundo Monetário Internacional, pauta de importante matéria publicada pela Folha

Alvorada, no mês de abril de 1983, que anunciou ainda que o citado Fundo havia

concedido novo empréstimo ao Brasil, porém, exigiu medidas antipopulares,

como: a) cortes na ajuda à agricultura, com aumento dos preço dos alimentos:

arroz, milho, feijão, carne, leite, dentre outros; b) desvalorização do Cruzeiro,

aumentando, assim, o custo das indústrias que vendiam matéria-prima,

equipamentos e serviços, sobretaxando os produtos a serem vendidos aos

brasileiros; c) corte nos investimentos e gastos públicos e, com isso, as indústrias

estatais teriam sua produção diminuída, aumentando o desemprego, o que foi

agravado pelos reajustes menores do salário do funcionalismo público; d)

exigência de taxas mais elevadas para energia elétrica, água, passagens de

transportes coletivo, telefone, gasolina, gás, querosene e muitos outros serviços e

produtos.250

Nesse contexto de pobreza e impotência, vivido pelas famílias

desassistidas da terra, do trabalho e do dinheiro, restava-lhes procurar formas de

sobrevivência, como ocorreu quatro anos antes da publicação da matéria sobre as

medidas adotadas pelo governo, ao lançar mãos de empréstimos avultantes para

palear as mazelas inventadas para o Brasil.

Para desviar a atenção da opinião pública sobre a „falência‟ do sistema

de governo militar, a Folha Alvorada denunciou outra invenção em marcha, esta

bastante anunciada, porém, pouco conhecida, a invenção do Nordeste, lançada

250

Ibid.

Page 189: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

189

pela TV. Globo, „Nordeste Urgente‟ contra a seca, campanha que teve a recusa de

Dom Aloísio Lorcheider, arcebispo de Fortaleza, de celebrar a Missa de sua

abertura. A matéria foi composta por um poema de autoria de Zé Vicente, de

Crateús, Ceará, aqui transcrita, por entender que ele auxilia a percepção da trama

pela qual passava o governo brasileiro, vitimando a maior parte da população

oprimida251

:

É com a alma sofrida

e o coração pesaroso

que vou gritar em poesia

o drama mais doloroso

do meu povo nordestino

retirante e peregrino

num país tão valoroso

É duro, meu companheiro

cantar a dor em poesia

Só faço porque eu creio

que ainda vai vir o dia

da justiça e da razão

quando o povo do sertão

levantar-se em valentia!

Sinto uma grande vergonha

e uma dor no meu peito

ao ver o nordeste inteiro

humilhado deste jeito

pobres estirando a mão

para o resto da nação

pedindo esmola e respeito

Meu Deus, veja esta miséria

abra os olha os do meu povo

Faça que a nossa esperança

não gore igualmente um ovo

Que a seca seja uma escola

pra gente ver que com esmola

ninguém faz nordeste novo.

Já cantou Luiz Gonzaga

num verdadeiro baião

que punhado de esmola

„para um homem que é são

ou lhe mata de vergonha‟

cria confusão medonha

Desculpem se falo assim

me perdoem por caridade

pois eu sei que muita gente

tem reta e boa vontade

Mas será que desta forma

com remendo e com reforma

vem mudança de verdade?

Todos foram avisados

pelos nossos cientistas

que cinco anos de seca

já estavam às nossas vistas

Por que é que só agora

vem esmola e gente chora?

Não é bom mudar de pista?

Muitos sabem o que fazer

Pra acabar com nossa fome

Mas os homens do poder

passando a eleição, se somem

e usam a nossa miséria

a seca e coisa mais séria

pra terem dinheiro e nome.

Se tem político inocente

que não sabe o que fazer

pergunte ao povo reunido

e ele vai responder:

Por que o doutro não escuta

a voz do povo que luta

só acredita em você?

Nem precisa se abalar

pra visitar o sertão

pois o gasto é tão grande

que consome um dinheirão!

Me lembro do presidente

veio com avião e gente

251

Sobre a invenção de o Nordeste ler ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do

Nordeste e outras artes. 4 ed. Recife; São Paulo: FJN; Massangana; Cortez, 2009.

Page 190: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

190

„ou vicia o cidadão‟

Em cinco anos de seca

o silêncio foi total

Parece até que o nordeste

não é mesmo nacional

Foi preciso que uma enchente

no sul, mexesse com gente

em campanha sem igual

As notícias que se espanham

sobre o nordeste dá medo

retratos de gente pobre

que de manhazinha cedo

pega lagartixa e rato

e arranca raiz do mato

come sem pedir segredo.

Gente morrendo de fome

choro na televisão

abalam as damas mais ricas

dão um choque na nação

Parece até que é surpresa

séculos de fome e dureza

nas costas do meu sertão.

Cadê as promessas feitas

desde Dom Pedro Segundo?

o dinheiro sumido

aos olhos de todo mundo

Gente rica aproveitando

e aos pobres enganando

prometendo mudo e fundo

Vocês acham que estas coisas

não é para revoltar?

Campanhas e mais campanhas

e a propaganda no ar?

o estudante e o doutor

mulher de governador

todo mundo a se mostrar?

parecendo procissão.

Acredite em nossas cartas

nos abaixo-assinados

confie em nossa palavra

e no povo organizado

em grupo e no Sindicato

pobre na rua e no mato

que o Nordeste será mudado.

É o jeito, por enquanto

estender a nossa mão

e agradecer as ajudas

dadas de bom coração

Mas isto não nos consola

chega de promessa e esmola

queremos justiça e chão

Trabalho e salário justo

é solução verdadeira

barragem e cacimbão público

é saída de primeira

Dinheiro administrado

pelo povo organizado

é a mais correta maneira

e não venha me dizer

que esta ideia é avançada

e que a força do governo

possa ser ameaçada

faz tempo que diz isto

agora apensas eu insisto

que ela deve ser lembrada

Faço um pedido aos poetas

ao Jovem, ao trabalhador

às mulheres reunidas:

„Vamos gritar com fervor

por justiça e união

por terra, escola e feijão

O NORDESTE TEM SEU VALOR!‟

Ampliamos, assim, o campo de análise daquele contexto, somado ao

entreguismo das terras públicas a baixos preços, e incentivos fiscais aos grandes

empresários, favorecendo o latifúndio, a sujeição ao Fundo Monetário

Internacional e colocando em risco a soberania nacional. Como forma de desviar o

foco, atuou o governo por meio dos grandes meios de comunicação a construção

Page 191: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

191

de um discurso – a invenção do Nordeste – na realidade, uma tentativa de

ludibriar a opinião pública com uma campanha forjada nos estúdios da TV

Globo.252

Parece-nos que a denúncia sobre a invenção do Nordeste na ótica da

Folha Alvorada pronunciava em alto e bom tom as revelações que faria, duas

décadas depois, Albuquerque Jr. sobre as mazelas para além e aquém dos limites

territoriais: “[...] o Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais,

políticos ou econômicos, apenas, mas principalmente, construções imagético-

discursivas, constelações de sentido”.253

Sobre a seca nordestina, a Folha Alvorada anunciou, em outubro de

1983, que o ministro Mário Andreazza afirmara que a seca atingira 24 milhões de

nordestinos e que seria necessário uma resposta eficaz, cortando o mal pela raiz,

tornando a economia nordestina resistente às secas e exigindo ainda uma resposta

de emergência.

Todavia, denunciam os redatores da matéria que a seca tornou-se, no

Nordeste, um excelente negócio para os políticos, que periodicamente se

revelavam como salvadores do povo, distribuindo comida para a massa faminta.

Afirmava ainda que os bispos do Nordeste, juntamente com lideranças da região,

técnicos e especialistas fizeram um estudo sobre a seca e demonstraram ser

possível combate-la através de soluções simples, fáceis e populares, dentre elas,

afirmou Dom Fragoso, bispo de Crateús: 1 – a solução para o problema passava

pelo atendimento básico aos trabalhadores rurais, oferecendo-lhes trabalho e

abastecendo a região com mercadorias, vendidas a preço reduzido, e água. Com

esse caminho se respeitaria a dignidade do homem do campo que queria ganhar o

pão com o suor do próprio rosto.254

252

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Novembro de 1983

A16.2.01 p 12-18 e P13.15. Parece-nos que essa fórmula continua sendo aplicada no tocante ao

governo brasileiro, fazer com que a opinião pública se coloque a serviço dos interesses do capital.

Refiro-me à atual conjuntura por que passou o país com o episodio das “pedaladas fiscais” que

resultou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Um ato violento contra o povo e à

democracia, cujos desdobramentos ainda serão sentido nas próximas décadas. 253

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Op. cit.. 254

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.09 p 15-

17. Parece-nos que parte dessa solução só se efetivou recentemente com as obras de transposição

do rio São Francisco com os governos progressistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e

Dilma Rousseff (2011-2016). Porém, o projeto foi lançado em 2007 como plataforma de gerar

emprego e renda ao nordeste do país com a construção de canais para o deslocamento de parte das

Page 192: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

192

Que similaridades e diferenças podemos revelar entre a realidade

vivida pelas famílias de posseiros, retirantes e peões no Araguaia-Xingu mato-

grossense com a vivenciada pelas famílias espalhadas pelo Norte/Nordeste

brasileiro? Aquele que, a partir da década de 1980, tornou-se conhecido (vendido

como produto recheado de estereótipos) da maioria dos brasileiros, seria o

Nordeste da seca, da miséria, da falta de infraestrutura, de escolas, de atendimento

à saúde?

O quadro montado pelo texto poético de Zé Vicente permite entender

um pouco a resistência à propaganda acerca daquela invenção do governo militar,

apoiado pela grande mídia, em especial pela TV Globo. Acentua a crítica pedindo

ao povo para abrir os olhos, e que a seca deveria ser compreendida como uma

escola, cujos ensinamentos levariam a população a perceber que aquele

movimento aprisionaria o trabalhador aos grilhões da esmola e que as campanhas

não faria um Nordeste novo.

Alertava ainda que a imagem das pessoas que apareciam chorando na

televisão, morrendo, passando fome ou se valendo de lagartixas e ratos e

arrancando raiz do mato para comer sem pedir segredo, era uma farsa. Ao forjar a

trama na construção deste discurso imagético e político, que acionava a comoção

social, abria espaço para os ricos de se aproveitarem da miséria dos pobres,

prometendo o que não iriam cumprir. Esse também foi o argumento utilizado pelo

governo para justificar a contração de novos empréstimos junto ao Fundo

Monetário Internacional.

Essa estratégia não passava de um produto novo inventado nas costas

dos pobres do sertão. A fome, a má distribuição de renda, a seca nordestina, assim

como as enchentes e a violência Estatal (paraestatal) no Araguaia, não eram

novidade para ninguém, uma vez que a novidade da vez se prendia à intenção da

TV Globo de inventar o Brasil dos ricos e o Brasil dos pobres, porém, num

amálgama de falsa igualdade, pois, afinal, não seríamos todos brasileiros?

Seguiram-se as diferenças, as quais não se circunscreviam à questão

geográfica, econômica, cultural, mas avançava sobre todas as diferenças pelo

discurso, como afirma Albuquerque Jr. “O Nordeste está em toda parte desta

águas do rio atendendo aos Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia,

Sergipe e Piauí.

Page 193: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

193

região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos

que são subjetivados como características do ser nordestino e do Nordeste”.255

,

igualmente, em tempos presentes, forjados no discurso o vale dos esquecidos,

mais uma vez justificando a criação de mecanismos para fomentar investimentos à

monocultura256

.

Assim, as violências foram democratizadas antes mesmo que o povo

pudesse entender as regras do jogo, cobradas a alto preço. Contra essa banalização

da violência, a escola haveria de fazer as vezes de laboratório de aprendizagens,

como observado em São Félix do Araguaia, em finais da década de 1970. Não se

trata de um fato isolado, mas um dentre outros tantos ocorridos nas cercanias das

escolas do Brasil Central.

Em abril de 1979, a Folha Alvorada publicou um triste episódio que

aconteceu nas proximidades do Ginásio estadual, no dia 23 de março:

Um garoto que vendia bolo na rua, para comprar sua pasta

escolar, ia passando perto do ginásio do estado, quando uns

meninos o chamaram para comprar seus bolos. Como ele não

podia entrar no pátio encostou-se à cerca, para que os alunos,

que estavam dentro, pudessem comprar. Nisso chegou o senhor

Nelson, da cantina, e violentamente derrubou a bacia,

espalhando no chão os bolos que ele vendia. Todo mundo ficou

indignado com esse ato de egoísmo do sr. Nelson. Os alunos da

7ª série A trabalhavam na aula de português, fazendo frases

sobre várias palavras. A respeito da palavra „violência‟, um

aluno escreveu: „o homem usou da violência e derrubou a bacia

de bolo do menino‟.257

A matéria chamou atenção para o fato de ser, 1979, o ano

Internacional da Criança, “[...] um adulto, pai de família, faz isso com uma pobre

criança indefesa, que trabalha para ajudar sua família a comprar o pão de cada dia.

Está certo? Isso pode continuar, chamava a atenção dos leitores da Folha

Alvorada”258

255

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Op. cit., p. 307. 256

Haveremos de dedicar esforços para revelar as políticas públicas adotadas pelo governo como

desdobramento da presente tese. 257

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.65 p 06-

10. 258

Ibid.

Page 194: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

194

Ao chamar atenção do leitor para o fato de a violência também ser

praticada por um pai de família contra um menino indefeso, o propósito era

utilizar o evento para sensibilizar as famílias, a fim de se evitar a reprodução de

mais atos de violência, que, pelo visto, não se restringiam aos filhos das famílias

vitimadas pelas atrocidades praticadas pelos tubarões e grileiros, com o apoio do

governo, contra posseiros, indígenas, peões, mas sob o jugo do opressor

mandatário, como foi o caso da depredação da escola em Ribeirão Cascalheira,

quando se praticou violência contra os de mesma condição social, alimentando as

mazelas sociais, acrescido da violência praticada pelo senhor Nelson contra o

menino que vendia bolo.

Lançamos aqui mais uma questão: até que ponto a escola de educação

básica se tornou vigilante o suficiente para que suas práticas, igualmente, não se

transformassem em instrumento de perpetuação da violência?

Tais circunstâncias nos permite refletir sobre os apontamentos de

Fanon: “O desclassificado, o esfomeado, é o explorado que depressa descobre

apenas importar a violência. Para ele, não há compromissos, não há possibilidade

de arranjos”.259

Ou os oculares daquele episódio assistiam mais um desfecho de,

ao usar da violência, os colonos reivindicassem, do colonizador, o seu lugar,

tomando a escola espaço para manifestar seu poder, mediocrizado pela banalidade

do propósito, afrontando aos professores sob o mando de grupo político. E ou

igualmente o Sr. Nelson, por um naco de lucro sob a venda, não aceitar um

concorrente para seus parcos negócios de venda de lanche escolar, estratégia

própria do opressor, não precisar estar presente na ação, mas, incentivar o

oprimido a se oprimir. Seguimos revelando outros episódios no tópico seguinte.

2.5 - Uma professora de história entre a rebeldia e a punição

O que o colonizado viu na sua terra é que podia ser preso,

espancado ou morrer de fome impunemente; e nunca nenhum

professor de moral, nenhum padre, recebeu tais golpes em seu

lugar ou repartiu com ele o seu pão.260

259

FANON, Frantz. Op. cit., p. 24. 260

Ibid., p. 27

Page 195: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

195

Um episódio publicado pela Folha Alvorada nos chamou atenção,

talvez essa fosse a intenção da matéria, fazer com que os demais professores que

tivessem acesso ao periódico conhecessem o fato e, a partir de reflexão, pudessem

formar sua opinião acerca das „rebeldias‟ e „indisciplinas‟ dos alunos, quando

estes agiam distantes do olhar disciplinador dos professores. Igualmente, poderá

suscitar dúvida sobre o padrão formativo disciplinar adotado nas décadas que

antecederam a ditatura militar, bem como durante sua vigência. Existia outra

forma de „disciplinar‟ o aluno que não o uso de palmatória? De prostrá-los de

joelhos em tampas de garrafas ou caroços de milho? Vejamos o ocorrido.

A professora de história, Edivani, chegou à classe da 5ª série B no

momento em que os alunos estavam em outro local, trabalhando. Logo, ela viu

uns cadernos e umas vassouras dependurados na janela. De imediato, ela quis

saber quem era(m) o(s) autor (e)s daquela presepada, e ameaçou a todos de

suspenção das aulas, caso não revelassem. Os alunos, por sua vez, começaram a

fazer jogo de empurra-empurra, uns para com os outros, não apontando o autor

das ações. Demostrando ser esta uma boa tática para fugir à punição, sabiam que a

união era uma forma de resistência, pois vivenciavam, em seu meio, a necessidade

dela. Essas eram as orientações levadas pela Folha Alvorada ao povo que, para

conseguir êxito perante o opressor, deveria ser unido. Porém, o resultado não foi o

desejado.

A confusão resultou em uma portaria suspendendo, por cinco dias, o

aluno Urandi. Ao saber do fato, sua mãe foi à escola para obter esclarecimentos

sobre o caso. Porém, a mesma não encontrou o diretor, tampouco o vice-diretor ou

o secretário, por estarem fora, cuidando de seus negócios. A mãe do menino,

Dona Onésia, apelou para o Delegado de Ensino, que disse desconhecer o

ocorrido, continuando o menino suspenso.

Como forma de justificar a suspensão, alguns professores disseram

que o motivo principal fora o fato de a mãe do menino ter ido „discutir‟ com o

Delegado de Ensino. Diante dos ocorridos, Dona Onésia indagou: será que uma

mãe não tem o direito de ir à escola e saber o que está se passando com seu filho?

Page 196: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

196

Onde está a comissão de Pais e Mestres e, por fim, que nada se podia esperar de

uma Comissão que não tinha sido eleita pelos pais e professores.261

Observa-se que a matéria apontava para questões relevantes ao

funcionamento da escola, a primeira delas diz respeito ao preparo dos professores

para lidar com as „travessuras‟ dos alunos, e a segunda está ligada ao fato de, se

uma escola se pautava por formas democráticas de organização em seu processo, a

mãe, ao procurar os gestores da escola, a quem cumpria, juntamente com a

professora, fazer e aplicar a portaria suspendendo o aluno de assistir aula, estava a

desempenhar seu papel diante da instituição, lançando mão do diálogo como

premissa para a solução de impasses. A terceira diz respeito à denúncia dos

gestores estarem fora da escola, cuidando de interesses particulares. Por fim, a

matéria denunciou que a Comissão de Pais e Mestres, por ter sido indicada e não

eleita pelos segmentos, não se revestia do caráter democrático.262

Percebe-se, portanto, uma prática comum na organização das

instituições escolares, ocasião em que os opressores usam do discurso e das

estruturas da democracia na prática de autoritarismo.

Igualmente, essas práticas autoritárias se revelavam em maior

grandeza quando não havia estabilidade nas relações contratuais para com os

professores e demais profissionais da educação, facilitando a dispensa, a exemplo

do que fez o prefeito de São Félix do Araguaia, Aldenor Milhomen, em outubro

de 1980, demitindo os professores Francisco de Assis Rodrigues, Maria Helena

Sousa Silva, Márcia Rosa Rodrigues, Argemiro Pereira Aquino, Iolete Rodrigues

de Menezes, David Gomes Barbosa e Salomé Neta Vasconcelos Luz.

O afastamento ocorreu por conta de os professores terem reivindicado

aumento de salário, pois, além de há tempos receberem somente $ 3.404,00 (três

mil, quatrocentos e quatro cruzeiros), havia constante atraso no seu pagamento.

Depois de muito reclamar, receberam, na escola, a visita do prefeito, porém a

resposta foi que só iria aumentar o salário se sobrasse dinheiro, e quem estivesse

achando ruim, era só sair.263

261

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983. A 16.2. 06 p 14-

15 262

Ibid. 263

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A 16.1.10 p. 10-

11

Page 197: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

197

Passados alguns meses, os mesmos docentes foram à prefeitura, e lá,

foram atendidos pelo filho do prefeito, senhor Sidney, que era o tesoureiro da

prefeitura, e também pelo Secretário de Educação, senhor Delfino, que,

imediatamente mandou aprontar a demissão desses professores. Depois de

despedidos, o secretário disse que iria pagá-los na escola, porém, ao chegarem lá,

receberam a notícia de que deveriam receber na prefeitura.

Estando na escola, o secretário viu que as crianças não estavam

gostando da demissão, pois estavam acostumados com os professores há muito

tempo, demonstrando o descontentamento pelo choro. Naquele instante, o

secretário passou a gritar brutalmente com as crianças, ordenando que se calassem

e dizendo que os professores estavam saindo porque não gostavam de seus alunos.

No lugar deles haviam sido contratados outros docentes que não tinham qualquer

experiência no magistério.264

Anos difíceis foram aqueles que, ao contrário de terem seus direitos

respeitados, os professores foram destituídos de suas funções, substituídos

igualmente como faziam com os peões das fazendas. Concluímos esse tópico com

uma frase emblemática escrita no prefácio de Os condenados da terra, de Jean-

Paul Sartre: “[...] atiremos este livro pela janela. Para que o havemos de ler, se não

está escrito para nós?” Acrescentamos que, se não fosse para atender às

necessidades da comunidade, para que a escola?

2.5.1 - A escola que pune aluno pune professor

A massa colonizada escarnece desses mesmos valores, insulta-

os, vomita-os com todas as suas forças.

Frantz Fanon265

No início do ano de 1981, Pedro Casaldáliga, em carta ao povo,

advertia para os acontecimentos ocorridos naquela escola devia se tornar

conhecido por todos, afirmando que as autoridades de Canarana, de Barra do

Garças e de Cuiabá expulsaram de vez os professores e funcionários das escolas

de Ribeirão Bonito, Cascalheira e do sertão, substituindo-os pelo pessoal da

264

Ibid. 265

FANON, Frantz. Op. cit., p. 27.

Page 198: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

198

política do governo, e que, para esse desiderato, usaram da força policial armada,

como se existisse um clima de guerra, e que essas falsas autoridades tomaram as

chaves das escolas e impuseram novos professores e uma nova diretoria, sem

atentar ao direito e às reclamações dos pais, dos alunos e dos antigos professores e

funcionários.266

Denunciou ainda o Bispo que, durante a diligência utilizaram,

inclusive, de “[...] metralhadoras com o objetivo de disseminar o terror e o

medo”267

, chegando até mesmo a vasculhar duas casas no Ribeirão Cascalheira

em busca de armas ou qualquer objeto que lhes parecesse suspeito.

Em resposta às incursões, afirmou o bispo, enquanto profeta da

esperança, que “[...] o destino do povo não é a derrota e que o povo caminha para

a libertação, não sendo para a morte que caminhamos, mas sim para a vida‟ e que

„os políticos do governo, os grandes do dinheiro e do latifúndio, os donos das

fardas e das armas, podem achar que eles mandam e vencem”.268

Da certeza do douto poder suscita a dúvida e floresce sua contradição,

a expressão podem achar, e, que mandam e vencem coloca em questão o poder

impositivo dos latifundiários, da força policial ali arregimentado pelo Estado, que,

sem qualquer parcimônia, elegia a escola como instituição a ser mantida pelo

domínio dos opressores, como percebemos na narrativa poética de Maria Helena

Rocha de Andrade, moradora de Santo Antônio do Rio das Mortes:

Meus irmãos lá da roça

prestem-me bem atenção

que aqui está um poema

contando da chegada

do Secretário de Educação

Chegou-se em Santo Antônio

Dia 10 de fevereiro

As sete e meia da noite

Ouviram um barulho de voadeira

Era o Secretário chegando

Com mais uns companheiros

Quando foi no dia 11

266

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A 16.1.15 p 2-19

Carta do Bispo ao povo 267

Ibid. 268

Ibid.

Page 199: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

199

Apareceu a cara na escola

Par conversar com os professores.

Logo na mesma hora

Mandou avisar os pais

Que tinha reunião às dez horas.

Na hora da reunião

Era o que a gente só ouvia

O Secretário dizer

Que professor não podia

Participar da reunião

Do povo da prelazia.

Veja meus irmãos

As coisas como é que tá:

Agora por que é professor

Não pode participar.

Eu acho que eles querem

Que o PMDB perca

Pra o governo em nós montar.269

Distante da soberba de eleger a escola enquanto instituição

centralizadora da organização social e única protagonista das decisões nos

patrimônios e sertões do Brasil Central, da década de 1980, porém, apraz-nos

entender que ela traduziu em seu entorno lutas pelo poder, marcadas por

incontáveis acontecimentos, cuja grandeza sustenta a tese de que as mesmas se

tornaram centro nevrálgico das decisões políticas, seja no tocante à construção de

um anteparo e fortaleza para o propósito da permanência das nações indígenas e

famílias de posseiros ali residentes e aos chegantes, com o apoio da prelazia, e,

por outro lado, como mecanismo de disseminação dos interesses dos „tubarões‟,

voltada a reafirmar o poderio dos fazendeiros com apoio do Estado e da força

policial.

Como viemos tratando ao longo do primeiro capítulo, a escola

agregava todos os filhos das famílias residentes na região, independente de credo,

raça, idade ou gênero. Era nela que os interesses se conflitavam, a exemplo e

seguindo a esteira de acontecimentos, no mês de abril de 1981, após a escola do

Ribeirão e Cascalheira passar da gestão do administrador de Barra do Garças, para

o de Canarana, Luiz Canciano – representante político imposto pelo governo, que,

ao contrário de melhorar, piorou.

269

Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 15.1.25 p. 14-15

Page 200: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

200

Relembrava o bispo que, após longos quatro anos de organização das

decisões, com a presença dos pais, professores e diretores, mesmo antes da criação da

Associação de Pais e Mestres (APM), em Cascalheira já existia uma APM ligada

diretamente à comunidade. Sem considerar quaisquer formas de organização da escola,

bem como dos profissionais que ali trabalhavam, o administrador Canciano,

inicialmente, se colocou favorável ao diálogo, todavia, deu cabo aos interesses externos

à comunidade, afirmando que os pais não tinham qualquer poder de decisão na escola e

que a função da APM era a de juntar dinheiro e se preocupar com a limpeza dela.270

Em reunião, os professores argumentaram que todos sabiam que na região o

estudo era difícil, e a maioria dos professores, mesmo não tendo formação adequada,

tinha grande prática de lecionar. Inclusive, na busca por se qualificar, muitos

participaram, durante quatro anos, do curso de férias ofertado pela Secretaria de Estado

de Educação. Não sendo justo, portanto, que ficassem fora da escola, por conta das

falsas exigências colocadas pela politicagem. E, em caso de um ser demitido, todos

sairiam. Essa decisão foi apoiada pelos pais.

Sobre o uso dos mecanismos básicos de controle político causadores de

resignação e medo, registrou Casaldáliga em seu Diário, de 21 de setembro de 1982:

La esperanza,

la utopía...

¿quién es la madre?

¿quién es la hija?

Mao sugería esta norma de guerra: „¿A quién destruyo? ¿A quién

neutralizo? ¿Con quién hago alianza? ¿En quién me apoyo?‟

Herbert, el „Betinho‟, nos recordaba que la dominación usa dos

mecanismos básicos de control político: resignación y miedo. La

negación de la resignación se hace através de la participación en la

lucha. La negación del miedo, a través del testimonio. Nos recordaba

también que la organización popular es un campo de batalla

sumamente estratégico en orden a la sociedad nueva que soñamos.

Porque organizar es hacer poder.271

Alimentava sua esperança diante da realidade vivida pelas famílias que

lidavam com a opressão e, pautado em seus contemporâneos, a exemplo do conceito

formulado pelo sociólogo brasileiro Herbert de Souza, a organização popular atuava em

um campo de batalha estratégico na construção de uma nova ordem social, e que

270

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A 16.1.15 p 08-19. 271

En rebelde fidelidad. Diário 1977-1983.

Page 201: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

201

organizar era fazer poder. As reflexões de Mao se prestaram para enriquecer o texto,

cotejando a realidade

vivenciada no sertão com

a norma de guerra: saber

escolher a quem destruir,

a quem neutralizar, com

quem fazer aliança e em

quem se apoiar.

Assim

seguiram os feitos, e no

dia 15 de março havia

sido marcada reunião do

povo do Ribeirão,

Cascalheira e sertão com

o administrador de Canarana. Mas, para a surpresa de todos, dias antes as autoridades

estiveram reunidas numa fazenda perto do Ribeirão. Passados alguns dias, remarcaram a

reunião geral onde estiveram presentes, debaixo de forte chuva, 400 pessoas e,

representando o administrador estava o Dr. Ernesto, médico recém-chegado a

Cascalheira, junto com o senhor Nilvo e oito policiais fardados e armados que, de

imediato, cercaram o local da reunião.

De maneira autoritária, o senhor Nilvo apresentou as linhas da nova

administração e disse que a educação era uma das metas mais importantes da prefeitura

e, por isso, deveria haver entrosamento entre os funcionários da escola e a

administração.

Assim, leu a lista dos novos funcionários onde apareciam somente dois, dentre os

antigos. A Figura 10 retrata bem o ocorrido, pois 40 pessoas foram expulsas da escola,

tanto de Cascalheira quanto do Ribeirão Bonito, e suas chaves foram recuperadas a

força.

Embora houvesse reação do povo, incluindo uma viagem a Cuiabá, pois

defendiam uma escola do Povo e para o bem do povo, da qual todos participassem

Page 202: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

202

comunitariamente em tudo, de nada adiantou.272

Segundo a matéria publicada na Folha

Alvorada, a „nova‟ escola não apresentou as melhorias prometidas, mas sim:

a) A maioria dos professores contratados não tinha sequer o 1º grau completo e

nunca haviam lecionado;

b) Outros professores, inclusive a diretora, parente do Dr. Ernesto, eram

desconhecidos do povo, tendo chegado um dia antes do início das aulas;

c) A polícia estava sempre na escola, se prestando até para o professor impor

disciplina;

d) As turmas ficaram misturadas, o que trouxe prejuízo para a aprendizagem dos

alunos.

Diante da situação, os familiares, sem entender as razões por traz do

„assalto‟ à escola, levantaram algumas hipóteses:

1 - A ação teria interesses particulares como motivadores;

2 - Essa treita tinha origem entre os gaúchos de Canarana, ou tinha por

trás a política oficial do governo, querendo acabar com a organização

do povo.273

Confirmar uma das hipóteses, naquele momento, não será possível. Por essa

razão, asseverava a necessidade de o povo reagir e não se sentir derrotado, pois era com

o golpe que ele deveria aprender a lutar, como preconizava a ilustração.

Embora os primeiros passos da escola tivessem revelado intencionalidades

de uma construção democrática, mesmo com o desejo e esforço das famílias,

preponderou o poder político sobre ela, cujas táticas revelaremos no tópico a seguir.

Ainda, para melhor entender aquele episódio, ocorrido em Ribeirão e

Cascalheira, Pedro Casaldáliga registrou em seu diário, no dia 30 de abril de 1981:

Y la escuela de estos lugares, en manos de la politiquería oficial, está

como destartalada. El pueblo, sin embargo, se mantiene bastante

sereno y hasta firme. Ha crecido en conciencia. El poder, la represión,

llegan a hacerse despreciables (...) quieren ser demasiado persistentes.

El pueblo sufrido tiene una larga tradición de resistencia, por lo menos

pasiva; que es muy activa, de hecho.274

Ao tempo em que demonstrava descontentamento com a tomada da escola

pelos políticos, dizendo que esse fato, além de descontentar a população, fazia com que

272

Ibid. 273

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A 16.1.15 p 08-19. 274

CASALDALIGA, P. En rebelde fidelidad. Diário 1977-1983.

Page 203: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

203

a escola ficasse desestruturada, asseverou que o povo se manteve sereno e firme,

revelando a consciência de que, diante do poder da repressão, precisavam se manter

resistentes e ativos.

Enquanto isso, continuavam as perseguições, agora às margens do rio

Araguaia, na sede da prelazia, pois, ao contrário dos governos municipal e estadual dar

condições para funcionamento da unidade escolar, a questão não estava pacificada, pois,

ali, na Escola Estadual de São Félix, os professores também não estavam isentos das

decisões político-partidárias, pois, em novembro de 1981, anunciou a Folha Alvorada

que Paulo Afonso e Erotildes, foram transferidos para a cidade de Pontes e Lacerda, fato

que provocou reação por parte da comunidade escolar, demonstrada na reunião de mais

de 100 pessoas para decidir como o coletivo se colocaria diante de tal arbitrariedade.

Durante a assembleia, convencionou-se duas propostas: a) Distribuir nota à

população através de abaixo-assinado, dizendo que o povo não aceitaria ser prejudicado;

b) Indicar pessoas da comunidade para acompanhar os professores até Cuiabá para, em

audiência com o Secretário de Educação, apresentar o abaixo-assinado e os protestos do

povo pela violência cometida contra pais e alunos, assim como reivindicar o direito de

conhecer a justificativa do porquê da decisão.

Assim fizeram, seguiram a Capital, onde se depararam com dois

documentos, o primeiro, de autoria do diretor da Escola, Gaspar Neves, denunciando

que os professores incitavam seus colegas e alunos contra a direção, o Estado e a Nação,

e que eles pregavam „política contrária ao PDS‟. O segundo documento, de autoria do

deputado Ricardo Correia, solicitava a exoneração dos professores por se tratar de

„indesejáveis‟ à comunidade política da região. Por fim, o secretário de Estado agiu

conforme o costume, como afirmou a matéria – disse que não podia resolver nada.

A ausência do poder estadual era sentida em todas as localidades, cujas

consequências eram percebidas, especialmente, entre aqueles que dependiam do poder

público, a exemplo das famílias de Canabrava, pois, em 1984 já havia mais de 800

famílias no patrimônio, porém, devido à precariedade da escola, as crianças, ao invés de

se encontrar no interior da escola, ficavam brincando nas ruas.

Essa situação fez com que muitas famílias mandassem seus filhos para

estudar em São Félix e em Porto Alegre. Informavam os moradores, por meio da Folha

Alvorada, que o diretor da Escola, Sr. José Alves Pereira, e os dois vereadores apenas

Page 204: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

204

prometiam, mas não faziam nada. Observava ainda que tinha sido feito um barracão de

madeira que, inclusive, já tinha sido usado para festa, mas nada de escola. Por fim,

reclamavam que os filhos repetiram o 4º ano todos os anos, pois não havia o 5º ano e

seguintes para que eles pudessem prosseguir nos estudos.275

Percebe-se,

portanto, que a

organização da escola

pautada nas decisões da

comunidade não surtiu

efeito diante dos

mandos dos políticos

em relação à demanda

por escola e

atendimento à

legislação276

. Assim

como as Leis tem

história, igualmente

denunciar seu

descumprimento

também requer seu

espaço na história.

Enquanto a vida nas escolas se agitava diante dos desmandos, a Folha

Alvorada anunciava a visita do Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, um

argentino a quem Pedro Casaldáliga se referiu: “[...] uma visita muito importante e

amiga” 277

que enfrentou as injustiças do governo militar da Argentina e lutou sem

medo pelos Direitos Humanos, em favor dos pobres e perseguidos.

275

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A 16.3.04 p 09-15 276

O artigo 62 da 5692/71 assegurava que cada sistema de ensino compreendia, obrigatoriamente, além

de serviços de assistência educacional que assegurasse aos alunos necessitados condições de eficiência

escolar, entidades que congreguem professores e pais de alunos, com o objetivo de colaborar para o

eficiente funcionamento dos estabelecimentos de ensino. 277

Adolfo Perez Esquivel ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1980. Ele veio a São Félix para apoiar a

Igreja e o povo. Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.14

P04.19. Em seu discurso durante o recebimento do prêmio, Esquivel considerou: “Recebo o Prêmio em

nome dos Índios, dos Operários, dos Povos Pobres da América Latina e de todos os que trabalham por sua

Libertação” Pelo observado, o Nobel da Paz continua se preocupando com as causas sociais em defesa da

Page 205: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

205

Fez isso em razão de ele ter sido perseguido também, inclusive havia ficado

preso por 14 meses, ocasião em que foi maltratado e torturado, cuja visita mereceu

registro „fotográfico‟ na Folha Alvorada conforme Figura 11.

Observamos nesse tópico que o ato de punir, no contexto escolar, foi

democratizado, pois, em uma sociedade em que impera a injustiça, todos poderiam ser

vítimas ou algozes de práticas autoritárias. Porém, não faltavam exemplos de condutas

democráticas e libertárias, a exemplo do ilustre visitante Esquivel.

Seguimos revelando práticas em um cotidiano pouco sensato de uma escola

que, ao contrário de trabalhar com a inclusão, incentivando os filhos das famílias

humildes a estudar, adotava mecanismo de exclusão, sob o velho discurso da disciplina,

da segurança, da ordem e de uma identidade nada popular, mas elitista, semeando o

padrão burguês de ser.

2.6 - Escola em cores: fardas e castigos para os fracos

Em maio de 1980, ao tempo em que os pais cobravam a conclusão da obra

das salas de aula da escola em Porto Alegre do Norte, o diretor exigia a uniformização

das crianças que, até então, usavam uniforme azul e branco, e a partir daquele momento

deveriam usar conga, meia branca, calção ou saia verde e blusa amarela, e ainda manter

os cabelos cortados.278

Essa exigência foi imediatamente questionada pelos pais, pois afirmavam

que a escola não era quartel e de nada adiantaria exigir uniformes novos para a escola,

se há mais de três anos o povo cobrava a construção da sala de aula e o governo não

havia, até então, cumprido a promessa. Como o diretor se achava no direito de cobrar, a

mando do prefeito, que, num prazo de uma semana, todos deveriam estar „fardados‟,

travestidos com o novo uniforme.

A obrigatoriedade, por um lado, e a resistência, por outro, tomou conta da

cena, pois, passados alguns meses, no dia 15 de agosto o diretor ordenou que nenhum

aluno entrasse na escola sem farda, porém, os pais afirmaram que achavam bom ter

farda, mas que o prazo para que todos se organizassem tinha sido curto, além do que as

democracia, em março de 2018, coincidentemente no ano em que concluímos a tese, veio ao Brasil e

anunciou indicação do Prêmio Nobel ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 278

Ibid.

Page 206: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

206

famílias, há 5 anos, cobravam um prédio para funcionamento da escola, e, em menos de

3 meses antes de terminar a construção, já iniciava a cobrança. Os pais propuseram

aceitar a farda, mas somente após o término da obra de construção da escola.

Irredutível, o diretor disse que quem não chegasse uniformizado à escola,

seria enviado de volta para casa, e assim foi feito. Mas, passados alguns dias, na ocasião

da visita do prefeito, ficou deliberado que quem tivesse farda deveria comparecer, e

quem não a tivesse poderia igualmente ir. Assim, os pais, entenderam que essa tinha

sido uma vitória, pois de nada adiantaria a escola ser pública se não fosse para todos!

No mês de setembro do mesmo ano, os pais reclamaram dos exagerados

castigos aplicados aos filhos, dentre outros: a) deixarem as crianças de joelhos no

cimento quente; b) obrigar as crianças, de um dia para o outro, levar cinquenta cópias de

lição como tarefa de casa, dentre outras arbitrariedades.

Diante desta situação, os pais, já conhecedores de seus direitos, afirmaram

que o diretor não conhecia a legislação que proibia a aplicação de castigos físicos aos

alunos, ao contrário, deveriam os gestores e professores incentivar as crianças, e não

fazer com que elas tivessem medo.

Esse descontentamento deixou os progenitores indecisos em relação à

permanência de seus filhos na escola, pois, retira-los poderia não ser a melhor solução,

porquanto, se assim o fizessem haveriam aqueles que, por não ter ainda aberto os olhos,

continuariam apoiando tais castigos, inclusive achando tal procedimento positivo.

Assim, se caso os tirasse, permanecia a dúvida: iriam modificar alguma coisa com os

pais dos alunos que perecessem? Se isso acontecesse, no ano seguinte voltariam seus

filhos para a mesma escola?

Na mesma matéria publicada sobre tal evento ocorrido na escola de Porto

Alegre, a expressão era de crítica em relação à metodologia, pois, aos alunos da 4ª série

eram obrigados a trazer a lição da história do Brasil decorada, até mesmo nas vírgulas.

A pergunta era: queria a escola formar papagaios? Pois decorar, fazendo o aluno repetir

tudo, não lhe possibilitaria entender nada, principalmente quando não havia tido

explicação na classe.

Parece-nos que essa prática bem ortodoxa tinha um objetivo claro por parte

de alguns professores de história, assentar no „medo‟ de retaliação pelo não

cumprimento das determinações do governo militar em sala de aula, em fazer com que a

Page 207: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

207

história do Brasil fosse decorada, exaltados seus heróis e contada pela ótica dos

opressores, não deixando que houvesse contestação de semelhantes práticas. Assim,

continuavam as obrigações sob a égide da „ordem‟.

Conforme noticiado em outubro de 1980, na Folha Alvorada, a Diretora

Eva, da Escola Estadual de 1º Grau de Santa Terezinha, no dia 15 de setembro, após

uma semana de férias, os alunos voltaram à escola animados para aprender. A turma

noturna chegou, como era de costume, organizando-se em fila. Em seguida, chegou a

diretora e disse que os alunos que estivessem sem uniforme deveriam sair da fila e ir

embora para suas casas, pois, se não tinham condição de comprar uniforme, não

estudariam. Assim, alguns alunos sem a indumentária exigida deixaram a escola,

retornando para casa.

Além do uniforme, outras barreiras atrapalhavam a frequência do alunado

como ocorreu em Porto Alegre, conforme noticiou a Folha Alvorada, ocasião em que o

diretor proibiu os meninos de vender merenda, alugando um espaço para uma

professora comercializar seus quitutes279

. Com isso, esse gestor proibiu que os alunos

levassem lanche para escola, condicionando-os a comprar o ali comercializado, ou, do

contrário, iriam para casa lanchar.

Outras obrigatoriedades fizeram parte do contexto, as quais descrevemos a

seguir: a) uniforme verde amarelo completo; b) contribuição de uma taxa de Cr$ 10,00

para o pote de água a serem colocados nas classes; c) contribuição de Cr$ 5,00 para o

caixa escolar; d) uniforme de educação física; e) trocar os botões coloridos da camisa

pelo de cor branca; f) cota para o presente para aniversário do diretor. Por estudarem em

escola pública, seria isso correto?, interpelava a matéria, será que o ensino melhorou

após tais exigências? Os alunos estariam aprendendo mais e melhor?

Com relação ao uniforme exigido pela escola, estes não podem ser tomados

por alegóricos, pois, interpretando as circunstância vividas pelos escolares, estes devem

ser percebidos como sinônimo de poder que, ao contrário de contribuir para com o

acesso e permanência dos filhos dos trabalhadores no espaço escolar, o não ter era

motivo de vergonha, discriminação e, portanto, agressão social, uma vez que a

279

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A 16.1.110 p 04-11.

Page 208: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

208

imposição só construiu barreiras intransponíveis para muitas das famílias que

almejavam manter seus filhos(as) estudando.280

Somando aos inúmeros casos já citados, um em especial é merecedor de

atenção, trata-se do ocorrido em junho de 1982, em Santa Terezinha, que redundou na

mudança das famílias do lugar, tamanha a vergonha a que foram expostas.

A mãe, com seus filhos na escola, e seu marido trabalhando, empregado em

uma fazenda da região, não tinha como comprar o uniforme. Sem alternativa, foi pedir

ajuda ao prefeito, para que ele comprasse a farda escolar. O prefeito, por sua vez, deu

ordem para que a mãe comprasse na loja do Manuel Quitandeiro, o que induziu a

família a pensar que a dívida correria por conta da prefeitura. Porém, quando este foi

cobrar a conta na prefeitura, o gestor máximo negou ter dado tal ordem. Esse impasse

resultou na prisão da mulher, e, como ela ainda não havia feito os uniformes, devolveu

o pano, condição para ser libertada.

Segundo a Folha Alvorada, a mulher ficou presa das 9 horas até as 15 horas,

e, mesmo estando grávida, foi obrigada a lavar e encerar a Delegacia.281

Conhecendo a realidade vivida pela maioria das famílias do Brasil, durante

as décadas de 1970 e 1980, não é difícil atender as condições impostas para enviar seus

filhos à escola, uso a expressão para afirmar que, ir à escola, antes de ser uma

obrigação, tratava-se de um direito, assim como o direito à saúde, à moradia, ao trabalho

e à posse da terra, não devendo a ausência do fardamento ser empecilho. A intenção de

homogeneização, tomando por base ilustrativa o uniforme, desvela a necessidade de se

padronizar os modelos de escola, de professor, de aluno, tornando esse espaço mais fácil

de ser manipulado. Igualmente o de desviar o foco e desperdício de energia para fins

meramente panfletários.

Nessa mesma esteira, e para concluir o tópico, elencamos um evento

ocorrido em Luciara, onde os pais exigiam respostas por parte do poder público, sem os

quais seria impossível atender aos estudantes e à comunidade, foi o que anunciou a

matéria na Folha Alvorada do mês de julho de 1981: a) falta de óleo para que o motor-

280

Agindo dessa forma, a escola, bem diferente do que preconizava a Constituição Federal de 1967 e a

Lei n. 5.692/71, dificultava a permanência das crianças, pois, conforme preconizava o Art. 41. A

educação constitui dever da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios, dos Municípios, das

empresas, da família e da comunidade em geral, que entrosarão recursos e esforços para promovê-la e

incentivá-la. 281

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A16.1.27 p 09-18.

Page 209: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

209

gerador pudesse iluminar as salas para as atividades noturnas; b) prisão de professor; c)

abaixo-assinado a favor e contra o diretor. Mas, nem tudo estava perdido, uma vez que

ações importantes estavam sendo organizadas para atender um grupo de alfabetização,

que, tanto comadres quanto compadres, depois da labuta diária, se reuniam no clube de

comadres para aprender a ler, escrever e discutir como vencer os aperreios da vida.282

A

seguir, apresentamos o professor como elemento simbólico na formação da sociedade,

„marco da rota pioneira‟.

2.7 - Professores são árvores de idealidade: que fazer „oprimido‟?

Iniciamos o tópico com uma poesia de Pedro Casaldáliga sobre o professor,

intitulada As árvores são professores, com o propósito de retomar a produção do líder

religioso no início de sua jornada na Prelazia de São Félix do Araguaia, buscando

entender como o seu pensamento e a sua ação estiveram ligados diretamente à escola, e

para que tal invenção pudesse sair do papel, assim como a figura do professor, que,

embora descrito em linguagem poética, o faz com propriedade metafórica:

As árvores são professores de idealidade.

Tão simples e cavalheiro no sol e na tempestade.

Eles apoiam com integridade.

Eles são entregues sem vaidade.

Atrás da velhice da casca eles levantam a seiva de hoje.

Sob as flores, os frutos crescem.

Folhas mortas caídas sustentar as novas vidas.

As árvores são procuradas; eles se protegem; gêmeo.

Eles dão lugar ao vento. Eles recebem a música.

Eles impedem a seca duradoura.

Eles riem, vivaz, na margem do rio.

E eles sofrem, sobriamente, no sertão.

Onde eles estão, eles são; e são, vivo ou morto, serviço: comida, sombra, madeira;

Parede no penhasco, e marco na rota pioneira. 283

Porém, parece-nos que a dialética do ser professor se fez real, pois, nas

primeiras décadas de existência da escola da cidade e dos sertões, percebeu-se ali um

282

Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.18 p 08-17. 283

Pedro Casaldáliga. Clamor elemental, Sígueme, Salamanca: Editora Nueva Utopia, ed. Endymion,

1971, 103 p.

Page 210: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

210

projeto de instituição democrática e engajada, integrando fé, esperança e atitudes para a

transformação da realidade vivida pelas famílias.

Mas, com o passar dos anos, o professor que quisesse permanecer atuando

em sala de aula e manter seu emprego deveria se afastar da igreja, como noticiou a

Folha, em março de 1982. O secretário de educação, Delfino Alves de Souza, afirmou

que quem quisesse lecionar nas escolas, sob sua gestão, não poderia acompanhar a

prelazia e os trabalhos da comunidade.

Parece-nos que o problema não se limitava à presença da prelazia, mas sim,

da tomada de consciência e da organização na comunidade, a qual contribuía para

formar opinião sobre os fatos, dentre outros, da política, das formas de resistência que

superava as fronteiras do domínio das letras, seguia no horizonte da tomada de

consciência, passando pelos territórios do domínio das palavras arregimentados pela

atitude.

Inúmeros foram os casos de substituição de professores por decisões

externas à necessidade da comunidade e onde a escola estava inserida, uma vez que nem

todo o corpo de profissionais foi nomeado com propósito estritamente político-

partidário emanado pelos interesses do governo, como ocorreu em Serra Nova, em abril

de 1982, com a professora Maria Pereira.

Dizia a matéria: logo que iniciaram as aulas, o secretário de educação

Delfino chamou os professores para analisar o contrato. Chegando à Escola, convidou a

professora para se filiar ao partido PDS, e ela, por sua vez, se recusou, dizendo que não

era filiada a qualquer partido, nem ao PMDB ou ao PDS, pois não se imiscuía na

política, embora, não deixasse de participar das reuniões do povo, por ter um trabalho

com a comunidade, o qual não o haveria de abandonar.284

Enquanto conversavam, chegou uma terceira pessoa, dizendo ao secretário

que não tirasse aquela professora, pois isso poderia prejudicar seu próprio partido. Em

284

Convém observar que, a partir de 1974, o povo começou a votar na oposição representada pelo MDB.

O governo, percebendo o risco, estrategicamente acabou como a ARENA e o MDB e criou novos

partidos. Assim, pode dividir a oposição do MDB em PP, PMDB, PT e PDT. Já a ARENA, convergiu

para o PDS. Como se não bastasse, determinou a vinculação dos votos em todos os níveis onde o eleitor

tornava-se obrigado a votar em candidatos do mesmo partido, para Prefeito, Vereador, Deputado, Senador

e Governador. Dessa forma, o eleitor não poderia votar no Prefeito de um partido e governador de outro.

Nessa medida, todos os partidos seriam obrigados a lançar candidatos a todos os cargos. Portando, os

partidos de oposição sempre ficavam em desvantagem.

Page 211: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

211

caso de tomar essa decisão, poderia acalorar a revolta do povo e com isso perder muitos

votos, por se tratar de um ano político.

Embora ele tivesse recuado do embate direto, arregimentou a diretora para,

na manhã seguinte, avisar a professora Maria que ela deveria dar aula na 4ª serie. Mas,

como ela nunca havia trabalhado com alunos mais adiantados, por sempre ter atuado na

alfabetização, a diretora, em tom esnobe, disse: “[...] você vai dar conta porque você é a

professora sabida do povo da comunidade. Todo mundo gosta de você e você tem

competência de dar essa aula, porque é sabida até mais do que eu mesma”. Como

resposta e de maneira educada, a professora disse: “Olha, você toma conta de sua classe,

eu não vou mais dar aula. Coloque um professor de seu agrado”.285

Observa-se que, o „ser sabida‟, naquela circunstância, ganhava teor

pejorativo, especialmente por não atender ao interesse do governo municipal. Dessa

feita, ficou a professora, e muito pior, os alunos, excluídos do processo. Em se tratando

de exclusão, ampliemos nossas lentes sobre as práticas autoritárias dos gestores para

com as famílias que precisavam colocar seus filhos na escola.

2.8 - Caixa escolar: obstáculo a superar

Não bastasse as questões políticas como impedimento para o alcance a uma

escola democrática, havia ainda obstáculos financeiros, tornando cada vez menos

provável o acesso e permanência dos filhos das famílias pobres matriculados e

frequentes nas escolas, tratava-se do caixa escolar. Em 1981, os alunos que estudavam

na escola Santa Terezinha pagavam dez cruzeiros de caixa escolar, mas, como as

dificuldades eram grandes para manter a família com o trabalho no campo e nas

cidades, muitas delas não tinham como pagar essa taxa escolar.

Em 1982, para uma criança menor de 14 anos, a contribuição da caixa

escolar passou para 34,00 (trinta e quatro cruzeiros) mensais, e as que tivessem mais de

14 anos deveriam pagar 176,00 (cento e setenta e seis cruzeiros), valor que deveria ser

pago no banco, até o dia 5 de cada mês. Tal exigência tornava o pagamento enquanto

condição sine quanon para que os pais tivessem acesso aos registros dos resultados dos

285

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A16. 1.25 p 05-15.

Page 212: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

212

estudos dos filhos, além de que, para que pudesse pegar a transferência para outra

escola, também deveria estar quites com aquela taxa.

Como forma de tornar conhecido e ao mesmo tempo questionar o governo

sobre a cobrança abusiva, a Folha Alvorada publicou matéria afirmando que: “[...] o

que mais precisam, como comida, caderno, lápis, coleção, régua, cola e outras coisas

para os trabalhos‟. Porém, elegia a necessidade de comprar o uniforme de educação

física que só a camiseta custa 600 cruzeiros, o short, meia e Kichute, além do uniforme

escolar”.286

Chamava ainda atenção para uma realidade comum entre as famílias do

lugar, a exemplo de Dona Sebastiana, que tinha 4 filhos com mais de 14 anos e 2 com

menos idade, significando que, para obter desconto de 10% nas mensalidades, deveria

desembolsar 3.088,00 (três mil e oitenta e oito cruzeiros) até dia 5 de abril.

Lançar mão dessa informação possibilita-nos entender o quanto a escola se

fazia excludente na década de 1980, pois, conforme mencionado, as famílias viviam do

pouco que produziam em suas terras, isso quando conseguiam nela permanecer, pois,

regra geral, se viam diante da insegurança e da violência287

.

A cobrança da taxa e a falta de recursos para pagá-la exauria a probabilidade

de continuar estudando, dilatando, assim, a distância das famílias às escolas, ampliando

as filas dos analfabetos. Tal circunstância histórica nos oferece condições para afirmar

que, embora houvesse o discurso e leis resguardando o direito à educação oficial

mantida pelo Estado, essas, de forma sorrateira, mantinham as cangas da exclusão.

Em Ribeirão Bonito e Cascalheira, também a queixa com relação aos custos

com a educação escolar dos filhos permeava o cotidiano das famílias, pois os gastos

para manter um filho estudando eram elevados, na medida em que necessário se fazia

adquirir dois livros para os meninos, e cada livro custava $ 310,00 (trezentos e dez

cruzeiros), além dos cadernos, a matrícula, a contribuição com o caixa escolar, uniforme

e sapato de couro. Quem é que dava conta? “Tem pais que tiraram os filhos da escola

porque não conseguem fazer as despesas”.288

286

Ibid. 287

Conforme noticiavam as famílias residentes em Canabrava, no mês de maio de 1982, estavam

colhendo as lavouras, mas, sem estrada para tirar os legumes e demais produtos, tinham que fazê-lo na

cacunda, e, ao sair lá fora, não encontravam preço justo, sendo estes obrigados a vender baratinho.

(Alvorada Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix A 16..1.26 p12-17). 288

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A16. 1.25 p 05-15.

Page 213: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

213

Reclamavam os pais que a escola estava desorganizada, mas que, no início,

todos tinham conhecimento de ser ela democrática, pois as decisões eram tomadas a

partir de

consulta aos

pais, e eles

haviam criado

a Associação

de Pais e

Mestres. A

diretora, Dona

Anete, em

uma reunião

que mais

parecia um

encontro

militar, disse:

“[...] para parir

os filhos ninguém quis saber do Governo, e agora vem procurar o Governo para a

educação”.289

Porém, o problema da escola se tornara mais agudo, pois a carestia e a

dificuldade das famílias por falta de terra e emprego, era comum trabalhar e ser

explorado. Restava às mulheres pouca alternativa, mas, quando ela surgia, abraçava de

„unhas e dentes‟.

Uma das atividades encontradas pelas mães para não deixar seus filhos sem

ir à escola era lavando roupa, como publicado pela Folha Alvorada, na edição dos

meses de julho e agosto de 1982.

Sem saber o que fazer, os pais de família eram obrigados a sair para

trabalhar nas fazendas, ganhando uma diária de 700,00 (setecentos cruzeiros), uma vez

que a grande maioria ainda não adquirira terra e ou, não extraía dela o suficiente para

garantir alimentação, moradia, vestimenta e o custo com os estudos, se um pão custava

C$ 40,00; o pacote de café C$ 150,00; 1 quilo de feijão C$ 180,00; 1 quilo de carne C$

289

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.26 p 13-17.

Page 214: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

214

200,00, o pacote de açúcar C$ 80,00; o café cru C$ 500,00 e o sal, o sabão e o

querosene? Vale lembrar que a diária do trabalhador sequer era suficiente para custear

as despesas com alimentação da família. Restava às lavadeiras e donas de casa,

trabalhar para receber C$ 3.000,00 (três mil cruzeiros) por mês, lavando roupa: 4

trouxas por semana, como a dona Naíde;290

Ao observar a Figura 12 e comparar os preços dos gêneros alimentícios, nos

anos de 1981 e 1982, é possível perceber a elevação exorbitante dos produtos de cesta

básica, o que, de certa forma, foi o que concorreu, ampliando ainda mais a dificuldade

das famílias em manter seus filhos nas escolas. Afinal, como já bastante explorado, o

que passava pela cabeça de um menino com fome, senão a vontade de comer?

Entre deixar de comer e estudar, certamente centenas de famílias optaram

pelo abandono dos estudos. Embora tenham diminuído os casos de crianças que não

continuaram a frequentar a escola por falta de condições, fenômeno que, infelizmente,

ainda persiste na presente data. Contudo, há outro aspecto importante a ser tratado no

quarto e último capítulo. Muitos alunos que iam às escolas, especialmente os filhos de

famílias de baixo poder aquisitivo, cujos membros se encontravam desempregados e

possuíam baixa escolaridade, as crianças se dirigiam à escola com dois propósitos

distintos, o primeiro, para comer, pois as escolas públicas ofereciam merenda escolar, e,

o segundo, para estudar. Porém, em muitos casos prevalecia o primeiro.

Em outubro de 1982, noticiou a Folha Alvorada que, no mês de junho, a

metade dos alunos de Santa Terezinha ficou sem receber os boletins, porque ainda não

haviam pago a taxa escolar, no valor de quase C$ 200,00 (duzentos cruzeiros), e só

poderiam ter acesso ao seu desempenho escolar caso saldassem o citado pagamento.

Anunciava a matéria:

[...] os pais de família que são pobres e tem mais de 4 filhos

estudando, deixam de comprar o pão para seus filhos comerem antes

de saírem para o colégio, aquele dinheiro agora é para a caixa escolar

[...] a diretora fala que esse dinheiro é para pagar boletim, mas eles

mesmos já disseram aos alunos que esses boletins foram dados para o

colégio.291

290

Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.29 p 12-26. 291

Ibid.

Page 215: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

215

Seguindo o conteúdo publicado no dia 29 de agosto, o presidente Figueiredo

respondeu uma pergunta sobre a taxa escolar avaliando que essa era uma forma de

aqueles que ganhassem bastante ajudassem aos que ganhavam menos. Disse ainda que

ninguém poderia ficar sem estudar, ou ser prejudicado por conta de não pagar a taxa.

Assim, percebe-se que, de optativa, a taxa escolar se tornou obrigatória em alguns

espaços e tudo isso ocorreu por falta de conhecimento sobre a questão, ou os gestores se

aproveitavam do ensejo para, sob o argumento da inadimplência, tirar proveito da

situação, expulsando os alunos indesejados da escola.

Embora não tenhamos como precisar o número e tampouco identificar como

surgiu a exigência do uso do uniforme escolar, essa prática abusiva e opressora

igualmente contribuiu para que muitas famílias deixassem seus filhos sem frequentar a

escola.

Na medida em que passamos as lentes sobre a escola inventada no

Araguaia-Xingu, percebemos uma instituição repleta de sentidos sócio histórico,

culturais e políticos, uma vez que, de um lado, era pensada e desejada pelo coletivo de

famílias, com o apoio da à prelazia, enquanto mecanismo de redenção social, pautado na

esperança que ela pudesse contribuir para a superação da fragilidade vivida pela maioria

das famílias de posseiros, peões e desassistidos de poder econômico, oferecendo a

esperança de uma vida melhor para seus filhos. Por outro, o espaço escolar tornou-se

instrumento de manutenção da relação de opressiva. Não bastava, portanto, a opressão

praticada pelos tubarões expulsando as pessoas para colocar bois, conforme

caracterizado na Figura 13:

Page 216: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

216

Concluímos o tópico entendendo ser necessária a reflexão sobre as práticas,

pois o contexto da escola registrado neste segundo capítulo, mostrou-se distanciado

daquele desejado inicialmente, sendo perceptível que a escola revelada entre o Araguaia

Xingu, da década de 1980, fosse marcada pela opressão dos poderes públicos, confiados

a pessoas indicadas para cumprir determinadas ações e amparadas por um falso discurso

democrático.

Portanto, uma escola opressora que se faz vítima diante das cobranças por

parte das famílias, mas, de outro lado, revelava sua face nada oculta, apresentada ao

longo desse segundo capítulo. No tópico a seguir, conheceremos a escola pendular

entre a democracia e a tirania.

Assim, para entender a escola concebida pelas famílias sob a vigilância da

prelazia, especialmente pelos ideários de um colonizador em meio aos colonizados, o

bispo Pedro Casaldáliga utilizou da determinação pela organização das famílias em

torno da resistência contra os opressores, o que contribuiu para iluminar a perspectiva

de uma escola que tomasse o conhecimento histórico enquanto base para a tomada de

consciência e transformação social, num espaço-tempo histórico específico.

Tomamos por lição que o entendimento acerca do contexto histórico deve

prover as ações e projetos da escola no tempo, do contrário, tornaria o conteúdo (teoria)

estéril. Portanto, entendemos que o conhecimento histórico deve ser adotado como

condição sine qua non para a reelaboração dos sentidos „dados‟ ao conhecimento

„estudado‟, ao conhecimento vivido. Requerendo profissionais qualificados para operar

tais sentidos, sem os quais haveria de a escola sucumbir aos modelos impostos pelos

interesses da minoria detentora do poder econômico, em detrimento da maioria.

Como já antecipado, pouquíssimos eram os professores que tinham o ensino

médio (antigo 2º grau), e muito menos aqueles com formação superior, pois a grande

maioria era composta por professores leigos. Ao tomar esse perfil profissional como

ponto de partida, presumimos que a falta de formação não os faria nem melhores nem

piores professores, até porque, se quiséssemos analisar qualitativamente a atuação

desses profissionais tomando o viés do ensino da história, seria improvável alcançar tão

ambicioso propósito, pois as fontes não possibilitariam tal incursão, considerando as

especificidades de cada comunidade das cidades e sertões do Araguaia-Xingu mato-

grossense. Assim, apresentamos um recorte no tópico a seguir.

Page 217: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

217

2.8.1 – A dialética do ensino de história

Mesmo que lançássemos mão da pesquisa oral e pudéssemos explorar esse

ou aquele profissional, pouca seria a mostra, considerando as inúmeras escolas que se

formaram nos sertões, assim como dificilmente teríamos como afirmar que os

estudantes pudessem afiançar, passados mais de quatro décadas, se aprenderam ou não

aquilo que os professores de história apresentaram como proposta que pudesse construir

conhecimentos históricos em sala de aula.

Embora tenhamos razões para asseverar a existência de dúvidas quanto ao

conteúdo e aprendizado, por estarem distantes do tempo em que construímos a

narrativa, torna-se pertinente afirmar que, como todo o sujeito histórico vive em meio a

um espaço-tempo repleto de acontecimentos, cujos fatos devem compor a tessitura de

análise, sob um conjunto de valores sobre as causas, o fato em si e as consequências,

possibilitaram tais dimensões ao professor de história, um laboratório para seu exercício

de saber-fazer docente ao ensinar a disciplina.

Assim, nos acercamos da importante pergunta: o que ensinava o professor

de história? A primeira hipótese é a de que o quadro de violência, marcado pela

expulsão das famílias para dar espaço à pecuária, conforme denunciou a figura 13,

conduziu boa parte dos temas geradores dos debates acerca da história tratada nas sala

de aula.

Sigamos o roteiro com mais uma indagação que, se respondida, pode

reforçar tais pressupostos: o uso dos fatos vividos no cotidiano foi utilizado enquanto

ponto de partida para mediar as aprendizagens? De que materiais se valiam os

professores para ensinar história, já que os suportes (livro didático, bibliotecas,

videotecas, computadores, Internet e portais educacionais) inexistiam no contexto da

escola de educação básica em finais do século XX, no Araguaia-Xingu mato-grossense?

Ora em diante, apresentamos algumas pistas sobre os materiais (conteúdos)

possivelmente utilizados pelo professor de história aos aprendentes da escola de

educação básica desse espaço específico, a exemplo das poesias, das memórias, das

informações e reflexões publicadas em a Folha Alvorada, cujas temáticas iam desde a

origem das cidades, abordada com o propósito de torná-los conhecedores do contexto,

Page 218: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

218

bem como da história do índio, do negro, da violência da opressão às famílias de

posseiros, da fome, da falta de acesso e tratamento de saúde, e enfim, da morte.

Igualmente, e de forma densa, a Folha Alvorada publicava crítica ao poder

executivo (federal, estadual e municipal) pelo não cumprimento constitucional no

tocante à oferta de serviços públicos na região, pela defesa do cidadão, tendo por base a

Declaração dos Direitos Humanos, além da dimensão religiosa, sempre apresentando os

„ensinamentos‟ bíblicos aliados às condições e categorias familiares aos participantes da

trama da vida real, quase sempre marcadas por litígio estampado em um incompleto

mosaico.

Assim, para o alcance às respostas, buscamos de forma sistemática as

matérias da Folha Alvorada, tomando-as enquanto ponto de partida e enquanto fonte

imprescindível para compreender o que ensinava o professor de história aos estudantes

matriculados nas escolas nas cidades e sertões do Araguaia-Xingu.

Embora não tenhamos como precisar se as práticas em sala de aula eram

regidas pelos rigores das operações historiográficas, fazendo emergir conceitos já bem

conhecidos e praticados pela academia, é possível afirmar que as matérias produzidas e

publicadas na Folha Alvorada contrariavam o mito fundador, uma vez que estampavam

modelos explicativos sobre as desigualdades sociais, raciais, culturais e, em especial, a

dissolução das verdades „plantadas‟ sob a égide dos tubarões e do governo ditador, ali

representados pela força repressiva da polícia. Igualmente, é possível perceber uma

reinvenção e ressignificação dos atos cívicos, enfim, a abertura para a possibilidade de o

professor mediar conhecimentos de um ensino de história engajado à realidade.

A adoção dos materiais produzidos e disseminados pela prelazia como

principal fonte para a produção das reflexões nesse capítulo, corroborou para afirmar

que o professor aquilatava a história local, pois sua função social estava conectada aos

problemas comuns à comunidade, e, ao tratar os temas ali circunstanciados, permitia-lhe

a compreensão da história presente constatável ao aluno, pois, ao olhar para seu entorno,

pode reconhecer as categorias e os processos históricos que resultaram na

dessemelhança entre eles, seja em relação ao acesso aos bens de consumo, seja em

relação ao acesso à terra, ao trabalho, à saúde e segurança.

Certamente, elegeria essa como principal contribuição para o ensino de

história na formação do aprendente, especialmente em situação de crise, pois, a

Page 219: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

219

desesperança, a dúvida, a falta de resposta quando a pessoa humana se vê diante de tais

circunstâncias, requer entender que elas provém de um processo histórico revelado no

tempo presente, mas que, igualmente, poderão ser passageiras, desde que haja busca

pela sua superação.

Em caso contrário, a tentativa de refutar a perspectiva de o professor, ao

ensinar história, se tornar agente da transformação da escola e da sociedade no tempo,

limitaria a análise e reduziria a perspectiva do conhecimento social a um exercício de

montar um quebra-cabeça, em que as peças não se encaixam. Portanto, somente a partir

de uma leitura da realidade com as lentes da história é que o estudante poderiam

alcançar a condição de compreensão do processo sócio histórico em permanente

construção, tornando-se capaz de transformar as realidades, individuais e coletivas.

Todavia, parece-nos que o alcance da formação de um sujeito

historicamente consciente permanece na linha do horizonte, de um futuro porvir, pois,

poucos sentidos históricos (partindo da história do tempo presente) têm encontrado

guarida no fazer docente em sala de aula da educação básica, especialmente se

tomarmos por referência as práticas do ensino de história, cuja temática será mais bem

trabalhada no quarto e último capítulo da tese.

2.9 - Escola sem meio termo: se não é democrática, é tirânica

Contrariando as funções sociais, muitos educadores, imbuídos de práticas de

poder, não reproduziam ações pouco republicanas, a exemplo do que aconteceu em

Santa Terezinha, em junho de 1982, resultado de uma divisão entre o partido do

governo, o PDS, “[...] o Reis da coletoria, brigou com o prefeito Batista e saiu da

presidência do partido, isso porque, segundo Reis, o Batista está ganhando dinheiro

sozinho [...]”.292

Como consequência direta da disputa pelo poder político local, ocorreu

o distanciamento entre as ações da direção da escola que, naquele momento, tinha dois

diretores, um de direito (impositivo) e o outro de fato, a Eva, mas quem mandava era o

Sabino.

Assim, percebe-se que a invenção da escola se fez num determinado

contexto político, reafirmando o antagonismo, o que diretamente interferiu nas decisões

292

Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.27 p 09-18.

Page 220: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

220

pedagógicas, marcando o próprio currículo, haja vista o conflito inaugurado com a

atitude da diretora Eva que, chamou a professora Divina mandando que seus alunos

falassem alguma coisa sobre a data alusiva ao dia do trabalho. Como as crianças se

recusaram a falar, a diretora „ridicularizou‟ a professora na frente dos alunos. O

resultado dessa discussão redundou no desmaio da professora Divina, que precisou ser

levada ao hospital. O médico conferiu a ela um atestado de sete dias de licença, mas,

inconformada, a diretora exigiu que a professora pagasse uma substituta, pois, do

contrário, haveria de repor as aulas durante as férias de julho.293

Não satisfeitas com o imbróglio, as irmãs da professora Divina foram até a

escola reclamar, e, chegando lá, foram desacatadas pela diretora e pelo Sabino. Sendo

uma delas funcionária da escola, acabou sendo suspensa por 15 dias. Afirmou ainda a

matéria da Alvorada que todos eles eram do partido do governo. Assim se fez, e assim

possivelmente se faz no cotidiano das escolas de educação básica, onde os conflitos,

independente das razões e partidos políticos ou organização de grupos, acabam

contribuindo para a fragilidade institucional e o distanciamento de sua função social.

Como observamos durante os primeiros anos da existência das escolas,

especialmente as do campo, entre os rios Araguaia e Xingu, sua edificação foi marcada

pela participação popular, uma vez que, sem ela, não haveria escola. Parece-nos que,

com o passar dos anos essa escola começou a distanciar-se das premissas sociais de seu

nascituro. Exemplo disso pode ser assistido pelas famílias da comunidade de

Chapadinha, município de São Félix do Araguaia. Como noticiou a edição da Folha

Alvorada, do mês de junho de 1982, as palavras da diretora da escola:

Aqui quem manda é a diretora e o secretário. A escola não é do povo.

Se o povo não gostar assim, vai procurar outro lugar. Porque nós

temos que fazer o gosto da prefeitura e não dos pais. O povo, que era

acostumado a jogar vôlei, futebol no campinho da escola, agora não

pode mais, porque é propriedade da prefeitura e não dos moradores.294

Tamanho era o distanciamento que, antes, havia um „engana-bode‟ na cerca

da escola, por onde as pessoas passavam para pegar água no poço, e isso também

tornou-se proibitivo por determinação do delegado de São Félix, senhor Rui Aparecido,

293

Ibid. 294

Ibid. Sem destaque no original.

Page 221: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

221

que foi lá e fechou. Uma pergunta não poderia deixar de ser feita: por que, ao invés de

chamar o prefeito ou secretário de educação, a diretora teve de chamar o delegado de

polícia para resolver um assunto que não competia a ele? É possível que o real propósito

fosse o de desafiar os enfrentantess da comunidade, cujas pessoas haviam contribuído

para a edificação da escola e na construção da cisterna.

Observa-se, com mais esse fato, que não é possível separar a escola da

comunidade em que está inserida, pois, quaisquer acontecimentos em seu interior e

externamente a ela acabam interferindo em sua organização e funcionamento, seja em

defesa das famílias que dela necessitam, seja contrariando os desejos e necessidades do

coletivo.

A questão da Chapadinha não parou pela ação do delegado ao impedir que

a comunidade se utilizasse do espaço da escola, pois, no dia 2 de junho ocorreu uma

briga entre dois moradores, sendo que um deles tinha ingerido bebida alcóolica. Tal

confusão resultou na prisão do morador pelo delegado que, além dessa atitude, acabou

semeando medo na Chapadinha.

Na busca por ver o prisioneiro em liberdade, um grupo de pessoas se dirigiu

até São Félix, onde constataram que o companheiro tinha sido agredido pelos policiais e

trancado, só de calção, em um quarto cimentado cheirando mal, e ali permanecido

durante toda a noite. Embora conseguindo ver o prisioneiro solto, souberam que ele teve

que oferecer depoimento ao delegado Rui Aparecido, cujas perguntas nada tinham a ver

com a briga, visto que estas foram dirigidas para saber sobre a prelazia, sobre o

sindicato e de como a comunidade se organizava.

Ao que parece, os assédios à escola não se limitaram à perseguição, mas

abriram precedente para outras arbitrariedades, a exemplo do secretário do prefeito que,

deixando os professores sem salário por dois meses, ao pagá-los queria faze-lo pela

metade, exigindo que os mesmos assinassem um recibo com o valor total devido. De

pronto, os professores se recusaram a assinar. Também houve candidatos do PDS, que,

dias antes da eleição de 1982, saíram distribuindo alimentos que deveriam ser

fornecidos para a merenda escolar.295

No tópico 2.8 do presente capítulo, apresentamos, com bastante vagar, o

problema com o caixa escolar, que retomamos aqui, não mais com a intenção em

295

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.1.32 p 13-19.

Page 222: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

222

afirmar que essa prática fora usada em todas as escolas da região, mas, principalmente,

para reafirmar que, no ano de 1983, ela continuou alimentando práticas tirânicas no

contexto escolar, tal como em Porto Alegre, quando, para os alunos acima de 15 anos, a

família tinha que pagar C$ 4.814,00 (quatro mil oitocentos e quatorze cruzeiros) e,

abaixo de 15 anos, C$ 970,00 (novecentos e setenta). O pior é que essa notícia foi dada

faltando somente dois meses para o término do ano letivo, e como era prática

corriqueira, afirmou o diretor que, se não pagassem, não receberiam o boletim com as

notas. O fato é que, mesmo sendo ameaçados, muitos pais desinformados, e não tendo

como pagar, tiraram os filhos da escola.

Da mesma forma que narramos as arbitrariedades cometidas no contexto

escolar, a resistência também se fez presente, a exemplo da 1ª greve na Escola

Alexandre Quirino de Sousa, em decorrência do atraso no pagamento dos professores,

pois, somente em outubro foi lhes pago o salário de mês de março. Mesmo sendo

quitado um único salário mínimo, juntos, somariam 7 meses, seria esta uma forma de

aplicar o dinheiro dos trabalhadores da educação a juros, embora não seja objeto de

nossa pesquisa os desvios de finalidades cometidos pelos desgovernos no século XXI,

parece ser práticas corriqueiras em nossa gestão dos recursos para educação.296

Concluímos o capítulo com o sentimento de que, ao visitar o cotidiano da

escola por meio da fonte privilegiada possibilitou-nos perceber que a escola foi

anunciada, pelas páginas da Folha Alvorada, integrada ao discurso e como tática de

resistência, assim, ela se tornou pedra angular na organização social entre o Araguaia

Xingu mato-grossense. Igualmente podemos afirmar que, embora houvesse como

parâmetro a organização social local, portanto, popular, experimentada em tempos de

governo opressor, não ficou imune às arbitrariedades, externas e internas. Em tempos de

ditadura, ditadora se fez. Passaremos no capítulo 3, a fim de entender o que se ensinava,

quem ensina e o que se ensinava no âmbito da escola e, em especial, que história era

ensinada.

296

Ibid.

Page 223: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

223

CAPÍTULO 3

ENSINO DE HISTÓRIA E ‘SUBERSIVIDADE’:

NEM AMAR, NEM DEIXAR, UNIR, DENUNCIAR E

RESISTIR

A escola apresentada no capítulo anterior fez-se edificada na esperança,

num projeto de sociedade concebida com e para o povo. Tal projeto não resultou de

uma ação isolada, mas foi fruto de um processo coletivo, marcado por avanços e

retrocessos, cujo percurso aguçou o desejo de conhecê-lo, assim como aos inventores e

à invenção.

Esse propósito conduziu-nos à Folha Alvorada, cuja garimpagem foram

avolumando os registros sobre os discursos, interpretados com devidos cuidados, os

quais se revelaram para além de um instrumento de poder informativo, mas, um espaço

de memória singular de uma luta coletiva. A pesquisa possibilitou-nos atribuir novos

sentidos à escola, na medida em que aproximávamos do espírito do tempo, marcado

intensamente pelas lutas e enfrentamentos em defesa de uma educação popular e

democrática no Araguaia-Xingu mato-grossense, transformando a escola em

instrumento de poder e resistência contra os opressores, uma vez vocacionada pela

liberdade do oprimido.

Como verificado, no exterior-interior da escola se formou a resistência

arquitetada pelas lideranças locais e redes da sociabilidades de Pedro Casaldáliga,

ligadas à educação. E ignorar a presença da escola, sua estrutura administrativa, dos

docentes e seus escolares naquele processo de reterritorialização das terras contíguas

entre o Araguaia-Xingu mato-grossense, seria, no mínimo, desprezar o centro

nevrálgico desse processo. A história da educação no Brasil Central passa pela

compreensão do processo edificação da escola.

Parece-nos que a historiografia, ao adotar os traços da violência e ou dar

relevo às questões agrárias, sem conceder espaço para o processo de informação da

Page 224: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

224

sociedade, tomando as famílias e ou os estágios de formação como mera estatística,

contribui para o solapar das vivências, experiências e táticas de resistências, concebidas

com e para a permanência das famílias naquele palco de contendas, exaltando, por sua

vez, em via de mão única, a história do opressor.

Igualmente, privilegiar estudos sobre a política empreendida em torno da

formação das grandes fazendas agropecuárias, fomentadas pelo governo em detrimento

das nações indígenas e de milhares de famílias de posseiros e peões, e ou tomá-los

enquanto vítimas, sem conceder espaço dialógico na compreensão de suas práticas de

„guerrilha‟, cujo enfrentamento foi e continua latente naqueles sertões, antes florestas, o

„inferno verde‟ até a década de 1970, seguido pelos infinitos pastos nas décadas de 1980

e 1990, e hoje intermitentes „desertos verdes‟ com a agricultura de larga escala,

continuarão tais pesquisas, nas páginas dos livros e na história, relegando-os ao não

espaço.

Semelhantes imprecisões ocorrem quanto os estudos deixam de lado, por

razões pouco compreensíveis, os aspectos da cultura, mas com foco tão somente na

figura de um líder. Seria o mesmo que explorar aspectos da vida de Pedro Casaldáliga

enquanto religioso, sem perceber seu próprio processo de construção, como se, ao sair

da Espanha, já se fizesse pronto. Tratam-se, portanto, de equívocos a serem superados,

pois foi no calor da batalha que fez Pedro líder e educador, embora, por razões óbvias,

não haveria de deixar passar incólume sua atuação religiosa. Contudo, sua dimensão de

educador é que nos permite entender sua causa.

A escola inventada no Araguaia-Xingu possibilitou emergir um grandioso

projeto de formação de professores leigos, o INAJÁ, cujo tema será tratado no quarto

capítulo da tese, porém iniciado na década de 1970, como já mencionado. Ele só se fez

possível por meio da rede de sociabilidade estabelecidas com instituições educacionais,

e, antes delas, de pessoas que coadunavam do mesmo pensamento crítico e imbuídos de

vontade de mudar a situação excludente herdada dos séculos de dominação por uma

elite segregatícia e exploradora, que só poderia ser combatida, naquele espaço

privilegiado, por uma educação popular e democrática. Assim, fazia-se necessária

inventar uma escola que fosse tão fecunda e forte como a palmeira Inajá.

Nessa medida, como desdobramento da invenção da escola e na busca por

fortalecer seu principal esteio, os educadores, igualmente foram inventados os cursos de

Page 225: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

225

férias, para formar os professores leigos, em 1978, o INAJÁ, em finais de 1980 e início

de 1990, e em seguida as Parceladas, com a oferta de cursos superiores, pela

Universidade do Estado de Mato Grosso, por meio de cursos gratuitos e voltados a

atender as especificidades dos educadores atuantes nas escolas públicas dos municípios

do Baixo Araguaia, que ainda não contavam formação de terceiro grau, projeto que será

mais bem apresentado no próximo capítulo.

Para o momento, voltamos a navegar naquelas águas e verificar sua

trajetória em meio às pedras de tropeços usados como barreiras para impedir que, tanto

a escola quanto as famílias continuassem de pé, unidas e resistindo às bordoadas do

opressor ao longo do tempo, desfechadas no Brasil Central.297

Na espacialidade entre os rios Araguaia-Xingu se edificaram os pilares de

uma escola popular e democrática, porém, assim como qualquer outra instituição, estava

em permanente construção. Nesse sentido, passadas as primeiras experiências da escola

construída em finais da década de 1950, pelo Padre Francisco Jentel, como afirmou a

Folha Alvorada: “Foi o padre Francisco quem trouxe os primeiros professores,

enfermeiros para o lugar, também foi quem construiu a escola‟.298

Foi ele quem

enfrentou a construção dos dois prédios, um para escola e outro para o ambulatório”.299

297

O próprio padre Francisco Jentel descreveu que “[...] essas pessoas analfabetas [...] não conseguiram

manter grandes discussões com os representantes da companhia, que tentava extorquir acordos por escrito

a respeito de textos que eles não compreendiam” (Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do

Araguaia. São Félix. Fevereiro de 1979 A16.0.63 p.2.17). Alertava, portanto, para a necessidade de

prepara-los a também dominar a leitura e a escrita. Para tanto, edificou a escola e para lá levou os

primeiros professores. 298

Ibid. A mesma edição, contou a história do padre Francisco Jacques Jentel, nascido em Merial, na

França, no dia 22 de agosto de 1922, ordenado sacerdote, foi para África onde ingressou na Fraternidade

dos Irmãozinhos de Jesus. Em 1954, veio ao Brasil como missionário na Prelazia de Conceição do

Araguaia, entre os Tapirapé. Chegou ao Furo de Pedras, berço de Santa Terezinha - MT, em dezembro, na

noite de Natal do mesmo ano. Passados 10 anos com os Tapirapé, mudou-se para Santa Terezinha, onde

fundou uma cooperativa, montou máquina de arroz e adquiriu o primeiro trator. Por conta de sua luta em

favor dos posseiros, contrariou interesses de autoridades federais, estaduais e municipais, pois conhecia as

leis e exigia que elas fossem respeitadas. Depois de muita luta e de ter sido condenado por atentado à

segurança nacional, no dia 28 de maio de 1973, foi condenado por um tribunal militar de Campo Grande

a 10 anos de prisão. Passado um ano da detenção, foi absorvido pelo superior Tribunal Militar, visto que

declarando inocente, viajando para a França, logo em seguida. Em dezembro de 1975, voltou ao Brasil,

porém, no dia 12 do mesmo mês foi sequestrado em Fortaleza, por quatro homens da Repressão Oficial e

entregue à Polícia Federal. No dia 15, o Presidente Geisel assinou o decreto de expulsão do Padre

Francisco do Brasil e, no dia 2 de janeiro de 1979, em decorrência de problemas no fígado, faleceu. 299

Os prédios que o padre Chico, como eram chamados pelas famílias que com ele conviveram, foram

aqueles que os posseiros defenderam quando os peões da CODEARA e policiais queriam derrubar, no dia

3 de março de 1972. (Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Fevereiro

de 1979 A16.0.63 p 02.-7).

Page 226: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

226

Porém, embora as primeiras iniciativas se deram com o Padre Jentel,

entendemos que a década de 1970 foi o marco fundador da invenção da escola no

Araguaia-Xingu, pois, além da criação da prelazia, inaugurava a Folha Alvorada com o

anúncio de uma frase memorável: “[...] o povo precisa de escolas, de instrução. Um

povo educado, esclarecido é um povo consciente de si e de seu papel na História” a qual

tomamos por empréstimo como epígrafe e problemática do presente capítulo. Como

esclarecer o povo para que pudesse (possa) tornar-se consciente de si e de seu papel na

história, senão pelo ensino? Que ensino de história seria capaz de contestar a história

oficial ensinada, ufanista e nacionalista, proposta pelos manuais didáticos? Que

poderíamos entender por história libertadora? Onde os professores encontravam

subsídio para esse fim? Seguimos em busca de pistas que possibilitem tais respostas.

O editorial da Folha Alvorada, em sua edição de número 3, anunciava um

grande evento que iria acontecer em São Félix do Araguaia-MT, a inauguração do

Ginásio Estadual do Araguaia – GEA, representando “[...] o início de uma nova

alvorada, o despertar de um longo sono”. O ginásio representaria “[...] o centro

irradiador de uma nova luz, que se alastrará por este sertão afora, como fogo em

palha”.300

Naquela inauguração estiveram presentes o Secretário Estadual de Educação,

Dr. Gabriel Novis Neves, se tornando paraninfo daquela unidade escolar; o Prefeito de

Barra do Garças, Sr. Ladislau Cristino Côrtes, a Srta. Arlete Gonçalves, que, segundo a

matéria, muito lutou pela criação do estabelecimento de ensino.

Edificada a escola, dadas as informações de como eram organizadas,

buscaremos a seguir apresentar como o conhecimento histórico, na década de 1970, era

praticado nas escolas de educação básica entre o Araguaia-Xingu mato-grossense,

contudo, passamos a entender um pouco sobre a disciplina.

A disciplina história, como matéria escolar, teve origem na cultura clássica

das Humanidades e somadas a ela estão a Geografia, o Latim, o Grego, a Literatura, a

Filosofia e a Retórica, representando mais de 50% da carga horária das disciplinas dos

programas de ensino desde o século XIX, como afirmou Gasparello.301

300

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Maio de 1970 A16.0.03

P.1.3. 301

GASPARELLO, 2002, p. 68 apud SANTOS, Beatriz Boclin Marques dos. O currículo da disciplina

escolar História no Colégio Pedro II – a década de 70 – entre a tradição acadêmica e a tradição

pedagógica: a História e os Estudos Sociais. Tese (Doutorado em Educação – UFRJ). Instituto de

Educação/Programa de Pós-graduação, 2009, p. 16.

Page 227: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

227

Mesmo tendo sido substituída pela de Estudos Sociais (Lei, n. 5.692/71), as

especificidades e objetivos da disciplina história a fizeram hodierna na manutenção do

currículo da escola de educação básica até os dias atuais.

Se tomasse a tradição dessa disciplina ministrada no âmbito das escolas de

educação básica, o ensino de humanidades não contribuiria para a transformação social,

pois, conforme Gasparello:

O ensino de humanidades fundamenta uma concepção de cultura

afastada de qualquer utilidade imediata representada pela ideia de

exercício profissional. O secundário deveria ser desinteressado, isento

de finalidades consideradas menores e particulares, em favor de uma

utilidade superior – a preservação da cultura humanística – que

significava a identificação da elite com essa cultura.302

Seria capaz o ensino de história de manter a tradição do „ensinar a ser‟, sob

o olhar e práticas do opressor? Uma tradição inventada pela elite brasileira em

„programar‟ aquilo que os professores deveriam ensinar em sala de aula das escolas de

educação básica voltadas, em sua grande maioria, para impingir na sociedade a visão de

cidadania, pelas lentes do opressor e vitrine do oprimido, como forma de homogeneizar

o ser e o agir na sociedade?

Para Bittencourt,

[...] a História desempenharia o papel civilizatório mas também

deveria se encarregar da constituição da identidade nacional e da

cidadania politica. Dentro destas perspectivas, a História Universal e a

História eram complementares e suficientes.303

Tomando as reflexões de Bittencourt, surge uma pergunta: que história

ensinada seria suficiente para os escolares espalhados pelo Araguaia-Xingu mato-

grossense, em finais do século XX? Seria a história prescrita capaz de romper com o

contexto, ignorando as categorias ali existentes e suas realidades, na perspectiva da

formação de uma identidade nacional? Só conseguimos entender a força dos banzeiros

vividos no contexto escolar calibrando nossas lentes sobre os fatos em redes locais,

regionais, nacional e internacional, nas décadas de 1970 e 1980.

302

GASPARELLO, op. cit. apud SANTOS, 2009, p. 64. 303

BITTENCOURT, 1992, p. 199 apud SANTOS 2006, p. 84.

Page 228: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

228

A educação na América Latina naquele período foi marcada por governos

austeros e pouco preocupados com a educação escolar para o povo, pois estavam

interessados no „desenvolvimento econômico‟, seguindo a tradição dos governos

antecessores, para a „elite‟. Em Mato Grosso, os grandes latifundiários contribuíram

para esse caldeirão em ebulição. Porém, contrariando a todas as probabilidades, foi

naquele momento que a escola popular se revelou como forma de combater os

governos, resistindo frente às forças opressoras.

Pensadores em educação denunciavam as mazelas a que estava condenada a

sociedade no entorno da escola, assim como os mecanismos de controle político a serem

superados. Tais características foram largamente contestadas pelo educador brasileiro

Paulo Freire, em sintonia e em tons e realidades com nuances de similaridades com a

educadora argentina Maria Tereza Nidelcoff (1994)304

, com os quais estaremos

dialogando ao longo deste capítulo, tomando o cotidiano das escolas do Araguaia-Xingu

mato-grossense, território analítico.

A observação do cotidiano das escolas de educação básica, graças às lentes

das matérias publicadas pela Folha Alvorada, é possível perceber uma latência pela

formação política das famílias, transformando a escola em anteparo à resistência e

difusora de conhecimento sobre os processos históricos que desaguaram no conflito pela

terra, bem como na perspectiva das táticas que resultaram em ações imperiosas para a

organização social e, como bandeira de luta, a transformação da realidade vivida pelas

comunidades organizadas entre o Araguaia-Xingu mato-grossense.

Observar a escola e o ensino de história nesta perspectiva revela-nos uma

escola engajada e ensejada por uma educação popular, distanciando-se qualitativamente

dos estereótipos e preconceitos, presentes nas representações produzidas no próprio

meio acadêmico, escolar e na sociedade sobre o papel da escola e do ensino de

história.305

Tomando tais reflexões como base, ao explorar traços daquele cotidiano,

agora vistos não mais como ilustração ou idealização, mas sim como recurso analítico,

seja por meio das ações dos sujeitos, individual e coletivamente, no tempo e no espaço,

permitiu-nos entender um pouco sobre as aproximações e distanciamentos desse grande

304

NIDELCOFF, Maria Teresa. Uma escola para o povo. [tradução: João Silvério Trevisan] 37 ed. São

Paulo: Brasiliense, 1994 305

RIBEIRO, Renilson Rosa. Entre textos e práticas: ensino de história, instituição escolar e formação

docente. História & Ensino. Londrina, v. 21, n. 2, p. 151-179, jul./dez. 2015, p. 153.

Page 229: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

229

enigma aos pesquisadores que, tomados por uma tradição do pensamento, vestiram a

escola como um espaço incapaz de criar algum tipo de produção intelectual própria.

Lançar olhares sobre aquele momento histórico e o lugar é possível revelar

que a escola produziu narrativas por meio de práticas, superando a raia lindeira da

reprodução da récita de uma educação cívica, uma „pedagogia do cidadão‟, conforme

Laville306

, tendo por finalidade maior confirmar a nação no Estado em que se

encontrava no momento e criar nos membros dela o sentimento de pertencimento,

respeito e dedicação para servi-la. Seria possível afirmar a existência de uma escola

autora de práticas de liberdade? Teria o ensino de história contribuído para tal fim?

Seria possível analisar a história ensinada em sala de aula alheia aos processos

vivenciados em seu entorno? Tais respostas nos move a busca.307

Neste capítulo, haveremos de aprofundar a narrativa sobre o processo de

edificação da escola e perceber, em seu interior, a história ensinada a partir da qual,

traçaremos um paralelo entre o fazer do professor e as relações estabelecidas entre a

escola e a comunidade, revelando se esta conseguiu fugir aos princípios norteadores da

escola tradicional tratados por Ribeiro:

[...] ordenação mecânica de fatos em causas e consequências;

cronologia linear, eurocêntrica, privilegiando a curta duração;

destaque para os feitos de governantes, homens brancos, numa visão

heroicizada e idealizada da História; conteúdos apresentando aos

alunos como pacotes-verdades, desconsiderando e desvalorizando

suas experiências cotidianas e práticas sociais.308

A literatura referente às questões sobre a história ensinada ganhou espaço

nas publicações, em meados da década de 1980, onde emergiam propostas curriculares

de história, especialmente nos espaços onde os professores especialistas lideravam as

reflexões críticas sobre o modelo positivista e a busca por modelos alternativos.

306

LAVILLE, 1999, p. 126 apud RIBEIRO, Renilson Rosa. Entre textos e práticas: ensino de história,

instituição escolar e formação docente. História & Ensino, Londrina, v. 21, n. 2, p. 151-179, jul./dez.

2015 apud CAIMI, 2006, p. 156. 307

Neste trabalho pensamos o exterior-interior sala de aula em dois espaços-tempo distintos, o das duas

primeiras décadas, por entender que as práticas dos professores em sala de aula estiveram mais integradas

ao processo comunitário. Já nas duas últimas décadas, por conta dos processos advindos da Lei n.

9.395/96 e pela estruturação das escolas, infraestrutura física e humana, tecnologia e currículo estarem

mais próximas do projeto estatal, traduziu, por conseguinte, maior distanciamento entre o fazer do

professor e a comunidade, todavia, essa é uma hipótese a ser confirmada ou refutada no quarto e último

capítulo da tese. 308

RIBEIRO, Renilson Rosa. Op. cit.

Page 230: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

230

Esse movimento passou aos debates sobre temas de estudos e publicação

referentes ao ensino de história, conforme registrou Fonseca: história do ensino de

história, livros didáticos e paradidáticos, produção do conhecimento, construção de

currículos, ensino temático, diferentes linguagens, novas tecnologias entre outras309

.

As reflexões resultaram em inúmeras publicações em coletâneas e dossiês

de periódicos científicos no país. Portanto, manancial por onde se pode entender a

história ensinada e as razões pelas quais as fizeram. Porém, essa produção oferecia

campos opostos e por onde os professores poderiam seguir, eis um dilema que

perseguiremos no tópico a seguir.

3.1 - Os dilemas de o professor ensinar história nas escolas o Araguaia-Xingu mato-

grossense

Na busca por entender um pouco sobre os dilemas do professor de história

na escola de educação básica no Araguaia-Xingu mato-grossense, já bem delineada do

ponto de vista de sua invenção e sua importância no contexto da reterritorialização dos

sertões, faremos um mergulho sobre os dilemas vividos pelo professor, ao se deparar

com o desafio em ensinar história. Como já antecipamos algumas questões, percebemos

que a grande maioria não tinha passado por uma formação acadêmica específica nesse

campo de conhecimento, até porque, na década de 1970, considerando a existência do

curso de História Natural, em atividade desde 1966, o número de professores formados

não atendia à demanda.

Embora as publicações sobre a história ensinada no Brasil tenham surgido a

partir do final da década de 1970 e início dos anos 1980, culminando com o período da

derrocada dos governos militares, passadas quase cinco décadas o ensino de História

ainda vive seu dilema, próprio na construção do saber-fazer do professor de história,

pois, além de dominar o conhecimento histórico, a docência requer conhecimentos

amplos, para além dos manuais, para saber escolher que história ensinar, porque e a

quem ensinar e com que objetivos.

Conforme Ribeiro, nas últimas décadas a história e seu ensino tem passado

por um processo crescente de revisão dos esquemas globalizantes e homogeneizadores,

309

FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História & ensino de História. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica,

2004, p. 92.

Page 231: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

231

os quais, por muito tempo, nortearam as teorias e as práticas historiográficas,

culminando na ampliação do campo de história com novos problemas, novas

abordagens e novos objetos, ampliando ainda mais os desafios.310

Assim recorremos às

questões de fundo, que ensinou o professor de história nas escolas entre o Araguaia-

Xingu e nordeste de Mato Grosso? Embora tenhamos apontado algumas alternativas

encontradas pelo professor ao ensinar história em meio ao conflito entre posseiros e

latifúndio, resta-nos saber como lidaram com seu ensino durante o período em que o

conflito pela terra era mais evidente, assim, ampliava o dilema, que currículo se tornou

possível naquele contexto?

Há de se lembrar que, no final da década de 1960 e início de 1970, a

legislação educacional brasileira proporcionou mudanças curriculares importantes para

as escolas de educação básica (1º e 2º graus, o que hoje corresponde ao ensino

fundamental e ensino médio), e, especificamente para o campo da história, foi criada a

disciplina Estudos Sociais, para o 1º grau, que deveria ser lecionado por professores

polivalentes nas classes de 1ª a 4ª séries, e por profissional diplomado em história ou

nos cursos de estudos sociais para as 5ª à 8ª séries (hoje equivale do sexto ao nono ano).

Com a Reforma do Ensino que efetivou os estudos sociais no currículo

nacional de 1º grau e incentivou a criação do curso superior de Estudos Sociais, essa

medida resultou na tentativa de restringir o campo de atuação do professor de história

no ano de 1976, quando somente os profissionais formados em licenciaturas curtas em

ciências sociais iriam atuar no ensino fundamental. Um projeto de escola imposto pela

ditadura não poderia ser outro, que não uma escola que atendesse ao projeto autoritário:

A escola do autoritarismo, da repressão e do controle sobre a

sociedade civil, aliada à implantação de um modelo econômico

concentrador de capital e de renda, destrói as escolas ou extrai delas

somente os seus suportes técnico-pedagógicos, colocando-os a serviço

de uma nova política educacional.311

Assim, percebemos que o campo do professor de história sofreu duplo

golpe, o primeiro, com a tentativa de supressão de seu espaço de atuação, segundo, com

a definição prescrita de um currículo dosado pela censura. Seria possível constatar

310

Ibid. 311

NADAI, Elza. O ensino de História na América Latina. In: Anais do Seminário Perspectivas do

Ensino de História. São Paulo: FeUSP, 1988, p. 10.

Page 232: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

232

proximidades e ou distanciamentos entre o cotidiano da escola de educação básica no

Araguaia-Xingu, percebendo a atuação do professor nas décadas em que o Brasil vivia

um governo autoritário e em espaço de consolidação de um projeto iniciado na década

de 1940 e intensificado durante o governo militar? Seguimos explorando e

historicizando a escola e a educação escolar, tomando os projetos oficiais e sua

contestação enquanto forma de resistência no e pelo ensino de história.

Nessa busca, focamos o olhar na organização escolar, questionando se o

„disciplinar militarizado‟, proposto pela ditadura nas décadas de 1970 e 1980, conseguiu

„imprimir‟ o tão almejado „projeto civilizatório‟, inaugurado no Brasil Império com o

Colégio Pedro II? Como se deram os usos do currículo prescrito de história delineado

pelos manuais didáticos para esse ensino? Como se rivalizou a história estruturada

como matéria escolar naquele cotidiano em que se respirava, de um lado, o sonho pela

conquista da terra como sinônimo de liberdade e, de outro, o „progresso‟

desenvolvimentista no Brasil Central?

Quais aspectos da história ensinada podem ser percebidos como alinhados

ao projeto de sociedade defendido pelo governo ditador, e que aspectos destoavam de

seus propósitos? Seria possível afirmar a existência de uma „resistência‟ por parte dos

inventores da instituição escola? Em hipótese, poderíamos aventar a existência de uma

guerrilha orquestrada pelos subversivos professores que contribuíram para a

mobilização e arregimentação das comunidades, com o conhecimento disseminado por

meio dos processos educativos escolares, táticas de guerrilha na defesa dos direitos dos

oprimidos, em combate ao opressor? Se existiu, teria alcançado êxito diante dos „atos

falhos‟ do governo militar que, distante do que anunciavam os programas de governo

adotado, especialmente em relação à educação?

Importante destacar que, diante de seu inquiridor, querendo saber o que

Casaldáliga achava da guerrilha, o bispo disse: “Lamento la existência de las guerrillas,

admiro la ¿utópica? generosidad de muchos guerrilleros, pero, sobre todo, condeno

inexorablemente las causas que provocan las guerrillas. Y, en principio, me parece más

digno un guerrillero que un dictador”.312

As proposições acima tencionadas serão melhor apresentadas no decorrer da

narrativa, na medida em que serão apresentados fatos que marcaram o cotidiano da

312

CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Claves

Latinoamericanas, México 1990, s/p.

Page 233: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

233

maioria das famílias que protagonizaram a presença da escola de educação básica no

Araguaia-Xingu mato-grossense, as quais, como já exibidas, tiveram suas vidas

marcadas pela ausência do Estado, no tocante ao atendimento à educação, saúde,

segurança, infraestrutura, entre outros, porém, contrariando sua função, o Estado se

fazia presente na concessão de terras e incentivos fiscais ao grande latifúndio nacional e

internacional, além de manter um efetivo aparato policial nas ações que resultaram na

expulsão, prisão e morte de centenas de pessoas, sob o pretexto de estarem combatendo

crimes cometidos pelas famílias de posseiros.

Resta-nos entender de que forma esse discurso oficial foi tratado em sala de

aula, assim como compreender como o mesmo era conceitualmente pedagogizado pelos

professores de história. Seria ela capaz de oferecer aos estudantes outro sentido que o

„imposto‟ pelo discurso da polícia?

Pensar uma escola que produzisse práticas de liberdade dependeria de uma

mudança radical no tocante a pensar seu currículo, o qual deveria estar voltado à

formação de „cidadãos críticos e participativos‟, como ponderou Ribeiro, mas também

permeado de práticas que deveriam estar para além dos discursos. Para tanto,

igualmente requeria profissionais que se identificassem como produtores de saberes, e

não meros aplicadores de fórmulas prontas, produzidas em outros lugares institucionais,

iguais às receitas de como aplicar o „ensino ideal‟, geralmente acompanhadas do verbo

conjugado no imperativo, „deve‟. Assim, o currículo de história haveria ter foco na

solução de problemas locais, potencializando a construção de um projeto de escola

inventada para a educação popular.

Na busca por confirmar tais dimensões de escola e de currículo, vale

acrescentar algumas perguntas iniciais: A escola estaria considerando todas as

dificuldades operacionais e se colocando próxima da comunidade o suficiente para

cumprir sua função social, qual seja, a de promover situações de aprendizagem partindo

das problemáticas emergidas de seu contexto? Estariam, com tais práticas, quebrando

paradigmas de gestão, por meio de decisões tomadas pelo coletivo de pais, professores e

comunidade? Alcançou ela práticas democráticas em tempos de um governo ditador?

Em que instituição ou linha de pensamento inspirava suas ações? Em caso dessa

experiência ter cumprido esses propósitos, como eram elas postas em prática por parte

da liderança local, dos gestores e professores? Praticou a escola um currículo onde o

Page 234: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

234

aprendente pudesse se identificar a partir de sua realidade sócio histórica e, tomando-a

por ponto de partida, poderia ele almejar novos horizontes?

Igualmente se faz necessário entender como o currículo foi elaborado para a

escola ali inventada, uma invenção da tradição, conforme Goodson:

Mas, como acontece com toda tradição, não é algo pronto de uma vez

por todas; é antes, algo a ser defendido, onde, com o tempo, as

mistificações tendem a se construir e reconstruir sempre de novo.

Obviamente, se os especialistas em currículo ignoram completamente

a história e a construção social do currículo, mais fáceis se tornam esta

mistificação e reprodução de currículo „tradicional‟, tanto na forma

como no conteúdo.313

Essas questões balizarão o olhar que lançamos sobre os fragmentos do

cotidiano das famílias, dos professores, enfim, de todos aqueles que se organizaram em

torno da edificação da escola, a partir dos quais apresentaremos algumas reflexões,

iniciando por um episódio que, além do conhecimento e da intervenção do professor,

teve que pagar por sua „audácia‟, convertida em ato político em defesa da dignidade

humana ao peão de trecho no momento do seu enterro, já que em vida pouco valor tinha

para os opressores.314

As respostas às questões elencadas nesse primeiro tópico serão apresentadas

ao longo do capítulo, e, para conclusão desse tema inaugural, analisaremos uma matéria

publicada, no ano de 1984, pela Folha Alvorada, a qual consideramos fundante no

projeto que visava tornar o povo consciente de si e de seu papel na história. A matéria

fez alusão aos 87 anos da história de destruição de Canudos, conforme Figura 14.

313

GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 78. 314

Peão do trecho era uma expressão comum dirigida às pessoas que, distante da família e origem, viviam

de fazenda em fazenda vendendo sua mão de obra, e, por conta da falta de contrato que assegurasse seus

direitos, acabavam “rodados” no trecho, ou simplesmente peão do trecho, dependendo da ajuda das

famílias da região. Muitos acabavam constituindo família e ou vivendo agregado.

Page 235: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

235

O texto está dividido em duas partes, a primeira conduz o leitor a refletir

sobre sua origem, cuja maioria veio do Nordeste, cotejando os aspectos políticos

vividos pelos sertanejos de Canudos com os das famílias sendo explorados nos sertões

do Araguaia-Xingu mato-grossense pelos ricos proprietários de terras e pelos políticos

e, como vimos anteriormente, pelos comerciantes, em especial, nos cabarés.

Outro destaque na primeira parte do texto é dado à reação e luta de homens

e mulheres organizados em comunidade igualitária, onde todos partilhavam do trabalho

e usufruíam de seus produtos, não havendo necessidade de cadeia, tampouco de polícia.

Em seu intertexto, uma imagem e expressão tornavam a matéria emblemática,

colocando a resistência em primeiro plano e, na segunda parte do texto, uma expressão

produzia efeito: a crítica ao governo por este, em todos os tempos se colocando em

defesa dos interesses dos poderosos. Por fim, chamou atenção para a história que os

livros didáticos distorcem:

Em nossa região, onde a maioria do povo descende de nordestinos,

todos já devem ter ouvido falar na história de Canudos e seu líder

Antônio Conselheiro, no dia 5 de outubro completam 87 anos que a

população de Canudos foi massacrada pelas tropas do governo. Como

acontece ainda hoje, naquele tempo o povo sertanejo era ignorado

pelas autoridades do país e só existia para ser explorado e perseguido

pelos ricos proprietários de terra e os políticos.

Um grupo de homens e mulheres, liderados por Antônio Conselheiro

lutou contra essa situação e organizou uma comunidade igualitária às

margens do Rio Vaza Barris no sertão da Bahia: era a cidade de

canudos. Todos participavam da comunidade, repartiam o tralho e

Page 236: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

236

seus produtos e não havia nem cadeia e nem polícia. O governo, que

em todos os tempos sempre esteve defendendo os interesses dos

poderosos não podia admitir que houvesse no país uma sociedade

comunitária e enviou tropas do Exército Nacional para acabar com

Canudos.

Os moradores resistiram com muita coragem: homens, mulheres e

crianças. Foi uma luta difícil, desigual. Aquela gente simples, com

pouquíssimas armas não podia contra as armas do Exército. Mas o

povo não se rendeu, lutou até os últimos homens, um velho, dois

adultos e uma criança contra 5 mil soldados. Canudos caiu no dia 5 de

outubro de 1897.

Nos livros usados na escola essa história sempre foi distorcida,

contada do jeito que interessava as classes dominantes. Porém, o povo

precisa conhecer melhor a sua própria história.315

A matéria traduziu inúmeras informações importantes que vão desde a

necessidade de se estabelecer paralelos entre a realidade vivida pelas famílias que se

uniram em torno de uma causa coletiva (comunitária) e foram massacradas pelo

governo, que, ao longo dos tempos sempre estiveram na defesa do interesse dos

opressores, sobrelevando também a necessidade de se seguir o exemplo de coragem

daquele povo diante das atrocidades praticadas pelo governo aliado aos poderosos.

Chamava ainda atenção para a “[...] história distorcida, contada do jeito que

interessava a classe dominante”316

e que o povo precisava conhecer melhor sua própria

história. Por fim, a matéria alertava para a necessidade de distanciamento da história

oficial, pois esta em nada contribuiria para que os escolares deixassem de reproduzir

aquela „inventada‟ pela ideologia dominante. Clamava, portanto, para a dialética do

conflito. No próximo tópico voltaremos nosso foco para uma sequência de fatos,

objetivando entender um pouco mais dos desafios da escola e do professor em tempos

de tirania.

3.2 - Aprendizados do professor Juraci: caluniador de „autoridades‟ pelo triste fim de

um peão do trecho „morto e pronto‟

315

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A16.3.09 p 10-15. 316

Ibid.

Page 237: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

237

Iniciamos o tópico com as perspectivas de Fanon, ao relacionar a dialética

do conflito: “O trabalho do colono é tornar impossível todos os sonhos de liberdade do

colonizado. O trabalho do colonizado é imaginar todas as combinações eventuais para

aniquilar o colono”.317

Abrimos a janela do tempo para visitar o cotidiano de 1978, quando o

professor da Escola do Crisóstomo, atual município de Santa Terezinha-MT, José

Juraci, ao passar em companhia do subprefeito defronte do cemitério, viu a polícia

enterrando os restos mortais de um homem que tinha sido encontrado, um daqueles

„peão do trecho‟, como tantos outros que morriam naquela região, sem ninguém por ele,

sem identidade, morto e pronto.

Percebendo aquela cena do corpo embrulhado em tecido, o professor

perguntou se não podiam dar um enterro de cristão ao homem, se o delegado não

poderia fazer, ao menos, um caixão para enterrar o defunto. Diante da queixa, a polícia

reagiu violentamente perguntando por que ele não comprava a urna funerária e, em

seguida, deferiu-lhe tapas e empurrão, exigindo que o professor abrisse a cova, e

ameaçando-o com um revólver.

Diante da recusa do professor em abrir a cova, o policial levou o professor

Juraci preso, e na delegacia foi revistado e solto em seguida. Mas, ao sair da cadeia, o

professor Juraci deu fé que tinha sumido 500,00 (quinhentos cruzeiros) de sua carteira,

quantia que tinha recebido do vereador Manuel Quitandeiro, como parte dos seus

vencimentos318

.

Logo após, foi à casa do vereador e queixou-se do ocorrido e este, por sua

vez, compareceu perante o delegado Rui Milhomem para reclamar o fato, mas, com

desfecho nada democrático e pacífico, a polícia imediatamente prendeu novamente o

professor, acusando-o de ter caluniado a autoridade. Sua prisão custou um dia e uma

noite de domingo, tendo sido solto só na segunda feira, após ter capinado todo o pátio

da cadeia, quando só depois foi solto319

.

317

FANON. Frantz. Op. cit., p. 59. 318

Percebe-se que o pagamento do vencimento dos professores poderia ser repassado por terceiros, nesse

caso, pelo vereador (vice-prefeito). Tal transação se dava por não haver qualquer agência bancária na

localidade, portanto, o pagamento era feito em espécie, ou cheque a ser “descontado” no comércio local.

O que, de certa forma, abria precedente para o desvio de salário para fins que não o pagamento dos

serviços prestados, ficando os servidores, dependentes dos líderes políticos. 319

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0. 55 p 4-9.

Page 238: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

238

Ao avaliar o fato, é possível afirmar que o professor cumpriu dois papéis

importantes, o primeiro, como cidadão e humanitário, tomando partido requerendo

tratamento digno ao defunto, o segundo, e talvez para aquele momento o mais

importante, ao reclamar por seus direitos, ao ser-lhe subtraído o cheque. Sendo um

professor, certamente em sala de aula asseverasse igualdade de direitos para todos,

independente da origem, raça, fé, condição social. Portanto, no cemitério e ou na

delegacia, sua atitude em fazer valer o direito seu e deu outrem custou-lhe alto preço.

Por outro lado, pode-se igualmente mensurar as ações cometidas pelos

representantes da lei, naquele caso os policiais, ao enterrarem de qualquer modo os

restos mortais do peão, o que demonstra certa proximidade com aspectos anunciados

por Fanon320

, como consequência do processo de opressão, quando o povo colonizado

vê-se reduzido a um conjunto de indivíduos que não encontra a sua razão de ser, refiro-

me à ação de enterrar o indigente desconhecido sem os devidos cuidados cristãos. Tal

atitude fez dos representantes da força policial vítimas de sua própria condição,

perdendo-se enquanto ser humano, no ofício de sua profissão.

Porém, para entender esse processo, haveremos de indagar: que crime

cometeu o professor por reclamar um pouco de humanidade no trato com o morto? O

fato de ter seus vencimentos „subtraídos‟ e se queixar a uma autoridade teria sido

motivo para ser preso? Naqueles tempos de ditadura e lugar, essa era uma realidade,

uma vez que reclamar por seus direitos e tornar pública a insatisfação poderia resultar

em dupla condenação: primeiro, por não ser sido assistido; segundo, por ter reclamado

e, por consequência, ser tachado como subversivo, apenado com prisão e, em muitos

casos, espancamentos e ou submissão a serviços forçados, como ocorreu com o

professor José Juraci.

Parece-nos que os discursos do governo ditador lançava mão de conceitos

teoricamente conhecidos, como „progresso‟ e „desenvolvimento‟, o que exigia uma

sociedade ordeira. Porém, em nome da ordem praticavam „desordem‟. Assim, para que

as famílias não fossem tomadas pela „passividade‟ e „convencidas‟ de que não

adiantaria se levantar contra os opressores, criaram novos espaços de duelo além do

320

Ibidem.

Page 239: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

239

Jornal Alvorada, a exemplo do livro de poesias publicado pelo poeta Zé Diluca321

, do

qual extraímos uma de suas poesias:

Havia até desmantelo

Entre índio e posseiro.

Índio com índio brigava

Porque índio é guerreiro,

Mas tudo se agasalhava

No rico chão brasileiro

E vem a revolução:

Desceu do céu um avião

Trazendo o fazendeiro.

O índio virou sorvete

Derreteu, sumiu de vista,

Posseiro caiu na estrada

Com o trabuco do paulista.

A mata virou juquira

E a roça virou pista

Na hora que nós reclama

Bate em nóis e ainda chama

De invasor e comunista.

Ao ler o texto poético, observa-se uma preocupação em traduzir o processo

histórico antecedente à chegada dos fazendeiros, afirmando a existência de conflitos

índios x índios, índios x posseiros, mas que tudo se agasalhava, pois, embora

resultassem em prejuízo de ambos os lados, alcançavam equilíbrio nas formas de

convivência. Porém, a implantação das fazendas significou uma transformação radical,

uma revolução, pois, tanto o índio quanto o posseiro se tornaram „sem terras‟ e sem

direito de reclamar. Do contrário, ganhariam um novo status social, o de persona non

grata, invasores e comunistas.

Concluímos este tópico afirmando que o professor Juraci, ao reivindicar um

sepultamento digno aos restos mortais de um peão do trecho, rebelava-se contra a

naturalização de práticas nada humanizadas em relação ao povo trabalhador. Igualmente

o Zé Diluca, ao produzir sua narrativa poética denunciadora de uma prática do governo

autoritário que, muito distante de contribuir para que as famílias de posseiros fossem

atendidas pelos poderes constituídos, acabavam por expulsa-los da terra. Assim,

retomamos a hipótese de que a escola e a educação escolar praticada entre o Araguaia-

Xingu trouxe consigo singularidades para seu tempo, cujas tensões veremos no tópico a

seguir.

321

DILUCA, Zé "Peleja das piabas do Araguaia com o tubarão Besta Fera: a história de um povo que se

liberta" 1981. Livro de literatura de cordel distribuído em São Félix do Araguaia-MT, In OLIVEIRA,

Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência apud

CEDI, 1983, p. 19-20. São Paulo: Iandé, 2016, p. 165. Sem grifos no original.

Page 240: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

240

3.3 - Desafios ao professor de produzir uma educação escolar que ensinasse o caminho

da liberdade

Alfabetizar um homem é torna-lo capaz de escrever sua vida, como

autor e testemunha de sua história – biografar-se, existenciar-se,

historicizar-se. Isto não é possível em regime de dominação, porque

só se pode produzir e se desenvolver na dinâmica de uma pedagogia

do oprimido.322

Parece-nos que os desafios se avolumavam na medida em que aumentava a

pressão do latifúndio sobre as famílias de posseiros e indígenas, que, por sua vez, para

não sair de suas terras, arregimentaram forças para resistir, e, como já mencionamos, a

escola era um caminho, porém não bastava tê-las, visto que por meio delas dever-se-ia

oferecer conhecimentos suficientes para que as famílias pudessem fazer uso deles em

sua defesa. Igualmente haveria de serem preparados professores, pois, caso não o

fizessem, tornaria o projeto inexequível, por duas razões básicas: a primeira, a de que

ninguém ensina o que não sabe; a segunda está diretamente ligada ao fato de o professor

ter autonomia para escolher o que ensinar.

Em agosto de 1984, a Folha Alvorada publicou matéria anunciando o

Encontro dos Professores no Município de São Felix, ocorrido entre os dias 24 a 28 de

julho. Tratava-se do 1º encontro das escolas municipais, do qual participaram 95

educadores vindos de todos os patrimônios do município, e teve por tema central: O que

é Educação e como ela se realizava naquele ano. Procuraram divulgar as respostas dos

professores, dentre outras, mereceram destaque:

[...] a) estava longe de ser uma educação boa, pois era marcada por

graves falhas; b) uma educação que oprimia e limitava o aluno em sua

criatividade; c) não ajudava o aluno a compreender a realidade e não

formava consciência crítica; d) ensinava coisas que não tinha nada a

ver com a vida do aluno e sem aplicação no dia a dia.323

322

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido, 43. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p.8. 323

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A 16.3.07 p 13-14.

Page 241: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

241

Partindo dos pontos levantados, bem como das in-formação obtidas durante

o citado evento, a exemplo da pouca importância revelada pelo parco investimento, de

5% do orçamento destinado à educação, conforme publicou a matéria, os professores

decidiram por uma educação nova, democrática, que caminhasse em direção à liberdade

e não para o cativeiro, e que o mestre deveriam estar conscientes de seu papel na

construção de um mundo melhor, agindo sempre de forma a despertar na criança o

observado nas figuras 15 e 16, as quais reproduzimos traduzindo seus significados:

a) Liberdade, respeito, igualdade;

b) Importância da troca de experiências;

c) União, consciência crítica;

d) Conhecimento, solidariedade;

e) Participação de todos.

Page 242: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

242

Os pilares elencados apontavam para uma aproximação com as reflexões de

Paulo Freire e, especialmente, em relação à educação popular. Todavia, haveremos de

problematizar a educação popular, embora tenha sido bastante estudada ao longo das

últimas décadas, por entender os seus significados no Araguaia-Xingu mato-grossense,

pois ela se tornou motivo de inquérito instaurado pelo governo autoritário contra o

contra o bispo Pedro Casaldáliga. O inquérito foi instaurado contra o líder religioso e

seus colaboradores, ao tempo em que o governo reconhecia um projeto de escola

popular e democrática entre o Araguaia-Xingu.

Uma vez inquirido sobre o significado de socialização por Dr. Francisco, a

serviço de o governo militar no início da década de 1980, D. Pedro respondeu:

Para mí, Dr. Francisco, socialización sería la mayor participación

posible de todos los ciudadanos, dentro de la mayor igualdad posible,

en todos los bienes „de la naturaleza y de la cultura‟. (La expresión

entrecomillada hacía referencia a la nomenclatura de Paulo Freire,

cuyas doctrinas y métodos de educación popular fueron también

cuerpo de delito en nuestro ‘inquérito’).324

O bispo e os membros da equipe pastoral estiveram, por longos anos, sob a

vigilância dos agentes federais e da polícia local, sempre a mando dos governos estadual

e federal, além da força (pistoleiros e jagunços) contratada particularmente pelos

fazendeiros. Todavia, a questão motivadora do interrogatório estava ligada à

problemática social da região, o que confirma nossos argumentos de que a escola e a

educação serviram, por um lado, como redenção e tática de resistência e, de outro,

objeto de cobiça para manutenção de poder. Uso o termo objeto de cobiça por razões já

mencionadas, muito embora a edificação das escolas entre o Araguaia-Xingu não tenha

sido custeada pelo Estado, como preconizava a legislação.

De posse dessas informações, somadas às contidas na Folha Alvorada,

competia-nos prosseguir, revelando as bases que deram sustentação à formação dos

professores e, em especial, os que atuavam no ensino de história, cujo propósito

possibilitará, conforme Ribeiro, “[...] entender se os professores desenvolvem, com seus

alunos, procedimentos básicos de pesquisa histórica na sala de aula e atitudes

324

CASALDÁLIGA, Pedro. Yo creo en la justicia y en la esperanza. El Credo que ha dado sentido a mi

vida, Desclée de Brower, Bilbao (España) 1976, p. 70. Sem destaque no original.

Page 243: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

243

intelectuais de desmistificação de ideologias, das imagens de heróis nacionais, da

sociedade de consumo e dos meios de comunicação”.325

Estariam os professores, especialmente os de história, preparados para

refletir sobre os desafios de preparar seus alunos para viver a democracia? Como

contribuíram para romper com a „estrutura‟ mental imposta pela ditadura militar (1964-

1984)? Como a formação em serviço, por meio dos cursos de formação continuada, e

em serviço, a exemplo do Projeto Inajá, contribuiu para esse desiderato? Estas e outras

respostas serão prospectadas no quarto capítulo da tese. Para tanto, apresentamos as

páginas inaugurais no próximo tópico.

3.4 - Aprender e ensinar história em linguagem poética

A escola trabalha com conhecimentos sistematizados e validados por um

determinado grupo de cientistas e tornados públicos com a intenção de, num

ziguezaguear de antíteses, reformar o pensamento e, assim, ampliar o universo de

seguidores, desta ou daquela corrente de pensamento. Esse movimento resulta em novas

espacializações do saber, pela adoção ou imposição, ganhando, em cada contexto,

significados distintos.

Todavia, parece-nos que as respostas seguem os interstícios da ciência, o

que possibilita a construção de saberes, autorizando aos escolares conhecer e reconhecer

os limites das ciências nas e pelas práticas. Eis, portanto, o aspecto a ser tratado no

presente tópico, o de entender como os escolares construíram, nas circunstâncias já

largamente mencionadas, suas práticas de ensinar história.

Sobre a ciência, Paulo Freire afirmou que, em primeiro lugar, o rigor

científico, especialmente o acadêmico, distante de ser uma categoria metafísica, ele é

uma categoria histórica, da mesma forma que o saber tem sua própria historicidade.

Assim, a ciência que exige rigor não é nenhum a priori da história. Freire continua sua

reflexão afirmando que a ciência é uma criação humana, histórica e social. Assim, não

basta conhecer o saber, mas sua origem e importância na história, e que a escola:

[...] leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta,

possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua própria história

325

RIBEIRO, R.R. op. cit., p. 92.

Page 244: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

244

[...] tornando a escola um espaço de ensino-aprendizagem (...) centro

de debates de ideias, soluções, reflexões, onde a organização popular

vai sistematizando sua própria experiência.326

As reflexões freirianas auxiliam-nos a pensar a educação no Araguaia-

Xingu mato-grossense, contribuindo para que possamos entender como o saber histórico

permeou o universo da escola, possibilitando-nos refletir sobre como o professor de

história conseguia mediar conhecimento naquele contexto? Como poderia cumprir o

papel de professor de uma área do conhecimento na qual não tivera a devida formação?

Que estratégias adotou para superar os limites, ao ter que fazer uma escola sobre o que,

como, onde, por que e para quem ensinar história? Ao lançar tais indagações, ampliam-

se os desafios, já que poucas são as chances de respostas conclusivas. Porém,

caminhamos no sentido de encontra-las ao arremedo por „caçar‟ uma agulha no

palheiro, mas com chance de encontrá-la por meio do estudo histórico.

Para Hobsbawm, “[...] todo estudo histórico implica uma seleção minúscula,

de algumas coisas da infinidade de atividades humanas do passado, e aquilo que afetou

essas atividades. Mas não há nenhum critério geral aceito para se fazer tal seleção”.327

Pensar a escolha do assunto, o recorte e os propósitos do professor ao ensinar história

para os aprendentes, naquele momento histórico, passava pelo crivo de seu tempo, com

nuances de críticas ao sistema capitalista opressor, representado ali pelos emissários do

governo, mais precisamente pelos políticos da Aliança Renovadora Nacional (ARENA)

e a polícia voltada à defesa o interesse dos tubarões. Portanto, uma análise marxista,

tomando as estruturas presentes com a finalidade de orientar a práxis social, conforme

conhecimento útil para a atuação da realidade hodierna.328

Distante de pensar que o professor que ensinava história conformava-se à

condição de máquina de ensinar e o estudante das escolas do Araguaia-Xingu em

máquina de aprender, tampouco é possível afirmar que os processos eram padronizados

e automatizados, pois a maioria dos professores não tinha passado por formação

acadêmica, assim como nem todos tinham acesso a um livro didático, como em finais

da segunda década do século XXI.

326

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 16. 327

HOBSBAWN, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 71. 328

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandez. Ensinar História: fundamentos e métodos. São Paulo:

Cortez, 2004, p. 154.

Page 245: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

245

Assim, o conhecimento histórico, bem como a mediação e aprendizagem

tinha por suportes materiais que circulavam entre as comunidades, dentre eles se

destacava a Folha Alvorada, com seus textos críticos reflexivos veiculados em vários

formatos, a exemplo as poesias, imagens, textos que corroboravam para outros jeitos de

fazer História na educação básica, contribuindo, assim, com a arte de inventar a

história ensinada em sala de aula como parte da invenção da escola.

Ao tomar aquele contexto, podemos afirmar que ensinar e aprender

compõem uma dimensão histórico-social do conhecimento, envolvendo valores éticos,

estéticos e políticos a serem revelados nas atitudes do professor e dos aprendentes.

Naquelas paragens, o fazer escolar foi beneficiado pelas ações emanadas do povo e para

o povo, seja pela distribuição da informação ou na utilização desta como forma de

disseminação de valores sobre as coisas, tornando, de fato, uma instituição popular para

uma educação popular.

Porém, não havia garantia de que o professor de história, assim como os das

demais áreas do conhecimento alcançassem a perceptibilidade do papel da escola na

formação da pessoa humana. Há de se observar que esse problema perpassa o governo

ditador e se estende até os dias atuais, pois as incertezas continuam pairando no ar.

Mesmo que a academia forme bons historiadores e futuros professores de história,

apenas o domínio do arsenal teórico, somado às reflexões sobre práticas de uma história

ensinada possibilitarão as condições para que este tome como ponto de partida a história

do aprendente, o contexto em que o mesmo se encontra inserido e as problemáticas

vivenciadas em seu cotidiano.

Por fim, os meios e métodos estranhos do espírito do tempo, a exemplo do

que havia, nas páginas da Folha Alvorada, pois, ainda que houvesse livro didático para

todos, suas páginas estampavam as intencionalidades do opressor. Eis mais um ponto de

fuga da escola popular e democrática.

Sem tais preocupações, a escola de educação básica no Araguaia-Xingu

continuaria ordeira e a serviço da minoria detentora de capital, permanecendo distante

de sua função social de difusora do conhecimento histórico emanado de saberes e

discernimentos sobre os sentidos dados aos conceitos históricos no tempo, a exemplo

das categorias pobre, índio, negro, peões, tubarões, jagunços, „gatos‟, policiais, políticos

e liberdade. No último capítulo, haveremos de retomar essa questão, apresentando

Page 246: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

246

resultados de uma pesquisa aplicada aos professores atuantes na disciplina de história

do tempo presente, pois, precisamos mensurar os „dados‟ de tais categorias históricas

em pleno primeiro quarto do século XXI.

Assim, ser professor de história na década de 1970 e ser professor da mesma

área de conhecimento em 2018 mantém em comum o desafio de operar com o tempo

abstrato, mas, também simultaneamente, com as transformações pelas quais passaram as

categorias e, a partir desse conjunto de informações, contribuir para que o aprendente

possa perceber-se enquanto herdeiro e protagonista de uma história no tempo, a qual

sempre terá o presente enquanto ponto de partida.

Para Bittencourt, os problemas significativos da história do presente,

portanto, serviam de teoria vinculada a um lugar articulado e praticado, com as

necessidades de transformação, espacial e temporal.329

Assim, pinçamos a literatura de

cordel, publicada tanto pela Folha Alvorada e outros suportes como fonte, procurando

entende-los enquanto espaço de poder e de manancial utilizados pelos professores,

especialmente quando ensinavam história, pois é possível afirmar que muitos dos

profissionais que atuavam na escola, dentre eles os professores desta disciplina,

assentavam seus pensamentos e sentidos nas narrativas em forma de poesia e,

invariavelmente, mesmo que não os levasse para sala de aula, deles faziam uso por duas

razões, a primeira, já antecipamos, devido aos poucos recursos existentes, e, o segundo,

por carregarem consigo uma linguagem rimada em formato de poesia de cordel.

Essa modalidade de literatura era mais difundida por meio da cultura oral,

ocupando espaço privilegiado em inúmeras edições da Folha Alvorada, não por acaso,

visto ser uma região povoada, majoritariamente, por famílias originárias do Nordeste

brasileiro, e, segundo, por exigir pouco domínio da leitura, pois, era comum escrever

como se falava, guardando consigo o ritmo, a rima em versos e as estrofes para variados

fins, e, mais estritamente, por ser escritos com palavras conhecidas do cotidiano.

Normalmente, o cordel anunciava sentimento de tristeza, de contemplação,

de sonho, denunciando também os problemas da natureza, como a seca, ou, no caso do

Araguaia, as enchentes. Todavia, as críticas sociais à política, à polícia, à violência, à

religião, à organização social, aos movimentos sociais, se colocaram enquanto fatos

329

Ibid., p. 168.

Page 247: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

247

relevantes para o Araguaia-Xingu que, transversal e ricamente, habitavam as edições da

Folha Alvorada.

Assim, entendemos o cordel publicado no citado periódico enquanto fonte

importante para se entender a história ensinada (meios e métodos), por duas razões, a

primeira, por ter produzido sentido nas redes de sociabilidade formadas pelas cidades,

povoados e sertões, e, em particular, servindo aos professores em suas atividades

docentes em sala de aula, por meio do qual, eram apresentadas memórias,

acontecimentos passados, temas do cotidiano, configurando, assim, uma história do

tempo presente, capaz de mobilizar sentimentos e ações pedagógicas na escola de

educação básica. Para fins de análise, descrevemos um exemplo publicado, em 1977,

por Maria Sandino.330

Eu tô aqui hoje, seu moço,

Prá conta uma triste história.

Igual à minha têm muitas

Por esse Brasil afora.

Eu já tive minha família,

Meus filhinho, minha muié.

Rosinha a minha filhinha

Dava gosto a gente vê,

Ajudava a mãe na casa,

Tecia, fazia croché.

De manhã cedo, bem cedo,

Eu caminhava prá roça

E que alegria que era

Na hora do de comê

Vê chega minha Rosinha

E cum belo sorriso dizê:

Papai olha a sua comida,

Sou eu que vim te trazê.

Mas naquele ano mardito

Num gosto nem de alembrá,

A chuva esperada num veio

Só seca de agoniá,

As plantações tudo morrendo

Dava pena a gente oiá,

De tanta dor que eu sentia

Nem podia mais chorá.

Um dia de tardezinha

Direito nóis tinha muito

De batê pé e fica

Mas o medo foi mais forte

E tocamo a retirá.

E do sertão nóis saimo

Prá vim na cidade mora

E tinha muita esperança

Das coisa amiorá.

Mas só foi tudo ilusão,

O dinheiro foi acabando,

Serviço num achava não.

Lá em casa não tinha nada

E nem jeito prá compra,

Fui ficando desquilibrado

Inté pinga dei prá toma,

E nóis antes tão unido

Inté começamo a briga.

A muié num resistiu

Tanto sofrimento e pesar,

Morreu a coitadinha

Sem condição de tratá.

E o maior sofrimento, meu Deus,

De quase enloquecê

Vê minha menina Rosinha

Perdida, muié da vida

Sem nem mais o pai conhece.

É por isso que eu digo

330

Alvorada (1977). Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix 1977. A 16.0.51. p 4-4.

Page 248: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

248

Um recado eu recebi,

O patrão mandava dizê

Prá todos se arreuní.

Foi chegando e foi falando

Prá nóis tudo bem ouví:

„Ocêis tudo escute bem

Não quero mais agregado,

Vô deixa de tocá roça, os meus plano tá

mudado,

Lavoura não dá mais nada

Eu tô sacrificado.

Na lavoura eu ponho capim,

Vô forma pasto pro gado‟.

Meu Deus do céu que tristeza

Foi prá nóis aquele dia

Tê que saí da minha terra

Do meu cantinho querido

Que viu meus filho nascê.

Do fundo do coração:

„ Se falta terra, falta tudo,

Falta alimentação,

Faiz o sujeito fica

Na triste situação.

O povo doente e fraco

Prejudica a nação,

Faiz o homem cachaceiro,

Faiz outro virá ladrão,

Faiz a muié muda de vida

Prá podê ganha o pão,

Traiz a fome e a miséria

Na cidade e no sertão331

.

É possível observar que , além de descrever aspectos marcantes do processo

histórico da família detalhando o cotidiano do campo, as formas de organização do

trabalho familiar na roça e o sentimento de dor por não produzir os resultados

necessários para cumprir o contrato com o dono da terra. Externava também os

sentimentos para com seus filhos e companheiros (as), a falta de alimentação, a

substituição da roça pelo capim, do homem pelo gado, o medo ao cobrar seus direitos,

muito embora soubessem da existência de uma legislação a qual poderiam recorrer, o

desespero e desesperança do pai, a falta de condições de suprir a família com alimento e

remédio, a morte da esposa e a perda da filha, explorada em sua mais íntima existência.

Nesse particular, denuncia as mazelas sociais as quais eram submetidas as

mulheres (adolescentes, jovens e adultas) para sobreviver à sociedade a que pertencia,

machista, consumidora e onde o dinheiro imperava enquanto lei. Ali, nos cabarés era,

para muitas, o único local de trabalho servindo os „tubarões‟ e fazendeiros, assim como

pelos peões que, depois de muito tempo „embrenhado‟ nas derrubadas, roçadas e lida

com o gado, quando podiam ir à cidade, pagavam pelos „serviços‟ das prostitutas – a

grande maioria reprimida à profissão por falta de opção.

331

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Dezembro de 1977 A16.0.51

P.4.4. Sem grifo no original.

Page 249: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

249

Eis o sentido da Figura 17, retratando o êxodo que marcou duplamente a

história das famílias ali viventes, razão pela qual procuravam terras amazônicas para

viver, com o sonho de

permanecer naquele

pedaço de chão, porém,

essa permanência era

efêmera, pois, o mesmo

fantasma da expulsão

das terras de origem,

das quais foram vítimas

no Norte, Nordeste, Sul

e Sudeste, este em

menor número, pairava

diuturnamente sobre

elas.

Assim, ao

tempo em que a matéria

anunciava a poesia de

cordel, desenhava o método da educação para a liberdade, procurando não ensinar

mecanicamente a escrever, nem limitar a desenvolver a capacidade de pensar as

palavras, segundo as exigências lógicas do discurso abstrato.

Colocava o leitor em condições de poder re-existencializar criticamente as

palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer a sua palavra,

como propôs Paulo Freire.

O êxodo descrito na poesia revela uma dimensão dramática das famílias

quando expulsas da terra de origem, um processo de transformação do ser, de seus

valores morais em decadência, da fragilização da família e sua entrega aos vícios e à

miséria, ao submundo da sociedade, quando seus direitos não eram respeitados, pois, se

faltava terra, fonte de vida, faltava tudo. Não haveria de ser diferente, pois, a terra, a lida

na roça eram alimentadas pelo sonho e esperança de viver e prosperar, transformando a

floresta e os sertões em alimento, em formas de vida herdadas por um país onde terra

Page 250: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

250

não era problema, pois havia (há) em abundancia, mas sim o acesso a ela, esse sim era e

continua sendo um problema.

A passagem narrada por Maria Sandino, autora da poesia, revela o êxodo,

suas causas e consequências, entendendo como causas a desigualdade da relação

proprietário-agregado, a diferença entre quem tinha poder de mando, personificado no

patrão „proprietário‟ da terra, e quem não o tinha, na figura do agregado, que,

independentemente do tempo dedicado a derrubar a mata, plantar roça, cuidar para que

as ervas daninhas não matassem as plantas e, assim, garantir a colheita, cujos resultados

haveriam de ser divididos com o proprietário, mas que ele representava garantia do

sustento da família e, em caso de sobra, poderia ser vendida para, de posse do dinheiro,

poder comprar insumos e ferramentas para o próximo roçado, além de remédios e

adquirir uniforme e material escolar para os filhos poderem frequentar a escola332

.

Pode-se igualmente afirmar que a poesia se filia à literatura de combate, por

traduzir crítica em relação à propriedade da terra, procurando revelar a necessidade de

formar uma consciência convocando o povo à resistir, dando-lhe formas e contornos

que se abrem a novas e ilimitadas perspectivas:

Noutro nível, a literatura oral, os contos, as epopeias, os cantos

populares antes transcritos e decorados, começam a transformar-se. Os

contistas que recitavam episódios sem vida, animam-se e introduzem

modificações cada vez mais fundamentais. Existe o propósito de

atualizar os conflitos, de modernizar as formas de luta evocadas.333

Assim, Maria Sandino evoca um caso hipotético (que certamente ocorreram

centenas deles naqueles tempos e possivelmente ocorre ainda hoje), o caso de uma

colheita não ter resultado no volume planejado, mas também denunciando a relação

contratual e sua lógica, na qual os trabalhadores, desassistidos do poder de compra, são

obrigados à „aceitar‟ as condições de exploração e, como consequência, ter que

continuar usando roupa surrada por longos anos, memória de usos contínuos do calçado

roto, da falta de recursos para cuidar da saúde, a incidência da anemia, por falta de uma

alimentação adequada, a perda dos dentes, a infestação por vermes, a falta de

mosquiteiro, do querosene para a lamparina, gás para o lampião, falta de dinheiro para a

332

Os versos são assinados por Maria Sandino e foram publicado na Folha Alvorada (1977), Folha da

Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 51 P4.4. 333

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 p. 160.

Page 251: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

251

compra da vela, não ter o suficiente para cortar o cabelo ou para aquisição de um

brinquedo para o filho. E, por fim, a desesperança de assistirem seu esforço de sol a sol,

o suor no rosto, as lágrimas caindo no chão, por um projeto que não deu certo, de uma,

dentre dezenas de tentativas vãs, mesmo que tenham custado toda uma vida.

3.4.1 Lugares e espaços de lutas entre campo e cidade no Araguaia-Xingu mato-

grossense

Apraz considerar que o conceito de cidade adotado na poesia se refere aos

patrimônios e às cidades de São Félix do Araguaia e Luciara. Não se trata de localidades

com diversidade de produção de indústria, comércio o serviço, mas sim de municípios

cuja fonte estava assentada na pecuária extensiva e na agricultura „familiar‟ incipiente.

Portanto, o acesso aos bens de consumo se fazia requinte de luxo para poucos, pois as

duas cidades não passavam de pequenos aglomerados urbanos, com posto de saúde,

delegacia, pequenas farmácias, armazéns, posto de gasolina, escola, igreja, enfim,

aparato recorrente também a outras cidades, porém, detentoras de parcos recursos. A

única semelhança com as grandes cidades era seu status político.334

Para Pesavento335

, a cidade é objeto da produção de imagens e discursos que

se colocam no lugar da materialidade e do social, e os representa. Assim, a urbe é um

fenômeno que se revela pela percepção de emoções e sentimentos dados pelo viver

urbano e também pela expressão de utopias, esperanças, desejos e medos, individuais e

coletivos, que esse habitar em proximidade propícia. Entendemos ser esse o sentido de

cidade narrada por Maria Sandino, todavia, as cidades do Araguaia-Xingu e seus

equipamentos sociais, a exemplo da escola, não ficaram isentas do processo que as

reflexões da citada autora nos permite acompanhar:

Ora, no caso da cidade passada, por vezes esses rastros – para usar a

feliz expressão de Ricoeur – nem sempre estão aparentes, como

pegadas a guiar os passos e o olhar do historiador. Com frequência, a

transformação do espaço foi de tal ordem, a modernidade implantada

334

Conforme Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos/Kalina Vanderlei Silva, Maciel

Henrique Silva. 2. Ed., 2 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009. 335

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista

Brasileira de História. São Paulo, v. 27, n. 53, p. 14, 2007.

Page 252: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

252

tão avassaladora que apagou do espaço materialidade e sociabilidades

do passado.336

Nas cidades do Araguaia-Xingu, fora da BR-158, a exemplo de Luciara, São

Félix do Araguaia e Santa Terezinha, margeadas pelo rio Araguaia, as pegadas ainda

podem ser acompanhadas, seja pelo nome das ruas, escolas, praças e famílias

„pioneiras‟, enfim, um conjunto de informações que possibilitam manter viva a

memória.

Já o tecido urbano de Confresa, hoje a maior cidade no baixo Araguaia,

segundo Araújo:

[...] é uma façanha ortografada na colonização endêmica que inventou

a modernidade para os sertões brasileiros, na segunda metade do

século XX. As nominações anteriores dos lugares demarcadas pelos

grupos étnicos que representavam as culturas locais foram ignoradas,

apagadas ou soterradas para abrigarem os recentes „heróis da

civilidade‟, a começar pela própria denominação da cidade.337

Aquilo que a autora nomina de tentativa de apagamento, dando lugar aos

„heróis da civilidade‟, eu observo enquanto disputa pela memória, pois, embora tenha

pertencido à cidade de Santa Terezinha, com o nome de Vila Tapiraguaia, tornado

distrito em 1990, e cidade em 1993, Confresa abriga maior número de famílias

assentadas dentre as cidades brasileiras, portanto, carrega consigo inúmeras lutas pela

posse da terra, e, por conseguinte, sujeita à ação contrária à ordem ora imposta pelo

„empreendimento‟ colonizador, cujo conflito continua latente, pois, a maioria dos lotes

urbanos não possui titularidade.

Faço esse parêntese para apresentar um pouco das cidades e sertões do

Araguaia-Xingu, não somente mais um nome no mapa, mas entende-las por meio de

uma releitura cuidadosa, pois, assim como a escola, os espaços urbanos também

representam territórios de luta pelo poder, seja na edificação da escola, a exemplo do

Ginásio Estadual do Araguaia, que compôs um lugar específico possibilitador da

existência de territórios de poder, assim como a igreja e seu átrio, a distribuição das

ruas, os nomes a elas atribuídos, enfim:

336

Ibid., p. 16. 337

ARAÚJO, Maria do Socorro de Sousa. Territórios amazônicos e Araguaia Mato-grossense:

configurações de modernidade, políticas de ocupação e civilidade para os sertões. Tese (Doutorado em

História) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia Ciências Humanas. Campinas. SP.

2013, p. 241.

Page 253: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

253

São os passos que moldam os lugares e os transformam em espaços,

que inserem e inscrevem nestes, camadas simbólicas que se

sobrepõem e criam uma extensa rede de significados que,

compartilhados simbolicamente através da comunicação, modificam

os usos que os sujeitos fazem dos mesmos.338

As cidades sertanejas, ainda que rústicas, são produto humano datado, onde

se localiza a sede do município e onde as ações urbanísticas organizam os espaços de

convivência, estabelecendo hierarquia entre centro e periferia, instituindo os lugares da

política, da religião, do divertimento, da produção econômica, dentre outros. Após uma

ou duas décadas, as cidades do Araguaia- Xingu pouco se promoveram em relação

àquele imaginário do passado recente, mas continuam carregando consigo um sentido

particular de civilidade, abrigando disputas de poderes pessoais e institucionais.

Neste particular, embora a edificação das escolas nas comunidades, como

observado no capítulo 2, se deu por razões bem claras, inicialmente para servir de

atalaia de resistência e permanência, pois havendo escola nas comunidades a

probabilidade de manter as famílias alfabetizadas se tornaria maior, e a segunda razão

está ligada ao fato de não ter necessidade de enviar seus filhos para outras cidades para

estudar. Embora as escolas do campo sejam representadas por número expressivo, em

todas as cidades do Araguaia-Xingu, a exemplo de Santa Terezinha, que possui 9

unidades no campo e 2 na cidade, o discurso de que a escola „da cidade‟ é melhor

arrebata muitos jovens em direção a elas.

Tal discurso ganha relevância nas políticas públicas cuja intenção é a de

„limpar os campos‟, fazendo com que as famílias desistam de suas terras, abrindo

espaço para o latifúndio, mais recentemente fomentado pelos gestores do setor

educativo, ao deslocar diariamente centenas de milhares de alunos do campo para a

cidade, pois, manter os profissionais no campo para atender, de maneira eficiente os

estudantes, exigiria maior investimento, e agora, equivocadamente pautados em

„economicidade‟, lotam ônibus de aprendentes, mesmo que estes permaneçam mais

tempo durante o deslocamento diário do que em sala de aula.

A cidade constitui também espaço privilegiado onde se revelam as

contradições produzidas pela dinâmica das vivências comuns frente aos discursos e

338

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 176.

Page 254: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

254

práticas políticas que procuram formalizar o todo urbanístico. No âmbito do discurso, é

na cidade modernizada que está o emprego, a melhor escola, o trabalho mais leve, o

conhecimento mais elaborado, uma vez que ali habitam pessoas letradas e onde existe

uma estética de vida coletiva dinâmica. Por isso ela exerce um fascínio sobre os

indivíduos que a desejam e a buscam, se empenhando para tê-la, sobretudo quando eles

se comportam como habitantes fundadores e pioneiros, podendo constar seus nomes nas

páginas escritas ou verbalizadas dos lugares.

Esse tipo de percepção produz a uma simbiose entre criador e criatura,

porque incorpora um sentido de pertencimento que se pretende eternizado, assim, a

cidade carrega consigo alguns mitos a serem superados. A vida no campo, sob muitos

aspectos, é bem melhor do que na cidade, porém, demanda políticas públicas eficientes.

Já nos patrimônios do Araguaia-Xingu, tamanha era sua precariedade, que

guardavam consigo muito das características das residências no campo, a exemplo das

escolas, pois, como já mencionado, funcionavam em barracões cobertos de palha, com

paredes de pau-a-pique, chão batido, bancos de madeira para as crianças se sentar, pote

de barro cozido, onde era armazenada a água para beber, e uma casinha ao fundo, onde

eram feitas as necessidades fisiológicas.

Com o passar dos anos, gradativamente, as edificações foram perdendo tais

características, passando a edificação da escola a ser coberta por telhas de amianto

(Eternit) e ou de barro cozido, trazidos de outros Estados, a exemplo de Monte Carmelo,

em Minas Gerais, de onde vinha maior quantidade. Igualmente se fez em relação aos

depósitos de água, pois os potes e filtros de barro foram sendo substituídos pela água

encanada, depositada em caixas de amianto, que, nos últimos anos, tem sido denunciado

uso por ser potencialmente maléfica à saúde humana.

Da mesma maneira, os bancos de madeira foram cedendo espaço para as

carteiras escolares padronizadas, já as paredes em alvenaria, e os quadros portáteis com

bordas de madeira foram substituídos por quadros fixos, pintados nas paredes. Portanto,

a própria sala de aula inventou seus recursos e métodos, cujas características não

escaparam à nossa reflexão, por entender importante perceber onde e como se

ambientou a invenção da escola no Araguaia-Xingu, nas décadas de 1970 e 1980, muita

das quais, embora passados quase meio século, ainda hoje aguardam por reforma e/ou

nova edificação.

Page 255: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

255

3.5 Entre o livro e a poesia: o ensino de história

Composta a caracterização do espaço urbano e do campo, retomamos aqui

as reflexões que iniciamos sobre o ensino de história elegendo o uso da poesia, pois, ao

olhar do historiador, a poesia deve ser entendida enquanto documento histórico e, como

antecipamos no tópico 3.4, serviu de material „didático‟, rica fonte de pesquisa para o

ensino de história dos aprendentes da época, pois, além do acesso à Folha Alvorada,

esse estilo literário possibilitou reflexão sobre o processo de expulsão das famílias do

campo para a cidade, comum em todo o país, com consequências irreparáveis às

condições de vidas das famílias no campo.

A análise feita por Ribeiro sobre esse momento histórico no tocante a

história da educação no Brasil:

[...] o desafio de se pensar em práticas não tradicionais do ensino de

História bem como o de construir uma escola democrática foram

surgindo em decorrência e paralelamente à ampla participação que os

„excluídos do poder‟ – amplos setores da sociedade civil – promoviam

a respeito da própria sociedade brasileira com o objetivos de superar o

regime instaurado em 1964.339

.

A superação proposta para o Araguaia-Xingu não se limitava à luta por

melhores escolas, pois isso, se dependesse do poder público, não ocorreria. Igualmente

aconteceu com a luta por melhores salários e direitos trabalhistas no Brasil Central,

onde não existia emprego que se pudesse conferir direitos ao trabalhador, pois estes

eram explorados e, em muitos casos, em formas análogas à escravidão, ocasião em que

centenas de peões eram resgatados, da CODEARA, pela polícia federal, em condições

degradantes, no ano de 1970.

Além da questão da terra, largamente apresentada ao longo da narrativa,

podem ser adicionados a carestia, a falta de atendimento à saúde, ao transporte, à

moradia, adicionada à violência praticada pelos policiais, jagunços e pistoleiros, e

muitas vezes pelos próprios pais de família, embrutecidos e revoltados pelas parcas

339

NADAI, 1986, p. 11 apud RIBEIRO, Renilson Rosa. Entre textos e práticas: ensino de história,

instituição escolar e formação docente. História & Ensino, Londrina, v. 21, n. 2, p. 151-179, jul./dez.

2015).

Page 256: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

256

condições de sobrevivência. Numa trama da vida real, ao nascer sem perspectiva de

vida longa, mazelas bem conhecidas foram denunciadas por Pedro Casaldáliga:

[...] morrer sendo matado, matando, se matando, na bebedeira louca,

no desespero, nessa vida rodada dos peões largados pelo mundo ou

das raparigas exploradas ou na solidão das mocinhas amarguradas ou

dos casais desagasalhados, com muito filho e muita pobreza.340

Ao tempo em que chamava atenção para os mais variados meios para o

alcance da morte „prematura‟, o bispo também apresentava a morte em vida, dos

membros das famílias que frequentavam a escola de educação básica naquele novembro

de 1978.

O líder religioso tornava pública a reflexão de que, Deus, criador da vida é

ciumento dela, e, se Deus não quer a morte para nós, nós também não podemos querer.

Assim, no mês de novembro, mês dos mortos deveriam voltar o olhar para a vida. Para

Casaldáliga, “[...]não era a morte que espantava, mas sim a morte estúpida”.341

Afirmava ainda a carta:

Vale mais a vida de uma criança deste sertão ou de um bairro na

cidade que todas as fazendas e todas as fábricas e todos os negócios

do Brasil! [...] Cada morte à toa ou por injustiça deve nos acordar.

Ninguém pode calar a boca diante de um defunto, que morreu

abandonado das autoridades ou do médico ou do fazendeiro ou da

família.342

O retalho da carta aqui apresentado possibilita-nos perceber significativa

reflexão dos fatos observados naquele cotidiano, portanto, passíveis de aprendizado

pelos escolares. Conforme Schmidt, no aprendizado histórico a „história‟ é obtida

porque fatos objetivos, coisas, uma vez que aconteceram no tempo torna-se uma questão

de conhecimento consciente, ou seja, eles tornam-se subjetivos.343

A autora auxilia-nos a entender, que, do ponto de vista do ensino da história,

o professor, servindo de leituras temáticas, por meio da Folha Alvorada, que era

distribuída regularmente nas comunidades, e possivelmente em maior ou menor grau

nas escolas, por se tratar de um ambiente que reunia as condições necessárias para um

340

Alvorada (1978). Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A16.0.60 P01.12. 341

Ibid. 342

Ibid. 343

SCHIMIDT, M.A. Cognição histórica situada: que aprendizagem história é esta? In: BARCA, I.;

SCHMIDT, M. A. (Org.). Aprender História: perspectivas da educação Histórica. Ijuí-RS: EdUnijuí,

2009, p. p. 33.

Page 257: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

257

grupo de pessoas com razoável domínio das letras fizesse a leitura e contribuísse na

interpretação das matérias., muitas das quais, delineadas em forma de poesia de cordel.

Assim, a literatura de cordel, em meio aos escolares, contribuiu com a

orientação e, de maneira transversal, com a educação das famílias, conferida pelo

diálogo com Roberta Alves:

[...] a literatura de cordel contribui para uma educação voltada para a

realidade social, na medida em que apresenta ao aluno uma visão de

mundo [...] suscitando variados questionamentos que podem

contribuir para que o aluno reflita sobre sua posição social, política,

econômica e cultural.344

Entender a produção da denúncia ou exaltação, publicada e veiculada pela

Folha Alvorada na região Araguaia-Xingu, remete a um espaço de anunciação política

com personagens reais, revelados por textos, cartas, anúncios e notícias, bem como por

meio da oralidade, que era recorrente nas comunidades iletradas, que agora se

apropriava dos caracteres da escrita, sem preocupação com a forma, mas com o

conteúdo.

Trata-se de uma invenção para um determinado espaço-tempo, que, com

requinte e riqueza de detalhes, era trovado em linguagem poética, cuja narrativa era

adotada cuidadosamente para atingir um determinado público, as famílias que

habitavam os sertões do Araguaia-Xingu, enquanto canal de difusão da escola.

Outrossim, cabe observar sua preocupação em atingir a sensibilidade de seus receptores,

podendo, nessa medida, ser entendida enquanto nova metodologia para se ensinar

história, por meio de histórias vividas.

Apresentadas as primeiras fontes que constituíram o cotidiano da

comunidade escolar, e, em particular do professor, passaremos a tratar do ensino de

história para educar os sentidos.

3.6 – Descolonizar a escola e o fazer do professor requer educar os sentidos

344

ALVES, Roberta Monteiro. Literatura de cordel: Por que e para que trabalhar em sala de aula. Revista

Fórum Identidades. Universidade Federal de Sergipe – UFS. Ano 2, Volume 4, p. 103-109, jul. Dez de

2008, p. 108.ISSN. 1982-3916.

Page 258: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

258

A Folha Alvorada como fonte de pesquisa ampliou nosso olhar sobre aquela

conjuntura, possibilitou-nos conhecer não só suas categorias, mas, por meio dos

registros de fala, os seus sentimentos, projetos de vida, suas dificuldades e

potencialidades de resistência, cujas dimensões eram reveladas por meio de alertas,

anúncios e denúncias, razões pelas quais se estabeleceu uma rede de sociabilidade que

unia a maioria das famílias expostas à violência, às mazelas consequentes de uma

política estatal pouco preocupada com as centenas de famílias de indígenas, posseiros e

peões submetidos a condições desumanizadas pela opressão e pelo conflito causado

pelos interesses dos grandes latifundiários.

Durval Muniz de Albuquerque, em oficina ministrada em 2013, durante o

XVII Simpósio Nacional de História, alertou que os sentidos são educados, o nosso

olfato, o nosso paladar, nossa visão, nossa educação passam por processos culturais,

simbólicos e são trabalhados por distintas pedagogias, as pedagogias que circulam no

social.345

Seguindo as argumentações do autor, as crianças apanham para entender os

significados, sendo este um método convencional para que elas obtenham sentidos

„devidamente‟ educados. Igual método era praticado pelas forças policiais, pelos

fazendeiros, contratando jagunços e pistoleiros para atuar sob seu mando, disseminando

o terror e o medo, inculcando um sentimento de ojeriza pela terra, estampado pela

revolta, pela dor, constituindo-se, portanto, em processo educativo.

Porém, como forma de desmobilizar a estratégia e descredenciar semelhante

método, a Folha Alvorada contribuiu com táticas discursivas, apresentando a dialética

enquanto método na elaboração das matérias publicadas, as quais denunciaram a

violência, a necessidade de o povo se perseverar, na luta, sempre unido por uma causa.

A permanência na terra e, como meio aglutinador, a escola, por onde haveria de ser

construídas práticas, e onde os sentidos eram permanentemente educados, não só

apresentando as práticas violentas cometidas ao mando dos tubarões apoiados pelo

governo, mas também pela negligência deste, ao „abonar‟ as iniciativas dos

empreendimentos agropecuários, em detrimento dos pobres.

345

Minicurso foi ministrado durante o XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH-Brasil, realizado

em Natal-RN, no ano de 2013. Trata-se de 3 vídeos em que Durval Muniz desenvolve rica reflexão sobre

o tema e está disponível em HTTPS://www.youtube.com/watch?v=L9nFQv2CJbA&t=508s. Acesso em

10 out. 2017.

Page 259: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

259

Assim, acompanhamos a dimensão proposta por Durval Muniz aos sentidos

enquanto qualidade que todas as coisas carregam, e, por conseguinte, sua historicidade,

sendo ela a qualidade que as coisas têm de ser afetadas pelo tempo, transformadas pelo

tempo, assim como o tempo é entendido enquanto categoria abstrata, e igualmente

abstrato se faz na história. Portanto, ao analisar a invenção da escola naquele contexto

requer mergulhar em suas singularidades, o que contribui para que se possa interpretar

aquele espaço específico, seus limites e possibilidades.

Ao tomar o anúncio de inauguração da Escola em Alto Bonito, município de

São Félix, no dia 15 de março de 1978, que, antes, funcionava em condições precárias,

em uma choupana que servira de abrigo à professora contratada e mais 45 alunos. Esse

dia festivo revelava uma face importante da ação coletiva do povo do lugar, o qual

implementou a edificação de uma casa, na qual iria funcionar a „escola do Silvano‟, com

mais comodidade.346

Esse fato foi marcado por uma peculiaridade merecedora de atenção, eram

22 pais que deveriam se unir para edificar a escola, porém, nem todos participaram,

inclusive alguns, „preguiçosos‟, fizeram feio, pois, além de não ajudar, queriam cobrar

as palhas tiradas de sua terra. Houve também aqueles que, para não ajudar, saíam a

passeio. Ao anunciar o fato, tangenciou a dimensão moral, revelando práticas que

poderiam desmobilizar a organização do povo, primeiro, a preguiça, por não dedicar

esforço na construção da escola, segundo, por cobrar as palhas utilizadas para cobri-la.

Mas, tendo à frente os professores enfrentantes, dentre outros o próprio

Silvano, ergueram a escola, graças à ajuda de algumas pessoas que nem tinham filhos

matriculados, como o Toinho, Zeca da Doca, Manuel, Vital, João Bento, José e Adriel,

que se empenharam bastante naquele projeto coletivo. Na ocasião da inauguração, com

a presença do Bispo Pedro Casaldáliga, que aproveitou o ensejo para mudar o nome do

lugar, que, a partir daquele momento passou a ser chamado emblematicamente de Santa

Cruz.

Afiançava, portanto, que, embora houvesse aqueles que se esquivaram do

trabalho coletivo, muitos outros colaboradores cumpriram papel importante na

comunidade, destacadamente os enfrentantes, os quais lideraram o processo. À medida

em que se anunciavam as nuances do cotidiano marcado pela dificuldade em „motivar‟

346

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0. 55 p. 6-9.

Page 260: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

260

o coletivo para aquela causa comum, tal ação contribuía para a formação do sentido que

a escola haveria de ter enquanto irradiadora de causas a serem defendidas pelas famílias

ali assentadas.

Assim como já apresentamos em outras passagens nesta narrativa, a

invenção da escola, ao tempo em que habitou a dimensão educacional, contribuiu para a

demarcação de um

espaço de luta, de

manutenção das

relações políticas,

indicando que o povo

deveria seguir

caminhando com

perspectivas de um

futuro melhor para

todos, o que passava

pelo acesso à própria

escola, à terra, ao

trabalho, à saúde e à

alimentação, como

podemos observar na

Figura 18 abaixo, que

traz uma expressão

bastante efusiva das

condições em que viviam as famílias: Não há lugar para eles quando – não tem escola,

terra, remédio e comida.

Embora tenhamos experimentado algumas definições pedagógicas

existentes na Folha Alvorada, retomamos aqui para mais um mergulho nessa temática

em evidência na imagem da escola como principal elemento de transformação de uma

realidade conhecida de todos os escolares, tomando alguns signos historicamente

construídos com o propósito de „alfabetizar‟ seus leitores com representação concreta

para a escrita da palavra, uma linguagem icônica para facilitar a leitura da imagem.

Page 261: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

261

Portanto, a escola historicamente negada à grande maioria das famílias

brasileiras, naquele último quarto do século XX, ganhou espaço privilegiado nas

páginas da Folha Alvorada carregando consigo significados latentes, numa rede

comunicacional direcionada a ampliar o sentido da escola, da terra, do remédio, da

alimentação e da organização social nos vários espaços de vivência e de luta nas cidades

e sertões do Araguaia -Xingu mato-grossense.

O exercício, por entender os significados das falas, seja escrita ou ilustrada,

possibilita compreender os sentidos dados à escola e sua importância na formação dos

sujeitos históricos daquele contexto, suas classificações, individualidades, necessidades

de reivindicações em torno de um direito não respeitado, bem como na própria invenção

de categorias sociais do Araguaia-Xingu, a exemplo do tubarão, já apresentado

anteriormente, e dos enfrentantes, cuja construção ainda permeia o imaginário das

pessoas que vivem naquela espacialidade.

Mas, a categoria professor se fez imprescindível naquele projeto de

sociedade, pois, além do exercício da docência, muitos deles foram incumbidos de

exercer um papel fundamental na organização das comunidades, como „enfrentantes‟,

ou seja, pessoas que assumiam a liderança de algum projeto social, a exemplo da

construção e defesa da escola. Adquiriram uma posição naquele contexto de luta pela

terra enfrentando as injustiças do cotidiano, engajando nas lutas populares, proferindo

denúncias, atuando nas escolas, na organização sindical, nos clubes, e animando o povo

a continuar lutando por seus direitos. Cumpria ao professor o tão cobiçado papel do

„formador de opinião‟.

Para tanto, a equipe da prelazia, liderada pelo Bispo Pedro Casaldáliga,

organizava cursos de formação. Logo, tratava-se de uma rede de pessoas articuladas

com representantes das comunidades.

Destarte, os sentidos „dados‟ aos enfrentantes347

tem um sentido histórico

que, com o passar das décadas, cedeu espaço aos animadores, atuantes dentro e fora de

suas respectivas comunidades e voltados à transformação da sociedade, combatendo as

347

Oliveira, Rodrigues e Menezes afirmam que, o termo enfrentante, em alguns lugares, foi sendo

substituído pelos animadores, expressão trazida pelo “pessoal gaúcho”. A documentação consultada

aponta que o termo animador era igualmente adotado aos próprios enfrentantes, portanto, não

encontramos qualquer ligação com a chegada dos sulistas. (OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de;

RODRIGUES, Solange dos Santos e MENEZES, Renata de Castro. Reforçando a rede de uma igreja

missionária: Avaliação pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Paulo: Paulinas, 1997).

Page 262: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

262

injustiças, com destaque na invenção da escola do Araguaia-Xingu mato-grossense

como asseverou Casaldáliga: “Quando se concentra uma amostra de educação da região,

como aconteceu recentemente em São Félix do Araguaia, você acaba vendo que

noventa por cento das pessoas presentes são lideranças de nossas comunidades,

professores e professoras”.348

Em se observando o ano que Casaldáliga concedeu essa entrevista em 2004,

possibilita-nos afirmar que, passados mais de 30 anos, as lideranças (professores e

professoras) continuaram cumprindo sua função em „animar‟ a organização e a

participação das pessoas em clubes, cooperativas, sindicatos, em defesa dos direitos

civis, e, como mencionado, exercendo papel de liderança na educação.

É certo que essa categoria poderia carregar somente o nome líder, e ou

representante das redes de sociabilidade criadas em torno das ações da prelazia, pois

muitos desses enfrentantes, antes leigos, se tornaram professores e vice-versa.349

Contudo, essa nominação, possivelmente, servira para fugir à perseguição

dos olhos vigilantes da repressão. Assim, o termo enfrentantes consignaria

representação religiosa, que de certo o colocava na „lista‟ dos opressores. Todavia,

podemos entende-lo no contexto da ditadura militar, enquanto tática para desviar o

sentido do vigilante e garantir a possibilidade de atuar no interior das escolas, sem os

quais, pereceria a organização da coletividade na busca da superação das dificuldades

ali existentes.

3.6.1 - Escola e ensino de história a descolonizar: um desafio coletivo

Em meio às dificuldades em prover as comunidades de escolas em

condições de atender à demanda apresentada pelas famílias, em fevereiro de 1977, a

Folha Alvorada fez público o início das aulas daquele ano, em matéria com o título

348

GONZAGA, Agnaldo Divino. Anel de tucum: a missão evangelizadora de Pedro Casaldáliga, bispo da

prelazia de São Félix do Araguaia. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Programa de

Mestrado da UCG, Goiás. 2005. 349

Para Oliveira, Rodrigues e Menezes (Reforçando a rede de uma igreja missionária: Avaliação pastoral

da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Paulo: Paulinas, 1997), formar enfrentantes para trabalhar nos

movimentos sociais, nos sindicatos, nas várias lutas pela terra e pelos direitos civis tornou-se o principal

desafio para a evangelização na prelazia. Todavia, as fontes apontam para uma ação para muito além de

evangelizar, pois, participavam de todos os movimentos em torno da defesa das comunidades, em

especial, à escola. Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Abril de 1979.

A 16.0. 65 P7.10.

Page 263: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

263

Outra vez as aulas e as reuniões350

. O propósito da matéria foi o de reafirmar a

importância não só do início das atividades escolares, mas de um despertar e recomeço

das inúmeras expectativas.

Somava-se, ao abrir os olhos para levar os filhos à escola, o imperativo das

reuniões da comunidade, numa clara intenção de afirmar o papel aglutinador da escola,

portanto, uma forma de aproximar as pessoas com propósito político em relação à

educação, em duplo significado: o primeiro, tendo a educação como direito, e, em

segundo, enquanto dever (obrigação).

Fora a questão da escola, representava também um chamamento à reflexão

sobre os problemas do cotidiano, afirmando, portanto, a invenção de uma escola

conectada com as questões sociais.351

A mesma matéria asseverava que a escola deveria ser das crianças, dos

rapazes ou dos adultos, tanto nas cidades como nos patrimônios, devendo ser bem

zelada por todos: pelos pais, alunos, professores e pelas autoridades. Nesse particular,

clama a responsabilidade das „autoridades‟, quase sempre ausentes, descompromissadas

com a educação das famílias pobres, pois, a “[...] escola era [uma] horta da casa que

precisava de muitos cuidados, de muito carinho”.352

Entendemos que a reunião das famílias no espaço escolar se constituía um

dos mecanismos com os quais a comunidade pudesse, de fato, participar da vida escolar,

elegendo-a enquanto bandeira de luta e caminho para o alcance de uma vida menos

sofrida. Restava, no entanto, encontrar os meios para que ela se tornasse realidade. Para

tanto, as reuniões e a união das famílias em torno de um mesmo propósito representava

seu maior trunfo, o poder do coletivo sobre as decisões arbitrárias impostas pelos

gestores às famílias desassistidas de poder econômico e desprovidas dos direitos de

cidadania.

350

A tônica sobre o início das aulas trazia anualmente preocupações inerentes ao planejamento a exemplo

da matéria publicada em abril de 1979, cujo desafio para aquele ano era o de a)diminuir o percentual de

evasão; b) aumentar o índice de aprovação; c) aproximar mais os pais da Escola e d) organizar o

Conselho de professores. 351

Em carta do Bispo Pedro Casaldáliga ao povo, em janeiro de 1982 ele afirma que a reunião só presta

quando serve para a união, precisa reunir para se conhecer melhor, para fazer juntos o balanço do

trabalho, para juntos programar o novo serviço. (Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do

Araguaia. São Félix. 1982. A 16.1. 23 P2.13). 352

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 41 p 2-5.

Page 264: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

264

Já em Santo Antônio, foram noticiadas duas importantes reuniões sobre o

início do ano letivo, quando se fizeram presentes 50 pais de família, ocasião em que

tomaram algumas decisões: a) escolhendo os professores para trabalhar com seus filhos;

b) apontando as qualidades que esperam dos professores, ficando também deliberado

que em uma próxima reunião seriam os professores que deveriam falar o que esperavam

dos pais.

A escolha de mestres pelos pais dos alunos constituiu em pauta principal nas

reuniões das comunidades, a exemplo de Santo Antônio, o mesmo acontecendo em

Pontinópolis e Serra Nova. Já em São Félix, nas escolas da Vila Nova e da Lagoa, os

pais elegeram uma comissão para gerir as questões da comunidade escolar, resultando

no levantamento de empréstimo para a compra de livros escolares.

Porém, no mês de março de 1978, a Folha Alvorada chamou atenção dos

pais e alunos do 1º grau do município de São Félix, de que estavam para chegar os

livros de 1ª a 4ª (primeiro ao quarto ano do primário), e que os mesmos seriam

distribuídos de graça pela secretaria municipal, e fornecidos pelo Programa do Livro

Didático do Ensino Fundamental (PLIDEF), para todas as escolas. Todavia, devido ao

problema das chuvas, essa entrega sofreu atrasado.353

Embora o Ministério da Educação tivesse criado o Instituto Nacional do

Livro (INL), pela portaria n. 35, de 11 de março de 1970, e, em 1976, por meio do

decreto n. 77.107, de 4 de fevereiro de 1976, tivesse assumido a compra de boa parcela

dos livros para distribuir às escolas, sua distribuição não alcançou todas as unidades

escolares brasileiras.354

Portanto, os registros possibilitam afirmar que a comunidade percebia a

importância dos livros para uso dos alunos, já que estes, até aquela data, não haviam

sido entregues com regularidade355

. Cabe-nos observar que, atualmente, o Programa

353

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0. 53 p 3-8. 354

Observamos que o livro didático ainda não era acessível à grande maioria da população escolar

brasileira. Somente em 1983, com a criação da Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), e em 1985,

quando foi criado o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o quadro sofreu mudanças

significativas. Com o PNLD surgiram as seguintes normativas: Indicação do livro didático pelos

professores; reutilização do livro, implicando a abolição do livro descartável e o aperfeiçoamento das

especificações técnicas para fins de participação financeira dos estados, passando o controle de processo

decisório para a FAE, e garantindo critério de escolha do livro pelos professores. 355

Em síntese, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) teve como principal objetivo subsidiar o

trabalho do professor de história e demais áreas do conhecimento, distribuindo coleções e livros didáticos

aos alunos da educação básica brasileira. Conforme http://portal.mec.gov.br/pnld/apresentacao, acesso em

16 fev. 2017.

Page 265: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

265

Nacional de Livros Didáticos é um ação educativa de grande envergadura, mantido pelo

governo federal e fruto da arrecadação de tributos, impostos e taxas revertidos ao

contribuinte.356

Igualmente requer observar que a classe trabalhadora, a maior responsável

pelo provimento dos cofres públicos, realiza enfrentamentos contínuos para que o

Estado, os professores, e principalmente os alunos que deles fazem uso, se

conscientizem de que o Ministério da Educação, enquanto responsável pela política de

aquisição e distribuição de livros didáticos, segundo critérios previamente definidos, é

um bem público, e, em pouco tempo, se tornará uma tecnologia com uma memória

incrível, mas armazenada em museus, porém, até que possamos fazer uso, no espaço

escolar, de uma tecnologia mais dinâmica, resta o grande desafio de conscientizar a

população de que o livro didático não chega à escola gratuitamente, mas às custas da

própria população. Uma visita a qualquer escola pública pode-se verificar diversos

livros amontoados nas salas, entulhando bibliotecas, corredores, banheiros e depósitos,

sem quaisquer usos. Um desrespeito ao bem público e à tecnologia educacional, sinais

de uma obsolescência política educacional.

Assim, a reinvenção do conceito de gratuidade, especialmente no âmbito da

política, será visto no capítulo 4, porém, até o momento a pesquisa apontou para essa

fragilidade, possivelmente intencional, do significado de „gratuito‟, inclusive enquanto

forma de repassar a culpa ao usuário final, ao dizer que os livros são distribuídos

gratuitamente, trata-se de mais um imbróglio a ser superado, pois, da mesma forma que

o fazem pejorando o uso do livro, igualmente o fazem sobre a Escola pública. Portanto,

o professor de história, bem como os demais educadores têm o dever moral em agenciar

formas de construir uma consciência cidadã para além do discurso segundo o qual o

público e o gratuito não prestam, e por isso podem ser descartados aleatoriamente.

Igualmente em se preparar para o uso das tecnologias ao alcance dos escolares.

Como naquele final de década de 1970, o acesso ao livro „gratuito‟ não era

realidade para todas as crianças, uma vez que a decisão dos pais em se cotizar para

comprá-los revela a preocupação em oferecer acesso àquela tecnologia, para que os

356

Como consta no sítio do MEC, só em 2013, três décadas passadas da criação do PNLD, foi investido

mais de 1 bilhão de reais para a aquisição e distribuição do livro didático para atender, a

aproximadamente, 42 milhões de estudantes. (http://www.brasil.gov.br/educacao/2013/01/pais-investe-

bilhoes-para-garantir-material-escolar-gratuito-a-alunos-da-rede-publica. Acesso em 20 out. 2017).

Page 266: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

266

professores e estudantes pudessem dela fazer uso, como suporte na organização dos

processos de mediação e aprendizagens escolares, pois, ao fazer uma leitura daquele

contexto, os professores dispunham de poucos recursos tecnológicos que pudessem

potencializar a distribuição da informação, como o fazem os livros didáticos.

Igualmente, a falta de acesso ao compêndio didático por parte dos

professores, em que pese o fato de que a grande maioria não tenha passado por uma

formação de nível médio, quiçá superior, o livro didático representava fonte de primeira

grandeza ao conhecimento histórico sistematizado, embora o „conteúdo‟ proposto por

aqueles de história, até o início da década de 1990, como já mencionamos, veiculava

informações gerais sobre as grandes civilizações, as grandes guerras, os presidentes, as

instituições, enfim, tudo o que um estudante burguês, aristocrata, filho de famílias

residentes nos grandes centros e detentores de uma cultura urbana, colonialista e tirana,

deveriam aprender e defender.

Porém, para os estudantes filhos de famílias negras, pobres, indígenas, nos

„sertões‟, ribeirinhos tais „conteúdos‟ e abordagens não os auxiliava a pensar os

problemas emergentes recorrentes em seu meio e, a partir de outras histórias vividas no

passado pudessem promover a transformação, motivo pelo qual, teoricamente,

constituía a razão dos mesmos frequentarem a escola.

Mas, seguindo um processo histórico não linear, porém passível de

mudanças, desde que formadas e gestadas socialmente com ingredientes de cidadania,

aos poucos, algumas categorias excluídas das páginas dos livros didáticos de história no

Brasil começaram a ganhar espaço em alguns pares de linhas de alguns raros livros. A

reboque da produção historiográfica, a produção originária da academia nem sempre

conseguia interferir nas deliberações sobre o currículo, pois dependia de decisões

políticas externas ao espaço acadêmico e escolar, pois, conforme Ribeiro, sua finalidade

maior era confirmar a nação no estado em que se encontrava no momento, justificando

sua ordem social e política. E o suporte didático desse ensino era uma narração de fatos

seletos, momentos fortes, etapas decisivas, grandes personagens, acontecimentos

simbólicos e, de vez em quando, alguns mitos gratificantes357

.

357

LAVILLE, 1999, p. 126 apud RIBEIRO, Renilson Rosa. Entre textos e práticas: ensino de história,

instituição escolar e formação docente. História & Ensino. Londrina, v. 21, n.2, p. 151-179, jul./dez.

2015, p. 156.

Page 267: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

267

Especialmente na década de 1970, quando entrou em vigor o Decreto Lei n.

1.077, de autoria do então presidente Emílio Garrastazu Médici, que estabeleceu a

censura aos livros e a todos os demais conteúdos dos meios de comunicação que

contrariassem à „moral‟ e aos „bons costumes‟, pois, conforme seus considerandos, o

emprego deles obedecia um plano subversivo que colocava em risco a segurança

nacional.358

Possivelmente, naquela década, pouca ou nenhuma produção que

„destoasse‟ da história „oficial‟ chegou às salas de aulas da educação básica, até porque,

na década seguinte, o currículo de história ganhou maior relevo nos debates dos

historiadores, especialmente com o processo de redemocratização do país.

Assim, gradativamente, a maioria da população começou a ter visibilidade

nas páginas dos livros didáticos, especialmente a partir dos PCN de história,

incorporaram os argumentos apresentados pelo debate historiográfico e pedagógico

aberto desde os anos de 1980.359

Porém, essa mudança começou a ser percebida somente a partir de finais da

década de 1990, quando, até então, as páginas dos livros didáticos, regra geral, eram

habitadas por personagens ligados ao universo do colonizador, onde o indígena e

especialmente o negro eram exaltados apenas lembrados na sua condição simbólica:

negro, cuja palavra, açoitada pelo imaginário, era associado à escravidão, vistos, todos

os negros, como iguais, vestindo calção de algodão cru, dançando (jogando) capoeira,

fazedor de quitutes, trabalhador nas fazendas de cacau, café, algodão, nas lavras de

ouro, diamantes, amas de leite, serviçais da casa grande.

Para visitar outras dimensões do ser cidadão com maior intensidade de

melanina na pele seriam necessárias, para amparar o professor atuante entre o Araguaia

- Xingu, outras versões dessa história, o que obrigava os estudiosos ter acesso a outras

fontes de pesquisa, os quais, apresentamos a seguir.

358

Além da questão da “moral” e dos “bons costumes”, o Decreto-Lei remetia ao artigo 62 da Lei n.

5.250, de 9 de fevereiro de 1967, que regulava a liberdade de manifestação do pensamento e da

informação, e rezava, em seu artigo 1º §1º “[...] não será tolerada a propaganda de guerra, de processos de

subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe”. Para saber mais

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1077.htm Acesso em 29 de dezembro de

2017. 359

RIBEIRO, Renilson Rosa. Op. cit., p. 8.

Page 268: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

268

3.6.2 - Inaugurando outros meios com os mesmos fins: o ensino de história

Está chegando „o dia‟ dos negros. Será que acabou mesmo a

escravidão dos negros, no Brasil? Não existe ainda um tipo de

cativeiro, pesando sobre o povo negro, marcando sempre os negros

como se valessem menos, deixando os negros de lado?

Dizer que no Brasil não há „discriminação racial‟ é uma grande

mentira.360

Indo além das páginas de „branqueamento‟, estampadas nos livros didáticos,

no contexto do Araguaia-Xingu, sob a liderança de Pedro Casaldáliga, conforme

noticiou a Folha Alvorada em novembro de 1981361

, um texto era dirigido aos negros

conscientes e a todos os amigos da causa negra, alertando que o dia 13 de maio (data

alusiva à abolição da escravatura) já era, ou seja, haveria de ser superado, pois não

representava o verdadeiro dia da libertação desse segmento, uma vez que, muito antes

da canetada da Princesa Isabel, no ano de 1888, outro acontecimento deveria ser

aclamado, o assassinato de Zumbi dos Palmares, por Domingos Jorge Velho, no dia 20

de novembro de 1695.362

Lembrava a matéria que 80% da população brasileira eram composta de

negros, os quais viviam em regiões pobres, confinadas em barracos, alagados, favelas e

até mesmo em igrejas, e que durante séculos não se deu valor ao negro. Eram eles

trazidos da África como „peças‟ e, chegando aos portos brasileiros eram batizados e

marcados a ferro, tudo num tempo só. Afirmava que o Brasil e América Latina tinha

grande dívida histórica com os milhões de negros cativos, que, com seu suor, sua arte e

sua alma – forte como o fogo sob as cinzas – construíram a riqueza e o futuro dos

países. Ninguém trabalhou mais do que o negro e a negra, no Brasil, seja nos engenhos

de açúcar, nas plantações de café e de algodão, nas charqueadas, nos portos, nas

oficinas, nas fazendas, nas cozinhas, nas minas e nas estradas.363

E, pelas razões apresentadas, haveriam de comemorar durante a semana do

dia 16 a 22 de novembro, com grandes festejos e manifestações, para lembrar Zumbi e

360

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1.21 p 02-21.

Destaque no original. 361

Como forma de alimentar as reflexões, anualmente a Folha Alvorada publicou, durante os meses de

abril e novembro, matérias alusivas ao Dia do Índio e à comemoração da Morte de Zumbi dos Palmares,

objetivando promover a consciência social sobre tais categorias sociais, enquanto forma inequívoca de

produzir “conteúdos” a serem explorados pelos escolares. 362

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1.22 p 17-19. 363

Ibid.

Page 269: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

269

para animar o povo negro na defesa de seus direitos. Sobre tal matéria foi publicada

história em quadrinhos de Dona Mundica, como observamos nas Figuras 19 e 20 a

seguir.

Page 270: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

270

A alocução construída sobre o ato inaugurador da abolição, seguida de

outras estratégias discursivas fizeram com que, ao longo de décadas, a produção

Page 271: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

271

historiográfica e especialmente aquela veiculada nos livros didáticos não apresentassem

a complexidade da organização social dos negros afrodescendentes, seja nos quilombos

formados em território luso-brasileiro, seja nas cidades grandes e pequenas, muitos dos

quais constituíram núcleos habitacionais, a exemplo das favelas, cuja diversidade é

passível de constatação, uma vez integradas por negros e brancos pobres. Esses espaços

serviram de foco de resistência para que pudessem sobreviver ao escárnio do

preconceito racial e social, representando, portanto, mais que um lugar, um espaço de

luta e resistência.

Neste sentido, ao „inventar‟ o personagem Dona Mundica, como sendo

mulher, negra e fazer habitar a inúmeras edições da Folha Alvorada, fazia daquela

estratégia uma forma de aproximar as pessoas simples que, além de ler as matérias,

aproximavam das reflexões necessárias sobre sua condição social, a partir da qual,

apresentava o direito de ser „sujeito‟ e ocupar seu lugar na história, não aquela contada

nos manuais „civilizatórios‟, mas um que possibilitasse refletir sobre seu contexto

histórico social. Igualmente chama a atenção para revitalizar a reflexão sobre a condição

de escravidão que não tinha ficado preso nos calabolsos do passado, mas estava muito

presente na vida das famílias residentes entre o Araguaia – Xingu mato-grossense,

relegados, silenciados no não lugar, a escravidão e o escravo.

O não lugar na história a que foram relegadas as categorias sociais mais

fragilizadas contribuiu para o aniquilamento dos espaços de reflexão sobre seus

problemas, sua diversidade cultural, as relações de poder estabelecidas entre as

comunidades, entre os quilombos, entre as famílias remanescentes de escravos e seu

entorno, com o espaço urbano, sobre uma escola que atendesse aos seus anseios,

imprimindo, com caracteres de opressão, sua condenação ao exílio dentro do país,

deixando-as no limbo da invisibilidade e do não pertencimento.

Entendemos que, ao elevar as reflexões nas comunidades escolares,

apontando as razões pelas quais os diversos segmentos, antes invisíveis na literatura

histórica, deveriam lutar, isso contribuiu para que os professores se encorajassem a

assumir posição frente à recusa do não lugar na história. Sobre essa questão, Reis

elaborou importante revitalização do conceito de não lugares:

[...] afirmando que, embora eles sejam caracterizados pela ausência de

identidade, significado e referência histórica, a sua existência está

Page 272: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

272

diretamente relacionada com os modos como os sujeitos se apropriam

deles, sendo o uso o que faz o lugar ou o não lugar.364

Seguindo essa linha de pensamento, igualmente o fizeram, e ainda fazem,

com os indígenas,

uma vez que as

páginas dos livros

de história,

incluindo os do

século XXI,

teimam em excluir

a trajetória dos

índios no Brasil e,

em particular,

naquele extenso

quadrilátero de

terras banhado

pelas bacias do Araguaia-Xingu, onde poucas foram as pesquisas que se transformaram

em textos e colocadas nas páginas dos livros didáticos. Ao lado, a Figura 21 retrata o

primeiro casal de professores a trabalhar na escola indígena Tapirapé.

Portanto, precisamos que os livros didáticos, para cumprir sua função sócio

histórica e educacional, reconheçam a história dos povos em sua diversidade, passem

por um processo de descolonização, pois, caso contrário, continuaremos lendo a história

por meio das lentes do colonizador.

Nossa escola de educação básica tem uma dívida impagável pelo

silenciamento aniquilador da riqueza da língua indígena falada por nossos alunos

descendentes desse segmento, inclusive no interior de nossas escolas. Carecemos

entender suas formas de organização social, suas representações religiosas, formatos de

casamento entre clãs de mesma aldeia, entre povos distintos, sobre a transformação

social, quando passam pela puberdade, e também sobre a organização de suas escolas de

educação básica.

364

REIS, Breno Maciel Souza. Pensando o espaço, o lugar e o não lugar em Certeau e Augé: perspectivas

de análise a partir da interação simbólica no Foursquare. Contemporânea. N. 21, ano 11, v. 1, p. 136-148,

2014 apud Marc Augé, 2006, p. 11.

Page 273: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

273

Essa ausência da história indígena dos livros didáticos continua alimentando

preconceitos, aniquilando o ser índio numa sociedade não indígena.365

O não lugar na história é a mesma forma perversa de desapropriação de suas

terras. E, se os professores continuarem reproduzindo a tuba, futuramente haverão de

reparar o dano causado à categorias importantes que habitam todo o país, e em especial

a região Araguaia-Xingu. Cabe, portanto observar que, por conta da ocupação das terras

contíguas ao Araguaia, as primeiras a serem ocupadas por conta da migração de famílias

do Nordeste e Sul do Pará, os povos que mais sofreram perseguição das grandes

fazendas foram os Karajá, Tapirapé e Xavante, em especial os de Marãiwatsede.366

Fora a questão

quantitativa e de imprecisão

quanto aos processos de

violência contra os indígenas,

digo imprecisão, pois, não

fossem os registros escritos

feitos pelo não indígena,

dificilmente teríamos tido acesso

às informações do quanto eles

foram vítimas. A Folha

Alvorada sistematicamente

serviu como denunciante das

violências físicas conforme a

Figura 22, porém, a violência

também se deu, talvez em maior

agressividade, no campo

365

Haveremos de realizar novas pesquisas para saber que frutos podem ser colhidos em relação à

experiência da Escola Tapirapé cujo registro na revista Nova Escola, de 1989, tinha por propósito

apresentar o curso INAJÁ, revelou a existência da escola conforme observamos na Figura 21. Neste ano

de 2018 oriento um trabalho desenvolvido por um professor Tapirapé, cuja pesquisa tem por foco a

história tradicional na propagação da cultura do povo Apyãwa (Tapirapé). 366

Conforme o Instituto Socioambiental, em 2011 havia, aproximadamente, 20.294 indígenas habitando a

região Araguaia Xingu, sendo eles Xavante-11.133, Xinguanos – 4.829 (Aweti, Yudja, Kalapalo,

Kamaiurá, Kaiabi, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Kisêdjê, Truai, Ikpeng, Wauja, Yawalapiti, Nahukuá,

Naruvou, Tapayuna), Bororo e Xavante – 858, Karajá – 653, Tapirapé – 573, Bororo – 524, Tapirapé e

Karajá - 512, Kinsêdjê e Tapayuna 375 e Narubotu 69. Todavia, naquele ano dois povos, os Krenak-

Maxacali e os Canela, ainda não tinham seus direitos territoriais reconhecidos. (http://axa.org.br/xingu-

araguaia/a-sociedade/ acesso em 17 nov. 2017).

Page 274: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

274

cultural. Nas páginas do periódico tais conflitos não passavam incólumes, em defesa

dos posseiros, negros, sertanejos e mulheres, e igualmente o fazia em relação aos

indígenas, em particular, defendendo-os em relação à Fundação Nacional do Índio, que,

ao contrário de assistir às suas necessidades, serviu de instrumento oficial em favor dos

fazendeiros latifundiários.

Mas, dentre outros direitos, a educação escolar indígena foi uma importante

bandeira de luta, pela qual puderam dominar a língua escrita não indígena. Dentre o

trabalho de outros professores, merece destaque o desenvolvido por Luís de Paula

Gouvêa e Eunice, ambos foram responsáveis pela criação da primeira escola „oficial‟

entre os Tapirapé, cuja instituição, possivelmente, tenha acontecido no ano de 1974.367

Portanto, desde o início dos trabalhos da Prelazia em relação à educação na

região Araguaia-Xingu, Pedro Casaldáliga se colocou em defesa dos direitos indígenas,

especialmente o de terem acesso à educação escolar, como ocorreu com os Tapirapé.

Retomando a questão da escola enquanto tática de resistência contra a

opressão, conforme a Figura 22, a ilustração da matéria publicada na Folha Alvorada,

no mês de outubro do ano de 1981 torna-se emblemática para nosso trabalho.

Mesmo sob o julgo do poder militar, especialmente por se tratar de uma

matéria veiculada num periódico de cunho religioso, como já mencionado, estava a

Folha Alvorada propensa à censura do governo. Embora existisse o risco iminente de

ter suas edições incineradas e os responsáveis presos (o que aconteceu dois anos

depois), sua publicação se tornou fundamental, pois, como já mencionado, o periódico,

além de servir de fonte de pesquisa e material didático para os professores, convocava o

povo a reagir diante da pressão exercida pelo governo em consonância com os anseios

dos fazendeiros e, como linha de frente, com a polícia.

Tomamos por recorte a crítica apresentada ao longo deste trabalho para

revelar que a edificação (invenção) da escola no Araguaia-Xingu esteve imbuída de um

tempo de crise, porém, em que pesem às dificuldades, inventavam a escola procurando

açoitar seus pilares, colocando em cheque o mundo escolar vivenciado pelas gerações

que a antecedeu, apresentando-a (inventando-a) sob novas estruturas, uma escola capaz

367

Convém observar que o “irmãozinho de Jesus”, padre Francisco Jentel, viveu 10 anos entre os

Tapirapé (1954-1964), sendo possível que numa década de experiência entre aqueles indígenas tenha

vivenciado práticas de organização comunitária que, aprimoradas por sua experiência anterior, as tenha

colocado em prática entre as famílias de Santa Terezinha, sob a forma de cooperativas.

Page 275: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

275

de transformar a sociedade para viver um Estado Democrático de Direito, contribuindo,

portanto, para gerar uma histórica crise.368

Se tomarmos o mundo vivido pelas famílias de posseiros, religiosos, peões e

indígenas, nas décadas de 1970 e 1980, onde prevalecia a violência e a falta de

perspectiva de vida, seria esta uma forma de resistir e transformar aquela realidade

vivida? Ao compartilhar publicamente dos atos de violência praticados pelos

representantes do governo (policiais civis e militares) e funcionários das fazendas

(pistoleiros e jagunços) e a total „ausência‟ do Estado, estaria o Bispo e os membros da

prelazia tencionando uma crise histórica, em pleno domínio dos militares?

Embora uma objetividade na resposta se torne arriscada, é possível afirmar

que uma crise histórica contribuiria para o rompimento do status quo, conforme

anunciou Ortega y Gasset ao final daquela década:

[...] a crise histórica quando a mudança de mundo que se produz

consiste em que ao mundo ou sistema de convicções da geração

anterior sucede um estado vital em que o homem fica sem aquelas

convicções, portanto, sem mundo. O homem volta a não saber o que

fazer porque volta de verdade a não saber o que pensar sobre o

mundo.369

Uma crise se fazia imperativa, pois décadas de um governo ditador e seus

mecanismos de controle não possibilitaram que a grande maioria das famílias saíssem

da pobreza, entendido aqui não somente pela falta de recurso financeiro, mas,

principalmente, por não dominarem as condições básicas de sobrevivência, silenciada

pela mídia e mantida colonizada pelo sistema opressor.

Tais condições exigiam que temas da vida real fossem estampados nas

páginas dos livros didáticos de história que, até então, eram elaborados sob o olhar do

colonizador, uma vez que, além de não possibilitar a descolonização do conhecimento

acerca da história, não proporcionava ações dialógicas no contexto escolar, uma janela

para que o professor pudesse, enfim, ensinar história em sua diversidade e

complexidade.

368

Ortega anunciou a crise histórica quando a mudança de mundo que se produz consiste em que, ao

mundo ou sistema de convicções da geração anterior, sucede um estado vital em que o homem fica sem

aquelas convicções, portanto, sem mundo. O homem volta a não saber o que fazer, porque volta de

verdade a não saber o que pensar sobre o mundo. (ORTEGA Y GASSET, 1989, p. 184-185). In: _____.

Em torno a Galileu: esquema das crises. Petrópolis: Vozes, 1989. 369

Ibid., p. 184-195.

Page 276: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

276

Os „conteúdos‟ críticos „pedagogizados‟ para o ensino da história em sala de

aulas permaneceram sob os grilhões das preocupações pela transformação social, pois,

estando no subterrâneo, tal posição não permitia dar visibilidade às famílias pobres dos

trabalhadores, dos povos indígenas e dos afro-brasileiros. Assim, a criação do livro

didático, que deveria ser uma solução enquanto mecanismo que poderia revolucionar a

educação escolar, acabou se tornando um problema, por apresentar uma versão de mão

única, a do explorador colonizador.

Conforme Alfredo Bosi, essa é a forma pela qual o colonizar se faz presente,

mesmo ausente fisicamente, não deixando morrer sua memória e tampouco sua

linguagem:

[...] a colonização é um projeto totalizante cujas forças motrizes

poderão sempre buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão,

explorar os seus bens, submeter os seus naturais. Mas os agentes desse

processo não são apenas suportes físicos de operações econômicas;

são também crentes que trouxeram nas arcas da memória e da

linguagem aqueles mortos que não devem morrer.370

Observa ainda que são estes mortos bifrontes que servem de aguilhões ou de

escudos nas lutas ferozes do cotidiano, podendo, inclusive, intervir no teatro dos crimes,

com vozes dolorosas de censura e remorso. Estavam, portanto, os valores impositivos

do colonialismo presentes na condução dos processos de formação, ou, pelo menos,

martelando nesse mais novo horizonte da vida das famílias, por meio da formação

escolar no Araguaia-Xingu mato-grossense.

Ao conclamar por justiça, liberdade, direito à terra e à educação, estaria

Pedro Casaldáliga inventando subterfúgios de fuga por meio da escola ali inventada?

Seria essa uma batalha inglória, em que a luta não passava de um jogo combinado e

onde o opressor se fazia vencedor? Não há, por certo, qualquer afirmativa que possa ser

aventada sobre a última questão, porém, haveremos de refletir sobre o sistema simbólico

de propaganda, cujo sentido é a fruição de consumo. Estaria a escola, reafirmando,

pelos seus meios, a récita de uma cultura inventada para ser popular? Mais

especificamente, uma escola milimétricamente pensada enquanto cultura erudita ou

institucional? Cabe, nesse tocante, perceber que, conforme Bosi:

370

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 15.

Page 277: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

277

Historicamente as camadas pobres da população brasileira (índios,

caboclos, negros escravos, e depois forros, mestiços suburbanos,

subproletários, em geral) foram colonizadas pela cultura rústica ou,,

eventualmente, urbana dos portugueses, e pelo catolicismo ritualizado

dos jesuítas: e agora, já em plena mestiçagem e em plena sociedade de

classes capitalistas, estão sendo recolonizados pelo Estado, pela

Escola Primária, pelo Exército, pela indústria cultura e por todas as

agencias de aculturação.371

Em tempos de comunicação online, necessário se faz tencionar a crise do

livro didático, pois ela não se prende ao limite do artefato, se comparado aos demais

dispositivos à disposição dos aprendentes e mediadores do século XXI, mas aos vazios

deixados e, em muitos casos, ampliados pela ausência da história local, em particular,

aos sentidos dados à memória, à identidade, aos objetos e problemas vividos pelos

escolares daquele contexto, os quais continuamos a revelar.

As questões por ele lançadas sobre as imagens, as ideias e os valores dessas

agências e sua penetração no imaginário e condicionamento de um determinado sistema

de valores são relevantes, pois, ao perscrutar sobre os meios, e antes destes, no projeto

de escola a ser edificada nesse sistema, é um fenômeno a ser questionado, estranhado

nas e pelas fontes.

Estaria, ao narrar os acontecimentos, as reuniões e os resultados alcançados,

servindo de duelo sobre a memória, reforçando a crítica e alertando para aquilo que a

escola não deveria se dobrar, ou seja, ao sistema opressor colonialista já há muito

reinante sobre os processos escolares „educacionais‟? Poderíamos pensar o

redireciomento da escola e dos escolares, das famílias de posseiros, indígenas e demais

categorias deslocadas para um não lugar na história, nessa construção oficialesca?

Se observado o tempo em que construímos a narrativa, essa característica se

faz igualmente presente, a invisibilidade de inúmeros segmentos e o seu não lugar na

história. Habitar o não lugar é permanecer à margem, é ter sua existência, seus direitos,

necessidades, angústias, sua dor, seu sonho e utopias esvaídos no tempo e negados, para

dar espaços ao do outro, o do pioneiro, do fazendeiro, do herói, do assassino, da

voracidade da mídia paga, da venda de discursos milimetricamente estudados com o

propósito de impor verdades pouco republicanas sobre o trabalhador e, entre outros,

371

Ibid.

Page 278: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

278

sobre o professor de história. Produzir saberes nas e pelas escolas de educação básica é

ensejar seu reinventar, habitado, inicialmente, no âmbito do discurso.

Perceber, a escola enquanto discurso é, antes de qualquer circunstância,

reconhecer a existência de armadilhas dispostas em forma de narrativas „disciplinares‟

presentes em todos os espaços em que a instituição for pauta de reflexões e

planejamentos, e como já mencionado, os livros didáticos se prestam enquanto

mecanismos de vigilância e controle por parte do opressor. Portanto, esse jogo de

disputa pela memória, faz do livro didático de história objeto de desejo de muitos

pesquisadores, compreendido enquanto artefato e como instrumento de poder, cujos

interesses trouxeram à cena o capital internacional, por meio do convênio Ministério da

Educação e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional

(MEC/USAID), cuja „parceria‟ é merecedora de atenção.

A falta de vagas nas escolas públicas de educação básica, na segunda

metade do século XX, serviu de pretexto para que, em 1966, fosse firmado acordo com

a Agência Norte-Americana. Dentre suas prerrogativas esteve a criação de uma

Comissão do Livro Técnico e Livro Didático (COLTED), objetivando coordenar as

ações referentes à produção, edição e distribuição de 51 milhões de livros, no período de

três anos, cuja continuidade tornou-se possível com a garantia de financiamento público

do governo.

A crise servia de justificativa na intervenção do MEC-USAID, mas não

passava de um pretexto para assegurar, ao setor externo, oportunidade para propor uma

organização de ensino capaz de preparar caminhos para aquilo que se propagaria como

desenvolvimento econômico. O acordo selava um compromisso do país em garantir que

seus estudantes, antes de desejar um diploma, alcançassem conhecimentos que lhes

permitisse ser elemento útil ao progresso e à prosperidade da sociedade, impedindo o

fortalecimento das „ideologias‟, que em nossa narrativa chamamos de libertárias.

Porém, seguindo as receitas trazidas pelo „grande irmão‟, jamais alcançariam a

libertação, permanecendo, econômica e culturalmente à serviço do capital.

Observou-se, no contexto das ações de intervenção educacional brasileira,

que o modelo de desenvolvimento dos EUA “[...] servia de referência para os ideários

Page 279: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

279

da ditadura” 372

, conforme denunciou Mariguella, em Chamamento ao Povo Brasileiro,

no mês de dezembro de 1968.

Assim, mensurar o grau de importância do livro ao longo da existência da

escola no Araguaia-Xingu requer entender a necessidade de inovação de seu conteúdo e

forma. Para o momento, reafirmar a necessidade de descolonizar a escola, o livro

didático, a formação do professor e o currículo escolar foi e continua sendo condição

sine qua non para o alcance da escola democrática.

Conclui-se o tópico afirmando que o livro didático, ao tempo em que

representou estratégia para o governo brasileiro, distribuindo informação sistematizada

que atendesse a sua forma de explicar a história, de outro lado representou para as

famílias uma forma para que seus filhos pudessem ter contato com a história contada

sobre o outro, o diferente e, como tinha a chancela do Estado, haveria de atender aos

professores leigos.

Compete, portanto, afirmar que a leitura da Folha Alvorada fazia com que

os professores e demais escolares pensassem e refletissem sobre as temáticas trazidas a

tona, uma inovação para o tempo, abordando uma história pouco contada e indesejada

pelos órgãos oficiais da educação.

No próximo tópico, abordaremos a forma democrática pela qual primava a

organização da gestão escolar pelas famílias dos estudantes, e em contraste o assalto

praticado pelos políticos, descrevendo a resistência escolar no cumprimento de sua

função social.

3.7 - Edificado o barracão-escola, só falta professor! Autoridade

Em maio de 1978, seguindo a natureza de suas publicações, a Folha

Alvorada aprofundou a crítica, apontando a ilegitimidade da autoridade praticada, e

tomando-a como autoridade negada, pois não tinha por origem uma convenção

democrática. Tal temática será abordada neste tópico, objetivando entender como a

autoridade era convencionada no âmbito da escola, em tempos de invenção e de

organização comunitária e democrática no Araguaia-Xingu, ou sua contradição, pois, se

372

O sítio de onde foi extraído esse trecho indica como fonte ao documento publicado na íntegra à Revista

Marcha, que teve sua primeira edição em 7 de fevereiro de 1968.

(HTTPS://www.marxists.org/portugues/marighella/1968/12/chamamento.htm. Acessado em 10/01/2017).

Page 280: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

280

tratava de um território em litígio, uma vez que a legitimidade, muitas vezes, era

imposta a golpe de machado, açoite de cipó, coronhada de revólver, negação de direitos,

práticas já apresentadas.

Ao observar a

Figura 23, publicada na

Folha Alvorada em 1978,

convocou-nos ao desafio de

refletir sobre a crítica ali

rabiscada em forma de

denúncia. Começamos pela

definição do termo

autoridade, derivado do

latim Autoritate, sinônimo

de poder e base de qualquer

tipo de organização

hierarquizada no interior do

sistema político. Tal adjetivo

não derivou do mesmo significado no contexto da formação dos povoados erigidos nos

sertões de Mato Grosso, especialmente no âmbito da escola.

Por se tratar de um território em litígio, procuramos descrever as formas

distintas de autoridade delegadas pelo Estado e praticadas pela polícia. Além disso,

haveremos de traduzir o sentido do poder praticado pelos fazendeiros contra os

posseiros, peões, índios, e, em alguns casos, semelhante atitude foi também tomada por

pais de famílias aos filhos, por meio da disciplinarização à base de chicote.

Assim, lançamos algumas questões e possíveis respostas. O poder exercido

por quem „tinha‟ autoridade era aceito e legitimado pelo coletivo escolar? Esse coletivo

da escola fugia às situações adversas, isentando das questões políticas e visando

preservar o conjunto dos professores e estudantes? Que atitudes advindas dessa

convenção poderiam ser reveladas na invenção da escola? A autoridade praticada em

torno da organização escolar encontrava estabilidade naquele contexto, entendendo ser a

autoridade um termo histórico e variável no tempo?

Page 281: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

281

Na perspectiva de responder às questões elencadas, confere-nos iniciar pela

apresentação de alguns sentidos de autoridade experimentados no âmbito da invenção

da escola popular democrática no Araguaia-Xingu. No mês de setembro de 1977, foi

noticiada uma contenda ocorrida na escola da Lagoa, em São Félix do Araguaia,

quando:

[...] algumas mães começaram a achar coisas erradas nas aulas do 2º e

3º ano da Escola que a Prefeitura tem na Lagoa. Elas pensaram que

seria bom mudar a professora e marcaram uma reunião de todas as

mães de alunos para resolver a questão. Na reunião, junto com a

professora e o diretor, acharam melhor estudar o caso por mais uma

semana. No fim, depois de muita troca de ideias, conselhos, com as

mães, os alunos e a professora juntos, umas colaborando com os

outros, acharam que as aulas estavam boas e que tinha só umas coisas

de desentendimento.373

Afirmava ainda a matéria que,

[...] nos assuntos de escola a maior autoridade deve sempre ser a

reunião dos pais. Depois é que vem a autoridade dos professores e, por

último, os diretores que fazem aquilo que os pais decidirem. E as mães

da Lagoa e da Vila Santo Antônio provaram isso com seu

movimento.374

Percebe-se que, ao hierarquizar poder na escola da Lagoa, em São Félix do

Araguaia, procurava o coletivo estabelecer uma rotina de gestão pautada em reuniões de

pais, cujas decisões deveriam ser soberanas às vontades individuais de professores e/ou

diretores. Assim, surgia naquela localidade a defesa por uma escola democrática.

Igualmente pode ser percebida em Ribeirão Cascalheira, no mesmo ano,

quando a Escola Municipal de 1º Grau estava funcionando muito bem, os pais vinham

acompanhando o desenvolvimento de seus filhos através de reuniões e palestras com o

diretor e com os professores. Mas, no mês de fevereiro, momento em que o diretor e os

professores estavam participando de um curso em São Félix, Dona Benedita, secretária

de educação de Barra do Garças, município a que pertencia Cascalheira, resolveu fazer

uma visita com o propósito de vistoriar a escola, acompanhada pelo vereador José

Casimiro de Alencar, morador do lugar, Dona Maria Reyes Palácio, diretora do grupo

373

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 55 p 4-8. 374

Ibid.

Page 282: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

282

escolar de Ribeirão Bonito e mais o soldado Paterna. Ali chegando quiseram, por

própria conta, mudar o diretor e os professores.375

Diante dessa situação, o povo se reuniu para dizer que não estava de acordo

com a decisão da secretária, e que não iriam mais enviar seus filhos à escola.

Inicialmente, nada foi alterado, abriram a escola e, dos 341 alunos matriculados, só

apareceram, aproximadamente, 20.

Cinco dias depois, veio um avião estadual trazendo a secretária e os

representantes dos pais que tinham ido para Barra do Garças. No prazo de seis horas,

todos eles se reuniram para saber o

resultado. Dona Benedita explicou a

proposta do prefeito: os pais deviam

escolher, por votação, o diretor da

escola. Assim foi feito e o diretor que

já vinha trabalhando na escola obteve

100% dos votos, e o outro, que havia

sido contratado, não conseguiu

nenhum.

Esse imbróglio ainda teve

um saldo positivo, pois conseguiram

que, a partir daquele ano, poderiam

funcionar com a 5ª e 6ª séries. Assim,

prevaleceu a autoridade extraída do

desejo coletivo, portanto,

democrático, a Figura 24 expressa tal

episódio.

Mas, parece-nos que os desmandos não se limitavam a uma ação isolada da

secretária de educação do município de Barra do Garças, pois, o descumprimento à Lei

nº. 5.692/71, por parte do poder público, em particular em seu artigo 20, o qual

preceituava que o ensino de 1º grau seria obrigatório dos 7 aos 14 anos, cabendo ao

município promover, o levantamento da população que alcançasse essa idade escolar, o

375

Ibid.

Page 283: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

283

chamamento para matrícula e garantir os meios para que estes estudassem, não se

efetivou.

Porém, no tocante à participação da família e da comunidade, previstas na

mesma legislação, conforme consta nos documentos pesquisados, ela aconteceu e sua

ação resultou na edificação da primeira escola, mesmo que modesta, mas era a única

forma de seus filhos terem acesso ao estudo, pois, se dependessem do poder público,

esse feito seria tardio, ou nunca aconteceria, o que alimentaria o segundo maior

problema da região, o analfabetismo.

Analisando o contexto a partir das fontes, é possível afirmar que o

analfabetismo dos oprimidos era um instrumento bastante utilizado pelos opressores.

Seguia-se a prática de fazer os posseiros assinar documentos sem que percebessem que

estavam sendo ludibriados. Assim, alfabetizar as famílias seria uma forma de fugir ao

cativeiro, alcançar a liberdade.

A conjuntura da busca por condições mínimas de vida na terra, o

analfabetismo ganhou tom e cor intensos, pouco vistos em outras espacialidades, uma

vez que o não saber ler e escrever parecia igual em todos os lugares. Nos poucos

momentos que os posseiros necessitavam desse domínio, poderia ser crucial para a

história da família, seja quando da leitura e interpretação de um contrato de posse da

terra, no seu registro no cartório, no avaliar e quantificar o preço de suas criações para

venda, mas também ao pagar a conta no armazém, na venda da esquina (boteco) ou no

açougue, pois era comum o uso de cadernetas, porém o domínio da leitura e da escrita

se fazia extremamente importante no acerto financeiro pelo trabalho prestado às

fazendas.

Naqueles sertões havia uma prática abusiva do gato, chefe de empreitada e

ou gerente da fazenda, pois, muitas vezes, nas cidades de origem, ele antecipava

dinheiro, para que o trabalhador o deixasse para os familiares, na promessa de que o

contratado lhe renderia muito mais do que estava deixando para a família. Mas, ao

chegar à fazenda, o patrão fornecia alimentação, moradia (quase sempre em barracos de

lona ou palmeiras no interior das florestas), produtos de higiene, roupa, calçados e até

mesmo ferramentas a serem utilizadas no trabalho do eito e remédios, caso

necessitasse. Invariavelmente, para tais produtos eram cobrados valores exorbitantes, e,

ao final da tarefa, o peão aguardava dias para receber, enquanto isso, os custos de sua

Page 284: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

284

permanência eram descontados daquilo que tinha para receber. Assim, quase sempre

não sobrava saldo ao peão, restando-lhe permanecer na fazenda trabalhando para saldar

sua „dívida‟, situação que engendrava fuga para as cidades próximas, alimentando o

exército de peões do trecho, visto não dispor de recursos para voltar à cidade de

origem.376

Era um verdadeiro regime de escravidão nas fazendas, a exemplo da Bridão

Brasileiro, conforme noticiou a Folha Alvorada, em agosto de 1976:

Todos os dias chegam em Santa Terezinha trabalhadores que, depois

de muitos meses de trabalho, nada recebem. Francisco Antônio da

Silva e Manoel Alves de Oliveira trabalharam lá durante quatro

meses. No momento do acerto de contas o „gato‟ Martinzão não quis

acertar. Fretaram um avião por Cr$ 1.500,00 (mil e quinhentos) a fim

de busca-lo para acertar diante do sargento. Martinzão simplesmente

afirmou que não acertaria e que tinha armas na fazenda. E justificou:

„Quem mexe com mais de trezentos homens, precisa de armas‟ Os

dois trabalhadores contam ainda que, no mês passado, Martinzão

atirou em um peão conhecido por Pedrão, no momento do acerto de

contas. Pedrão foi atendido no hospital de São Félix. Outros

trabalhadores, nestes últimos dias, saíram de lá fugidos a pé. Bridão

fica a quarenta e cinco minutos de voo de Santa Terezinha. Alguns já

estiveram em Brasília e Cuiabá. Mas não se tem notícia de solução.377

Não bastava saber ler e escrever, mas interpretar o contexto em que estava

inserido o sujeito histórico, que, para viver seu cotidiano era lhe exigido um conjunto de

saberes e a escola, possibilitando-lhe estar consciente de sua condição social. Entender-

se enquanto sujeito histórico herdeiro de um conjunto de valores e práticas de seus

antecessores, revelavam os „limites‟ e „possibilidades‟ dessa leitura de mundo,

adquirida por meio da escola, contribuindo para torna-lo autônomo e independente, livre

da ignorância.

Porém, cabe reconhecer que a escola não era o único caminho para se

conseguir tal intento, visto a necessária união entre escola, família e igreja, conferindo

ao coletivo condições suficientes para cumprir sua função social. Portanto, não

376

Nos pequenos povoados e cidades era comum o trabalhador ou membro da família comprar “fiado”,

ocasião em que os produtos eram marcados em cadernetas, sendo a dívida saldada no final do mês ou da

empreita. 377

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Agosto de 1977. A 16.0. 36 p

4-5.

Page 285: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

285

adiantaria esperar, haveriam de unir forças e edificar um projeto de sociedade mais justa

e igualitária, o qual passava, necessariamente, pela escola.

Ao longo da narrativa, afirmamos que, edificar escola popular era, por um

lado, tática de resistência, e, por outro, a negação ao direito do povo e o não

cumprimento constitucional por parte do Estado. Não se tratou de um fato isolado, vez

que não se restringiu a Porto Alegre do Norte, como escreveu o Bispo Pedro

Casaldáliga, em carta ao povo da região, na edição da Folha Alvorada, de junho de

1980, denunciando que a prefeitura de Luciara não cumprira a obrigação de construir

uma escola em São José do Xingu, que já contava com 140 casas, embora,

aproximadamente 50% delas eram de botecos e armazéns. Com tal omissão, os filhos

das famílias ali residentes não teriam seus direitos atendidos, e, para que pudessem

estudar, contrataram um professor particular, insistindo que um povoado sem escola

garantida não teria futuro.378

Para não fugir à regra, o projeto social firmava-se na medida em que

conseguiam, supletivamente e de forma alternativa, edificar a escola, como aconteceu

em São José do Xingu, pois, segundo Roque João Biegger, agente pastoral da prelazia, a

comunidade construiu a primeira escola naquela localidade.379

A escola também inventava o povoado, como aconteceu no lugarejo às

margens direita do rio Araguaia, que levou o nome de um antigo morador do lugar,

Antônio Rosa. Após visita do Secretário de Estado de Educação no município de São

Félix do Araguaia, nos dias 28 e 29 de novembro, momento em que foi assinado um

convênio com a Prefeitura de Luciara, destinando 25 mil cruzeiros para obras na Escola,

sua publicação no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso só ocorreu no dia 4 de

dezembro de 1978, quando nada havia sido feito até então.

Assim, como se tratava de uma antiga reivindicação, os moradores, em 1980,

construíram um barracão de palha e taipa para servir de escola, faltando, no entanto,

arrumar o professor, pois o povo estava disposto a ajudar na despesa, contanto que a

prefeitura cumprisse com a parte do contrato do professor. Além da casa da escola,

construíram mais cinco barracões para colocar os filhos de famílias que moravam mais

378

Alvorada (1987), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1987 A 16.06 p 02-12. 379

GONZAGA, Agnaldo Divino. Anel de tucum: a missão evangelizadora de Pedro Casaldáliga, bispo da

prelazia de São Felix do Araguaia. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Programa de

Mestrado da UCG. Goiás. 2005, p. 55.

Page 286: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

286

distantes. A escola Antônio Rosa apresentou, para a época, algo peculiar, a construção

de espaço para hospedagem dos estudantes.

Outrossim, considerando a distância geográfica da escola até a cidade de

Santa Terezinha, naquela época um patrimônio pertencente ao município de Luciara,

perfazia 410 km por caminho de terra pela BR-158. Portanto, para a década de 1980, o

percurso era feito em voadeira, pelas águas do rio Araguaia, especialmente no período

de chuvas, pois as estradas ficavam intransitáveis.380

Assim, para superar as distâncias, as famílias não tinham alternativa não

fosse deixar seus filhos morando na escola durante os meses de aula. Ao apresentar esse

dado, revelamos unicamente a dimensão geográfica e, por conseguinte, as dificuldades

de deslocamento entre os dois pontos equidistantes.

Todavia, a questão de fundo ancorava-se nas dificuldades de permanência

naquelas paragens, pois, se por um lado havia abundância de recursos naturais, terra,

rios, peixe, frutos, madeira, de outro a falta de assistência do poder público na provisão

de condições às famílias de acesso à formação escolar na fronteira entre os estados do

Pará, Goiás (atual Tocantins) e Mato Grosso, em pleno Brasil Central aumentavam, na

medida em que se projetava uma escola democrática „ideal‟ para o povo, entrando em

conflito com a autoridade autori-tária. Para entender um pouco mais da dimensão do

conflito, visitaremos a escola pelo olhar dos escolares.

3.8 - A Escola sob o olhar dos escolares: o que e para que – enigmas a decifrar

Decifrar enigmas ao longo da história tornou-se recorrente, especialmente

quando a resposta continua prenhe de lacunas presentes na descrição de determinado

acontecimento, seja com relação a um determinado grupo de pessoas, sobre uma

determinada definição, sobre um determinado objeto de estudo, porém, para o

historiador é desejável que esteja municiado de todas as senhas e sentidos. De forma

comparativa, desenhar no passado a imagem perfeita do que deveria ter sido, os sentidos

ideais sobre as coisas, o processo, sobre as causas e formas ideais, sobre os escolares

ideais, parece-nos ser ainda um bom desafio.

380

Voadeira ainda é bastante utilizada e vista singrando o rio Araguaia, trata-se de um barco de zinco com

motor de poupa.

Page 287: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

287

Assim, entender a escola no tempo continua e continuará sendo um enigma

a ser decifrado. Limitamo-nos a percebê-la em um determinado tempo cronológico e

lugar, pinçando passagens que possam servir de recurso analítico de prospecção sobre

os contornos e limites físicos e procedimentais na fronteira tênue estabelecida entre o

passado narrado e o presente vivido, fazendo da invenção da escola uma metáfora.

Resta-nos, porém, recortar falas no passado, entendê-las com o fascínio do

presente, conscientes de se tratar de recortes de um tempo e espaço pretérito, prenhe de

múltiplos significados, importando-nos o desafio histórico de reconstituir, na medida do

possível, a escola do passado atribuindo-lhe novas formas e sentidos. Lidar com os

enigmas da Modernidade-Mundo e entender o fragmento na totalidade:

[...] é a perspectiva teórica em que se coloca a análise que estabelece

as condições e as possibilidades da comparação, podendo dizer que

cada teoria da realidade social implica não só a eleição de evidências

como também a eleição de parâmetros lógicos de interpretação: dado

o significado, descrição e análise, explicação e compreensão, parte e

todo, sincronia e diacronia, quantidade e qualidade, passado e

presente, singular e universal.381

Como não há teoria que alcance um único sentido sobre a escola, dadas às

pistas no tempo, limitaremos nossa missão a oferecer inicialmente os registros deixados

pelos escolares sobre a escola no Araguaia-Xingu, sabendo que, ao perpassar

objetivamente por questões metodológicas, recortaram-se muitos ditos, mas como forma

de lançar os enigmas para diante, revelam-se pistas do não dito.

Assim, seguimos recolhendo indícios para entender uma escola que não

existiu na perspectiva de seus habitantes, mas, com o olhar de historiador e a habilidade

do garimpeiro, reunimos fragmentos capazes de revelar e produzir sentido à invenção da

escola, tendo por base a narrativa, de modo a contribuir para que ela possa ser

reinventada em seus múltiplos significados.

Em maio de 1977, foi elaborado um quadro, pelos dirigentes da escola,

dando a público uma pesquisa veiculada na Folha Alvorada com o título - O povo fala.

381

IANNI, Otavio. Enigmas da Modernidade-Mundo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,

p. 18. Embora a abordagem de Otavio Ianni seja sobre Enigmas da Modernidade-Mundo, alerta para um

problema recorrente na produção do conhecimento, entender o fragmento na totalidade.

Page 288: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

288

Três foram as perguntas referentes à escola: 1) Para que serve?; 2) O que tem de bom?

e; 3) O que tem de ruim?, e as respostas foram:

Tabela 6: Quadro descritivo para que serve a Escola

Para que a escola serve

Porto Alegre „A escola serve para aprender muita coisa, para aprender a

ler, escrever, contar. Serve para benefício de muita coisa, de

tudo, para educar pessoas‟.

Pontinópolis „Serve para aprender a viver, saber também tratar o pessoal e

compreender. Prá gente aprender ser educado, prá saber

receber os outros e prá ser sabido também‟.

São Félix do Araguaia „O valor que ela tem é que se não existisse a escola, o

movimento de melhora do país não existia. Muitas gentes não

podem nem tirar documentos, por falta de um pouco de saber.

E o saber está na escola‟.

Fonte: Folha Alvorada. Prelazia de São Félix do Araguaia (1977). A16.0.44P5.7

Muito mais que tomar as respostas como fim, compete-nos inicialmente

entendê-las naquele contexto, aprender a ler, escrever e contar seguiria uma linha

bastante difundida sobre o papel da escola, todavia, para ser sabido, para aprender e

melhorar o país revela expectativa e otimismo em relação à ela.

Todavia, daremos um passo atrás para entender o porquê das perguntas,

embora possamos deixar escapar alguns de seus pressentidos, é certo de que

necessitavam chamar atenção

para o „inculcar sentido‟ à

importância da escola, por

meio da ironia da pergunta,

uma estratégia dos educadores

em fazer com que alunos e

familiares pudessem refletir

sobre a importância de terem

acesso à escola de educação

básica naquele espaço e

naquele tempo, observando

que, a grande maioria dos pais

era analfabeta, por não ter tido

a possibilidade em frequentar

Page 289: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

289

a escola na „idade certa‟.

Se tomarmos os parâmetros publicados na Folha Alvorada, utilizados em

reunião promovida em São Félix do Araguaia, nos dias 19, 20 e 21 de outubro de 1979,

falar em frequentar a escola em „idade certa‟ pode soar, no mínimo, como uma afronta

aos pais e mães de família, pois, como observado na Figura 25, menos que 20% da

população tinham acesso à escola, à saúde e aos outros bens necessários para a vida.

Para entender os parâmetros adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatística (IBGE), os analfabetos (não sabiam ler e escrever um bilhete) chegavam,

nos finais da década de 1970, ao número de 18 milhões. Como o enunciado na pirâmide

social, denunciava que apenas 2% da população concentrava a maior parte da riqueza do

país, constituídos, consequentemente, por aqueles que haviam tido acesso á instrução

(educação escolar) e à saúde. Já 15% tinham apenas o necessário para viver, sendo que

83% representavam os desassistidos.

A ironia da pergunta está amarrada na necessidade histórico-pedagógica de

construir e inventar a escola, de prover reflexões no seio da família, no sentido de

semear a cultura escolar na comunidade, pois pouco se conhecia sobre o papel social

que a escola representava, para que servia e como se organizava. Assim, como poderiam

os pais construir parâmetros que possibilitassem avaliar a dimensão do que ela tinha de

bom e o que tinha de ruim?

Tais significados dados às perguntas, considerando o contexto tornaram-se

fundamentais por conta do vazio de conhecimento sobre a função social da escola, que,

aliás, mesmo em pleno século XXI, passados meio século, ainda paira dúvida sobre a

função dessa instituição para a sociedade. Todavia, naquela década e naquele lugar, esse

vazio ganhava sentido, pois a grande maioria dos pais de família não frequentou

suficientemente uma escola para conhecer seus propósitos, processos de mediação e de

aprendizagem (ensino-aprendizagem). Mandar os filhos à escola significava jogá-los

num universo desejado, porém pouco conhecido.

Mas, a ironia não ficava no território do não acesso, mas também no interior

das famílias, pois, matricular os filhos na escola também representava „perder‟ valiosa

mão de obra, embora as famílias da década de setenta tivessem, em média, sete filhos,

sendo que os mais velhos, numa escala de probabilidade, eram os últimos a serem

listados para irem à escola, pois, por uma questão de sobrevivência, estes dedicavam

Page 290: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

290

seus esforços na lida com a terra, na busca por produzir condições básicas aos demais

irmãos menores.

Essa foi uma realidade nos sertões do Araguaia-Xingu mato-grossense,

similar à brasileira382

. Porém, ao fazer a pergunta o que a escola tem de bom era uma

forma de mobilizar reflexões acerca dessa instituição, conforme observado na Tabela

que se segue:

Tabela 7: Quadro descritivo sobre o que a escola tem de bom

O que ela tem de bom

Porto Alegre „Tudo é bom quando a criança se sente à vontade. Os pais ficam

despreocupados quando as crianças estão na escola‟.

Pontinópolis „O que tem de bom na escola é o saber. A gente tendo o saber tem

tudo na vida, tem emprego bom, tem educação pra ele e pros

outros. Menino fica educado, tudo é bom. O pessoal aprendendo,

tendo bom professor, tudo é bom‟.

São Félix do Araguaia „O que tem de bom é que as pessoas estudadas têm um poder de

fazer muitas indústrias, é mais gente. Quando a gente não saber

ler não enxerga nada, vive cego. O que seria de nós sem o pouco

de estudo que temos?‟

Santo Antônio „Os pais sendo tudo de acordo, a união do povo no patrimônio,

tudo colabora. A atual é boa, se o professor esforça‟. Fonte: Alvorada (1977) Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia (1977) A16.0.44 p 5-7.

As respostas revelam múltiplos significados, alguns se tornam relevantes e

corroboram com a hipótese de que a escola agregou espaços de organização social,

integrando família-escola-sociedade. Na escola, as crianças se sentem a vontade, por ser

um lugar seguro e, tendo um bom professor, os (as) meninos (as) ficariam educados.

Além do que, saber é poder, visto que se aprende a enxergar as „coisas‟ e sair da

cegueira. Além das qualidades da escola, percebe-se a união do povo do patrimônio

como significativo para a comunidade. Todavia, perguntar seu oposto, o que ela tinha de

ruim, também era uma forma de fazer com que as famílias avaliassem a partir de seu

ângulo de visão:

382

Conforme dados de uma coleta feita sobre os patrimônios de Ribeirão e Cascalheira, nos meses de

março e abril de 1973, afirmaram ter em Ribeirão 250 famílias e em Cascalheira 120, aproximadamente, e

a média de filhos por família era de 7. Também apontou algumas causas principais da migração interna:

a) falta de terra para trabalhar; b) expulsão de suas posses pelo latifúndio; c) busca de vida melhor (terra-

saúde-escola) e d) busca de lugar mais sadio. Outro dado importante foi o de apresentar o percentual de

ocupação das famílias: a) trabalho na roça 40%; b) nas fazendas como peões na época de derrubadas e

roçadas 40% e; c) em pequenos comércios 20%. (Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do

Araguaia. São Félix. 1977 A19.2.16 P. 1.4).

Page 291: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

291

Tabela 8: Quadro descritivo sobre o que a escola tem de ruim

O que ela tem de ruim

Porto Alegre „Pode se tornar ruim se o professor não toma providência e

iniciativa, se ele não está interessado‟.

Pontinópolis „Bem, o que eu acho que ela tem de ruim é porque o mictório

fica muito perto da cisterna e, além disso, está do lado de cima

da cisterna e o grupo, em oportunidade de chuva, molha dentro

do salão de aula e também falta asseio na área do grupo‟.

São Félix do Araguaia „O que tem de ruim para min não foi identificado, mas muitos

dizem que é a matemática. O que tem de ruim é que eles não

ensinam a verdade para os estudantes crianças e adultos, só

ensinam história mal contada que eles inventam e não contam

a verdade, como é preciso ensinar’.

Santo Antônio „Quando ela não presta é quando num tem boa determinação,

quando os professores não combinam, quando o professor é

incompreensível com os alunos e as crianças são

desordenadas‟. Fonte: Folha Alvorada. Prelazia de São Félix do Araguaia (1977) A16.0.44 p5-7. Sem grifo no original.

Percebe-se que, quando a escola não contava com infraestrutura adequada,

seus usuários avaliaram que essa é uma coisa ruim, a exemplo de o mictório ficar

próximo à cisterna de onde tiravam água para uso na escola, o mesmo acontecendo

quando os professores não tinham iniciativa, todavia, a avaliação produtora de efeitos

em nossa pesquisa está relacionada à expressão: “eles não ensinam a verdade e só

contam história mal contada, deixando de lado o que é preciso ensinar”.

Embora o quadro apresente uma síntese das respostas dos colaboradores, há

de se considerar que os participantes viviam em espaços e realidades distintas, na cidade

e povoados do Araguaia-Xingu, e, por se tratar de respostas espontâneas, merece

destaque a opinião obtida sobre a pergunta - para que a escola serve? Destacamos

algumas expressões-chave: aprender a ler, escrever e contar; aprender a viver; não

houvesse a escola, o movimento de melhora do país não existia e as pessoas viveriam

cegas, conforme apontou o colaborador de São Félix do Araguaia.

Pode-se perceber que o sentido prático foi destaque para justificar a

existência da escola, uma vez que, além de ler, escrever e contar, era ali que se aprendia

a viver e contribuir para a melhoria do país, formando um quadro importante de

conhecimento sobre a realidade. Igualmente nos permite afirmar a busca pela função

prática daquilo que se aprendia, pois, ao elencar o que a escola tinha de ruim, o fato de

reprovarem quando o professor não tomava providência e quando ele não „combinava‟

Page 292: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

292

quando não dava certo, deixando as crianças eram desordenadas, parecem-nos pontos

negativos importantes a serem tratados, pois, não ter domínio de sala certamente tornava

o trabalho contraproducente.

Todavia, requer problematizar a resposta, quando o professor não combina,

pois estava presente nesse imperativo um ordenamento de ideias apontando para

possíveis desajustes no tocante ao projeto de escola pensado e praticado pelos

escolares? Ao analisar o contexto em que as perguntas foram feitas e associando as

respostas às iniciativas de uma gestão democrática, é possível afirmar que sim. No

próximo tópico abordaremos a questão sobre o que ensinou o professor de história e

quando ensinou.

3.8.1 - A arte de ensinar „história mal contada‟ e suas consequências

À medida que nos distanciamos das certezas, da „história verdade‟,

anunciada como negação da prática, na Folha Alvorada, inaugurava-se um espaço onde

poderiam ser praticadas reflexões sobre as críticas anunciadas em relação ao ensino de

história. Alguns significados poderiam ser atribuídos ao – não ensinam a verdade, só

ensinam história mal contada. Que verdade anunciada seria, por um lado, o

esvaziamento da busca por novas formas de abordar o conhecimento histórico,

conferindo ao proclamado a perpetuação de uma versão sobre a história e, por outro, a

tentativa de neutralizar essa estratégia com táticas, de forma a dar outro significado aos

fatos.

Observando que a estratégia das elites, especialmente naquele momento

histórico, era a de reproduzir, como já mencionado, uma história que ensinasse os

grandes acontecimentos, destacando os heróis, portanto, a história verdade como

estratégia e, como anunciou Certeau383

ao enfatizar as atitudes de contestação da ordem,

ao que chamou de táticas, encontrando a fragilidade, atacando a estrutura, mesmo que

não resultasse na derrubada completa ou substituição delas por outras, mas a

possibilidade de atacar. Assim, percebemos que a matriz ordenadora da escola no

Araguaia-Xingu precedia de ações de contestação histórico-social, como afirmou Paulo

Freire:

383

CERTEAU, M.de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 100.

Page 293: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

293

Não podemos alimentar a ilusão de que o fato de saber ler e escrever,

por si só, vá contribuir para alterar as condições de moradia, comida e

mesmo de trabalho [...] essas condições só vão ser alteradas pelas lutas

coletivas dos trabalhadores por mudanças estruturais da sociedade.384

Tais ações, embora fossem disseminadas pela Folha Alvorada, tinha um

público mobilizador: as famílias desprovidas de terra. Estava, portanto, trazendo à cena

a disseminação de reflexões cotidianas, como a proclamação da história do índio, dos

negros, dos pobres, das

mulheres, dos excluídos e

silenciados, ora

apresentados como

alegorias. Essas

revelações eram

reproduzidas nas escolas,

casas, praças, fazendas e

outros lugares onde o

periódico fosse lido.

Ao manter o

ensino de história

„oficial‟, produzia-se

intencionalmente um

deslocamento para um

não lugar, para uma arena

que nunca possibilitaria

defesa, mas luta, resistência, transformação, na reivindicação dos direitos universais,

mas também por uma república em que a democracia fosse praticada.

Ao observar a Figura 26, pode-se afirmar que, ao adotar essa tática

discursiva, era anunciada a possibilidade de crítica, de rebelião contra as relações

desproporcionalmente abissais estabelecidas entre os detentores do poder, ali

representados pelos fazendeiros tubarões, pelo Estado, representado pela polícia e, de

384

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 70.

Page 294: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

294

algum modo, pelos governantes. Servia-se da crítica como arma contundente, quando

esta se tornasse popular.

Com o mesmo intuito questionador, percebemos tais reflexões na

publicação dos dez anos da prelazia, quando as comemorações tiveram início no dia 7

de agosto e se estenderam até dia 16 do mesmo mês. A matéria trouxe inúmeras

questões que alcançaram o interior da escola, quando informou que durante o festejo

estiveram presentes na festa negros de quase todos os patrimônios, o que oportunizou,

no dia 16, um encontro para conversar sobre a situação do negro no Brasil, cujo

propósito era o de conscientizar os participantes de que deveriam se fortalecer, pois o

negro havia, na realidade, sido duas vezes escravizado, por ser pobre e devido à sua

cor.385

Essas questões são potencializadas pela imagem do raio „civilizador‟

cravado no coração do índio, até aquele momento, enquanto categoria social, produtor

de saberes, demandante de programas sociais, porém invisível às estatísticas e à história

nacional. É possível afirmar que a figura metáfora produziu efeito e sentidos no leitor-

observador, qual seja, reflexão-aprendizagem.

Mas, ao fazer uso desta imagem para ilustrar a matéria, denunciava a

história contada e antecipava a necessidade de ser igualmente reinventada nas páginas

dos livros didáticos, cuja prática ainda se fazia presente nas décadas finais do século

XX. No cotidiano naquela região, muitas das ações praticada pela dita „civilização‟ não

passaram de práticas criminosas, cuja herança se faz presente com o longo processo de

expulsão dos povos indígenas, a exemplo os Xavante, em favor das terras ocupadas pela

Fazenda Suiá-Missú.

A ausência do Estado, que nada fez perante a expulsão da terra

Marãiwatsede, atingiu ambos os lados da disputa, assim como a deportação de seu

território sofrida pelos Xavante e posseiros da Suiá.386

Sobre essa questão, é possível

afirmar que, dentre as centenas de investidas da „civilização‟ em todo o Brasil, na

segunda metade do século XX, uma das mais violentas se deu contra os povos Xavante,

385

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1. 19 p 6-19.

Certamente estiveram presentes muitos brancos e índios, pois, embora se tratasse de um encontro com

viés conscientizador do povo afrodescendente, não havia sentido segregacionista com as demais famílias

de índios e brancos pobres da região. 386

ROSA. Juliana Cristina da. A luta pela terra Marãiwatsede: povo Xavante, agropecuária Suiá Missú,

posseiros e grileiros do Posto da Mata em disputa (1960-2012). Dissertação (Mestrado em História) –

UFMT. Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História. Cuiabá, 2015.

Page 295: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

295

no Araguaia-Xingu, seja por conta das grandes fazendas, ou por ocasião da instalação

das colonizadoras, cujos processos foram denunciados desde o princípio, a exemplo do

ocorrido em 1976, quando o índio Xavante Tobias, em assembleia indígena no Rio

Grande do Sul, em meio a 26 chefes indígenas presentes declarou: “Os índios estão

sendo jogados com os pés. Mas nós somos brasileiros também”.387

Parece-nos que a

expressão usada por Tobias nos faz refletir sobre quem era considerado „brasileiro‟, no

Brasil da década de 1970? Que direitos poderiam ser alcançados? A escola ali inventada

contribuiu para minimizar o discurso Brasil ame-o ou deixe-o? Como os professores

eram tratados quando estes „representassem‟ empecilhos aos interesses dos políticos

locais? É o que veremos a seguir.

3.8.2 - Ameaças, expulsão e assassinato: a saga dos „subversivos‟: professores e

religiosos

Como visto ao longo da narrativa, foi em um contexto de desmando e

violência que surgiu a escola no Araguaia-Xingu, e, em seu interior, as mais variadas

intervenções dos mandantes políticos da região. Não bastava tomar de assalto e colocar

seus apadrinhados nos cargos, como foi o caso ocorrido na Escola Estadual de São Félix

do Araguaia, em 8 de outubro de 1981, quando foi notificada, via carta de um deputado

do Partido Democrático Social (PDS), a transferência de dois professores: Paulo Afonso

e Erotildes, já apresentado no tópico 2.5.1. Ilustramos aqui com outro caso emblemático

revelado pela pesquisa, trata-se do professor Juarez Daurell.

O professor Juarez era agente pastoral da prelazia, e, no dia da inauguração

da igreja, em memória ao padre João Bosco, cujo assassinato apresentaremos a seguir,

foi acusado de fazer subversão e guerrilha na escola, incitando os posseiros contra a

polícia. Também pesava sobre ele a pecha de receber dinheiro de Moscou, pois,

associava seus ensinamentos de Estudos Sociais ministrados na 5ª série, como se este

incentivasse o comunismo. No discurso de seus acusadores diziam que essa matéria era

387

A matéria foi publicada em maio de 1977. (Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do

Araguaia. São Félix. Maio de 1977. A 16.0. 44 p 3.7).

Page 296: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

296

só para o 2º grau, e que ele e sua esposa faziam o que bem entendiam na escola, porque

a diretora era uma idiota.388

A Folha Alvorada denunciava que, zombando da fé do povo, naquele dia tão

solene, perguntaram ao Juarez se ele também queria ser mártir, que lhe levantariam uma

cruz. Daí o ameaçou: “Vamos te matar fazer picadinho, se aparecer o nome do Coronel

Silvério nos Jornais!”.389

O discurso proferido pelos representantes do Estado, que, naquele lugar, se

confundiam com os representantes do latifúndio e, em contexto de ditadura militar, a

violência e a morte eram praticadas em nome da „segurança nacional‟, tornando-se uma

prática na ordem do dia.

Observamos que a escola, e especialmente aquilo que era ensinado aos

filhos das famílias em sala de aula, servia de insulto aos interesses dos opressores, pois

o fato de ensina-la a partir do contexto vivido, tornando os aprendentes capazes de

criticar a realidade vivenciada, foi interpretado como uma afronta ao poder constituído.

Para anunciar o assassinato do Padre João Bosco, um ano antes das ameaças

ao Professor Juarez, apresentamos um excerto da carta redigida pelo Bispo D. Pedro

Casaldáliga ao Papa João Paulo II, no dia 22 de fevereiro de 1986:

Yo personalmente tuve que presenciar muertes violentas, como la del

padre jesuita Joao Bosco Penido Burnier, asesinado junto a mí por la

policía, cuando los dos nos presentamos en la Comisaría-Prisión de

Riberâo Bonito para protestar oficialmente contra las torturas a que

estaban siendo sometidas dos mujeres, labradoras, madres de familia,

injustamente detenidas.390

O episódio da morte do Padre João Bosco anualmente habitou as páginas da

Folha Alvorada, porém, a mais emblemática foi desenhada com intensidade, conforme

observamos na Figura 27. Há de se lembrar que a inauguração do templo católico foi

marcada por conflitos abertos, quando o povo se reuniu em Ribeirão Bonito, hoje,

388

É possível que o professor jamais estivesse ensinando sobre a Revolução Russa de 1917, mas sim

procurando exercer a arte de ensinar, de forma que os alunos pudessem entender a relação de opressão em

que vivia o povo. E, ao chamar assim a manifestação popular, estaria, sob o olhar da polícia local,

incitava o povo à guerrilha. 389

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 50 p 15-16. 390

CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Editorial Nueva

Utopía. Magalhanes, 1989 p. 169.

Page 297: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

297

cidade de Ribeirão

Cascalheira.391

. Contudo, tal

manifestação não se fez pacífica,

pois, talvez os opressores não

tenham alcançado êxito naquele

fatídico confronto, a que

descrevemos a seguir.

Na tarde de 11 de

outubro de do ano de 1976, o

Padre João Bosco, foi atirado à

queima-roupa e de forma

covarde, falecendo no dia

seguinte em Goiânia-GO. Há

quem diga que o propósito era

matar o Bispo Pedro

Casaldáliga. Mas, como não

bastasse o assassinato do padre,

o professor Juarez por pouco

acabou sentenciado à pena de

morte, acusado de subversão e

prática de guerrilha, e, na escola,

por „incitar‟, receber dinheiro de

Moscou. Percebe-se claramente a tentativa de reprovar as ações do professor diante da

opinião pública, com argumentos convencionados no meio policial-militar, próprio do

governo ditatorial brasileiro.

O episódio, de triste lembrança, revelou ainda o lado mais perverso da

ditadura, bem conhecida daquela comunidade e das escolas edificadas no Araguaia-

Xingu mato-grossense.

Concluímos o tópico afirmando que aquela manifestação do povo teve por

base não somente os fatos pretéritos, mas pontualmente, naquele momento, a ameaça à

391

No dia 19 de abril de 2010 foi publicado no Diário Oficial da União o reconhecimento, por parte da

Comissão Especial da Secretaria de Direitos Humanos, que o padre João Bosco morrera vítima do regime

militar.

Page 298: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

298

vida, referindo-se ao assassinato do Padre João Bosco, motivo pelo qual ali se

encontravam e duelavam, posicionando-se, de um lado, representantes da escola, e do

outro o poder arregimentado e armado da política militar. É possível perceber a gênese

do pensamento sobre a „escola sem partido‟, bem diferente de uma escola portadora de

um currículo voltado a práticas de liberdade. Em seguida, continuamos revelando táticas

de um discurso questionador a ser adotado para o ensino de história.

3.9 - Sete de Setembro revelando uma história pouco ensinada

Ensinar história na escola de educação básica brasileira, nas décadas de

1970 e 1980, como percebido nos tópicos anteriores, não foi tarefa fácil, pois, entre o

saber e o fazer havia um abismo profundo de insegurança, cujo preço poderia ser a

própria vida. Assim, difícil e perigosa fora a missão de prover as famílias de

conhecimentos vitais, por meio da arte de ensina-los a ler, escrever, contar e também de

refletir sobre o cotidiano. Tal desafio requeria do professor uma escolha, ou assumir

posição firme frente aos problemas historicamente conhecidos e ali praticados, a relação

opressor-oprimido, no sentido de oferecer ao oprimido condições de superar o abismo

entre um e outro, ou aquietar-se frente às violências, contribuindo para sua

naturalização.

Imagine o desafio do professor ao ensinar história, ter que explicar aos

alunos as causas, sem muita cerimônia, da violência que vitimou índios, posseiros,

peões, a exemplo do que ocorreu no mês de abril de 1979, em Porto Alegre do Norte, na

fazenda Piraguassu, onde o posseiro mais velho do rio Sabino, por nome Isidoro, que

sob a promessa de lhe entregar 30 alqueires de terra e empregá-lo na fazenda, com um

ganho de 200 cruzeiros por mês, o fez assinar um documento, porém, o problema é que

ele não sabia ler e o documento tinha por prerrogativa a entregava as terras para o dono

da fazenda.392

Ao tomar como parâmetro os crimes contra as pessoas analfabetas,

cotejando-os com a função social da escola, não constitui tarefa difícil, pois, ao

apoderar-se da leitura e da escrita era o mesmo que vestir um escudo protetor contra as

intenções dos grileiros e fazendeiros, contribuindo, assim, para evitar que a população,

392

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0. 65 p 04-10.

Page 299: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

299

majoritariamente pobre, continuasse vítima da voracidade dos fazendeiros pela

concentração de terras. Igualmente relevante se tornou a Folha Alvorada ao registrar e

divulgar para que outras famílias o ocorrido com o senhor Isidoro, para que os demais

não caíssem na mesma armadilha.

Observamos que os referidos registros se deram em várias escalas, desde um

fato ocorrido com um agricultor, seja em grandes eventos, como o ato público de 15 de

outubro de 1979, o qual reuniu 8 mil lavradores exigindo justiça contra o despejo de

400 famílias de posseiros, no município de Conceição do Araguaia, na fronteira de

Mato Grosso. Cabe observar que, embora em grandezas distintas, a violência e a

perseguição aos trabalhadores não se tratava de fatos isolados, portanto, podem-se

afirmar inúmeras razões de intervenção da escola e dos professores de história no

Araguaia-Xingu mato-grossense, pois essa instituição, erguida pela própria comunidade,

brotou em meio ao emaranhado de problemas, mas com uma missão clara, a redenção

de uma população iletrada em busca por seu pedaço de chão para plantar, ou seja, em

busca de sua cidadania brasileira.

Quando se conseguia um pedaço de terra para trabalhar, logo chegavam os

grileiros, usando de documentos frios (falsificados) e querendo fazer do lavrador um

peão, sempre acompanhado de ordens judiciais absurdas e ilegais, acompanhados de

força policial.393

Outra matéria publicada pela Folha Alvorada denunciou abusos de toda

ordem contra membros da comunidade, como aquele ato de criança de sete anos ser

obrigada a acompanhar a polícia e de oficial de justiça dentro da casa de seu pai, para

dizer onde o mesmo tinha se escondido, a fim de não leva-lo preso; tinham acontecido

coisas que nos dá vergonha de dizer, como o caso de um posseiro que foi obrigado a

beber xixi na cuia, teve posseiro que serviu para soldado se satisfazer sexualmente; ou

posseiro obrigado a servir de mulher para outro posseiro, tudo a mando dos soldados,

sob ameaça do cano de fuzil. Não se pode olvidar de que a Folha Alvorada era enviada

para as comunidades e, dentre os muitos locais onde ela ganhava espaço de leitura e

compartilhamento, a escola constituía um espaço privilegiado.

Assim, não é difícil afirmar que, sendo os alunos que frequentavam as

escolas os mesmos que assistiam às mais grotescas situações de violência, se torna

393

Ibid.

Page 300: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

300

impossível negar que esses assuntos não permeavam o cotidiano da sala de aula.

Igualmente, não há como negar que, de alguma forma, a invenção da escola no

Araguaia-Xingu serviu de instrumento de poder, ora por parte dos professores na luta

pela melhor formação de seus alunos, ora pela tentativa de forças externas buscando

neutralizar, atrapalhar e ou impedir que as instituições escolares cumprissem sua função

social.

Por maior que tenha sido o exercício da pesquisa, seria impossível encontrar

fragmentos suficientes do cotidiano da sala de aula de um professor de história para

entender como se deu e que resultados práticos obteve com a arte de ensinar história, e

que história fora ensinada. Todavia, pensando com as reflexões propostas por Certeau, o

qual considera que passado, presente e futuro só existem em função de um agora, que é

presença no mundo,394

procuramos instituir um antes (passado), um depois (futuro) e a

sensação de pertença a um tempo (o presente). Assim, assumimos a história que

acontece no interior da historicidade.

Mas, ampliando a lente para espaços maiores, nos deparamos com pistas

que nos levam a entender um pouco das práticas dos professores, colocando-os no

centro dos debates e entendendo-os enquanto protagonistas em meio a inúmeros outros

constituintes de um coletivo escolar, trazendo para si a atenção de toda a população,

alunos, pais, autoridades, despertando a atenção dos olheiros, jagunços e pistoleiros, sob

mando dos tubarões.

Neste sentido, entender a invenção da escola no Araguaia-Xingu,

desconsiderando a dinâmica comunicacional estabelecida entre aquilo que se „estudava‟

em sala de aula em perfeita sintonia com o que se vivia fora de seus muros, seria um

equívoco, pois o conhecimento é fruto dos processos de mediação e aprendizagens

produzidos em sala de aula, estando estritamente ligados à vida das pessoas, portanto,

contribuindo para a invenção do ser, desde o âmbito individual ao coletivo,

especialmente o familiar que, conforme os códigos estabelecidos ao longo dos tempos,

o de indagar o que o filho aprendeu na escola, quando do retorno para casa, é fato

corriqueiro, especialmente quando se duvida da capacidade de mediação do professor.

Além das conexões estabelecidas entre o espaço da sala de aula, a pesquisa

revelou que muitas histórias ensinadas naquele quadrilátero inspiraram a inauguração de

394

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 48.

Page 301: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

301

outros recintos de comunicação-mediação-aprendizagens, tornando pública a tentativa

de desconstruir a representação do opressor ao rebelar o coletivo do oprimido.

Quatrocentos foi o número dos alunos que participaram do desfile de 7 de

Setembro de 1979, desde estudantes do ginásio até alunos das escolas dos patrimônios

e sertões do Araguaia-Xingu mato-grossense.

Entre as dezenas

de apresentações, a da

Escola Municipal São João

Batista da Cascalheira,

desvelou o „verdadeiro‟

sentido da palavra

independência do Brasil,

conforme observa-se na

Figura 28 que ilustrou a

matéria, o texto anunciava

que os alunos apresentaram

durante o desfile os

trabalhadores da região em

suas mais variadas

profissões: posseiros, peões,

pedreiros, carpinteiros, oleiros, vaqueiros, lavadeiras, costureiras, mecânicos,

cozinheiras e fazendeiros, além dos blocos de índios e alunos simbolizando os

estudantes.

Conforme matéria, o desfile causou muito entusiasmo aos alunos, por verem

seus pais trabalhadores representados no desfile, e também por estarem seus

progenitores assistindo à apresentação feita por eles. Os pais igualmente ficaram

orgulhosos por saberem que a educação de seus filhos estava sendo verdadeira e tinha

sentido dentro da realidade em que viviam.

Incontáveis são as aberturas para análise do ocorrido, mas, atenção especial

será dada a duas expressões que exigem reflexão, a primeira a educação verdadeira e a

segunda a uma educação com sentido. Problematizá-las é necessário: existia uma

educação que não fosse verdadeira? Existia uma educação sem sentido? Certamente

Page 302: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

302

não, mas, se reportarmos às dimensões da escola, já narrada até o presente momento, é

possível afirmar que os professores, em especial os atuantes na disciplina de história,

sabiam da importância da prática de um currículo que considerasse o contexto sócio

histórico, econômico e político dos aprendentes, revestindo a educação de sentido. Por

outro lado, ao trabalhar as questões locais, abordando problemas do cotidiano das

famílias, afirmavam sentidos às práticas cotidianas.

No mesmo evento, no período noturno, foi apresentado um drama contando

a história do Brasil, desde o descobrimento até os dias atuais: a exploração dos

portugueses sobre os índios, dos senhores de engenho sobre os escravos que fugiam e

formavam quilombos; da exploração dos patrões sobre os trabalhadores e também a

forma como os trabalhadores estavam se organizando para defender seus direitos e

conquistar sua verdadeira independência.395

Ao desenvolverem tais atividades, estavam contribuindo para a construção-

reconstrução da memória coletiva sobre o processo histórico que, segundo Le Goff,

[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta

das forças pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do

esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos

grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades

históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores

desse mecanismo de manipulação da memória coletiva.396

Mais que uma aula de história não contada pelos livros didáticos da época,

pois em nenhum livro didático, mesmo os produzidos nos anos que antecederam a

presente narrativa, contemplaram uma produção de história de Mato Grosso, e em

particular, do Araguaia-Xingu a ser trabalhada em sala de aula pelos professores de

história. Portanto, o mesmo silêncio que resultou no anonimato do Brasil Central, ainda

persiste enquanto política nacional para a produção dos livros didáticos.

Assim, ao analisar aquela „aula de história‟ a céu aberto, enquanto projeto

de aprendizagem coletiva, conseguiu agregar inúmeras dimensões da invenção da escola

e da arte de ensinar, integrando memória, relato, denúncia, audácia, reconhecimento,

trabalho em equipe, aproximação de uma escola com a sua criação, por meio de

temáticas entre o que se via fora dos muros da escola e parte daquilo vivido no cotidiano

395

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 50 p 15-16. 396

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 3 ed. Campinas, SP: EdUNICAMP, 1994, p. 426.

Page 303: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

303

das salas de aulas e da fala de alguns professores. A reserva se dá para que não

incorramos em juízo de valor para um coletivo, sem considerar sua diversidade, pois tão

diversa é a sociedade quão diversos são os profissionais e suas práticas.

Não é difícil afirmar que aquele 7 de Setembro tenha sido fruto de processo

de leituras atentas às distintas realidades históricas vividas no Brasil, desde seu

descobrimento até aquele 1979, que, mesmo passados alguns séculos de independência,

quase um século de república, algumas categorias ainda persistiam, como a

concentração de terras nas mãos de poucos, a exploração da forma de trabalho

(escravo), tráfico de pessoas para trabalhar nas fazendas, falta de acesso aos serviços

públicos de saúde, educação e segurança, enfim, barreiras intransponíveis para o alcance

pleno da independência e da liberdade.

A pesquisa feita pelos professores com a finalidade de se produzir aquele 7

de Setembro passou pela história ensinada por eles, no sentido de apresentar uma versão

da história pouco contada nas páginas dos livros didáticos, e que tenha custado horas e

horas de trabalho. Um ato de coragem, irreverência e inovação, pois, como já bastante

conhecido, os atos cívicos, especialmente durante os governos militares, tinham por

ideário eternizar os símbolos nacionais, os heróis, os governantes, os desbravadores

(pioneiros), as profissões „elitizadas‟ ou, por outro lado, as categorias sociais alegóricas,

os índios vestidos de penacho e os negros homens nus de cintura para cima e dançando

capoeira, munidos do berimbau, ou um facão ou foice como instrumento de trabalho,

perpetuando a escravidão enquanto representação de trabalho, além de outros artefatos,

como grilhões.

Todavia, a escola, ali, cumpria o contraditório, apresentando outra versão

sobre a história das diferentes categorias sociais, azeitadas com criticidade e

despertando novos olhares, novas teses. Nessa medida, escola e os escolares revelaram

uma leitura sócio histórica, vivenciando aprendizagem ímpar na vida da comunidade.

Naquele projeto de aprendizagem, tendo como momento sublime a

interação entre os alunos e comunidade, possibilitou romper com os muros invisíveis

entre a sala de aula e o contexto sócio histórico no qual a unidade escolar estava

inserida. Também é possível afirmar que essa representação teve por propósito provocar

dúvida sobre conhecimento até então veiculado nos livros didáticos, com expectativa de

uma conscientização com alcance da prática libertadora, difundida e defendida por um

Page 304: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

304

educador contemporâneo que, por meio de seus escritos, dava visibilidade ao ideário de

práticas pedagógicas libertadoras.

Assim, ao lançar luz ao evento, se pode perceber que a memória ali

evidenciada sobre as questões, especialmente em relação às desigualdades sociais, a fez,

objeto de disputa política, cuja independência haveria de ganhar novos contornos, os

quais serão apresentados a seguir.

3.9.1 - Independência

Para ampliar nossa topografia sobre o tema, acrescentamos uma segunda

matéria publicada no mês de setembro de 1984, fazendo alusão ao 7 de Setembro:

Independência ou Morte???. Esse foi o título publicado seguido por uma narrativa

lançando críticas à forma usual que as instituições promoviam os desfiles cívicos “[...]

costume fazer aquele reboliço cívico: desfiles de escolas, de militares, discursos verdes-

amarelos, autoridade emplumadas, palanques, bandeiras hasteadas, muitas continências

e falação nos jornais”.397

Asseverava ainda que muita gente achava tudo isso bonito e ficava

entusiasmada, acreditando que o nosso país era totalmente independente. Porém, a

matéria colocava em dúvida tais certezas, indagando as razões que „induziam‟ o povo a

acreditar no discurso ordenador. Sequenciavam as desconfianças apontadas na matéria.

Será que podemos considerar como independência a situação em que vivemos? Só botar

os pés no chão, vamos lembrar de algumas coisas:

a) No dia 7 de Setembro de 1822, o Brasil apenas se desligou do governo de Portugal,

transferindo a sua dependência econômica para a Inglaterra. Os portugueses

exploravam o povo brasileiro e a Inglaterra forçou a independência política, para

explorar sozinha o nosso país, sem intermediários.

b) Desde aquele tempo, o Brasil está amarrado ao capital estrangeiro, e nossos

dirigentes sempre estiveram defendendo semelhantes interesses em detrimento da

pobreza e exploração da maior parcela dos brasileiros.398

397

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984. A 16.3. 08 p 11.16. 398

Ibid.

Page 305: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

305

Continua a matéria afirmando que os governos brasileiros, especialmente os

militares:

a) Facilitaram aos estrangeiros a instalação de indústrias, compraram tecnologia dos

países ricos e foram entregando as nossas riquezas. E o Brasil sempre devendo,

aumentando mais as suas dívidas, piorando, consequentemente, as condições de

vida dos segmentos mais pobres.

b) Infelizmente, não temos aqui espaço para contar muitas coisas importantes da nossa

história, mas vamos ver um pouco do que tem acontecido desde 1964 (golpe

militar), a fim de a gente ver como é que não temos muito motivos para comemorar

a chamada „Independência‟ do Brasil.

c) A dívida externa foi crescendo tanto que o Brasil não conseguiu pagar nem os

juros! Então, teve que pedir dinheiro emprestado ao Fundo Monetário Internacional

(FMI), e este emprestou dinheiro impondo determinadas condições:

1 - Rebaixamento do nível dos salários e aumento do custo de vida;

2 - Desemprego cada vez maior em todos os lugares;

3 –Diminuição dos benefícios da Previdência Social (por exemplo: atendimento à

saúde, aposentadoria) à população;

4 - Campanha para esterilizar as mulheres e;

5 - Nossa dívida externa, atualmente, está em mais de cem bilhões de dólares!!!399

Como forma de ilustrar a narrativa tornando a matéria didática, o artigo

estampou uma charge, conforme pode ser observada na Figura 29 a seguir, de fácil

interpretação às crianças em idade escolar e ou pessoas com baixa escolaridade

apresenta um diálogo entre D. Mundica e seu filho sobre o significado da independência

do Brasil. Todavia, em forma de ironia, a mãe lança uma crítica contundente à forma

pela qual as decisões eram tomadas no país naquele momento histórico.

Com mesmo propósito, a matéria apresentou uma segunda ilustração

bastante rica do ponto de vista histórico, pois, ao apresentar D. Pedro montado a cavalo,

fez menção ao ato às margens do riacho Ipiranga, que, sem luta, declarou o Brasil

independente de Portugal, porém, o que nos chama atenção é o fato de o mapa do Brasil

estar sendo espetado pela espada do Infante.

399

Ibid.

Page 306: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

306

Portanto, colocava em

questão a

intencionalidade do ato,

procurando exaltar

aspectos que a história

que os livros didáticos

não contavam. Ao

declarar a

independência,

inventava novos laços

coloniais, pois, o Reino

do Brasil, Portugal e

Algarve continuou

sendo espólio da família

real portuguesa e de seus assentes.

Porém, a figura ainda fazia alusão ao „Tio San‟, iconografias passíveis de

inúmeras interpretações em trabalhos vindouros. Para o momento, nos limitamos a

destacar o „galo‟, símbolo da Folha Alvorada, sugerindo, ironicamente quais das

situações seria escolhida pelo peão: a Independência de Portugal ou morte, ou a

Dependência dos Estados Unidos da América ou morte.

Observamos que a(s) pessoa (s) autor(es) da matéria estava(m) munido(s) de

conhecimento sobre o processo histórico revelados de maneira sutil. Porém, com a

Page 307: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

307

complexidade que merecia tais questionamentos, tangenciando aos campos da história,

da política, do direito, da economia, e, da educação, mais especificamente da didática,

pois sequenciou fatos da história dando novos contornos aos conteúdos pedagogizados.

Reforçando, portanto, a resistência, aqui arregimentada pelo discurso de uma educação

(escola) libertadora, além de reafirmar o fato de que os professores de história

participavam diretamente dos embates cotidianos, das táticas de guerrilha.

Muitos docentes atuantes nas escolas, além de ministrar o ensino em sala de

aula, eram referência na comunidade, por colaborarem com a produção de textos

críticos sobre o contexto nacional e também aquele vivenciado pelas pessoas da região,

a exemplo da situação do país, publicada na Folha Alvorada em 1981, afirmando que os

professores José Martins, Maria Nilde e Paulo Schilling comunicaram as notícias mais

recentes sobre a política, a carestia, o desemprego, dentre inúmeros outros temas que

diziam respeito diretamente à condição de vida do povo brasileiro e, em particular,

daqueles que viviam no Araguaia-Xingu.400

Assim, reconhecemos nessa atividade, sinônimos de uma invenção, a escola

viva, constituinte de um amálgama, no qual o vigiado e o vigilante comungavam de um

mesmo lugar, mas em espaços distintos de atuação. Igualmente, a teoria e a prática, a

história e a memória eram potencializadas enquanto ingredientes para a conscientização.

É possível afirmar que, como sugeriu Paulo Freire401

: “[...] a conscientização implica,

pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos

a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível na qual o homem

assume uma posição epistemológica”.402

Nesse sentido, imbuídos de uma realidade histórica e tomando o desfile

cívico do 7 de Setembro apresentado anteriormente, os escolares agiram de forma a

revelar e denunciar as estruturas antagônicas, representados em campos ou bandejas

opostas de uma balança, de um lado, os trabalhadores nas mais variadas profissões, e,

400

Mais uma vez reforça o argumento de que a rede de sociabilidade de Pedro Casaldáliga o preparava

para os debates e encaminhamentos junto à equipe de professores ligados á prelazia sobre educação. 401

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da liberação: uma introdução ao pensamento de Paulo

Freire. 3. Ed. São Paulo: Moraes, 1980, p. 26. 402

As fontes indicam a possibilidade de que os professores, especialmente os leigos ligados à prelazia,

tivessem lido Paulo Freire, pois, entre a bibliografia existentes no acervo da instituição apresenta uma

sequência de documentos de forma cronológica III. 4 – Edital sobre concurso público para o Magistério;

III.5 Novo conceito de desenvolvimento na literatura atual e no Pensamento de Paulo Freire (sem data);

III. 6 Education, Libertation et Eglise – Paulo Freire (sem data); III. 7 – Educação, Libertação e Igreja –

Paulo Freire (sem data); III. 8 Educacion – Boletin – Com. Evangélica – 1976. DIII. 0-Indice. P1.2 –

Arquivo da Prelazia.

Page 308: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

308

de outro, os tubarões. Assim, se fizeram ilustrar o dominante e os dominados, ou, como

propôs Paulo Freire, o opressor e o oprimido, revelados em todas as dimensões

histórica, sociais e antropológicas.

Estaria a escola, num movimento envolvente, caminhando em direção a uma

práxis libertadora? Conseguiu a mesma romper com a maquinaria dos organismos

opressores? O pesquisador desatento, ou por falta de „madureza‟, diria que sim, todavia,

seria prematuro afirmar e, igualmente, porém, seria equivocado negar.

Pode ser constatado que, ao produzir aquela matéria jornalística, entendendo

seu contexto de produção, a equipe tinha um propósito de contribuir para a mudança de

perspectiva em relação à heterogeneidade da sociedade em que viviam as famílias, cujos

filhos frequentavam a escola de educação básica, chamando atenção para os

personagens ali presentes.

Para cumprir essa função educativa, como nossa pesquisa não se limitou ao

tempo cronológico da década de 1970, faz-se necessário adiar tais respostas para o

próximo capítulo da tese. Mas, é possível antecipar que a invenção da escola no

Araguaia-Xingu teve, em seu DNA, um conjunto de práticas formativas que integraram

uma função social, um currículo dedicado à produção de ciências, nas e para práticas

democráticas, com perspectiva de uma escola libertária.

Conclui-se esse tópico afirmando que, do ponto de vista do ensino de

história, a escola, por meio de um currículo contextualizado, contribuiu para que o

aprendente imprimisse passos seguros em busca de uma consciência do „ser‟ e do „agir‟,

tornando-o apto a transformar a si e a seus pares.

3.10 - A escola onde a fome da cabeça é maior que a fome da barriga

O povo esquecido, desamparado, não pode mais esperar. Já dizia um

sertanejo: „A fome da cabeça é maior que a fome da barriga‟.403

Como apresentadas anteriormente, as condições sócio históricas e culturais

das famílias atendidas pelas escolas de educação básica na região Araguaia-Xingu

mato-grossense foram marcadas pela precariedade de moradia, higiene, alimentar,

403

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970. A16.0.03 p 01-3.

Page 309: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

309

saúde, econômicas, adicionada à falta de conhecimento das letras. Tais condições

permaneceriam inalteradas, à medida em que estas permanecessem sem acesso à escola.

Em seu entorno, algumas iniciativas sociais, por parte da prelazia,

contribuíram para a superação de fragilidades não praticadas pelo currículo escolar, a

exemplo das questões de saúde das buchudas, do conjunto de conhecimentos sobre a

produção e o consumo de alimentos necessários para a boa saúde, até porque algumas

questões não poderiam ser tratadas na infância, tampouco na adolescência. Embora tais

conhecimentos permeassem o contexto educacional, não eram tratados suficientemente,

o que ensejou a criação do clube de buchudas e o clube de mães, por meio dos quais

ampliavam-se esforços na busca pela superação da falta de conhecimentos, tão

importantes à preservação da vida.

Com esse propósito eram trabalhados projetos coletivos, a exemplo das

hortas comunitárias, organizadas por um grupo de mulheres vinculadas ao clube de

mães de São Félix, onde cada uma cuidava diariamente de uma horta, mas a produção

era dividida entre todas, seja na cata ao estrume, na chácara de Dona Noêmia, ou na

praia, mas também eram compartilhadas as dificuldades que, quando apareciam, eram

discutidas no coletivo, durante as reuniões.

Naquele ano de 1977, existiam nove hortas onde se produziam tomate,

alface, berinjela, cebola, pimenta, chuchu, cenoura, entre outros. Dessa maneira, “[...] as

famílias resolviam juntas uma parte do problema da alimentação”.404

Também, em

Porto Alegre, por meio de mutirão, foi montada uma horta comunitária, conforme

publicou a Folha, em julho de 1978, o que nos possibilita afirmar a existência de uma

iniciativa comum nas comunidades onde se estabeleceram as escolas.405

A participação das mulheres foi fundamental na organização dos processos

no entorno da vida das famílias e, principalmente, no que diz respeito à educação dos

filhos, pois, ao tempo em que participavam de todas as decisões tomadas em torno da

escola, também assumiam posição nas questões que interferiam na formação dos filhos,

a exemplo do que fizeram ao convidar dez jovens para que aceitassem fazer as vezes da

polícia-mirim, o que teve pronta anuência. Porém, as mães se posicionaram contrárias à

404

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A16.0.57 p 08-12. 405

Ibid.

Page 310: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

310

iniciativa dos policiais, para que seus filhos fizessem esse papel, conforme noticiou a

Folha Alvorada, em agosto de 1978.406

Havia, portanto, um ingrediente importante nessa ação que, certamente,

contribuía com a escola, a organização social na busca da solução de problemas, a

exemplo do mutirão feito em São Félix, que contou com 82 pais de alunos para

construção de um barraco de palha, junto da escola, para abrigar os alunos que não

tinham onde estudar por falta de espaço edificado, falta de um lugar onde as “[...]

crianças pudessem trabalhar mais à vontade”.407

Tal atitude, conforme publicado na

Folha Alvorada, alimentava o sentimento de responsabilidade de todos em zelar pela

escola, esclarecendo o sentido atribuído à expressão zelar pela escola, o qual incluía

participar das reuniões de pais e mestres e exigir das autoridades tudo o que fosse

preciso para as escolas funcionarem bem.

O problema dos estabelecimentos escolares, como descreveu a matéria, era

muito sério, sempre (em todas as circunstâncias e lugares), e os pais deveriam ser os

primeiros a se preocupar em resolvê-lo. Já as autoridades deveriam se preocupar

verdadeiramente com a causa da educação, agindo com retidão, sem qualquer

favorecimento, escutando, em primeiro lugar, a opinião do povo, e o interesse da

maioria dos pais e alunos.

Indicava ainda às famílias para matricular seus filhos na escola, tratava-se

de um direito e ao mesmo tempo de um dever, por isso os pais não poderiam „dormir‟,

independentemente de estarem nas cidades ou nos patrimônios.

Retomando a questão da organização coletiva existente no entorno da escola

e da comunidade envolvente, havia em São Félix um clube de jovens, formado por 40

membros, que, além de participar de outras atividades, organizaram um teatro,

presenteando as mães, visto terem sido eles os autores da escrita e da apresentação. O

nome da peça era: Os caminhos de mãe Otaciana, o drama contava a história de uma

mãe sertaneja e seus sacrifícios para educar uma filha.

Observamos, ao longo da pesquisa, que os jovens eram estimulados a

desenvolver inúmeras atividades, as quais oportunizam refletir sobre as questões sócio

históricas e culturais que atingiam diretamente a vida das famílias entre o Araguaia-

Xingu, a exemplo da apresentada por eles em São Félix, no dia 2 de junho de 1979, de

406

Ibid.U 407

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A16.0.46 p 2-6.

Page 311: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

311

autoria de um membro do clube, a qual era intitulada Enquanto o mundo não

melhora.408

O drama fala de problemas mais comuns do povo da região e de muitas

outros que estavam nas mesmas condições: falta de emprego, subempregos e os salários

de fome e falta de garantira nos contratos de serviço. As moças, por outro lado, eram

jogadas nos serviços domésticos, fazendo tudo e, no fim do mês, não chegam a ganhar

C$ 500,00. Muitas delas, desempregadas, se atiravam na vida, empregando-se em

cabarés, para não morrer de fome. Muitas deixavam o lugar pensando que a vida seria

melhor na capital, e se enganavam, voltando em pior situação do que quando saíram.

Já os pais, na cidade, precisavam arranjar trabalho, como os de servente de

pedreiro, descarregador de barcos, oleiros, lixeiros etc., e quando não achavam nem

esses serviços tinham que ir trabalhar nas fazendas, como peão, vaqueiro, em regime de

empreitadas etc., e, seguindo para esses lugares, só voltando após 3 ou 4 meses.

O ganho nas fazendas também não era suficiente para garantir a

sobrevivência das famílias, no que toca a comer, morar, vestir e calçar. Por isso, quando

achavam um serviço para os filhos ficavam satisfeitos, uma vez que estes poderiam

ajudar nas despesas.

Com a apresentação teatral, os jovens estavam mostrando para a sociedade

que também eles existiam e queriam empregos, salários justos, garantia de serviço,

escola e muitas coisas mais. Por outro lado, a teatralização chamava a atenção para o

fato de que os jovens e adultos não poderiam deixar o mundo seguir como estava, e que

sozinhos ninguém conseguiria consertá-lo. Mas, juntando forças e se unindo com

outros, que também almejavam melhorias, logo, logo todos gritariam triunfantes:

Enquanto o mundo não melhora...., façamos a nossa parte.409

Já em relação ao jovem migrante da região, atenção especial a ele era

recorrente, pois, conforme noticiou a Folha Alvorada em maio de 1975:

[...] a partir de 1973, muitos jovens estudantes da região tem que sair

buscando fora um jeito de continuar os estudos e enfrentar a vida.

Longe da família, com todos os problemas de trabalho e sobrevivência

e no meio da ilusão da cidade grande. Hoje eles nos escrevem e dizem

um pouco daquilo que estão vivendo. Ausentes, continuam voltados

408

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A16.0.66 p 10-15. 409

Ibid.

Page 312: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

312

para a nossa região que é a sua e querem manter vivos os laços de

união conosco que somos o seu povo.410

Ao fazer uma leitura dos contornos da escola, podemos afirmar sua conexão

com a dimensão maior da sociedade que, embora afetada pelos mais grotescos

desrespeitos humanos, pela má distribuição da terra e de renda, falta de emprego e

salários dignos e carência de acesso à escola. A organização em prol da qualificação das

famílias se deu por meio da formação coletiva dos clubes, como observamos em matéria

publicada pela Folha Alvorada, em 1975, com o título Clubes, aulas de

complementação, reuniões.411

Em Serra Nova, a população estava animada com as aulas de

complementação de corte e costura, com as reuniões dos homens, dos grupos de

juventude e das buchudas. Já em São Félix, reiniciaram os seis clubes de mães e os oito

de meninas e moças. Na Vila Santo Antônio, por iniciativa das comadres, também iriam

abrir um clube de mães, e também ali as aulas de complementação teriam início com

uma primeira turma.

Assim, concluímos o tópico afirmando que havia um conjunto de ações

transversais àquelas tratadas no contexto da escola de educação básica, fomentado pela

Folha Alvorada, pois a escola isolada jamais haveria de conseguir atender toda

demanda apresentada por aquela sociedade no coração do Brasil Central, onde a fome

da cabeça devia ser maior que a fome da barriga.

3.11 - A comunidade inventa a escola, a escola constrói a sociedade: a sociedade revela

sua contradição

Neste tópico, abordaremos uma questão surgida em Santa Terezinha, e que

possibilitou mapear como Mato Grosso tratava as questões relacionadas à escola de

educação básica na sua porção nordeste.

Em decorrência do descontentamento dos pais com a diretoria da escola e

com o delegado de ensino de Barra do Garças, Sr. Arilson, fizeram um abaixo-assinado

410

Alvorada (1975), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1975. A16.0.23 p 2-3.

Embora existisse a preocupação em relação à necessidade do jovem que concluiu o ensino médio sair da

região, essa foi uma prática comum aos filhos das famílias da região, que, em muitos casos, deixavam a

cidade em busca de melhor estudo e nunca mais voltavam. 411

Ibid.

Page 313: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

313

exigindo a saída dos gestores da escola estadual, assim como resposta pelas mudanças e,

em tom de desagravo, diziam que “[...] esses senhores chegaram e saíram

vergonhosamente, com medo de conversar com o povo, de escutar as verdades do

povo”412

, pois a Escola Estadual virou um problema político da Aliança Renovadora

Nacional (ARENA), pois uma das condições impostas para a admissão dos docentes era

a de que eles estivessem inscritos no partido.

A Escola Santa Terezinha pertencia à rede Estadual, portanto, dependia das

decisões da Delegacia Regional de Educação de Barra do Garças que, por sua vez, era

subordinada às decisões da Secretaria de Estado de Educação e Cultura, em Cuiabá. Tal

sequência hierárquica distanciava a solução dos problemas vividos pela comunidade,

ficando ela vulnerável às decisões alheias à realidade local.

O imbróglio teve início por conta de a direção não acatar as decisões

coletivas da comunidade, e, para melhor entender aquele conflito, retomaremos a fatos

ocorridos no ano anterior, de 1978, acompanhando as publicações da Folha de 1979.413

Embora o fato já tenha sido apresentado no tópico 1.9. convém retomá-lo,

agora no sentido de revelar como os profissionais da educação, igualmente ao „povo‟

desfavorecido, era penalizado sob o julgo do opressor. Após a tentativa de homicídio

praticada por Cleoviton Neres, seu irmão Cleomenes assumiu a gestão da escola e

demitiu D. Alzira, justificando que ela não servia para o trabalho, por conta de uma

queda sofrida com uma lata d´água na cabeça, quando foi, junto com a zeladora, D.

Norberta, buscar água a uma distância de mais de 300 metros, para usar na escola. Tal

episódio, somado à não contratação da Regina Borela, fizeram um abaixo-assinado, com

mais de 182 assinaturas, juntaram recursos (vaquinha), para que a Sra. Aparecida

Freitas fosse a Cuiabá. Quando voltou de Cuiabá, levando consigo os funcionários da

secretaria, em avião fretado por 27 mil cruzeiros, anunciaram não ter ocorrido qualquer

reunião. Mais uma vez, o povo fora enganado, o que complicou ainda mais a situação.

412

A Aliança Renovadora Nacional foi um partido político criado em 1966 e dissolvido em 1979, e

carregava consigo a defesa do militarismo, sendo um partido populista de direita e anticomunista. 413

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. Março. A 16.0. 64 p

09-14.

Page 314: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

314

Em abril de

1979, os pais, passado

um mês de greve,

disseram que

continuariam

mobilizados, exigindo a

saída da diretora Luiza

Damasceno e do vice-

diretor Cleômenes Neres

da Costa. No dia 20,

chegaram de Cuiabá D.

Aparecida, representante

dos pais, o prefeito de

Luciara e o vereador

Manoel Gonçalves Cunha, os quais conversaram em Cuiabá com o Secretário de

Educação. Foi prometido na capital que, até o dia 30, mandariam uma comissão para

resolver o problema. Os pais, aproximadamente 350 pessoas, se reuniram e resolveram

esperar a vinda da comissão e que continuariam mantendo os filhos em casa.414

Contudo, no dia 1º de setembro ficou agendada uma reunião com todos os

representantes das duas escolas, visando solução para o caso. Já tinha muita gente

convidada, de modo que os professores da escola estadual não quiseram saber da

reunião. Diante dos impasses, no dia 4, um grupo de quase 100 pessoas – pais,

professores e alunos – foram à escola para conversar. Chegaram todos tranquilos,

pediram licença e entraram, conforme desenhou a Folha Alvorada em sua capa do mês

de outubro de 1979, com a Figura 31.

A finalidade era estabelecer um diálogo para se chegar à solução,

apimentando ainda mais a situação, logo no início da reunião o secretário Sabino disse

que a escola era do governo e que ninguém tinha o direito de ali se meter, enxotando-os

para fora. Cumpria, assim, um papel bastante conhecido pelas ações da ditadura militar,

onde o silenciamentos à democracia, considerando o sentido clássico da palavra, que é

regra.

414

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0. 65 p 03-10.

Page 315: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

315

Todavia, conflitos em

torno da gestão da escola não se

limitavam nos contornos de Santa

Terezinha, pois em Porto Alegre,

igualmente, o Prefeito de Luciara, além

de não atender às reivindicações das

famílias no compromisso assumido da

construção de um prédio para

funcionamento da escola, pois, a

edificação onde eram ministradas as

aulas se encontrava em estado

precário, a ponto de a comunidade

optar pelas aulas ministradas debaixo

dos pés de manga, pois, assim, além de

terem melhores acomodações,

poderiam tirar fotos e espalhar para as

autoridades. Igualmente decidiu que

uma comissão de pais iria a Luciara exigir respostas, chegando a pensar na possibilidade

de alugar um barracão para servir de escola.

Entretanto, nenhuma das alternativas, naquele ano, surtiu efeito positivo, ao

contrário, o Prefeito, em visita a Porto Alegre, em agosto de 1979, além de ignorar um

abaixo-assinado com 190 assinaturas, demitiu duas professoras e a diretora, mandou que

esta enviasse o [...] macho dela para acertar as contas. Além disso, segundo

testemunhos, anunciou que iria bater nela, ameaça que resultou em maior insatisfação

da comunidade, pois uma das professoras tinham cinco filhos. Tal episódio foi

registrado pelo povo em matéria e desenho publicados pela Folha Alvorada conforme

Figura 32.415

Inúmeras são as possibilidades de análise do contexto da invenção da escola

no Araguaia-Xingu mato-grossense, porém uma delas requer atenção especial, a

primeira é afirmar que, já na década de 1970, a educação escolar era realizada por

pessoas do gênero feminino, pois, como observado, a grande maioria do corpo docente

415

Ibid.

Page 316: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

316

era composto por mulheres, incluindo a diretora. Tal característica fez da educação

escolar, uma educação na diversidade, de gênero, partidos políticos, famílias com

origem distintas, pais engajados na defesa do coletivo e outros orgulhosos por serem

individualistas

Contudo, muitas outras perguntas haveriam de ser feitas sobre essa questão:

quais as razões que levaram as mulheres a assumir tais compromissos sociais? Para o

alcance a essas respostas e muitas outras, a temática está a merecer novas pesquisas.

Com o propósito de concluir o tópico, elegemos a fala de uma mãe sobre a

nova escola que havia sido construída e inaugurada na Lagoa, um aglomerado de casas

um pouco distante da beira do rio Araguaia, em São Félix do Araguaia, onde reafirma o

compromisso social dos professores para com a comunidade, bem como sua

importância na invenção da escola:

Ótimo, agora finalmente temos uma escola decente aqui, bem na

portinha de casa. Mas os nossos meninos e nós pais também

precisamos de uma coisa ainda mais importante: precisamos que quem

for dar aula aqui conosco, participe da nossa vida, no dia a dia. Não

importa quem seja, não importa que seja formado ou não, não importa

que seja branco ou meio escuro ou preto. O importante é que o

professor nos dê todo seu tempo, pois só assim pode se tornar amigo

nosso e dos nossos filhos. Afinal de contas, acrescentou outra pessoa,

o professor ou a professora tem escolhido uma profissão do serviço ao

Povo.416

No tópico a seguir, apresentaremos as bases teóricas que deram sustentação

às atividades desenvolvidas em torno da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense nas

primeiras décadas de existência.

3.12 - Fundamentos teóricos e metodológicos da invenção da escola no Araguaia-

Xingu: entre o projeto opressor e a educação popular

Conforme Fanon417

, o colono faz a história e sabe que a faz, pois, ao fazê-la,

o faz enquanto um prolongamento de sua realidade, e não da realidade local, da história

dos locais, concebendo, portanto, a história do país, da região que ele explora, portanto,

416

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Janeiro de 1978. A 16.0. 52 p

05-10. 417

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 32.

Page 317: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

317

a partir do seu ponto de vista, seguindo, assim, a trilha da história que dá sentido à sua

existência, e não à existência do oprimido.

A formação de consciência da escola inventada procurou distanciar da

atomização da cultura opressora, esse intelectual colonizado e atomizado pela cultura

colonialista, pois, ao longo da narrativa observou-se a resistência marcada pelas

reuniões, pelas decisões, pela organização dos sindicatos, enfim, pela união das famílias

em torno da escola.

Ao organizar os assuntos de cada um dos membros da comunidade, afirma

Fanon, não deixarão jamais de ser temática de todos, porque, concretamente, todos

serão descobertos pelos legionários e assassinados, ou todos se salvarão. Assim ocorreu

em relação ao episódio da derrubada da cadeia, a participação foi conjunta, e, quando

foram inquiridos pela polícia e solicitado para que subissem na carroceria do caminhão,

todos foram subindo, não deixando que encontrassem um bode expiatório.418

Ao que percebemos, ao longo do terceiro capítulo referente ao ensino de

história, pela atuação da Folha Alvorada, e alimentado por ela, a ação integrada escola x

comunidade, cujo objetivo, dentre outros, foi o de não deixar que o caminhar das

famílias de posseiros, peões e indígenas fosse realizado para que não imiscuíssem ou se

deixassem enredar pela maquinaria colonialista, tornando-se vítimas silenciosas de suas

redes, conforme alertou Fanon:

[...] o colonialismo não se contenta em apertar nas suas redes o povo,

em esvaziar o cérebro colonizado de qualquer forma e conteúdo. Por

uma espécie de perversão da lógica, orienta-se para o passado do povo

oprimido, distorce-o, desfigura-o, aniquila-o. Essa empresa de

desvalorização da história anterior à colonização adquire hoje a sua

significação dialética.419

Seguindo esse insight e a interpretação das fontes, procuramos apresentar a

ordenação das ações em torno da avaliação do corpo de profissionais que protagonizou

a invenção da escola no Araguaia-Xingu nas décadas de 1970 e 1980. No dia 17 de

janeiro de 1983, o bispo Pedro Casaldáliga registrou que haviam terminado as reuniões

de estudo “[...] com Beozzo, de evaluación y redistribución del personal, con todo el

equipo. Y la reunión representativa, con animadores del pueblo y algunos miembros del

418

Ibid., p. 26. 419

Ibid., p. 139.

Page 318: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

318

equipo pastora”.420

Naquele momento, a equipe se reduzia a 32 membros: os 11

atuavam na pastoral indigenista, alguns dos dez a longos anos de caminho e passaram a

trabalhar na administração e na educação nas novas gestões populares das cidades. Mas

que, no princípio daquele ano, a Igreja de São Félix do Araguaia não seria mais “[...] um

organismo de última instancia pastoral. El Pueblo, por los animadores de las

comunidades, asume de hecho El mando”.421

Na avaliação e na programação Pastoral global, “La asamblea del pueblo

seguirá siendo - y con mayor fuerza - un momento de encuentro mayoritario y hora de

legislación”. Já nas reuniões representativas, os animadores das comunidades e alguns

membros da equipe “[...] todos ellos elegidos - será la hora del balance y de la

programación táctica para la ejecución”.422

Ficou ainda decidido que haveria uma regionalização da prelazia, operada

de forma mais urgente e viável, assim dividida: Ribeirão/Cascalheira, Porto Alegre,

Santa Terezinha e São Félix, “[...] con los poblados y El sertão anexo, forman las 4

grandes regiones pastorales de nuestra pequeña Iglesia”.423

Ao ler seu diário, reforçou nossos argumentos de que havia uma ligação

direta entre a forma pela qual o líder religioso desenvolveu suas atividades por meio da

prelazia, um movimento dialético e integrado ao das escolas. Em 2010, em um rápido

diálogo com o bispo, em visita à sua residência, momento em que ainda não havia

decidido por fazer doutorado, tampouco pesquisar sobre a invenção-reinvenção da

escola no Araguaia-Xingu, disse-me ele que, no mesmo barracão onde era celebrada a

missa se realizavam aulas para crianças e adultos. Essa afirmação suscitou curiosidade,

que, com a pesquisa, serviu para completar o quebra-cabeças, cujas peças continuamos

a descobrir.

Portanto, ao observar suas anotações, percebemos que a integração não se

limitou à organização dos processos que, de forma democrática, seguiam seu ritmo,

mas, especialmente atento à realidade e necessidade de cada comunidade na construção

420

Trata-se do Padre José Oscar Beozzo, que, segundo Leonardo Boff, é um dos padres mais bem

preparados e inteligentes que a Igreja do Brasil possui. É teólogo, historiador, sociólogo, assessor de

Comunidades Eclesiais de Base. (HTTPS://leonardoboff.wordpress.com/2013/07/26/que-igreja-catolica-

temos-no-brasil-vista-pelo-historiador-j-o-beozzo/). Como observamos, esteve em janeiro de 1983

colaborando com os estudos da equipe da Prelazia de São Félix do Araguaia. 421

CASALDÁLIGA, Pedro. Em rebeld fidelidade. Diário de Pedro Casaldáliga. 1977-1983 Desclée de

Brower, Bilbao (España) s/d., p. 112. 422

Ibid. 423

Ibid.

Page 319: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

319

de uma igreja popular, de uma escola popular, de um governo popular, desvelando sua

visão de um mundo sonhado, diferente daquele vivido, sentido e sofrido, mas que, com

a metodologia da união com esperança e coragem, seria certamente transformado,

aproximando-se cada vez mais do sonhado.

O registro em seu diário apontou também para importantes tessituras

norteadoras do pensamento-ação de seus colaboradores. Para esse fim, veremos os

escritos de Pedro Casaldáliga:

Entre os dia 16 a 20 En Cuiabá, la capital de nuestro Mato Grosso,

celebramos, del 16 al 20 la asamblea del Cimi regional. Paulo Freire,

el maestro internacional de la educación popular, coordinó, sabio e

incisivo, nuestras discusiones sobre educación indígena versus

educación occidental.

Fue una ocasión propicia para rumiar conceptos y actitudes de una

educación liberadora. Daniel, el indio parecí, nos había entregado,

como introducción, un magnífico texto suyo: amarga experiencia,

afirmación de la propia prohibida identidad. Ni la sociedad ni la

Iglesia educaron al indio como índio.424

Para o Bispo, Paulo Freire foi importante orientador durante o encontro:

[...] el coraje de ser humildes reconociendo que siempre pisamos el

suelo indígena con pies de dominadores. Y otro consejo aún: nadie

estando aquí llega allí a no ser partiendo de aquí. El lugar social y

cultural -la voluntad de inculturación y de encarnación- marcan la

sinceridad de todo educador y de todo missioneiro.425

Encontrar registros anunciando a presença de Paulo Freire em Cuiabá,

especialmente para um diálogo em torno da educação indígena, em evento organizado

pelo Conselho Missionário Indigenista, não nos parece algo espetacular, não fosse o

momento em que se propunha, com muita ênfase, a tomada de decisão coletiva naquele

momento em que me parecia bastante forte o ideário de uma educação popular e

democrática naquele quadrilátero Araguaia-Xingu.

Assim, aventuramos afirmar que Pedro Casaldáliga se tornou, ao longo do

processo de resistência e luta pelo direito do povo, o intelectual colonizado, conforme

propôs Fanon, “[...] que situa a sua luta no plano da legitimidade, que quer apresentar

424

Ibid., p. 86 425

Ibid., p. 186

Page 320: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

320

provas, que aceita despir-se para exibir melhor a história do seu corpo, está condenado a

essa submersão nas entranhas do seu povo”.426

A subversão era revelada cotidianamente nas matérias e especialmente na

literatura poética produzida pelo povo que, ao ser publicada na Folha Alvorada,

contribuía para sua disseminação e, como já verificado, permeava o „ser‟ e o „fazer‟ do

ensino da história. Exemplo dessa luta pela memória pode ser percebida nas palavras do

poeta Ricardo Goulart:

Para o povo do Araguaia

Mesmo que haja

outras mil metralhas

serão migalhas

a nos oprimir

Mesmo que se imponha

toda mordaça

o dia da caça

haverá de vir

Ainda que de sangue

se suje a terra

teus filhos vivos

irão surgir

Mesmo que nos prendam

Ainda que nos matem

ainda assim voltaremos

e seremos milhões

e o sangue dos mortos

fertilizará o solo

para que todos o cultivem.

Ricardo Goulart (Porto Alegre-MT).427

No quarto e último capítulo da tese haveremos de elencar outras fontes

teóricas que serviram de base para a invenção da escola de educação básica e o fazer do

professor de história no Araguaia-Xingu. No presente tópico esquadrinhamos um pouco

do projeto de educação popular ali experimentado. No próximo, será explorado um

documento avaliativo dos dez anos do trabalho em educação naquela territorialidade.

426

FANON, Frantz. Op. cit., p. 140. 427

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Novembro de 1983. A 16.2.

01 p 16-18.

Page 321: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

321

3.13 - Avaliação da educação popular no Araguaia-Xingu mato-grossense

Recuperar a memória sobre o movimento de educação popular no Brasil se

faz importante, pois, a década de 1960 foi marcante por razões já bem conhecidas, ao

tempo em que acirrava o governo sob a sombria ditadura militar, arregimentando a luta

pela politização e conscientização da necessidade de superação do quadro de

analfabetismo, com as Campanhas de Alfabetização de Jovens e Adultos, aliadas à

expansão das escolas primárias. Surgem também os Movimentos de Cultura Popular,

apoiados ideologicamente pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).

Ideologicamente, esse instituto atuou na massa popular, mobilizada através da arte,

literatura, cinema, dentre outros.428

Porém, no campo da educação é que surge o educador pernambucano Paulo

Freire, propondo a teoria da Educação Libertadora no interior de uma inovadora

concepção de educação para o Brasil. Seus livros apresentam uma constatação da

realidade brasileira, sugerindo a conscientização do povo enquanto mecanismo de

libertação da opressão.

Seria uma educação para retirar do homem as explicações nuas e nítidas do

seu mundo. Para ele, o povo, ingênuo, despreparado e analfabeto passava a ser joguete

do irracionalismo. Constatou ainda o mesmo educador que o povo tem consciência

ingênua ou mágica, sendo necessário criar um processo educativo e problematizador, a

fim de fazer com que ele tenha uma consciência crítica. Portanto, a educação deve ser

um instrumento fundamental para o avanço da consciência, o qual levaria

posteriormente a uma ação transformadora.

A expressão educação popular surgiu no contexto da primeira República,

associada à instrução elementar que se buscava generalizar para toda a população,

mediante a implantação de escolas primárias, mas ganhou maior evidência quando este

foi retomado e disseminado pelo método freiriano:

[...] a expressão „educação popular‟ assume, então, o sentido de uma

educação do povo, pelo povo e para o povo, pretendendo-se superar o

sentido anterior, criticado como sendo uma educação das elites, dos

428

O ISEB, com a tomada do poder pelos militares através do golpe de 1964, foi fechado por ser acusado

de subversivo, assim como suas lideranças políticas, dentre outros Álvaro Vieira Pinto, Nelson Werneck

Sodré, Roland Corbusier, Cândido Mendes e Celso Furtado (ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História

da Educação. São Paulo: Moderna, 1996).

Page 322: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

322

grupos dirigentes e dominantes, para o povo, visando controla-lo,

manipulá-lo, ajustá-lo à ordem existente.429

Como toda transformação, especialmente a que propõe alterar a estrutura

social, seja na década de 1970, seja nas seguintes, a educação popular recebeu críticas

no sentido de colocar em cheque sua fundamentação, tendo por alvo as lideranças que

parametrizavam suas ações à orientação filosófica marxista e cristã. Apresentamos mais

um ponto de luta pela memória, qual seja, a tentativa de „vender‟ a imagem das

lideranças como populistas, paternalistas e, portanto, autoritárias.

A crítica desconsiderou que o movimento ganhou reconhecimento após a

„Campanha de pé no chão também se aprende a ler‟, desenvolvida no Rio Grande do

Norte, mais especificamente em Angicos, a qual resultou na alfabetização de 300

trabalhadores em 40 horas. Uma ação transformadora da realidade do povo pela

educação. Esse „modelo‟ ganhou respaldo nacional, pelo então Presidente da República

João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. A proposta entrava em rota de colisão

com os interesses do Programa MEC/USAID.430

Apresentadas as raias que delinearam a educação popular no Brasil e as

bases e os duelos travados contra a cultura opressora e, por conseguinte, contra os

opressores e seus mandatários, voltamos nossas lentes para as ações edificantes da

educação popular e democrática no Araguaia-Xingu mato-grossense. No início da

década de 1980, a equipe da prelazia foi instigada a avaliar o trabalho de dez anos de

educação. Por entender ser um documento importante, apresentamos na íntegra os

tópicos da avaliação:

Devemos nos perguntar seriamente:

a) Como temos encarado o trabalho de Educação Popular?

b) Esse trabalho tem levado a transformações? Em que nível? (Citar

situações concretas, responder com fatos)

c) Quais atitudes (atividades, trabalho) que tem mais provocado

verdadeiras transformações?

d) Quais os que não têm quase levado a isso? (*essa questão continua no

final, veja).

e) Nosso trabalho de educação corresponde às expectativas do povo? As

necessidades deles?

f) Como encarar daqui pra frente?

429

SAVIANI, Demerval. História das Ideias Pedagógicas. Campinas: Autores Associados, 2008, p. 317. 430

MEC USAID, já mencionado no tópico 3.6.2, trata-se da fusão das siglas Ministério da Educação

(MEC) e United States Agency for Internacional Development, cujo objetivo era aperfeiçoar o modelo

educacional brasileiro. (BEISIEGEL, Celso Rui. Política e Educação popular: teoria e prática de Paulo

Freire no Brasil. São Paulo: Ática, 1992).

Page 323: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

323

g) Avaliar também a metodologia de trabalho e o aspecto pedagógico.

h) Temos explorado bastante os recursos que temos?

i) Nosso trabalho não estará sendo segundo o modelo de uma sociedade

letrada? Baseada muito na leitura, nas longas discussões teóricas?

j) Analisar a real participação do pessoal em nossas atividades, inclusive

no planejamento, nos diferentes momentos:

1) Campanhas missionárias;

2) Educação oficial, sobretudo o ginásio;

3) Corte da educação oficial – fechamento do ginásio;

4) Educação oficial e outras formas de alfabetização, clubes, diretórios, grupos

de evangelho, conselhos, sindicatos, estudo de cartilha, assembleia do povo,

escolas alternativas.431

Observa-se que, ao tempo em que se construiu um roteiro a ser seguido para

que fosse possível avaliar o trabalho desenvolvido na educação escolar no Araguaia-

Xingu, seus idealizadores tinham um propósito pautado na memória das práticas

daquela invenção, mensurar o poder de transformação efetivado em torno da escola e

seus reflexos na vida da comunidade a que a escola pertencia. Porém, aquela avaliação

tinha um propósito de maior envergadura, o de observar se o coletivo não estava

reproduzindo as práticas de uma escola hegemônica burguesa. Além disso, focava ainda

em outras táticas a serem utilizadas para neutralizar a estratégia dos órgãos oficiais

alimentados pelo Estado, naquele momento ditador-opressor.432

Apresentamos o roteiro enquanto mecanismo de abertura de uma janela,

para o que possamos inaugurar novos olhares sobre a escola e o ensino de história na

escola de educação básica no Araguaia-Xingu, oferecendo lentes polidas e calibradas

para que, em se havendo o desejo de sua reinvenção, que seja na defesa da esperança,

tendo por alicerce de suas ações uma escola popular e democrática, dialogando com o

espírito do tempo e tomando a memória histórica como tática de resistência e

instrumento de luta.

De posse das informações e reflexões feitas ao longo do terceiro capítulo,

pode se afirmar que a invenção da escola no Araguaia-Xingu seguiu as pegadas e

marcou o solo fecundo da formação política, por meio da educação inventada pelo

431

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0. P. 1.2. Possivelmente o documento tenha

sido elaborado e utilizado no início da década de 1980. 432

Não se pode afirmar que o Estado opressor se limitou ao período de vigência do governo militar 1964-

1985, pois, mesmo em período de governo civil brasileiro, a educação no Brasil continuou sofrendo

interferências direta nas decisões sobre a educação básica, especialmente na condução acerca do

currículo, da formação dos professores, do regime salarial e oferta do ensino público às famílias de menor

poder aquisitivo no país - os pobres, pois, os filhos das famílias mais abastadas não eram matriculados na

escola pública. Contrariando a essa lógica, as Universidades Públicas continuam sendo privilegio dos

filhos das famílias abastadas, não por simples escolha, mas, por conta dos meios (controlados) do capital.

Page 324: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

324

povo, para o povo e com o povo liderado por grandes educadores, como Paulo Freire, a

quem os professores do Araguaia adotaram como líder e, ao alcance dos olhos, um dos

maiores educadores daquela região, tido como grande líder religioso, poeta e defensor

dos pobres – Pedro Casaldáliga.

Seguimos revelando as bases construídas para servir de sustentáculo para a

defesa do projeto de escola no Araguaia-Xingu, qual seja, a causa dos oprimidos, tendo

enquanto base e fortaleza, inegavelmente, a educação, passando pelos preceitos

conceituais do Projeto Inajá, pois, conforme apresentado ao longo da narrativa, o

projeto de escola ali concebido e praticado partiu de uma concepção de educação

enquanto resistência e luta pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária,

pautada numa educação popular, passando pelo INAJÁ e resultando nas Parceladas.433

Todavia, para entender esse processo haveremos de ampliar o raio da nossa

lupa, uma vez que a escola inventada no Araguaia-Xingu integrou um movimento

internacional, com códigos compartilhados por muitos educadores da América Latina, a

exemplo da historiadora argentina Maria Tereza Nidelcoff que, pautada em reflexões

pertinentes à educação libertária de Paulo Freire, produziu importante trabalho sobre a

escola em seu país.

Em sua obra Uma Escola para o povo, Nidelcoff inaugurou suas reflexões

perguntando o que somos e o que podemos ser dentro da sociedade? Deixamos que os

outros decidam por nós ou agimos criando a escola na qual acreditamos? Embora sua

análise tenha sido feita sobre a Argentina, sua mensagem alerta e serve de base para

todos os povos, visto cada qual enquanto parte de um país e onde se cumpre uma função

dentro dele. A mesma educadora chama atenção para o significado social e político de

nossas atitudes, as quais deverão sempre oferecer novos caminhos (métodos) e

conteúdos daquilo que ensinamos, pois estes nunca são neutros e expressam sempre

uma ideologia e uma cultura, em geral a da classe dominante.434

Para fins didáticos, sintetizamos a obra de Tereza Nidelcoff, apresentando

seus objetivos, conteúdos, metodologias e avaliação. Objetivamos, para o presente

433

No quarto e último capítulo apresentaremos o Projeto Inajá, as Parceladas e os resultados de uma

pesquisa aplicada aos professores atuantes na disciplina de história, objetivando entender sua visão sobre

a invenção da escola no Araguaia Xingu, bem como as práticas e desafios em ensinar história no século

XXI. 434

NIDELCOFF, Maria Teresa. Uma escola para o povo. [tradução: João Silvério Trevisan] 37. Ed. São

Paulo: Brasiliense, 1994.

Page 325: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

325

tópico abrir uma janela por meio da qual construiremos os debates do capítulo 4 da

presente tese.

A autora explora o fazer docente com o objetivo central de promover uma

visão crítica da realidade, auxiliando o professor-cidadão a desenvolver mecanismos

capazes de liberta-lo das estruturas opressivas da sociedade em que vive.

Tabela 9: Perfil dos objetivos dos professores

Professor-policial Professor-povo

Manter a disciplina do grupo e os alunos

obedecem sem questionar (repressão-

passividade)

Priorização do fator intelectual (bom

aluno é sinônimo de boas notas)

Cumprir sempre o ordenado (condena a

rebeldia e o espírito de luta, formando

seres dóceis)

Ajuda os alunos a enxergar a realidade com

lucidez e espírito crítico (interpretar os sentidos

dos fatos)

Ajudá-los a ser livres (dos preconceitos, dos

temores, das superstições, da ignorância, do

egoísmo, da timidez, da opressão, da miséria);

ser livre significa ser capaz de expressar-se e de

expressar seu mundo, significando também ser

capaz se agir e modificar esse mundo)

Ajuda-los a aprender e se organizar em união

(para conseguir um objetivo é importante que

aqueles que estão na mesma situação se unam e

se organizem)

Ajudar o aluno a ver a realidade de maneira

crítica Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.

As descrições do quadro comparativo, permite uma reflexão de fundo no

tocante às decisões a serem tomadas pelos professores e, em especial, pelos professores

de história, pois, conforme suas escolhas, este poderá, de maneira consciente ou não,

reproduzir práticas autoritárias, celetistas e reprodutivista, ao contrário de defender uma

educação escolar libertária e que provoque reflexões que despertem a si, mas também

aos seus aprendentes, o senso crítico, a consciência de seu papel na escola, na sociedade

e na história.

Tabela 10: Perfil dos conteúdos

Professor-policial Professor-povo

Universaliza a cultura burguesa (o

professor repreende a criança que usa

espontaneamente certos termos típicos de

seu meio)

Valoriza a cultura popular – a experiência –

(está aberto para captar as manifestações da

cultura popular e incentivar aquelas que sejam

mais ricas e libertadoras; valoriza as expressões

populares, a linguagem própria dos alunos;

desmitifica a cultura burguesa enquanto a única

correta, revelando a existência de diversas

Page 326: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

326

manifestações culturais)

Revisa os conteúdos ideológicos dos livros e

textos (dá um novo enfoque)

Preocupa-se com a funcionalidade dos

conteúdos (busca aquilo que é útil para a vida,

deixando de lado o que é inútil, ainda que seja

tradicional estuda-lo) Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.

Conforme observado acima, as escolhas feitas pelo professor de história

exigirá a seleção dos meios, e conteúdos a serem adotados como mecanismo de

condução do processo de acesso às informações e à produção e ou reprodução do

conhecimento, ao selecionar os materiais a serem apresentados pelo professor aos

aprendentes. Observamos que tais escolhas serão fundamentais na formação da pessoa

que aprende, possibilitando à mesma ampliar seus horizontes ou mantê-lo confinado a

uma visão medíocre da história, tornando-o subserviente e disciplinado pela cultura

opressora.

Tabela 11: Metodologia

Professor-policial Professor-povo

Autoritarismo (apenas o professor sabe e

ensina)

Sentido único de cima para baixo

Memorização

Dependência do professor (Exemplo: a

professora só tinha trabalhado algumas

letras com sua turma e em uma atividade

os alunos teriam que escrever algumas

palavras com as iniciais das letras

estudadas, um aluno já conhecia outras

letras e usou palavras com elas). A

professora disse que “não deveria usar as

palavras, porque ela ainda não tinha

ensinado”.

Disciplina (o aluno tem que acatar ordens)

Individualismo (o trabalho em grupo,

quando existe, não passa de mais uma

formalidade. As crianças não descobrem

porque trabalhar em grupo)

Não explorar as capacidades (não se exige

do aluno o máximo de suas possibilidades

e quando o aluno entrega um trabalho

regular ou mau não se pede que seja

refeito, para que os erros sejam superados)

Não existe auto avaliação (não existe

nenhum esforço de auto avaliação, de

modo que as crianças comecem a tomar

Partir sempre da observação e análise das

situações reais e concretas (captar bagagem que

os alunos trazem)

Valorizar o verdadeiro trabalho em grupo

(ensinar ao aluno que o grupo é uma unidade e

que nele todos devem participar de forma ativa

e organizada)

Disciplina não é um conjunto de normas que o

aluno deve obedecer (disciplina é aquela vivida

pela comunidade educativa, e se expressa nas

atitudes de seus membros, disciplina é sinônimo

de trabalho, diálogo e respeito mútuos)

Responsabiliza pela aprendizagem de cada

criança (sabe-se que cada aluno tem seu ritmo

de aprendizagem e o professor precisa respeitar

este andamento)

Explorar as capacidades de cada um (exigir o

máximo de rendimento, segundo a capacidade

de cada um, ensinar a fazer as coisas da melhor

maneira possível).

Page 327: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

327

consciência de seus progressos e das suas

dificuldades, as quais precisam vencer).

Forçam o ritmo (o importante é cumprir o

programa, avança-se de assunto em

assunto não sendo retomados quando

necessário for). Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.

A síntese da Tabela 11 permite refletir sobre uma problemática

historicamente presente no contexto da sala de aula das escolas públicas de educação

básica, a „indisciplina‟, como se doença fosse. Antes de ser tomada enquanto problema,

deve ser vista como sintoma de uma doença anterior, uma escola, um currículo e

práticas incapazes de abrir espaço para o diálogo.

Portanto, o alcance de respostas à inquietude do aprendente passa pelo

repensar o „modelo‟ de escola que alimentamos, dependendo da escolha dos meios, dos

conteúdos e estratégias de mediação e aprendizagem. Equivocadamente, apontam para a

necessidade de manter os corpos dóceis, e, quando isso não é suficiente, procuram

igualmente manter as mentes dóceis. A inquietude da mente é a dimensão primeira para

se construir comportamentos individuais e coletivos capazes de transformar a realidade

da vida das famílias brasileiras, mantidas no cativeiro social. Esta escola opressora não

serve para alimentar outros agentes sociais, senão a elite opressora.

Tabela 12: Avaliação

Professor-policial Professor-povo

Valoriza apenas os conhecimentos (leva

em conta o que o aluno conseguiu

memorizar)

Avaliação é considerada como um fim

em si mesma (no momento que a nota é

dada, tem-se impressão de que tudo

acabou).

Avalia enquanto educar, não como um

transmissor de informações (valoriza as atitudes

do aluno, sua dedicação, seu esmero, sua

responsabilidade, e não apenas a quantidade de

perguntas acertadas numa prova), pois a

avaliação não é fim, mas meio para alicerçar a

próxima etapa da aprendizagem, se determinada

dificuldade não for superada, é necessário

retomar o assunto.

Conduz o aluno e o grupo a uma perspectiva de

auto avaliação (em provas, colocar o valor de

cada questão para que o aluno possa calcular sua

própria nota).

Discutir com a turma os critérios a serem

considerados na avaliação das exposições orais

ou dos trabalhos escritos

Respeita o ritmo de cada um (respeitar o tempo

de aprendizado do aluno). Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.

Page 328: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

328

Quanto à relação estabelecida entre pais dos alunos, conforme observamos

na Tabela 12 sobre avaliação, cumpre a mesma importante papel no que se propôs no

projeto de uma escola popular, bem como para o campo das reflexões sobre a escola do

presente, a ser apresentada no próximo capítulo da tese, porém antecipamos algumas

pinceladas. Fala-se muito sobre a necessidade de cooperação entre pais e mestres na

prática, no entanto, tais relações estão, frequentemente, longe de serem coletivas, muito

menos harmônicas. Isso não significa que uma escola democrática não seja marcada por

conflitos, pois, como vimos no decorrer da narrativa, inúmeros foram os momentos de

discordância, porém, quando elas ocorreram de forma democrática, prevalece o

entendimento, e o alcance de respostas deve sempre ser obtida no coletivo, todavia, em

muitos casos prevaleceu a violência, característica de uma cultura opressora. Requer,

portanto, ao professor de história interpretar a realidade social e histórica.

Tabela 13: Representação sobre a escola

Professor-policial Professor-povo

Considera a escola apolítica (não se

percebe ou não se quer perceber as

ideologias opressoras embutidas em muitas

tarefas e „ritos escolares‟, na medida em

que o professor não trabalha para mudar,

ajudando os que querem conservar)

Não vê os pais como companheiros de

trabalho (mas como um inimigos que

atrapalham)

Sente que seu trabalho é um sacrifício e

não é reconhecido

Se sente injustiçado pela responsabilidade

do trabalho.

Tem ideias claras sobre a realidade.

Posiciona-se frente ao papel político da escola.

Sente-se integrante da realidade dos alunos

Têm definidos os valores morais, pessoais e

coletivos que aspira para a nova sociedade.

Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.

Concluímos o presente capítulo da tese com o sentimento de que muito

ficou a ser apresentado sobre a escola e o desafio do professor de história em seu fazer

docente, pois, dentre os campos de atuação-mediação-produção está seu papel político e

politizador. Igualmente permanecem por serem exploradas as dimensões do ensino de

história naquela escola, onde o litígio pela legitimidade do projeto militar e a busca pela

superação por meio de uma escola resistência, que, em certa medida, ganhou contornos

de uma invenção por meio de táticas de guerrilha, onde o conhecimento contribuiu para

Page 329: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

329

transformação da vida das famílias de posseiros, peões e indígenas vitimados pelo

projeto opressor empreendido pela neocolonização do Brasil pelo capital.

Também foi possível perceber, por meio do ensino de história na escola e

fora dela, uma ação engajada e ensejada por uma educação popular, conferindo

dimensões para se pensar uma fuga aos estereótipos e preconceitos nas representações

produzidas sobre a escola, sobre a disciplina história e seu papel na sociedade, cujas

dimensões servirão de picadas a serem abertas sobre a reinvenção da escola no século

XXI, a partir de cenas do próximo capítulo.

Page 330: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

330

CAPÍTULO 4

A RE-INVENÇÃO DA ESCOLA POPULAR E DEMOCRÁTICA NO

ARAGUAIA-XINGU MATO-GROSSENSE: CONTRIBUIÇÕES À

HISTÓRIA E O ‘SABER FAZER’ DO PROFESSOR NO SÉCULO

XXI

A educação popular tem-se constituído num paradigma teórico que

trata de codificar e descodificar os temas geradores das lutas

populares (....) trata de diminuir o impacto da crise social na pobreza,

e de dar voz à indignação (..) do pobre, do oprimido, do indígena, do

camponês, da mulher, do negro, do analfabeto e do trabalhador.435

Pensar a escola de educação básica popular e democrática requer entende-la

enquanto um mosaico de teorias e práticas concebidas na segunda metade do século XX

e espalhadas por todo o mundo, tendo como compromisso a emancipação humana. Ao

tomarmos a escola inventada no Araguaia-Xingu, nas primeiras décadas analisadas nos

capítulos anteriores, possibilitou-nos revelar as duas dimensões que apresenta a

epígrafe: a primeira, por ter servido a escola, e em especial o processo educacional,

como meio de empoderamento das famílias de posseiros, indígenas, peões e demais

categorias sociais na construção de uma plataforma de luta em busca por emancipação

individual e formação de consciência coletiva contra a opressão.

Porém, como apresentado no capítulo 3, a invenção da escola passou

igualmente pela revisão do currículo, meios e métodos, de forma a possibilitar e colocar

em questão a história oficial, dando novo alento à história ensinada, tencionando a luta

pela memória, descodificando e codificando novos modelos explicativos sobre os fatos

„contados‟ sobre o passado, tomando-os enquanto parâmetro para questionar as relações

historicamente construídas nas e pelas elites, cujo processo marcou profundamente a

435

GADOTTI, Moacir. Paulo Freire e educação popular. Revista trimestral de debate da FASE. Porto

Alegre, n, 113 s/d., p 21- 21. Possivelmente o artigo tenha sido publicado em 2007, pois, conforme o

autor, naquele ano eram lembrados os dez anos da morte de Paulo Freire. In.

http://formacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/paulo-freire-por-moacir-gadotti.pdf Acesso

em 20 de fevereiro de 2018.

Page 331: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

331

vida humana entre o Araguaia-Xingu mato-grossense, seja em relação à insegurança

quanto à permanência dos „posseiros‟ na terra, seja em relação à falta de acesso às

escolas, à saúde e aos demais direitos e garantias preconizados pela constituição, porém,

negados à maioria da população brasileira e em particular aquela espalhada no Brasil

Central.

Retomar o contexto revelando-o pelas „memórias‟ é ampliar a possibilidade

em transformar a sociedade por meio da educação. Portanto, entender esse projeto em

construção é reinventar a escola de educação básica do século XXI.

Como observado nos capítulos anteriores, a escola de educação básica no

Araguaia-Xingu não apresentou qualquer excentricidade que a desconectasse de seu

tempo, tampouco alcançou um „gran finale‟ que se esperava de um projeto concluso,

mas, inacabado, um projeto de escola popular e democrática que, mesmo sofrendo os

revezes do governo ditador, o qual procurou inviabilizar sua inclusão cidadã, por meio

da alfabetização.

Lembrando que, ao analfabeto, até 1985, era proibido o direito de votar, o

que alcançou relevância entre os escolares, na organização das comunidades e sua

permanência na terra, alimentados pelo sonho de uma sociedade mais justa e igualitária.

Igual perspectiva há de manter-se também presente na escola de educação básica neste

primeiro quinto do século XXI, pois, em tempos de comunicação nas nuvens, da

cibercultura, as hordas de excluídos são uma realidade.436

Assim, não é demasiado reafirmar que o movimento organizado pelas

lideranças locais, na perspectiva de assegurar acesso das famílias à escola localizadas

entre o Araguaia-Xingu, além de servir de atalaia de resistência, tornou a instituição

escolar em espaço de aprendizagens para a vida, estabelecendo uma rede de pessoas e

instituições organizadas em torno das escolas, dos clubes de mães, das lavadeiras, das

buchudas e dos sindicatos, preparando lideranças e orientando a participação popular

unida em torno de uma causa coletiva.

436

A cibercultura é um termo utilizado na definição dos agenciamentos sociais das comunidades no

espaço eletrônico virtual. Para Lévy (1999, p. 243-260), a cibercultura possui um regime social e cultural

próprio, caracterizado pelo fim dos monopólios públicos de expressão científica do conhecimento; pela

crescente variedade dos modos de expressão; pela massificação dos instrumentos de filtragem e

relativização de informações; pela multiplicação das comunidades virtuais e sua pressão sobre a

classificação do conhecimento.

Page 332: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

332

Retomadas algumas questões apresentadas nos capítulos anteriores e

revelada a dimensão cidadã do „ser alfabetizado‟ nas décadas de 1970 e 1980, ampliava-

se a quase 60% o número de pessoas com direito ao voto, assim como de votar se ser

votado. Buscaremos nos próximos tópicos desta narrativa continuar tecendo diálogo

com a literatura existente sobre educação e escola, possibilitadas pela pesquisa.437

Concluímos a apresentação do capítulo retomando a questão-chave da tese:

a construção de uma escola que servisse de anteparo aos pobres e arma contra as mais

variadas formas de violência praticadas pelo opressor cujo processo fomentou disputas

em campos opostos, entre opressores e oprimidos, sem ganhadores ou perdedores em

definitivo, pois, as peças do tabuleiro estavam, e ainda estão, diuturnamente sendo

mexidas.

Mas, no campo da educação escolar, as táticas se apresentaram exequíveis

pelas ações dos escolares no Araguaia-Xingu nas primeiras décadas de invenção de uma

escola popular e democrática. Nos tópicos a seguir, apresentaremos novos espaços de

luta inaugurados em defesa de uma educação „escolar pé no chão‟, cuja terminologia

está ligada diretamente ao projeto de escola de educação básica da década de 1960,

portanto, antecedendo ao governo militar pós-golpe de 1964.

Antes de discernir sobre tais questões, apresentamos outro campo de análise

que será abordado no presente capítulo, trata-se do resultado de uma pesquisa aplicada

aos professores atuantes na disciplina de história nas escolas dos municípios que

compõem o Norte Araguaia mato-grossense, espaço territorial delimitado e menor ao

inicialmente recortado, pois, atualmente, os municípios do Araguaia-Xingu, do ponto de

vista da educação, dividido em três jurisdições denominadas pela Secretaria de Estado

de Educação como polos educacionais.

Um primeiro polo é capitaneado pelo Centro de Formação dos Profissionais

de Educação – CEFAPRO de Barra do Garças, o segundo é o polo de São Félix do

Araguaia e o terceiro de Confresa438

. Tal recorte serviu de parâmetro para aplicação do

437

No Brasil, segundo estatísticas, havia quase 16 milhões de pessoas impedidas de ser eleitor por não

serem alfabetizadas. Segundo o IBGE, senso de 1970, o percentual de analfabetos estava assim

distribuído: 15 anos ou mais - 33,6%; 15 a 19 - 24,3%; 20 a 24 - 26,5%; 25 a 29 - 29,9%; 30 a 39 -

32,9%; 40 a 49 - 38,5%; 50 anos ou mais 48,4%. Portanto, a metade daqueles em idade superior a 50 anos

não tinham qualquer experiência de votar e tampouco ser votado. 438

Os Centros de Formação criados totalizavam 13 unidades, pela Lei n. 8.405, de 27 de dezembro de

2005, e ampliados para 15, através da Lei n. 9.072, de 24 de dezembro de 2008, sendo que as ações de

Page 333: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

333

questionário que, por razões já explicitadas durante os primeiros capítulos da tese,

quando as fontes, especialmente a Folha Alvorada, nos oportunizou ricamente visitar a

invenção da escola, porém, limitados aos municípios do baixo Araguaia-Xingu439

.

Elaboramos o questionário buscando entender os dilemas do professor de história

atuante nas escolas de educação básica desse espaço do Brasil Central. Assim,

apresentaremos o resultado de uma pesquisa aplicada a 18 professores, na perspectiva

de entender seus dilemas, o tipo e natureza da história ensinada e como foi sua

expectativa sobre a escola 2030, a escola do futuro.

Inicialmente, o formulário foi enviado via web, cujo link possibilitou acesso

às 20 questões, sendo 17 abertas e 3 de múltipla escolha. O objetivo era atingir, no

mínimo, 50 (cinquenta) profissionais. Todavia, com o passar dos meses, mesmo

ocorrendo várias tentativas de mobilização de gestores dos CEFAPROS e não obtenção

de respostas, visitamos pessoalmente algumas das escolas. Igualmente, nos valemos de

uma rede de pessoas com as quais havíamos compartilhado experiência em Santa

Terezinha, forma pela qual conseguimos que 18 colaboradores contribuíssem com nosso

trabalho.

formação em tecnologia foram normatizadas pela portaria n. 112/08, com a criação da Coordenadoria de

Formação em Tecnologia Educacional. 439

Embora tivéssemos maior volume de dados referente aos municípios que hoje compõem os polos de

São Félix do Araguaia e Confresa, enviamos o link do formulário para os gestores do CEFAPRO de Barra

do Garças, para que eles, igualmente, enviassem às escolas, pedindo aos professores que os

respondessem. Todavia, assim como nos CEFAPROS de São Félix e Confresa, não foram obtidas

respostas. Embora não seja nosso propósito na presente tese, mensurar a eficiência comunicacional e

„credibilidade‟ organizacional das Agências Formadoras, nesses últimos cinco anos, foi possível observar

certo distanciamento entre elas e a escola. Digo nos últimos cinco anos, pois, atuamos como Coordenador

de Formação em Tecnologia Educacional da SEDUC, organizamos a gestão da formação dos

profissionais em todo o estado de Mato Grosso, entre 2008 a 2015. Como coordenador, não tive

dificuldade em fazer chegar comunicação às escolas, tampouco havia dificuldade de se obter respostas,

embora elas pudessem demorar. Outra hipótese é a de que nos últimos anos foi vivenciado certo

descontentamento no interior da escola, fazendo com que os profissionais da educação deixassem de

acreditar numa escola em que o diálogo, a cooperação e a ajuda mútua fossem capazes de alimentar uma

educação para a liberdade. Assim, os profissionais se limitaram a „cumprir‟ o contrato no quadrilátero

„sala de aula‟, enquanto único espaço de „poder‟ onde tinham autonomia incondicional, embora esta seja

uma tentativa do poder „opressor‟, em querer patrulhar o fazer do professor de história com a tal „escola

sem partido‟, ou „ideologia de gênero‟. Uso o termo limite se deveu ao fato de que o tempo „horas

atividades‟ do professor foi liberado para que este participasse do projeto de formação continuada da sala

do educador, porém, durante os anos em que permanecemos à frente da Coordenadoria na

Superintendência de Formação dos Profissionais da Educação, nenhum curso foi construído pensando na

formação continuada do professor de história, distanciando-o, assim, do contexto e da possibilidade de

construir um projeto de escola integrada à comunidade, sem os „sentidos históricos‟ pautados na

memória, na formação da identidade e nas tão esperadas práticas de liberdade da escola de educação

básica.

Page 334: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

334

Assim, ao tempo em que descrevo as estratégias adotadas para a consecução

das respostas, revelo que o acesso à rede mundial de pessoas interligadas por meio dos

computadores e dispositivo móvel, na região do Araguaia-Xingu ainda é limitado pela

qualidade do sinal de Internet, permanecendo, portanto, excluídas do acesso aos

infinitos recursos Web.

Não podendo contar com as respostas via formulário online, tivemos de nos

valer dos formulários impressos, visto que muitos desistiram de responder após algumas

tentativas, uma vez que, antes de concluir, o sinal caia, exigindo recomeçar o processo,

prejudicando, assim, o plano inicialmente traçado.440

No campo da hipótese, aventuramos pensar que, em virtude do vasto acesso

à tecnologia livro didático, aos computadores conectados à web, e à existência dos 15

(quinze) Centros de Formação dos Profissionais da Educação existentes em Mato

Grosso, dos quais 3 (três) estão no Araguaia-Xingu, e já que a função das agências

formadoras era o de melhor qualificar o profissional para responder às demandas

apresentadas pelo cotidiano escolar, e por fim, considerando a experiência dos

profissionais no tocante à formação continuada experimentada no âmbito da educação

básica no Brasil Central mato-grossense, o cenário nos parecida bastante promissor,

pois, embora a formação inicial ainda não consiga dar conta de respostas a essa

problemática, qual seja, preparar o profissional para uso dos recursos tecnológicos nas

práticas docentes, a formação continuada seria (e é) importante alternativa:

A formação inicial, por melhor que seja, não dá conta de colocar o

professor à altura de responder, através de seu trabalho, às novas

necessidades que lhes são exigidas para melhorar a qualidade social da

escolarização [...] pesquisas têm apontado para a importância do

investimento no desenvolvimento profissional dos professores [...]441

Ainda sobre a criação dos Centros de Formação dos Profissionais da

Educação, enquanto política pública, requer observar que essa agência é formada por

profissionais de carreira, dentre eles se destacam especialistas, mestres e doutores que,

440

Para aplicação e recolhimento tive apoio fundamental de Neusivania S. Luz, que não mediu esforços

para contribuir com a obtenção das formulários preenchidos, a quem agradeço. 441

LIBÂNEO, José Carlos. Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do pensamento

pedagógico brasileiro? In: PIMENTA, Selma Garrido e GHEDIN, Evandro. (Orgs.) Professor reflexivo

no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.

Page 335: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

335

para atuar como gestores ou formadores passam por um teste seletivo, momento em que

é avaliado por meio de prova teórica e aula prática.

Em cada uma das quinze agências, até 2014, os professores formadores

eram distribuídos por área de conhecimento (Ciências Humanas e Sociais, Ciências da

Natureza e Matemática, Linguagens e Diversidades – campo, quilombola, indígena e

tecnologias educacionais). Cabe afirmar que os antigos Núcleos de Tecnologias

Estaduais (NTE) cederam espaço para os CEFAPROS, portanto, havia professores

formadores em tecnologia educacional e técnicos formadores antes dos demais

profissionais. Porém, por razões que fogem ao nosso conhecimento, foram eliminados

os cargos destinados às diversidades educacionais, incluindo os professores formadores

em tecnologia educacional.

Igualmente, requer observar que a Superintendência de Formação dos

Profissionais da Educação e suas respectivas coordenadorias de Formação e Avaliação,

de Gestão e de Tecnologia Educacional, até 2014, construíam, junto com os gestores

dos CEFAPROS, os orientativos de formação. Os de 2007, assim como outros que se

sucederam, a definição de sala do educador, que até aquele momento era denominada de

sala de Professor, ganhou nova dimensão, espaço que pudemos contribuir pessoal e

diretamente, cuja definição apresentamos a seguir:

A formação continuada via Projeto Sala de Professor se coloca no

contexto das novas tendências do pensamento em Educação, isso

porque os professores estarão sendo mobilizados para refletir sobre

sua ação pedagógica, tornando-se protagonista do processo de

mudança da pratica educativa.442

442

MATO GROSSO, SEDUC\SUFP, 2007, p. 5. O Projeto Sala de Professor tem como objetivo

promover a formação continuada dos profissionais da educação no lócus da escola. Todas as unidades da

rede pública estadual escrevem o seu projeto de formação continuada fundamentado nas necessidades

formativas de seu corpo docente. A carga horária mínima é de oitenta (80) horas anuais. O cronograma

dos encontros é estabelecido pela escola em conjunto com o professor formador do CEFAPRO, o qual

acompanha o projeto de formação da escola. Cabe observar que, mesmo tardio, a escola e a própria

Secretaria de Estado de Educação reconheceram que a Escola não deveria deixar os demais profissionais

da educação na invisibilidade, pois, desde 1998, a legislação já alertava para essa questão. Referimo-nos à

Lei Complementar n. 50/1998 (Art. 2º), a qual define os Profissionais da Educação Básica enquanto

o conjunto de professores que exercem atividades de docência ou oferecem suporte pedagógico direto a

tais atividades, incluídas as de coordenação, assessoramento pedagógico e de direção escolar

e funcionários Técnico-Administrativo Educacional e Apoio Administrativo Educacional,

desempenhando atividade nas unidades escolares e na administração central do Sistema Público

de Educação Básica.

Page 336: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

336

Uma vez criado para garantir a formação continuada aos profissionais da

educação em serviço, por meio do Projeto Sala do Educador, conforme orientativos da

SEDUC de 2010, o projeto tem por finalidade:

[...] criar espaço de formação, de reflexão, de inovações, de

colaboração, de afetividade etc., para que os profissionais docentes e

funcionários possam de modo coletivo, tecer redes de informações,

conhecimentos valores e saberes apoiados por um diálogo

permanente, tornando-se protagonista do processo de mudanças da sua

prática educativa.443

Esperava-se que os professores de história pudessem, em sua área específica

de conhecimento, atentar para a necessidade de adotar por prática a história de Mato

Grosso, de forma a inovar o currículo, partindo da realidade e contribuindo, assim, para

que a escola de educação básica se tornasse cada vez mais popular e democrática.

Somado a isso as emergentes tecnologias de comunicação se tornaram neste

início de século recurso em potencial, capaz de dinamizar a informação em múltiplas

plataformas transformando em recursividade ao professor inovar suas práticas, e, com

acesso a web, ampliaria seus horizonte em relação à história ensinada, pois, por meio

dessa ferramenta, a falta de informação jamais impossibilitaria o professor de exercer

uma boa mediação de pesquisa, bem como projetar a escola do futuro (2030).

Todo esse processo contribuiria para que o professor desvelasse as

memórias silenciadas nas páginas dos livros didáticos e os discursos de mão única

anunciados sobre os fatos. Eis o propósito dos dois últimos tópicos do presente capítulo,

momento em que apresentaremos as respostas obtidas por meio da pesquisa. Por hora,

seguimos revelando nuances da escola popular e democrática.

Antecipamos que, por se tratar de uma região composta por pesquisadores e

seus projetos, inventaram eles, à sua maneira, formas de explicar a escola, todavia,

nenhum trabalho a que tivemos acesso preocupou-se em revelar a escola popular e

democrática projetada e edificada no Brasil Central. O maior número de publicações

443

MATO GROSSO, Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, Secretaria adjunta de políticas

Educacionais, superintendência de Formação dos Profissionais da educação básica, Orientativo. 2010.

Cuiabá: SEDUC, p. 23-24. 2015. Usamos o orientativo de 2015 pois, com a mudança de governo os

procedimentos de orientação da formação continuada nos CEFAPROS passou por mudanças radicais,

especialmente no sentido de acabar com as funções dos formadores para a diversidade e tecnologias

educacionais.

Page 337: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

337

sobre a educação é decorrente do Projeto INAJÁ, uma espécie de invenção da invenção,

que haveremos de tratar nos tópicos a seguir.

4.1 – INAJÁ – a mais elaborada invenção da escola popular para a formação de

professores.

Ao usar a expressão invenção da invenção, aponto para uma questão em

especial, a forma pela qual algumas pesquisas, ao tratar do INAJÁ, tomaram-no como

ponto de partida e de chegada, cujos trabalhos, por conta da baliza temporal e do recorte

do objeto, revelaram feitios importantes sobre os aspectos sócio antropológicos e

culturais do grupo, bem como a produção de uma metodologia inovadora para o país, no

tocante à formação de professores, incluindo também o arrolamento das dificuldades e

especialmente das conquistas, tanto dos alunos matriculados no curso quanto dos

professores da UNICAMP. Todavia, no campo do não dito, sepultaram algumas

reflexões, as quais elencamos a seguir.444

Dentre os trabalhos que tiveram por tema o INAJÁ, o mais importante deles

foi o que resultou na tese de doutoramento, defendida em 1992, por Dulce Pompeu de

Camargo, por se tratar de riquíssima pesquisa, e que servirá de parâmetro para nossos

diálogos.

A narrativa de Dulce Pompeu possibilita-nos entender, com profundidade, o

que foi, do ponto de vista da proposta, o perfil dos cursistas e as metodologias adotadas

no INAJÁ, porém, alguns aspectos fugiram aos olhos da pesquisadora: o primeiro se

deve ao fato de a mesma não reconhecer o INAJÁ enquanto proposta educacional,

integrando uma sequência de ações em defesa de uma escola que contribuísse na

libertação das famílias do julgo do opressor. Segundo, por tomar como marco inaugural

a iniciativa do governo local, conforme registrou:

444

A maioria dos trabalhos sobre a educação no Araguaia tomam os escritos de Dulce Pompeu de

Camargo por referência. Embora o mesmo seja primoroso e inaugural, do ponto de vista da pesquisa e

metodologia, com rigor temporal de 1987-1990, alcançando seu propósito em pesquisar a relevância do

curso, ele silenciou outros atores e suas memórias, com as quais ampliamos em nossos diálogos com a

fonte. Para saber mais, vd. CAMARGO. Dulce P. Mundos Entrecruzados: formação de professores leigos

no Médio Araguaia. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação. Unicamp, 1992.

Campinas, SP: Alínea, 1997.

Page 338: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

338

[...] a partir de entrevistas com a coordenadora do Projeto na

UNICAMP, professora Marineuza Gazzetta, com a coordenadora do

Núcleo de Santa Terezinha, Dagmar Gatti, na literatura sobre a

questão da terra e Relatório final do Projeto elaborado pelos

coordenadores, 1990445

. Afirma a pesquisadora e colabora direta a

projeto que o Projeto Inajá se originou de movimentos educacionais

locais desencadeados por iniciativa de um grupo de pessoas

provenientes da região, como também, do sul e sudeste do país.446

Embora os governos populares fossem uma realidade naquele contexto, tais

decisões inviabilizariam sua continuidade, pois, logo em seguida, em decorrência dos

revezes sofridos pelas gestões populares na eleição de 1989, os partidos de direita

retomaram as prefeituras importantes, a exemplo de São Félix do Araguaia.

O terceiro se ancora no fato de não ter contextualizado sua metodologia no

conjunto de ações oriundas do movimento em torno da escola popular, iniciado na

década de 1970 no Araguaia-Xingu mato-grossense, e, mesmo durante o

recrudescimento da ditadura militar, o bispo Pedro Casaldáliga e sua rede de

sociabilidades não desistiram de lutar pelo direito de acesso à educação. Igualmente

deixou de mencionar outros atores envolvidos no processo, como observou Dagmar

Aparecida Gatti:

Neste processo de formação e discussão de educação na região, com a

assessoria de professores da universidade de Campinas SP,

UNICAMP, tais como: Marineuza Gazetta, Marcio D`olne Campos,

Eduardo Sebastianni e Ubiratan D‟Ambrósio, envolvidos no projeto de

ensino de ciências e matemática nos contextos urbano, rural e indígena é

que desencadeou a construção de um projeto de formação/habilitação

para os professores, quase todos leigos e com formação aquém do

fundamental. [...] A experiência dos professores e orientadores do

curso de formação resultou na produção de uma cartilha: ESTOU

LENDO. [...] A prática em debater os problemas de ordem política,

social, econômica, cultura e religiosa já fazia pare do cotidiano das

escolas, o que direcionada as preocupações dos professores para

atuarem sobre os problemas vivenciados pela comunidade. [...] Tinha

também os passeios com as mães, crianças e maridos nas beiras de

rios e lagos uma vez a cada mês onde se divertia e fazia troca de

comidas entre todos. Todo esse trabalho era permeado pelo trabalho

das escolas que tinham em seus alunos e professores os motivadores, o

que facilitava a articulação da experiência dos alunos e da comunidade

no trabalho pedagógico da escola.447

445445

Esse relatório final se refere ao 1º versão do projeto. 446

CAMARGO. Dulce P. Op. cit., p. 44. 447

GATTI, Dagmar Aparecida Teodoro. O Inajá e a materialização de um projeto sócio educacional em

Mato Grosso (1980-1997). Confresa MT. Monografia (Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais) –

UNEMAT. 2016, p. 22-28. Tive o prazer em participar da banca como arguidor do trabalho desenvolvido

Page 339: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

339

Sobre o contexto político, especialmente em relação ao enfraquecimento do

governo militar e a ampliação do descontentamento da população e sua organização em

torno dos sindicatos, as greves, o movimento pelo voto direto, afirmou Gatti:

[...] aqui na região o processo também avançava como resultado da

luta travada entre agentes sociais e do avanço de organização de

grupos como da educação, sindicato de trabalhadores rurais, clubes de

mães, associações, professores articulados pós-curso de formação. (...)

influenciou também o debate político nos municípios da região, pelos

grupos ligados aos partidos que, em Mato Grosso e na região

representava a „esquerda‟, com uma característica denominada na

época como mais „revolucionária‟, movida pelo „movimento popular‟,

chamada de Corrente Popular, uma ala do PMDB, existente somente

na região.448

Já em relação à aproximação da Secretaria de Estado de Educação, na

consolidação do projeto INAJÁ, Dagmar considerou:

Neste contexto, já tínhamos contato com a SEDUC através da

Professora Dineva Vanuzi, que era técnica da secretaria estadual e era

freira ligada a igreja do Rosário em Cuiabá e já havia trabalhado

conosco no curso de férias de São Félix do Araguaia. Os secretários

citados convidaram a professora Dineva para vir a uma reunião para

discutirmos assuntos da educação de interesses destes municípios com

apoio da SEDUC e neste encontro discutimos as estratégias de como

seria possível avançarmos para realizar o compromisso firmado ao

término do curso de férias de São Félix do Araguaia, que era o curso

de magistério para os professores em exercício.449

Sob o ponto de vista técnico e apoio político, Dagmar a mesma autora

asseverou que:

[...] a técnica Dineva ficou responsável pela fundamentação legal do

curso e, em 1986, sendo eleito Carlos Bezerra, pelo PMDB, a

governador do estado de Mato Grosso, com votação expressiva na

pela autora. Durante o processo de pesquisa, atuei como colaborador do trabalho, momento em que tive

acesso às memórias de que dispõem uma das principais autoras do Inajá, uma vez ter sido a Dagmar

protagonistas deste curso, bem como me foi possibilitado acesso aos arquivos da Prelazia. Ao longo da

pesquisa e durante quase dois anos em parceria, pudemos desenvolver, na rede municipal de Santa

Terezinha, uma ação de formação continuada, com foco nos projetos de aprendizagem, recuperando, de

certa forma, o desenvolvimento de trabalhos educacionais voltados a atender as necessidades da

comunidade escolar. 448

Ibid., p. 32-34. O curso em questão era o de férias, iniciado em 1978, tratado na tese por meio da

poesia do Poeta Diá, no tópico 2.3 do segundo capítulo. 449

Ibid., p. 34.

Page 340: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

340

região do Araguaia-Xingu, e tendo a Professora Serys Marli

Slhessarenko, conforme Dagmar, logo que tomou posse, fizemos o

compromisso com ela, pois, os secretários da região contribuíam para

que ela fosse conduzida ao cargo.450

No afã de melhor entender o INAJÁ enquanto uma invenção do projeto de

escola popular e democrática, foram obtidas informações retiradas da Folha Alvorada,

com o propósito de entender como o curso foi divulgado para as comunidades da região,

encontradas na edição de número 142, que circulou em janeiro e fevereiro de 1988.

Trata-se de uma matéria objetiva e bastante esclarecedora quanto ao que estava

acontecendo no curso de formação do INAJÁ, especialmente nos municípios de São

Félix e Santa Terezinha:

Um curso de formação de professores. É o projeto INAJA, que tem a

finalidade de habilitar, em nível de Magistério, os professores leigos

que dão aula no sertão e que não tiveram ate agora a chance de

estudar e de se formar.

Participam desse projeto mais de 150 professores dos municípios de

São Félix, Canarana, Santa Terezinha e Porto Alegre do Norte. O

curso vai durar 3 anos, com 6 etapas a serem realizadas nos meses de

janeiro e julho de cada ano.

O Projeto é um convênio das quatro prefeituras com a UNICAMP

(Universidade de Campinas – SP), a Secretaria de Estado de

Educação e FUNABEM. O importante do INAJA (nome de um

coqueiro da região) é que ele traz uma proposta diferente para a

Educação: o conhecimento é retirado da realidade social, política e

econômica em que estão inseridos os alunos. Todos os professores

pesquisam o lugar onde moram e esses dados são analisados,

organizados e transformados em módulos de estudo. A título de

exemplo: a matemática o aluno aprende a partir do plantio do milho:

medida da terra a ser usada, quantidade de grãos necessários para o

plantio, quanto será a produção por quantidade de terra plantada etc.

assim será feito com todas as matérias.

Agora é torcer para que a proposta continue na prática e, quem sabe,

o INAJÁ consiga despertar os responsáveis pela política educacional

para que adapte a educação escolar às verdadeiras necessidades do

povo!451

Ao informar sobre o encontro de formação de professores, reforçava suas

bases epistemológicas da educação popular e democrática, tendo por base um currículo

de formação assentado na realidade local, ao tempo em que desafiava os professores da

UNICAMP, universidade parceira, para desenvolver uma formação diferenciada,

450

Ibid. 451

Alvorada (1988), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1988. A 16.7.01 p.6.8. Sem

grifos no original.

Page 341: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

341

inaugurando um novo campo de debate na educação, uma formação que preparasse os

professores para, uma vez conhecedores das problemáticas local, contribuíssem para a

superação das fragilidades, atendendo às verdadeiras necessidades do povo, conforme

conclui a matéria. Assim, encerramos o tópico com a assertiva de que o INAJÁ, antes

de produzir frutos, sustentou-se em raízes profundas dimensionadas pelo projeto de

escola popular e democrática, naqueles sertões do Araguaia-Xingu.

Por uma questão didática, apresentamos a seguir uma sequência de mapas

extraídos do relatório final do INAJÁ que, de certo, contribuirá para entender melhor as

escolas as quais viemos apresentando parte de seu cotidiano, forma pela qual se

constituiu uma rede ligando ponto-a-ponto o sertão e as cidades do Araguaia-Xingu

mato-grossense nas primeiras duas décadas de existência, já que o relatório foi redigido

em 1991, por ocasião da conclusão da primeira oferta do curso.452

452

O Relatório Final foi redigido como documento emitido pela Secretaria de Estado de Educação e

Cultura, Coordenadoria de Educação Supletiva – CESU, Projeto INAJA – curso de habilitação,

modalidade – Suplência profissionalizante. O documento foi assinado por Judite Gonçalves de

Albuquerque, Dagmar Aparecida Teodoro Gatti, Roberto Alves de Almeida e Luís Carlos Pereira Paiva.

Contou ainda com a Assessoria de Marineuza Gazzeta no ano de 1991. O Secretário de Estado de

Educação e Cultura, Valter Albano da Silva prefaciou o relatório. (MATO GROSSO). SEDUC, 1991.

Relatório Final Projeto Inajá. 1991.

Page 342: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

342

Page 343: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

343

Apresentados os „lugares‟ onde foram edificadas as escolas de educação

básica entre os rios Araguaia-Xingu, continuamos a narrativa elencando aspectos

conexões que possibilitem o amálgama Escola Popular e Democrática – INAJÁ – e as

PARCELADAS.

Page 344: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

344

4.2 – INAJÁ fruto cuja semente não germinou no cacho, mas em raízes profundas em

solo regado de conhecimento, de inovação, de resistência e esperança

Problematizar as narrativas produzidas sobre o INAJÁ não tem por

pretensão de negar sua importância no conjunto de ações desencadeadas pelas

lideranças locais, tampouco menosprezar a relevância dos „de fora‟ que, desafiados a

compartilhar daquele projeto – a invenção da escola no Araguaia-Xingu, enquanto

prática de resistência, contribuiu para a difusão do projeto maior a que estava inserido -

a educação popular e democrática. Nosso objetivo é abrir diálogo sobre este projeto,

buscando reafirmá-lo como uma importante etapa da invenção da escola popular e

democrática naquele contexto.

No presente tópico, haveremos de retomar os pilares que deram sustentação

à escola popular e democrática implantada no Araguaia-Xingu mato-grossense, porém,

lançamos algumas questões de base: como avaliar a concepção de um projeto de escola

senão a partir de um diagnóstico sobre a realidade social proposto para sua edificação?

Como afiançar se este ou aquele projeto alcançou os resultados esperados, senão a partir

de um longo processo de pesquisa, procurando evidências que possibilitem tais

afirmativas?

Para entender o 1º Projeto de Formação de Professores Leigos em Ensino

Médio no Brasil – o INAJÁ, se faz igualmente importante quanto descrevê-lo enquanto

processo e resultado obtido com a formação dos profissionais por ele atendidos nas duas

ofertas (1987-1990) e (1993-1995), é compreender seus antecedentes, o conjunto de

valores que emolduraram seu planejamento, tomando o contexto político da educação

nacional, as políticas do magistério, as redes de sociabilidades que se formaram em

torno da busca por respostas aos problemas daquele contexto, especialmente a

problemática maior entre as famílias „assentadas‟ no Araguaia-Xingu mato-grossense,

onde o analfabetismo se configurava enquanto fragilidade a ser superada, pois, do

contrário, não passaria de mera especulação e oportunismo.

Assim, para cumprir tal desiderato, convido o leitor a visitar a comunidade

de Serra Nova, em 1971, hoje município de Serra Nova Dourada, explorando uma

imagem publicada na revista Nova Escola, sobre o trabalho do professor Antônio Carlos

Moura Ferreira:

Page 345: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

345

Estava o agente da pastoral, professor Antônio Carlos Moura Ferreira,

dando continuidade à missão a ele atribuída, qual seja, a de atender, durante as

campanhas missionárias, a alfabetização dos adultos, anunciada no início daquele ano

de 1971 e publicada pela Folha Alvorada.453

Assim, aquela proposta educativa era fruto

de um engajamento no projeto de educação popular, cuja ação esteve filiada e

fundamentada à dureza dos fatos, qual seja, a de disseminar o conhecimento – leitura de

mundo associada ao importante domínio da leitura da palavra.

Tais dimensões de educação popular, certamente, estiveram presentes desde

os primeiros anos da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense, tal que, em fevereiro de

1972, conforme registro do Bispo Pedro Casaldáliga, foi ministrado um curso de visão

global e programação do trabalho da prelazia, conduzido por Maria Nilde Mascellani,

chamada de ilustre pedagoga.454

453

Alvorada (1971), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1971. A 16.0.07 p 1-06. O

professor Antônio Carlos Moura foi agente pastoral, graduou-se em jornalismo pela Universidade de São

Paulo, em 1977, foi candidato a vice-prefeito de Goiânia, pelo Partido dos Trabalhadores, em 1985,

elegeu-se deputado Estadual na 11ª Legislatura, 1987-1991, Deputado Suplente na 12º Legislatura, 1991-

1995, assumindo a cadeira em 1994. Tornou-se correspondente dos jornais “O Estado de São Paulo” e “O

movimento” e mudou-se para Goiás, em meados da década de 1970. Entre outras funções, exerceu a de

assessor de imprensa da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Universidade Católica de Goiás e da

Arquidiocese de Goiânia. Defensor das lutas populares: indígenas, negra e camponesa. Publicou a obra “A

Igreja dos Oprimidos” (São Paulo: Brasil Debate, 1981), Coautor de “Saber da vida”, 1997. Traduziu

para o português alguns livros de Dom Pedro Casaldáliga: “Creio na Justiça e na Esperança”. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1986; “Nicarágua: combate e profecia”. Petrópolis: Vozes, 1986; “Na

procura do Reino: antologia de textos – 1968-1988”. São Paulo: FTD, 1986. Faleceu em 28 de abril de

2000. In. https://portal.al.go.leg.br/deputado/perfil/deputado/1545 acesso em 25 de fevereiro de 2018. 454

Maria Nilde Mascellani coordenou um projeto de Classes Experimentais do Instituto Educacional

Narciso Perroni, na cidade de Socorro, em São Paulo. Posteriormente, tornou-se Coordenadora Geral do

Serviço de Ensino Vocacional – SEV, ligado diretamente ao gabinete do Secretário de Educação.

Page 346: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

346

Faz-se importante informar que Mascellani incorporou em seus trabalhos à

frente dos Ginásios Vocacionais em São Paulo, as concepções de „conscientização‟ e

„transformação social‟, presentes em movimentos católicos de esquerda, a exemplo do

Movimento Eclesial de Base - MEB, que, por sua vez, desde 1962, já havia produzido

material didático para as caravanas da cultura e que seriam utilizados a partir de 1965,

nas quais educadores entravam em contato direto com as comunidades e promoviam a

chamada „Animação Popular‟, conforme escreveu em artigo.455

Ainda o autor afirma

que Mascellani apontava as ciências humanas como estratégica, devendo o processo

educativo ser colocado como força motriz de um salto qualitativo no desenvolvimento

da personalidade dos educandos:

[...] o processo educativo implicava na mobilização de técnicas

estruturadas segundo os recursos das ciências humanas. Estes

recursos, por sua vez, são manipulados de forma que se estabeleça

uma relação crítica entre eles e o processo a que servem. Partindo

desses pressupostos, a programação do processo educativo envolverá,

consequentemente, a ideia de planejamento da educação num

determinado tempo e para determinado grupo. Se a ação educativa é

realizada de forma sistemática através da escola, compete a essa

última elaborar esse planejamento.456

Sobre o planejamento de currículo, enquanto tal, supõe a análise

da realidade através de dados objetivos, julga a caracterização dos problemas que

devem ser equacionados, o estabelecimento de metas que nortearão o processo, a

seleção de recursos para a execução, à previsão de acompanhamento do processo e de

sua constante avaliação e, finalmente, supre a avaliação global que permitirá visualizar

os resultados e criar condições de reformulação. A partir da conceituação de currículo

aqui exposta, o planejamento requer, necessariamente, a aplicação dos recursos

oferecidos particularmente pelas ciências humanas.457

455

CHIOZZINI, Daniel Ferraz. As mudanças curriculares dos ginásios vocacionais de São Paulo: da

„integração social‟ ao „engajamento pela transformação‟. Rev. Bras. Hist. Educ. Maringá-PR, v. 14, n. 3,

p. 23-53, set./dez, 2014, p. 492. 456

Ibidem, p. 39. 457

I Simpósio do Ensino Vocacional, XX Reunião Anual da SBPC. São Paulo: julho, 1968., p. 492.

Naquele evento foi apresentada a experiência de Ensino Vocacional funcionando desde 1962, uma

experiência em que articulava teoria e prática, especialmente abordando a educação pelo trabalho,

portanto, valeu-se de metodologia divergentes à proposta tecnicista do regime militar, que visava apensa

„qualificar‟ os trabalhadores sem que estes pudessem „ser‟ a centralidade da história.

Page 347: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

347

Abrimos esse parêntese para entender quem era, do ponto de vista

educacional, Maria Nilde Macellani e que contribuição ofereceu para pensar a educação

no Araguaia-Xingu, no início do ano de 1972, especialmente no tocante à constituição

de uma escola pelas lentes da área de humanas, que produziu crítica ao contexto e as

revelou em seu planejamento, com o propósito revolucionário.

Em seguida, apresentamos o documento por ela elaborado, contendo 21

problemas diagnosticados na prelazia, dentre os quais aqueles já tratados nos capítulos

anteriores, a exemplo do conflito entre os posseiros e o latifúndio, a falta de

atendimento à saúde, a questão trabalhista em relação às categorias dos barqueiros,

peões e professores, a falta de infraestrutura de estradas, o domínio político das elites, o

trabalho escravo a que eram submetidos os peões, o alto índice migratório e muitas

outras questões, as quais foram publicadas por Dom Pedro Casaldáliga, em 1976, cujo

documento contribuiu para ampliar mais uma peça no mosaico que vimos construindo

acerca da invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense. Pela importância do

documento, transcrevemos na íntegra:

En Sâo Félix, a primeros de febrero, tuvimos un cursillo de visión

global y programación del trabajo de la Prelatura, asesorados por la

ilustre pedagoga y excelente amiga María Nilde MASCELLANI,

varias veces procesada, y presa, por la misma causa de la Justicia.

Habían llegado a la Prelatura refuerzos de padres y seglares.

Estábamos organizando el trabajo del nuevo año.

En ese cursillo de planificación destacamos las siguientes Constantes

encontradas en el área de la Prelatura:

1. Conflicto entre latifundistas y posseiros.

2. Falta de atendimiento básico a los problemas de la salud.

3. Situación de injusticia laboral que afecta a todos (empleados de

todas las categorías: barqueros, peones, profesores).

4. Aislamiento: carreteras, correo, clima (lluvias).

5. Educación: analfabetismo, semianalfabetismo. Falta de

preparación de los profesores, falta de instrumental, edificios, etc. Educación formal inadecuada a la realidad de la región.

6. Interferencia monopolizadora de la política (sistema de acuerdos

entre políticos, terratenientes, comerciantes y otros).

7. Situación de los peones como población fluctuante y sistema de

esclavitud y aislamiento de los mismos.

8. Sobrevivencia étnica del indio.

9. Comercio monopolizador.

10. Retirantismo (sistema migratorio permanente)

11. Indice elevado de irregularidad familiar y prostitución.

12. Pasividad y espíritu fatalista.

13. Inexistencia del lazer.

Page 348: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

348

14. Agricultura de subsistencia en grado mínimo.

15. Predominio de 'creencias' (crendices) y supersticiones

(Religiosidad versus Fé).

16. Patrones de conducta predominantes en el pueblo: venganza,

violencia, valentía, embriaguez, indolencia, prostitución.‟

17. Falta de mercado de trabajo: Paro y subempleo.

18. Peculiaridades culturales (lenguaje, etc.)

19. Falta de infraestructura de estimulo cultural y pastoral.

20. Política actual del gobierno continuamente amenazadora para

la sobrevivencia y futuro del pueblo de la región.

21. Grupo de trabajo, venido de fuera, y su aculturación.

A partir de esos problemas analizados, establecíamos lógicamente las

prioridades globales, ormulábamos los programas y explicitábamos el

objetivo general de «desarrollar un proceso de lucha permanente para

la liberación del ser humano y para el establecimiento de las

relaciones de Justicia.458

Além dos pontos já indicados anteriormente, entendemos que o documento

extraído daquele encontro, em forma de diagnóstico e planejamento, tornou-se

fundamento para que os 21 pontos ali destacados servissem de bandeira de luta, uma

vez que, partindo desses problemas analisados, haveriam de estabelecer as prioridades

globais, orquestrando os programas e tornando explícito o objetivo geral de “[...]

desenvolver um processo de luta permanente para a libertação do ser humano e para o

estabelecimento das relações de justiça”.459

O documento apontava para um amplo conjunto de problemáticas que

haveriam de ser enfrentadas e, para tanto, como tratado nos capítulos anteriores,

formularam táticas das quais derivaram ações já explicitadas no segundo capítulo,

momento em que apresentamos a escola enquanto pedra angular na formação social

contra a inumana „desintegração‟ de índios, posseiros e peões no Brasil Central.

Embora tenhamos revelado a pesquisa do professor Hélio de Souza Reis, em

1970, realizada no início das atividades do Ginásio Estadual do Araguaia e publicada na

Carta Pastoral de 1971, por Pedro Casaldáliga, o documento produzido por Mascellani

enfatizou a questão do analfabetismo, semianalfabetísmo, falta de preparação dos

professores, carência de instrumentos, edifícios etc. Alertou também para o fato de a

Educação formal ser inadequada à realidade da região, colocando em questão a

458

CASALDÁLIGA, Pedro. Yo creo en la justicia y en la esperanza. El Credo que ha dado sentido a mi

vida, Bilbao (España): Desclée de Brower, 1976, p. 18. Sem destaque no original. 459

Ibid.

Page 349: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

349

sobrevivência étnica dos índios, pois a política do governo continuamente ameaçava sua

sobrevivência e a de toda população dessa região.

A problemática levantada por Mascellani reafirmou muitos dos aspectos já

narrados em capítulos anteriores, reforçando uma questão de fundo – Que paradigma de

escola deveria ser edificado em Mato Grosso, no contexto do Araguaia-Xingu, o qual

possibilitasse a transformação daquela triste realidade, senão a invenção de uma escola

popular e democrática? Porém, qual seria seu preço, já que uma escola com tais

prerrogativas se distanciava da proposta pelos órgãos oficiais? Quem seriam os

protagonistas desse processo, senão os professores; que formação haveriam de ter senão

embasados no método proposto por Paulo Freire, adotado largamente pelas escolas

populares? Eis o motivo da busca, o de revelar o contexto e a concepção de formação de

professores por meio do Projeto INAJÁ.

Concluímos essa primeira parte do presente tópico com a perspectiva de que

a rede de sociabilidade de Pedro Casaldáliga e o momento vivido pelo Brasil fizeram

com que lideranças da educação brasileira, especialmente aquelas defensoras de uma

sociedade mais justa e igualitária, conhecidas politicamente como pertencentes à

esquerda e perseguidas pela ditadura militar. Quanto a Paulo Freire, buscaremos

entender um pouco de como, efetivamente, seu ideário educacional permeou as práxis

dos professores nas escolas de educação básica do Araguaia-Xingu mato-grossense.

Maria Nilde Mascellani foi “várias vezes processada e presa por defender a causa dos

pobres e a justiça”460

, o que foi afirmado por Casaldáliga. No tópico a seguir, serão

apresentadas as „lições de Paulo Freire‟, por meio de cartilha e cartazes adotados na

alfabetização de adultos.

4.2.1. As ciências humanas na educação básica em torno de uma causa: a sobrevivência

humana no Brasil Central

Como já mencionado no segundo capítulo, o método Paulo Freire foi

aplicado na alfabetização de adultos desde os primeiros anos e, pelo que percebemos na

documentação consultada, ele permaneceu enquanto referência aos professores atuantes

entre o Araguaia-Xingu, pelo menos ao longo das três primeiras décadas. Tal afirmativa

460

Ibid., p. 18.

Page 350: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

350

ancora-se no caderno que encontramos nos arquivos da Prelazia, datado de 1985, cuja461

apresentação se justifica pelo fato de entender que, usar o termo método de

alfabetização de adultos segundo Paulo Freire se tornou jargão no meio acadêmico e

educacional, infelizmente seu uso descuidado tem se prestado um desserviço à educação

básica. Assim, para melhor compreender a metodologia, apresentamos o caderno.

Como não tivemos acesso ao caderno 1, tampouco uma segunda versão do

caderno 2, não podemos afirmar que havia somente os seis passos neles contidos,

tampouco em relação ao número de páginas. Porém, há que se destacar que os autor (es)

enfatizam que não se tratava de uma cartilha, apenas um instrumento para o avanço da

aprendizagem.

461

É possível afirmar que houve inúmeras produções de cadernos iguais ao que encontramos nos arquivos

da Prelazia, sendo igualmente possível afirmar que havia um caderno que antecedia ao de número 2, e

outro que o sucedia. Esse material foi divulgado pela Associação Difusora de Treinamentos e Projetos

Pedagógicos – ADITEPP, organização não governamental, de apoio às comunidades de baixa renda,

tendo iniciado suas atividades em 1972. In. http://www.aditepp.org.br/conteudo.php?id=12 . Acesso em

25 de fevereiro de 2018.

Page 351: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

351

Igualmente observa que, além de apontar técnicas, apresentam estratégias a

serem adotadas pelo professor em relação ao tempo individual e coletivo. Portanto, uma

aprendizagem em processo dialógico. Sigamos os passos propostos pelo caderno.

Pensamos ser importante apresentar o „caderno‟ para melhor entendimento

dos conceitos adotados por Paulo Freire sobre o „código‟ – o objeto a ser explorado e a

representação que se deve conhecer. Conforme observamos, uma vez apresentado,

passa-se ao processo de descodificação, momento em que o grupo se vê mais próximo

da realidade vivida.

Page 352: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

352

Seguindo o método, o aluno percebia a palavra em pedaços, associando ao

número de vezes que abria a boca para pronuncia-la. Ao separar em sílabas, abria-se a

possibilidade de formar novas palavras futuras. Assim, o professor apresentava fichas

de descoberta a partir das palavras, associando-as às famílias das palavras. Como num

jogo, buscava-se, por meio de estímulo, fazer com que o grupo pudesse aprender novas

palavras.

Page 353: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

353

Ainda sobre o método adotado no processo de alfabetização, encontramos

nos arquivos da prelazia alguns cartazes que foram utilizados pelos professores, embora

não tenhamos como precisar a data de sua confecção e utilização, sendo somente

possível conceber que tenham sido utilizados como forma de, a partir da palavra

geradora, possibilitar os processos cognitivos na alfabetização, bem como politizar as

aulas, apresentando a diferença entre opressores e oprimidos, cujos cartazes

apresentaremos de forma ordenada a seguir:

Representação sobre os oprimidos:

Sequência 1 – Posseiro, operário, peão, família, força de trabalho, pouco dinheiro, casa,

enxada, machado, foice, pouco gado, bicicleta, rádio, pobre iludido e padre.

Page 354: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

354

Representação sobre os opressores:

Sequência 2 – ricos, tubarão, família, muito dinheiro, muito gado, avião, trator, jagunço,

soldado e gato

Page 355: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

355

Embora tenhamos exibido as imagens em escala menor, pois estas eram

apresentadas aos alunos em formato de cartaz, nosso objetivo foi possibilitar o

entendimento sobre a intencionalidade do professor ao confeccioná-las, apresentando as

categorias sociais, objetos e respectivas representações.

Tal atitude por parte do professor provocava reflexão sobre a diferença entre

o „mundo dos ricos‟ e o „mundo dos pobres‟, sendo os primeiros detentores de muito

dinheiro, fazendeiro (tubarão), família com poucos filhos, esposa gorda (sinônimo de

saúde), com joias, filhos bem cuidados, muito gado, trator, avião e a seu serviço tinha o

soldado, o jagunço e o gato, para ludibriar, violentar e em muitos casos assassinar

posseiros e peões.

Page 356: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

356

Já os pobres eram caracterizados pela família extensa e desnutrida, pouco

gado, pouco dinheiro, como instrumento de trabalho a foice, o machado, para

locomoção a bicicleta e a força de trabalho, único recurso do trabalhador, fosse ele

posseiro, peão ou operário, o que confirma os pratos da balança apresentado no tópico

1.6 no capítulo 1.

Ao sugerir tais reflexões, seja na construção do roteiro de aprendizagem por

meio do caderno, ou na seleção das imagens contendo temas geradores para

problematizar o conjunto de representações existentes naquele meio, usando as

categorias sociais e tecnologias de seu contexto, estava, de forma integrada, explorando

as ciências humanas no processo de construção de conhecimento.

Trazer as categorias sociais em formato de imagem possibilitou, por

associação, que as pessoas (crianças, jovens e adultos) em processo de alfabetização

pudessem, a partir do tema gerador, construir suas representações sociais, sem que

fugissem de seu contexto e, ao mesmo tempo se (re)conhecer naquela realidade

historicamente construída. Portanto, ao deparar com uma realidade escolar concreta, ou

melhor, ao lançar um olhar atencioso para uma realidade vivida e „sentida‟ no contexto

da educação escolar no Araguaia-Xingu, era condição sine qua non para sua

transformação, porém, esse processo só se tornaria possível se fosse descodificado o

conjunto de informações e conhecimentos sistematizados, sem que estivessem

distribuídos hierarquicamente.

Tais práticas possibilita-nos perceber que historicamente as ciências, no

contexto da educação escolar foram tratadas num movimento de fronteira, entre o

vivido na escola e no espaço não escolar, práticas de sistematização e mediação de

aprendizagens reveladas pelo professor, todavia, nem sempre isonômicos e com o

„sentido‟ voltado à realidade do aprendente real e inserido num determinado contexto

social e temporal. Assim, na escola popular e democrática os professores eram

chamados a pensar a prática.

Como disse o próprio Paulo Freire, em um Seminário na Argentina sobre

Educação Popular: “Hay que pensar la práctica para, teoricamente, poder mejorar la

Page 357: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

357

práctica. No hay que negar el papel fundamental de la teoria. Sin embargo, la teoria deja

de tener cualquier repercusión si no hay uma práctica que motive a teoria”.462

Entendemos que a recusa em trazer as problemáticas vividas pela

comunidade escolar, desconsiderando as condições sócio históricas presentes no

cotidiano e ensinando uma história do outro e do distante, teve dois propósitos: o

primeiro reveste-se da tentativa de isolá-la a um não lugar na história, e o segundo,

enquanto estratégia utilizada por parte de um grupo ao usá-la enquanto instrumento de

poder, determinando os „conteúdos‟ permitidos, bem como os meios e os métodos que

os convém, criando uma zona de segurança e fugindo ao debate. Igualmente, se não

houvesse uma leitura da prática (teorizando-a) não haveria como possibilitar sua

transformação.

Aceitando tal indicativo, o professor agiu perniciosamente negando

autonomia a si e aos aprendentes de experimentar outro percurso, deixando com que o

determinismo histórico interferisse no processo de construção do conhecimento,

permitindo com que todos seguissem ao sabor dos ventos, sob o risco dos banzeiros não

os deixar aportar em porto seguro.

Tais coordenadas invariavelmente têm por propósito manter os escolares

distantes do conhecimento histórico sobre si e de todos aqueles que compartilham do

mesmo lugar social, contribuindo para manter a desigualdade de acesso às informações,

ao conhecimento e aos bens consumo, privilégio de pequena parcela da população que

compõe a „elite‟, os filhos dos tubarões, empresários, banqueiros e figuras políticas que

se beneficiam da segregação, das últimas décadas do século XX, e continuam se

beneficiando na primeiras do século XXI, advertindo que essa pequena parcela jamais

passará pelo mesmo ambiente de formação a que passam os filhos das famílias pobres, a

escola pública de educação básica brasileira. Embora não seja novidade, a escola

pública nunca foi pensada para os filhos das famílias abastadas, pois estes, em sua

maciça maioria, são matriculados nas escolas particulares de ensino.

Porém, há também que afirmar que, no mesmo sentido, porém, em benefício

dos mais abastados, o Ensino Superior ofertado pelas Universidades Públicas atende,

em maior número, especialmente os cursos considerados como „elitizados‟. Haveremos

462

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Recorte de jornal sem identificação. DIII. 0.27 p. 5.5. O

evento foi construído como ato preparatório para a Assembleia Mundial de Educação de Adultos,

realizada em 21 de junho de 1985.

Page 358: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

358

de apresentar em seguida os caminhos trilhados, para que a escola de educação básica

no Araguaia-Xingu, conforme o pensamento de seus idealizadores, ampliasse os

horizontes de expectativas dos escolares para a abertura de cursos superior no Araguaia-

Xingu, „utopia‟ que se tornou realidade com a oferta de cursos superior em Luciara, no

ano de 1992.

Concluímos o tópico, onde apresentamos traços de uma realidade

socialmente construída na escola de educação básica parametrizada pela pesquisa sobre

as fragilidades educacionais e riscos sociais das famílias de posseiros e indígenas, bem

como o método de alfabetização proposto por Paulo Freire e, visando a transformação

social, o lançar mão dos conhecimentos possibilitados pelo campo das ciências sociais,

para, em seguida, buscar melhor definir o que foi e que papéis desempenhou a escola

popular no projeto de transformação social do contexto Araguaia-Xingu, das décadas de

1970 a 2000. Motivos do próximo tópico.

4.2.2. Tia, Tia, Tia, Estou Lendo!!!: mais que aprender a palavra, aprender a

palavração.

Inspirados pelos ideais plantados em solo „duvidoso‟, mas cuidados com

perseverança e determinação em prol da educação popular e democrática em processo

de construção, após a primeira década de experiência e emanados da ideologia

libertadora, assim como de posse do conhecimento necessário, no sentido amplo da

palavra, alguns educadores do Araguaia-Xingu, da década de 1980, buscaram formas de

materializar meios para que pudessem dinamizar o processo de alfabetização naquele

espaço específico, por se tratar de uma experiência inovadora para Mato Grosso e para o

Brasil, visto que a inovação não se prendia à questão da produção de cartilhas para

alfabetização, mas uma propositura independente da política oficial, a produção da

cartilha Estou Lendo.

Em alguns momentos em que estivemos compartilhando saberes em Santa

Terezinha, tinha sido informado por Dagmar Ap. Gatti, uma das autoras da cartilha,

sobre a existência desse material, porém, naquele momento não suscitou outras razões

que não entendê-la como mais uma ação desencadeada em torno da educação no

Araguaia-Xingu. Todavia, à medida em que a pesquisa se aprofundava, a cartilha

Page 359: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

359

„...ESTOU LENDO!!!‟ ganhava relevo, na perspectiva de que, com aquele material

produzido pelos professores da educação básica, rompia-se com a política Nacional do

Livro Didático, já tratado no tópico 3.6.1, lembrando que o PNLD foi criado em 1985, e

a produção dessa cartilha antecipou sua criação. Assim, passamos a apresentar a história

daquele material

didático produzido

com o pé no chão.

Porém,

antes de apresentar a

história da cartilha,

contada pelas autoras,

abro um parêntese para

afirmar que a invenção

da escola no Araguaia-

Xingu, iniciada na

década de 1970, estava

ligada a um conjunto

de ações pró

alfabetização (inclusão) das famílias pobres brasileiras. A expressão Pé no Chão, em

Mato Grosso, já tinha sido publicada em um jornal de Cuiabá, no ano de 1979, ao

veicular a matéria sobre a formação de férias dos professores, conforme notícia

publicada no Diário de Cuiabá, de 23/01/1979.

A matéria em questão reportava ao curso já mencionado no tópico 2.3 do

segundo capítulo, porém, acrescentava uma informação que permitiu aproximar a

imagem à uma campanha de alfabetização criada em fevereiro de 1961, na Prefeitura de

Natal, Rio Grande do Norte. Tratava-se da:

[...] criação da Campanha de Pé no Chão também se Aprende a Ler

[...] uma campanha educacional que propunha a combater, de um lado,

o analfabetismo adulto que atingia cerca de 50% da população, e de

outro, a falta de escolas para as crianças em idade escolar.463

463

TEIXEIRA, Wagner da Silva. Quando ensinar a ler virou subversão: a ditadura e o combate ao

combate do analfabetismo. ANPUHMG. XVIII Encontro Regional (ANPUH-MG) Mariana – MG. 24 a

27 de julho de 2012, p.19.

Page 360: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

360

Continua afirmando Teixeira que a falta de recursos para cumprir às

expectativas de campanha do prefeito eleito, Djalma Maranhão, cuja plataforma tinha

sido o combate ao analfabetismo, em fevereiro de 1961, durante uma reunião com o

Comitê Nacionalista do bairro proletário das Rocas, um dos moradores apresentou a

proposta de se construir barracões nas praias para o uso como escolas. A sugestão foi

aceita. Ainda em 1961, foi edificado o primeiro barracão coberto de palha, aberto dos

lados, fixado no chão de terra batida, tornando-se símbolo da campanha.464

Todavia, a campanha Pé no Chão, bem como o Movimento de Educação de

Base (MEB), gerado durante a campanha presidencial de 1960 e fruto de um acordo

político entre os setores da Igreja Católica e a candidatura de Jânio Quadros que, em

campanha pelo Nordeste, conheceu as experiências da Igreja em alfabetizar adultos pelo

rádio, resultando, em 21 de março de 1961, no Decreto n. 50.370 de criação do MEB.

Esse movimento fez eclodir outras campanhas Brasil afora, na perspectiva das

„Reformas de Base‟ a serem feitas por Jânio Quadros.465

Naquele momento é que, oportunamente, Paulo Freire encontrou nos

movimentos um laboratório privilegiado para a elaboração de seu método de

alfabetização, ganhando apoio da ala progressista ligada ao projeto nacional-estadista, a

exemplo de Miguel Arraes, enquanto prefeito e governador de Pernambuco, e do

próprio Djalma Maranhão.

Porém, tais iniciativas de alfabetização foram duramente atacadas por meio

da Operação Limpeza, ocasião em que muitos militantes e coordenadores foram presos,

e os professores, monitores e funcionários também sofreram perseguição na ditadura,

uma vez que falar da Campanha Pé no Chão passou a ser perigoso. Conforme Teixeira,

“Chegara com os militares no poder o tempo de calar. O combate feito pela ditatura

àqueles que combatiam o analfabetismo foi implacável”.466

Ao longo da narrativa, apresentamos os contornos da violência contra os

defensores da inclusão das famílias no processo educacional, nas décadas de 1970 e

1980 no Araguaia-Xingu mato-grossense, todavia, não foi suficiente para impedir que

464

Ibid. Para saber mais sobre essa importante e efêmera campanha, leia o trabalho de GERMANO. José

Wellington. De pé no chão também se aprende a ler: política e educação no Rio Grande do Norte. 1960-

1964. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade

Estadual de Campinas. UNICAMP/Campinas. 1981. F.226. 465

Ibid. p. 10. 466

Ibid.

Page 361: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

361

houvesse continuidade dos processos intensificados com a criação da Prelazia de São

Félix, possibilitando a muitos ter acesso à cartilha „Estou Lendo‟, conforme observamos

a seguir.467

Com o intuito de entender a cartilha naquele contexto histórico,

apresentamos a seguir a história da cartilha.

467

A cartilha ora apresentada foi motivo de um estudo mestrado feito por Alessandra Pereira Carneiro

Rodrigues, no Programa de Pós-graduação em Educação da UFMT campus Rondonópolis. A professora

formadora do CEFAPRO de Confresa, pautada na história da leitura e dos livros escolares, produziu seu

trabalho buscando subsídios no campo da História Cultural e da História do Livro. A autora desenvolveu

um belo texto sob o viés do campo, da história da leitura e dos livros escolares pautando no „circuito das

comunicações‟, modelo proposto por Robert Darnton (1990). Para tanto, analisou o ciclo de vida da

cartilha. In RODRIGUES, Alessandra Pereira Carneiro. Cartilha do Araguaia. “Estou Lendo!!!‟: seu

circuito de comunicação (1978-1989). Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-

graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Rondonópolis, MT, 2012. P. 117.

Page 362: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

362

A história dessa Cartilha, escrita por suas autoras, Judite Gonçalves de

Albuquerque, Suely Barros Jardim, Dagmar Aparecida Teodoro Gatti, Maria Benvinda

de Moraes e Luíza Gobbi, permite-nos entender um pouco sobre o que pensavam as

professoras, ao expressar: “Era necessário uma cartilha que falasse do mundo da criança

do campo, de seu trabalho, de seus brinquedos, de suas fantasias [...] uma que ajudasse a

compreender e a se situar dentro do seu mundo”.468

Resta-nos entender um pouco do

método, já que, como já mencionado, as cartilhas eram utilizadas pelos alunos em

processo de alfabetização.

468

Ibid.

Figura 47 – Método da Cartilha Estou Lendo.

Fonte: GATTI; GOBBI; ALBUQUERQUE; MORAES; JARDIM, 1984c, p. 3 apud. RODRIGUES, 2012, p.78

78

Page 363: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

363

Pensamos que tais estratégias pedagógicas foram adotadas com o objetivo

de ensinar a leitura da palavra e a leitura de mundo, característica de uma escola popular

que estampava um currículo escolar diferenciado daquele adotado pela escola citadina

oficial. Tais recursos para nosso trabalho se tornaram um achado, pois traduziram, com

bastante pertinência, as representações daquele contexto sócio histórico, bem como

possibilitou compreender que uma aprendizagem plena passa pelo domínio da

PALAVRAÇÃO. Abaixo, apresentamos, na Figura 48, a imagem reduzida da capa da

cartilha e do caderno de exercício, e em seguida o sumário de ambos, para facilitar o

significado de uma alfabetização embasada na leitura e escrita das coisas do lugar.

Page 364: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

364

Havia ainda o caderno do professor, pois as autoras entendiam que, para

melhor proveito do material, haveriam os professores de passar por uma formação. Uma

das autoras, a professora Judith, ao falar em entrevista à Alessandra sobre o método,

afirmou:

Então, a gente foi passando daquela preocupação primeira com um

método global (do todo para as partes), preocupando-se com palavras

e frases e daí para as sílabas, mas já se propunha reflexões e leituras

sobre o sócio-interacionismo de Vygotsky. Além de Paulo Freire (que

foi a grande inspiração inicial, com a Pedagogia do Oprimido), líamos

também Emília Ferreiro. Você percebe que a Cartilha „...Estou

Lendo!!!‟ já começa com textos, e não com palavras.469

Assim, concluímos o tópico sobre o Pé no Chão – Estou Lendo!!!,

chamando atenção para as palavras geradoras dos textos que compunham a cartilha,

que, conforme imagem, traduzem significados nos processos de mediação e

aprendizagem. Em seguida apresentamos as razões da educação popular e diferenças

com a Carta de Curitiba.

4.2.3. Razões da educação popular X razões da „Carta de Curitiba‟ nutrindo debates e

disputas sobre a memória

Iniciamos o presente tópico apresentando um documento elaborado pela

Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, com o propósito de chamar a

população para o Dia D da Educação, cuja proposta estava filiada ao Programa

„EDUCAÇÃO PARA TODOS‟, do Ministério da Educação. Trazia título emblemático:

HÁ UM GRITO NO AR PELA EDUCAÇÃO: FAÇAMOS SILÊNCIO PARA OUVÍ-

LO‟. Como podemos observar, o título traduz o tom que os gestores da educação, no

Estado, tinham para com a população, eu falo e vocês fiquem em silêncio para ouvir.

Tal reflexão poderia ser inoportuna se não considerasse o restante do texto, que,

haveremos de apresentar em partes.470

Seguia a mensagem:

A educação entendida como um grande esforço coletivo, de múltiplas

responsabilidades é obrigação de todos os segmentos sociais. Assim,

469

Ibid., p. 94. 470

Documento elaborado pela Equipe de Redação do Grupo de Trabalho do dia „D‟ – Campanha de

Debate Nacional sobre Educação/Escola – Cuiabá-agosto de 1985. In. Arquivo da Prelazia de São Félix

do Araguaia. DIII.0.26 p. 1-4.

Page 365: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

365

não cabe, nem é possível somente ao poder público prevê-la. A

comunidade, sendo seu alicerce, deve também visualizar a definição

de objetivos e ações reais em compromisso recíproco para com o

Estado. Nessa filosofia, a secretaria de Educação e Cultura de Mato

Grosso, comungando com o pensar do Ministério da Educação, estará

coordenando no dia 18 de setembro, o Debate Nacional sobre a

EDUCAÇÃO/ESCOLA. Esse debate se constitui em mais uma

parcela de esforços da nossa Secretaria na proposta de Educação para

todos a fim de recolher subsídios que venham redirecionar a educação

em nosso país.471

Como apresentação ao documento, revelamos à problemática:

O secular, aflitivo, crônico problema da educação brasileira e a visão

atrofiada e distorcida do desenvolvimento possibilitam as

desconfianças e dificultam maneiras de se fazer ressurgir valores e

identificações dos interesses da política educacional. Nesse contexto

Mato Grosso, se sensibiliza com os propósitos do Ministério da

Educação [....] e os senhores secretários de educação, no documento

‘Carta de Curitiba’, destacam a necessidade de democratização,

descentralização e desburocratização da escola e de uma

estratégia de articulação e „comprometimento de todos na superação

da dimensão coletiva do trabalho educacional em todos os níveis.

Segue o documento apelando para a maturidade dos educadores mato-

grossenses.472

O documento segue com mais duas laudas, porém, para nossas reflexões

destacamos os parâmetros que foram propostos para aquela „consulta‟, os quais nos

parece emblemáticos:

1) Que escola temos e que escola queremos?

2) O que podemos fazer para melhorar a escola?

3) Que fazer para resgatar a dignidade e a credibilidade da Escola Pública?

4) Somente criticamos ou existe ação?

Ao observarmos o trecho aqui compartilhado, é possível entender que

estavam sendo chamados para visualizar e não traçar objetivos e metas, sendo o

documento revelador, uma vez que tinham conhecimento de que a educação era

burocrática, centralizada e nada democrática.

Todavia, tomamos mais um pequeno trecho do documento para análise que,

ainda na segunda página, apresentou uma frase de efeito – o homem, sendo sujeito de

471

Ibid. Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII.0.26 p. 2-4.O documento foi assinado pelo

próprio Secretário Juracy Maria de Campos Braga. Sem destaque no original, mantivemos somente as

palavras em caixa alta. 472

Ibid.

Page 366: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

366

sua história não pode, pelo argumento de que a educação vai mal, se apassivar ao

colapso educacional.

Segue ainda com o desenho de alguns temas a serem debatidos:

a) Educar – para que?

b) Quem ensina?

c) O que está faltando na escola pública?

d) Quem são os culpados do fracasso da escola?

e) A escola é para todos?

Se pararmos para analisar o documento no contexto em que foi produzido,

final do governo militar e início da „redemocratização‟ do país, é possível perceber uma

apropriação dos debates em torno da educação popular, porém, com a prevalência do

velho discurso da ditadura militar. Tratava-se de um sequestro do discurso adotado

pelos movimentos em torno da escola popular e democrática.

Como haveremos de continuar a temática apresentando o campo oposto à

preleção disseminada pelos gestores da Secretaria de época, amplio os questionamentos.

Quando a escola pública teve dignidade e credibilidade para ser resgatada? A segunda

questão serve para aquele contexto, extensivo aos dias atuais: existe um fracasso na

escola que permanece limitado em seu quadrilátero? Seria a escola uma invenção

condenada a servir aos ditames eternos por não atender aos anseios e interesses da

classe dominante?

Parece-nos que esse discurso perverso continua ganhando espaço na pauta

do dia, o analfabeto é sempre culpado por não ter tido acesso à escola, e o professor é

culpado por não dispor de espaço físico e recursos tecnológicos para cumprir suas

funções docentes, sendo o aluno culpado por não atender às „expectativas‟ criadas pelos

órgãos oficiais em torno da „qualidade na educação‟ e seus „índices‟.

Ao plantar o fracasso, o objetivo é inventa-los, restando-nos saber, eles

existem? Se existem, quais são? Onde estão e o que fazem para mudar esse quadro

horroroso de falhas por eles pintados? Aqui, não apontamos para as frias estatísticas, me

refiro especialmente à forma pela qual a educação escolar está sendo ofertada aos

aprendentes, quais expectativas de futuro estão alimentando os professores e estes em

relação aos filhos das famílias dos matriculados em nosso sistema público de ensino?

Page 367: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

367

Seguindo nosso propósito, apresentamos um relatório extraído de um

seminário realizado em julho de 1985, estrategicamente organizado para oferecer

respostas ao que ocorria em torno dos debates sobre educação para todos, mencionados

anteriormente. Trata-se de um relatório feito sobre a educação popular e promovido pela

equipe do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae – CEPIS. A ideia,

conforme seus proponentes, foi a de socializar a experiência de seminário, criada pela a

equipe do CEPIS, mais 25 pessoas de todo o Brasil, as quais se reuniram em julho de

1985.

O referido seminário nasceu a partir de discussões feitas no CEPIS sobre a

prioridade de se desenvolver um trabalho de formação de educadores populares.

Conforme o relatório, o evento nasceu a partir das solicitações feitas para que

realizassem um seminário, um momento de vivência e sistematização dos vários

caminhos do trabalho popular, reforçando o papel do Centro enquanto propiciador do

encontro dos educadores que precisavam colocar pontos em comum e elaborar novos

rumos metodológicos para o seu trabalho.473

Tinham ainda o propósito de, mesmo de forma limitada, ampliar o número

de educadores que pudesse utilizar o material elaborado naquele evento, na busca de

respostas metodológicas, especialmente em relação à ação política que o momento

requeria. Nesse particular, é possível que houvessem representantes da prelazia de São

Félix do Araguaia, ou mesmo o próprio Pedro Casaldáliga, pois existem outros

relatórios emitidos pelo CEPIS sobre variadas demandas no arquivo da prelazia. Além

disso, como veremos adiante, fez-se referência ao Araguaia.

O documento é composto de 37 páginas, produzido a partir de um seminário

com seis dias de duração, cujo teor se torna fundamental para que se possa entender o

conceito de Educação Popular naquele momento e, por ser importante para nosso

trabalho, haveremos de apresentar partes dele a seguir, acompanhado de algumas

ponderações.

Sobre o evento em que foi elaborado, pode-se afirmar que: o primeiro dia

foi dedicado à apresentação dos participantes, levantamento das dificuldades

encontradas no trabalho, apresentação do seminário, objetivos, temas e metodologia. No

segundo dia foi apresentado o tema 1 – Educação popular. No terceiro dia com o tema 2

473

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 01.37.

Page 368: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

368

– Fundamentos da Metodologia da Educação Popular, cujo objetivo foi o de verificar o

grau de coerência entre o conceito de Educação Popular que temos e sua prática. O

quarto dia foi dedicado ao tema 3 – Análise da Estrutura da Sociedade, com o objetivo

de fazer uma reflexão sobre a estrutura social brasileira e sobre alguns recursos

metodológicos para se trabalhar este tema com grupos populares. O quinto dia foi

dedicado às Tendências Políticas, tendo por objetivo apresentar e discutir um painel das

atuais tendências políticas presentes nos movimentos populares e sua evolução. Já no

sexto e último dia foi tratado o Planejamento em Educação Popular, o qual objetivou

discutir um esquema de planejamento do trabalho popular.

Afirma o documento que muita gente pensa a educação popular como uma

alternativa à educação burguesa, formal, que aliena e que impinge os valores da classe

dominante no seu conteúdo, métodos, instrumentos etc. Fazer a educação popular é o

oposto da educação formal. Este modo de pensar a educação popular tem como ponto

de partida a proposta de educação, que é a educação burguesa.474

Parte-se das críticas a ela para se propor uma nova forma de educação. Há

que se lembrar que a educação popular, pelo fato de ser dirigida às classes populares,

não tem por base apenas o público a ser atingido, mas como ela ganha sentido. É todo

um sistema educacional pensado e redefinido a partir da lógica de libertação popular,

tendo como referência maior a luta de classes e, dentro dela, as classes populares vistas

enquanto agentes da transformação social.

À medida que adentramos no cotidiano das escolas no Araguaia-Xingu, das

primeiras décadas, nos deparamos com essa realidade, onde emergem esforços para que

os paradigmas da educação „burguesa‟ fossem perdendo espaço para a educação

popular. Naquele período, não havia a escola em si, estática, objeto de desejo, intocada,

mas uma escola-ação, engajada, organizada e em prol da defesa da causa das famílias

dos escolares, razão pela qual foi fortemente „combatida‟ por alas da política estatal.

Veremos em seguida que diferenças podem ser destacadas entre a educação

popular e a educação burguesa. Para esse fim, continuamos explorando o relatório do

Centro de Educação Popular Sedes Sapientiae.

474

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 07.37.

Page 369: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

369

4.3 - Educação popular x educação burguesa

Uma concepção de Educação Popular não é definida em oposição à

Educação Burguesa, nem só pelos métodos e técnicas utilizados, mas pelo seu caráter

classista, pela definição dos interesses da classes a que ela responde, não nas

formulações, mas nas práticas concretas vivenciadas num contexto histórico

determinado. Tamanha era a integração da escola com as causas locais que, em muitos

instantes, percebemos o fechamento da escola por inúmeras razões, mas, houve ocasião

em que foram fechadas, e até mesmo derrubadas, pelos fazendeiros, com o apoio do

aparato policial do Estado.

Em seguida, o documento afirma que o projeto político é o que definia a

Educação Popular, distinguindo a Educação popular da educação burguesa e oficial.

Ora, se isso é elemento fundamental, podemos dizer que diretamente ligado a ele

aparece a questão da metodologia, ou seja, do como fazer. Aqui está o grande desafio,

pois, muitas vezes temos uma definição clara a respeito da Educação Popular, mas a

nossa prática concreta, o „como‟ estamos fazendo, por vezes está em contradição com

semelhante definição.475

Segue o relatório afirmando que, às vezes, temos um discurso libertador,

transformador, mas a nossa prática concreta ainda está muito carregada das distorções

da educação formal e burguesa. A análise dessa contradição requer discutir a questão da

metodologia. Há que se verificar se o „como nós estamos fazendo o trabalho‟ guarda

coerência com o conceito da Educação Popular476

, uma vez que ela é popular, não pelo

público que atinge, mas pelo seu caráter definitivamente classista, de um processo

educativo ligado às exigências e necessidades das classes populares. Esta é a nossa

referência.477

Assim, trabalhar com a Educação Popular era, naquele momento,

fundamentalmente, trabalhar a esfera do saber, pois, dentro de uma concepção de

integração orgânica entre Educação Popular e ação política transformadora, cabe refletir

sobre: em que ângulo é que o específico da prática educativa (esfera do saber, da criação

e recriação do conhecimento) contribui para o avanço da ação política transformadora?

475

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII.0.29 p. 12-37. 476

Ibid. 477

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 08.37.

Page 370: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

370

Para responder a essa questão, apresentaremos uma sistematização elaborada durante o

citado seminário, extraída do trabalho de Carlos Brandão sobre as diferentes concepções

de educação com as classes populares.478

Tabela 14: Concepções de educação popular

Conservadora Reformista Transformadora

1 – Manutenção da ordem

social

1 – Aperfeiçoamento do

capitalismo

1 – Superação do capitalismo

2 – Reforçar o poder político

do Estado

2 – Reforça o poder do

Estado e da sociedade civil

2 – Construção do socialismo

3 – Educação voltada para

qualificação profissional, para

uma participação ativa na

produção e passiva na

sociedade (SENAI-SENAC-

MOBRAL

3 – Movimento social deve

lutar por direitos

3 – Participação na direção

progressiva da construção do

poder popular

4 – Organização comunitária

dos setores populares para

maior participação social

(mutirão, roças comunitárias)

4 – Fortalecer o poder

popular a consciência de

classe (movimentos

populares, sindicatos) Fonte: Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII.0.29 p. 12-37

Ao tomarmos os traços da escola popular e da democrática pensada no

Araguaia-Xingu, podemos confirmar seu projeto transformador, pois a superação das

relações de poder entre opressores e oprimidos, a participação na população com o

poder popular e os movimentos populares, por meio da consciência de classe, estavam

estampados nas páginas da Folha Alvorada.

Como fundamento da ação educativa que envolve o processo de criação e

recriação do conhecimento, ao observar esse aspecto, quando os professores,

especialmente os de história, buscavam formas de ensinar outra história que não aquela

proposta pelos livros didáticos, eles filiavam sua ação à Educação popular, pois,

introduziam táticas „subversivas ao currículo‟, pela ação educativa, contrariando o

processo de reprodução dos conhecimentos já existentes e estabelecidos, sendo que sua

função seria repassar os novos conhecimentos de forma a „preencher com aqueles

necessários às consciências vazias dos educandos‟. Por outro lado, quando falamos de

um processo de criação e recriação do conhecimento, na perspectiva da Educação

478

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII.0.29. P. 10-37.

Page 371: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

371

Popular, estamos partindo do pressuposto de que nessa ação educativa existe uma

relação de troca.

Outro aspecto importante levantado pelos participantes durante o seminário,

foi a questão de se „ter clareza de onde se quer chegar‟. Para se obter uma postura

metodológica correta em Educação Popular é fundamental se ter claros os objetivos que

encaminharão os rumos de onde queremos chegar. Se não houver isso, corremos o risco

de estreitar nossa concepção de metodologia, somente no limite pedagógico.479

Por vezes, quando se pergunta a um grupo sobre os fundamentos da

metodologia da educação popular, aparecem frequentemente as seguintes respostas: „é

trabalhar mais em grupo; é utilizar dinâmicas mais participativas, é se preocupar com o

falar mais simples com o povo‟. Não discordamos de que semelhantes preocupações

fazem parte do nosso modo de trabalhar Educação Popular, mas afirmamos que tais

aspectos não são suficientes para definir a metodologia de Educação Popular e

distingui-la da educação formal burguesa, lembrava o documento que (vale lembrar de

que esta também se utiliza, em seus centros mais aperfeiçoados, dinâmicas

participativas, sondagem de linguagem etc.). Por isso, é importante fazermos uma

distinção clara entre metodologia, método e técnicas em Educação Popular.480

Seguimos a mesma sequência como fora construído o relatório –

considerando que a metodologia é um conjunto de fundamentos de trabalho que

perpassam todas as práticas em Educação Popular, seja no baixo Araguaia, seja no Alto

Uruguai (RS), seja na prática da comunidade, no movimento popular, no movimento

sindical ou no partido.

O relatório fazia distinção entre metodologia, método e técnicas. Os

métodos decorrem da metodologia e se diversificam na sua aplicação em circunstâncias

específicas, por exemplo, alguns métodos são mais adequados ao trabalho rural, outros

podem sê-lo ao trabalho na periferia urbana. Há também uma diferenciação de métodos

conforme o setor com que se trabalha: na prática pastoral, temos alguns métodos que

são diferentes da prática político-partidária.

Os métodos também variam conforme o momento concreto da prática de

luta de um grupo: há momentos em que privilegiamos métodos de trabalho de massa,

em outros os de trabalho de base. Concluindo, os métodos dependem da situação ou do

479

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0.29 p. 13-37. 480

Ibid.

Page 372: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

372

setor de trabalho. Traduzindo em linguagem de ciência política, diríamos que os

métodos se referem às táticas de trabalho.481

As técnicas, por outro lado, constituem um conjunto de ferramentas de

análise, organização e comunicação, devendo ser utilizadas de forma dinâmica e

criativa. A escolha das ferramentas de trabalho deve ser feita de acordo com a

metodologia global e em função dos métodos. Por exemplo, para avaliarmos a validade

de se utilizar a técnica do Júri simulado temos que levar em conta os objetivos da

atividade, o conteúdo a ser discutido e as características do grupo com o qual estamos

trabalhando.

Assim, aponta o texto que a concepção metodológica (ou seja, a concepção

sobre a lógica interna do processo de educação popular) se baseia na teoria dialética do

conhecimento e se expressa numa determinada forma do conceber a relação entre teoria

e prática, graficamente representada da seguinte forma: prática-reflexão-ação:

1º) A prática social é a fonte de todo o conhecimento;

2º) A teoria está em função do conhecimento científico da prática e serve

como guia para uma ação transformadora;

3º) A prática social é critério da verdade e o fim ulterior de todo o processo

de conhecimento.482

Apresentadas as dimensões sobre a metodologia, o método e as técnicas da

educação popular, passaremos a apresentar seus princípios.

4.3.1 Princípios da educação popular

O primeiro principio é o de que a prática social constitui fonte de todo o

conhecimento, uma vez que todo programa educativo deve partir de uma problemática

concreta vivenciada por um determinado grupo ou setor da sociedade, de suas

necessidades específicas, do conhecimento que eles já possuem de um determinado

tema e do nível de consciência particular do grupo. Partir da prática pressupõe basear-se

nas condições objetivas (vida cotidiana, elementos provenientes de sua prática produtiva

e organizativa, e do contexto econômico e social) e nas condições subjetivas

481

Ibid. 482

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 15.17.

Page 373: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

373

(conhecimento e interpretações que o grupo já desenvolveu formas de expressão,

linguagem, valores, manifestações culturais e artísticas). Cabe aqui destacar o papel da

pesquisa participante enquanto ferramenta para um conhecimento sistemático da

realidade, superando, de um lado, o empirismo da observação assistemática e, de outro

lado, o academismo da pesquisa científica tradicional.483

Todo programa educativo terá de escolher um ponto de entrada particular,

ou seja, um aspecto científico dessa prática social enquanto núcleo mais adequado para

iniciar um caminho de aprofundamento.

O segundo princípio refere-se à questão da teorização sobre a prática,

significando a realização de processos ordenados de abstração que nos permitem

analisar situações concretas das quais partimos; significa entender os porquês, significa

percorrer um caminho de análise que vai:

- do individual para o coletivo

- de situações mais específicas e vividas para situações reais, presentes e

passadas

- de aparente para o significativo (o que está oculto, o que nunca foi dito)484

.

O importante é que dentro dessa concepção dialética a teoria só tem sentido

se partir da prática concreta do grupo, onde reside um grande desafio: como nos

programas de formação política, possibilitar a apropriação do instrumental do

Marxismo, a partir da prática social concreta do grupo com o qual estamos trabalhando?

Se não conseguirmos vincular o conhecimento, que é o fruto da prática social-histórica

da classe trabalhadora, à prática concreta do grupo não se dará uma aprendizagem

significa (que tenha significado concreto).485

O grande desafio que temos em relação á questão da teorização é: como

fazer com que um grupo popular, além de se apropriar de determinados conceitos de

análise social, adquira a capacidade de teorizar? Portanto, além da questão da

apropriação de conceitos é necessário o desenvolvimento de uma metodologia que ajude

o grupo a adquirir a autonomia necessária para fazer teoria. Portanto, e preciso, por

483

Ibid. 484

Ibid. 485

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 15.17.

Page 374: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

374

exemplo, fazer com que o grupo se aproprie das ferramentas necessárias para

estabelecer sua análise de conjuntura.486

O 3º princípio considera a prática social o critério da verdade e o fim último

de todo o processo de conhecimento. Estamos nos referindo ao momento de volta à

prática, e aqui está o desafio: como garantir que aquele processo de teorização sobre a

prática inicial do grupo reverta em um avanço qualitativo da prática concreta desse

mesmo grupo? Podemos fazer um trabalho partindo do que o pessoal já traz

originalmente consigo e introduzir uma série de conceitos de análise social e política?

Mas, se no final desse processo as pessoas com quem se está trabalhando não

modifiquem em nada a sua prática, então, não foi feito um bom trabalho. Por exemplo,

com um grupo de trabalhadores, se ao final de um trabalho de formação o grupo não

tiver uma melhor capacitação, no sentido de planejar o trabalho no seu fazer laboral, em

seu trabalho sindical, em sua intervenção política, então o programa de formação não

atingiu seus objetivos. A concepção dialética supõe que tal teoria sirva como guia para

uma ação transformadora. O critério de validade da teoria e do nosso trabalho é ver se

eles se serviram dela para alterar a prática do grupo487

.

O relatório ainda levanta alguns desafios político-metodológicos das

práticas em Educação Popular na conjuntura brasileira da década de 1980 e suas

implicações metodológicas.488

a) Relação entre trabalho de base e trabalho de massa: não existe contradição entre

essas duas modalidades de trabalho, visto serem duas faces da mesma moeda:

1) Trabalho de massa - Trabalho que se faz com muita gente, com agitação e

exige métodos e técnicas científicas próprias: Trabalho de massa só existe se houver um

trabalho de base que provoque suas etapas e atividades. Trabalho de massa publica as

mensagens e as ideias de um grupo, formando a opinião pública.

Para haver trabalho de massa é preciso ter: liderança forte, símbolos e

hinos, propostas de bandeiras de luta, autonomia e direção.489

2) Trabalho de base: É o trabalho que se faz com pequenos grupos – ou seja,

quando há o surgimento constante de novos militantes capacitados a dirigir um setor de

486

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 16-37. 487

Ibid. 488

Ibid. 489

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 17.37.

Page 375: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

375

luta. O trabalho de base deve incentivar e criar o trabalho de massa. Há uma linha de

continuidade entre o trabalho de base e o de massa.

b) O trabalho de formação constitui tarefa fundamental para a consolidação das

organizações populares. Dentro dessa perspectiva, temos que pensar o trabalho de

formação em relação aos diversos níveis: „base‟, „lideranças intermediárias‟,

„quadros‟ etc., quais seriam os métodos mais adequados a cada um destes níveis?

Como evitar o vanguardismo (teoricismo) e o populismo (espontaneismo)

pedagógico?

c) Até que ponto se tem conseguido formar novos educadores populares retirados do

próprio movimento popular?

d) A questão da articulação dos movimentos é uma das tarefas básicas. Que aspectos

da metodologia de trabalho podem facilitar essa articulação? Alguns casos foram

apresentados pelo documento:

- ligação a outros grupos populares em torno de um objetivo bem concreto, tal

como uma luta de interesse comum;

- promover, ao máximo possível, visitas e viagens para o conhecimento de outras

experiências de trabalho popular. Isso deve ser feito de forma programada;

- apoiar e incentivar a participação em encontros de movimentos, pois eles

permitem ampliar os horizontes e o conhecimento de outros companheiros e

experiências.

e) Outra questão são as novas práticas de dominação do Estado e das classes

dominantes, e os desafios metodológicos que elas colocam. Sobre as estratégias do

Estado, podemos citar:

- cooptação

- manipulação

- desmobilização

- desarticulação.490

O relatório chama atenção para os mecanismos adotados enquanto estratégia

do Estado para alcançar êxito frente aos movimentos da educação popular, fazendo uso

de formas a neutralizar as ações populares:

1 – Discurso demagógico e participativo;

490

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 17-37

Page 376: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

376

2 – Atendimento parcial das reivindicações;

3 – Uso dos técnicos como mediadores;

4 – Canalização institucional do movimento – fortalece as entidades sob seu

controle e não a organização popular;

5 – Pegar as lideranças e atraí-las para a máquina do Estado;

6 – Criar comissões, grupos de trabalho fora do controle popular;

7 – Retenção e manipulação de dados sobre verbas, orçamentos públicos e

prioridades de projetos;

8 – Decisões de interesses público continuam a ser feitas de cima para baixo

embora se procure dar a impressão de que está „consultando‟ a população;

9 - Jogar uma reivindicação contra a outra;

10 – Jogar a resolução do problema cada vez mais para instâncias diferentes;

11 – Uso dos meios de comunicação de massa enquanto forma de propaganda

ideológica das realizações governamentais e desmoralização dos movimentos

populares;

12 – Oferta de serviços e cursos na linha de „promoção humana‟, como forma de

neutralizar a politização das massas;

13 – Uso da repressão com relação a movimentos mais articulados e que se

referem a questão da propriedade e setores econômicos de maior peso;

14 - Regionalização do atendimento às reivindicações;

15 – Prolongar ao máximo os períodos de estudos e negociações, procurando

vencer o movimento pelo „cansaço‟.491

Por se tratar de um relatório descritivo-orientativo, apontou algumas

alternativas que poderão ser desenvolvidas no processo de organização popular no

enfrentamento das novas formas de atuação do Estado em relação aos movimentos

populares:

1) - Aprofundar o alargamento do programa de reivindicações;

2) - Conquistar e construir formas organizativas do movimento popular;

3) - Capacitar e exercitar o Movimento Popular e elaborar e apresentar

propostas concretas e alternativas à política oficial, sendo necessário para isso o

conhecimento dos projetos governamentais.

4) - Intensificar o trabalho de educação política dentro do movimento popular e a

criação de Centros de Educação Popular nos bairros;

5) - Necessidade dos movimentos terem propostas de continuidade de luta nos

momentos de refluxo;

6) - Criar focos de articulação e unificação de lutas entre os movimentos do

mesmo tipo e entre os diversos movimentos;

7) - Criar formas de autossustentação dos movimentos que possibilitem a sua

independência;

8) - Incentivo à participação das mulheres e jovens na luta;

491

Ibid.

Page 377: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

377

9) - Divulgar, por todos os meios, as lutas do movimento popular;

10) - Relembrar constantemente as promessas governamentais e cobrá-las;

11) - Necessidade de sempre ligar fé com política;

12) - Não abrir mão da forma de luta direta.492

Como observado, inúmeras foram as formas estruturadas para impedir que

houvesse mudanças no „sistema‟ organizado em torno dos assentados no poder Estatal,

por um lado, apontando alguns equívocos cometidos por grupos de educadores

populares, que, despidos dos sentidos necessários da educação popular, disseminavam

discursivamente as máxima abaixo:

a) „Dar consciência ao povo para que ele transforme sua realidade‟;

b) „É instrumentalizar as camadas populares para que elas busquem um

caminho próprio, rumo à transformação‟, ou ainda,

c) „É para que as camadas populares se apropriem de um novo saber,

instrumento e poder de transformação social‟.

Observe que trata a consciência como algo transferível de alguém para outro

alguém, um objeto a ser embalado e repassado. Consciência e conhecimento não se

transferem, visto que fruto da boa mediação e da aprendizagem, portanto, parte do

princípio que requer alguém que saiba e possibilite ao outro adquirir esse conhecimento

a partir das referências a ele possibilitada.

Segundo, instrumentalizar as camadas populares para que estas busquem um

caminho próprio, rumo à transformação. Observe que a transformação social, nessa

ótica, está no horizonte, essa é uma forma tacanha de apresentar as possibilidades de

transformação, elas estão no meio social de onde devem desencadear o processo.

Por fim, o significado de um novo saber não requer que ele seja externo,

mas um saber que se produz internamente e com capacidade de se transformar em

poder.

Antes de tudo, fica claro que a educação popular é uma prática que se dá na

esfera da troca de saber entre pessoas que se consideram parcerias na luta pela

transformação da sociedade. Por isso, coadunamos com a definição suscitada naquele

encontro: a Educação Popular é um processo de troca de saberes entre educador-

492

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 19-37.

Page 378: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

378

educando, agente-povo visando a produção de formas políticas de conhecimento

popular capazes de orientar e fortalecer a prática política dos movimentos

populares.493

É a criação de instrumentos e ferramentas na área do saber. Com a

finalidade de compreender e analisar a realidade social e orientar as ações dos grupos e

movimentos populares frente ao momento histórico que vive os desafios e questões

teóricas e práticas que ela coloca. A Educação Popular é um fato político: nós a fazemos

e, a partir dela, a teorizamos. Com tais análises e definições, pensamos que a Cartilha

Estou Lendo, utilizada no projeto INAJÁ, e posteriormente nas parceladas, é fruto do

pensamento e da ação da Educação Popular e Democrática no Araguaia-Xingu mato-

grossense, pois, sem o processo histórico de engajamento e defesa das lideranças e

demais colaboradores local, dificilmente alcançariam tais conquistas.

A seguir, retomamos aspectos sobre as disputas pela memória acerca dos

programas educacionais no Araguaia-Xingu de outrora, e do contínuo fazer dos

educadores no Brasil Central.

4.4 – As disputas pela memória: a educação em semente sob as sombras do Inajá

Educar não é ensinar a ler e contar feito papagaio ou a desfilar pelas

ruas feito macaquinho ou a saber a mexer com muitas máquinas para

o benefício dos capitalistas do mundo. Pedro Casaldáliga.494

Retomamos ao projeto INAJÁ apresentando seus antecedentes e, a partir

dele, traçar análises sobre seus desdobramentos. Segundo Dulce Pompeo de Camargo, a

partir de 1983, as prefeituras populares, carentes de pessoal para seus quadros e

sentindo as exigências se tornarem mais complexas para ampliação vertical do ensino,

iniciaram contatos com pessoas conhecidas, em São Paulo.

No sentido de validar aquele ato inaugural, fazendo uso do depoimento de

Luís Paiva, um dos secretários de educação que abraçaram a causa do INAJÁ, e,

posteriormente se tornando coordenador do curso Camargo:

493

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 08-37. Sem destaque no original. 494

Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1990. A 16.9. 03,

p. 2-8.

Page 379: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

379

[...] o pessoal queria o ginásio na „rua‟, inclusive. Aí pintava a questão

da falta de professor habilitado. Aí foi uma ideia, me deu vontade.

Tudo bem, vamos, mas para ficar um ano ou dois, não vamos para

ficar para sempre. Cheguei em fevereiro de 1985. Vim prá

Cascalheira. Quando eu cheguei fui professor de inglês, professor de

educação física, professor de português e professor de história

também. Um tanto de coisas.495

Ao descrever o projeto INAJA, a pesquisadora tomou como ponto de

partida o início do curso, deixando, portando, não ditos importantes para entender o

contexto em que se deu a invenção do INAJÁ e, em especial, as lideranças e

mobilizadores das comunidades em prol da causa de primeira grandeza, a escola e sua

forma peculiar de organização. Afirmou a mesma, “Em 1976 ocorre a emancipação de

São Félix do Araguaia e da Prelazia, antes incorporada a Conceição do Araguaia

(sudeste do Pará). Através dela, chega à região o bispo espanhol D. Pedro

Casaldáliga”.496

Parece-nos que houve um equívoco, pois, a emancipação política de

São Félix não pode ser confundida com a Prelazia, pois esta ocorrera em 1970.

Embora tenha se referido ao GEA, destacando sua importância no

recrutamento de jovens, ex-seminaristas, das mais diferentes tendências da esquerda,

provenientes, principalmente, do estado de São Paulo, para lecionar no ginásio, talvez,

por conta de não ter tido acesso a outras fontes, ainda que tivesse estabelecido estreito

diálogo com colaboradores da Prelazia, a exemplo de Dagmar Gatti, desconsiderou o

processo antecedente à demanda de formação de professores, refiro-me à edificação da

escola pelas comunidades, a formação nos cursos de férias oferecidos aos professores

em 1978, o processo de alfabetização e todos os percalços pelos quais passaram por

conta da ausência do Estado.

Camargo publicou relatos de Dagmar Gatti sobre o trabalho de

alfabetização, conforme observamos abaixo:

[...] a alfabetização é uma coisa que nós vimos como trabalhar na

metodologia, na proposta, com essa linha mais de construção do

conhecimento, apesar de que a gente fez uma cartilha... um subsídio

para o professor... só que foi difícil para o professor entender isso...

495

CAMARGO. Dulce Pompeu. Mundos entrecruzados. Projeto Inajá: uma experiência com professores

leigos no Médio Araguaia (1987-1990). Campinas, SP: Alínea, 1997. Entrevista com Luís Paiva,

graduado em Estudos Sociais e História. No mesmo ano de 1985, foi escolhido Secretário de Educação de

Canarana e, em 1987, coordenador do Inajá. 496

Ibid., p. 46.

Page 380: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

380

Era uma fala no nosso trabalho...era uma proposta mais nossa do que

dos outros que trabalhavam.497

Também desconsiderou a produção local da cartilha Estou Lendo!!!,

produzida pelos professores, a qual certamente contribuiu para com a concepção do

INAJÁ. Assim, na perspectiva de contribuímos para melhor entender esse processo

fazendo uso do relatório de conclusão do curso produzido em 1991, o qual se orientou

por uma educação popular e democrática:

[...] desde os anos 60, quando ainda todos os municípios (..)

pertenciam a Barra do Garças, que professores leigos como Dona

Tunica (Antonia Coelho Matos – SFA), Dona Elza Freitas (professora

aposentada – SFA), Dona Paula – Paulette Franchon – professora em

Floresta Conceição do Araguaia – PA, e outros, batalhavam pela

instalação de escolas públicas para os filhos dos moradores da região.

Com o passar dos anos, foi possível criar em São Félix do Araguaia,

em 1969, o Ginásio Estadual.498

Seguimos apresentando outra fonte a que tivemos acesso, a exemplo do

documento Memórias, datado de maio de 1990 e produzido pela equipe do Centro

Ecumênico de Documentação e Informação. Observamos que essa peça documental foi

redigida um ano e meio antes da conclusão do curso, portanto, ainda em execução.499

Ao tempo em que informa a existência de um projeto de recuperação das

lutas educacionais da região e seus proponentes afirmaram, no documento, que estavam

mantendo contato principalmente com a Dagmar, Luiz Paiva e Elaine, com os quais

estavam procurando discutir a proposta de trabalho. Todavia, sentiam necessidade em

reunir o que estava sendo pensado, sendo a ideia inicial a de produzir uma carta, mas,

evoluiu para um boletim:

[...] ao tempo que „prestamos contas‟ do que estamos fazendo por

aqui, gostaríamos que este boletim fosse um veículo de vai e volta.

Aguardamos as opiniões, sugestões, broncas e apoio de vocês todos.

497

Ibid., p. 47. 498

Relatório Final do Inajá, p. 8. 499

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 38. P. 1-8. O documento tem por título

Memórias e possui 8 páginas divididas em uma apresentação, memória da luta por educação na região do

Araguaia, proposta de periodização, cronograma de trabalho, perfil dos monitores e cursistas,

documentação, relatório de pesquisa, seminário, caça aos documentos, aos vinte anos e cutucando a onça.

Page 381: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

381

Esperamos estar aí em julho, para maiores papos. Marília Pontes

Sposito, Fernanda Macruz e Orlando Joia.500

Segue o documento afirmando que no mês de julho daquele ano encerrava-

se a última etapa intensiva da formação dos professores rurais leigos da região, e que

durante os últimos 3 anos participaram do curso:

[...] a relevância dessa experiência pode ter como motivadora de

reflexão sobre a questão da formação e qualificação dos professores,

como uma das molas propulsoras da mudança de qualidade da escola

pública, o projeto Inajá merece um esforço de recuperação e análise.

Mas, além da importância em si, é possível pensar que a experiência

do Inajá, tal qual foi desenhada, só foi possível na medida em que é

produto de uma história de lutas e ações na área educacional, que

integrou os movimentos populares na região desde pelo menos a

década de 70, que envolveu diversos protagonistas, com especial

destaque para a Igreja Católica.501

Ao analisar o texto, percebemos a clara preocupação em garantir que a

memória não fosse apagada ou relegada a segundo plano, pois, se assim o fosse, seria

perdido todo um processo de luta pela educação popular e democrática, colocada em

prática desde a década de 1970 e cuja trajetória foi revelada na tessitura da narrativa a

que estamos por concluir.

Segue o documento apontando o objetivo pelo qual o projeto estava sendo

escrito, o de reconstruir a memória dessas lutas e ações, no sentido da socialização e

avaliação da experiência, o que, obviamente, poderia trazer elementos para se repensar

ações como a do INAJA, assim como o marco de sua continuidade e transformação,

uma vez que se trabalhava com a hipótese de que uma das principais condições de

efetividade da formação de professores era seu caráter de continuidade.

Seus proponentes afirmam que:

[...] ao se propor a recuperar a memória de um movimento ou de uma

época, a documentação escrita é essencial. Além de escritos mais

convencionais (livros, artigos de jornais de grande circulação etc.), há

uma infinidade de documentos que guardam a história escrita:

panfletos, boletins, cartas, documentos oficiais, relatórios etc. ao lado

dos escritos, já uma memoria oral, que precisa ser captada através de

entrevistas e outros registros. Imagens também contam a história:

500

Ibid. 501

Ibid., sem grifos no original.

Page 382: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

382

fotos, desenhos, logotipos etc. Procurar e organizar documentos é uma

das tarefas num trabalho de memória. Organizar a documentação

(principalmente escrita) é uma das tarefas que já estamos

realizando.502

Como observado, a equipe proponente sabia, do ponto de vista

metodológico, mais que reconhecer as fontes, mas produzir, de forma sistemática, um

rico acervo para que pudessem ter acesso futuramente:

O objetivo final do CEDI não é entesourar documentos, mas

socializar, eles tem um valor mais imediato de servir de apoio ao

trabalho de levantamento e pesquisa. A destinação final do acervo

pode ser decidia em comum acordo com as instituições e grupos que

participam do trabalho de reconstrução da memória no movimento.503

Dessa feita, o documento indica horizontes acerca do trabalho que haveria

de ser realizado para a construção do acervo e da continuidade das ações, que,

invariavelmente, tinham sua função social e coletiva.

O documento prossegue afirmando que já haviam sido entrevistadas

algumas personagens dessa história e que „[...] estavam a nosso alcance: Moura, Paula,

Aninha, Inês, Lurdes (SF), Miguel (Casc), Clara (Rb), Irmãs Maria de Lurdes, Noêmia e

Armandina, Alita, Helio (Piau), Isabel, Nesca e Vaime. Além destes estavam „na

agulha‟ Luiz Góia, Eugenio, Luiz e Silvia, Ilda, Zé Wilson, Vera Vacari, Susto, Onilda,

Cascão”.504

Além destes, a equipe tinha também por propósito entrevistar os forante da

região (Prelazia, Prefeitura, Estado, Inajá, alunos, pais, professores, militantes,

sindicatos), e queriam entrar em contato com Mada, Bia, Dirsomar e Neide (Goiás),

Chico, Cristina, Lucinha, Carlão, Pe. Zé Maria, Juarez, Pe. Falheiros (BH), Regina,

Dineva, Diá, Vanja (Cuiabá), Serys e outros que tiveram participação na região.

Noticiava o grupo que tinham organizado um „depoimento coletivo‟, com

Elaine, Judite, Zé Wilson, Valeriano, Isabel, Cascão, Dagmar, Zé Martins, Susto, Nesca,

Fernanda, Martins (da USP), Marília e Orlando, além de uma gostosa „hora da saudade‟,

capaz de traçar uma linha do tempo, relacionando lutas educacionais, pastorais,

políticas, sindicais, além de pincelar alguns conflitos internos.505

502

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 38. P. 4-8. 503

Ibid. 504

Ibid. 505

Ibid.

Page 383: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

383

Assim, ao tempo em que apresentava o horizonte de expectativa sobre a

organização da memória, cuja conclusão, infelizmente, não temos notícia, essa ação foi

alimentada por encontros entre aqueles atores, cujos nomes reproduzimos, por entender

que precisamos reconhecer seus inventores no tempo, em se tratando de um trabalho

sobre a invenção da escola.

Como não conseguirmos falar de todos os Pedros, Marias, Josés, Anas... que

participaram dessa invenção, reproduzimos os nomes lembrados e contidos nos

documentos. Da mesma forma, em se tratando de um projeto popular, portanto,

coletivo, haveria naturalmente de encontrar resistência, externa, como já bastante

apresentado, mas também de „desacordos‟ internos, aos moldes de qualquer processo

que envolva decisões coletivas, portanto, democráticas.

Em seguida, o documento, em sua página 6, inicia com um título: Aos vinte

anos, seguido da seguinte frase: “Nos 10 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia,

ainda menina, Zé di Lucas (Diá, Luiz e Cascão) escreveu sua história em A Peleja das

piabas do Araguaia contra o tubarão besta fera. Agora, a Prelazia está nos 20, com

mais 10 anos de maturidade. Quem vai escrever ou transcrever sua história, em verso,

prosa ou desenho?506

Pelo observado, não ocorreram novos escritos sobre os anos 20, 30 e 40,

pelo menos não tivemos acesso à publicações, e quem sabe nos 50 anos de existência da

luta por uma escola popular e democrática possa ser gerada documentação igualmente

consistente Para concluir, apresentamos um excerto de uma carta contida na página 6

com título e conteúdo:

Cutucando a onça

Carta aberta aos educadores populares de São Félix do Araguaia e

região.

Estamos aqui numa espécie de pequeno „campus avançado do

Araguaia‟ em São Paulo, trabalhando e colhendo material reunindo

documentação, fazendo entrevistas, e conversando com todo mundo

que passa por aqui sobre os assuntos da região.

Há uma questão parada no ar, que tem incomodado várias pessoas

que participam da luta, que é a seguinte: o que resultará de concerto,

desse empreendimento de resgatar a memória das lutas educacionais

na região do Araguaia?

Sabemos que o que todos querem é que esse trabalho desemboque em

alternativas concretas, viáveis, que deem em continuidade a todo o

trabalho desenvolvido em educação na região, desde 1968. Não

506

Ibid.

Page 384: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

384

apenas uma continuidade linear, de tarefas, mas um salto de

qualidade. Que prossiga, ocupando espaços mais ou menos

institucionalizados, com um projeto de educação como está sendo

esse de formação de professores.

Não adianta só „formar‟ (fazer um curso, por melhor que ele seja) os

professores e larga-los no eito é preciso dar continuidade política a

esse trabalho. Isso, sentimos aqui de São Paulo, é também a

preocupação de várias pessoas daí, é preocupação nossa. Mesmo não

sendo o objetivo mais específico e imediato de nosso trabalho.

A partir de nossos contatos com as pessoas daí, sentimos que questões

sérias estão sendo colocadas com relação à continuidade. Sentimos

também que as questões ainda estão sendo colocadas no nível

individual, parecendo não terem sido coletivizadas. Mas, afina, qual é

a preocupação central? Já houve momentos de reunião e de

discussão, em que se aprofundaram essas preocupações?

Pode ser que essa questão já tenha sido enfrentada e nós estamos sem

informações suficientes e adequadas. Mas o que queremos é cutucar a

onça, não importando o tamanho da vara.

A conjuntura que vem por aí pode complicar mais. Como dar

continuidade aos trabalhos dos monitores, por exemplo, já que a sua

permanência na região parece ser cada vez mais difícil. Sabemos que

a continuidade da equipe de monitores é vital para a continuação da

luta. Que espaços novos cabem conquistar ou reconquistar?

[...]

Não se pode (achamos) dar ao luxo agora de perder todos esses anos

de trabalho e entregar os frutos ainda não maduros de mão beijada a

interesses antipopulares.

Tem se falado em criar um centro didático-pedagógico, como uma

das estratégias de continuidade do trabalho de formação na área

educacional. Como seria o desenho desse centro? Quais seriam suas

finalidades? Há um espaço para isso ou ainda é só „querência‟?

Estamos (como se vê) cutucando a onça. Mas é preciso pensar em

alguma ou algumas alternativas, de tal sorte que não se perca o

específico da educação geral e escolar (ainda que sob alguma

perspectiva popular) no meio da formação sindical, agrícola, política

etc. a experiência acumulada é grande, um grande conhecimento que

seria uma pena fosse diluído.507

É possível mobilizar as pessoas para enfrentar essa questão? O

importante é criar um espaço para que essa reflexão se dê e tirar com

urgência propostas concretas. No fundo, parece que as grandes

questões são estas:

1) Movimentos sociais e a conjuntura atual e o papel das

associações

2) Formas de interação no campo educacional com o

Estado (governo e Prefeituras)

Como vocês veem, tomamos a liberdade de sugerir questões, mesmo

estando fisicamente distantes de vocês. Aguardamos respostas.

Datam e assinam o documento, Maio de 1990. – CEDI - (Marilia

Pontes Sposito, Fernanda Macruz e Orlando Joia).

507

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia .DIII. 0. 38 p. 7.8 e 8.8.

Page 385: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

385

Como apresentado, a

preocupação com a memória sobre o

movimento educacional no Araguaia-Xingu

mato-grossense traduzia preocupações

naquele contexto e daqueles que ainda

estavam por vir. Dessa forma, entendemos

que o projeto INAJÁ foi inspirado e inspirava

cuidados para com uma Escola Popular e

Democrática.

Seguindo seu curso na história, o

INAJÁ também habitou as páginas da Folha

Alvorada por algumas vezes, todavia, uma

em especial traduziu em desenho e letras sua

diversidade, conforme pode ser observado na

Figura 49, assinada por Cerezo Barredo.508

Em 1990, em editorial da Folha

Alvorada, edição de número 154, Pedro

Casaldáliga, ao tempo em que noticiava que

aquele ano tinha sido anunciado pela

UNESCO como sendo ano internacional da

alfabetização, afirmou que no Brasil ainda

havia, aproximadamente, 30 milhões de

analfabetos, razão pela qual a CNBB, entre

25 de abril e 4 de maio, se reuniu, e o tema

central do encontro foi a Educação, que resultou em um manifesto, fruto de estudo que

508

Maximino Cerezo Barredo é um amigo de Pedro Casaldáliga, desde a Espanha de 1960. Trabalharam

juntos na revista Íris, Revista de Testemonio e Esperanza. Trata-se de um sacerdote, missionário

claretiano, nasceu nas Astúrias, em Villa viciosa, na Espanha, em 1932. Estudou pintura e desenho na

Escuela de Bellas Artes de San Carlos, Valência, e na Escuela de Bellas Artes San Francisco, Madrid.

Apresentamos Cerezo Barredo, a partir do trabalho de Valério, por serem as obras de Barredo engajadas e

cujas estampadas em murais pelas igrejas do Araguaia, bem como por várias edições da Folha Alvorada.

Em uma delas, relevante para nosso trabalho, a educação popular e democrática pode ser percebida na

imagem (VALÉRIO, Mairon Escorsi. Entre a cruz e a foice: D. Pedro Casaldáliga e a significação

religiosa do Araguaia. Dissertação (Mestrado em História) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

na área de concentração de História Cultural – Unicamp, Campinas, 2007, p. 174).

Page 386: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

386

haveria de correr o país por um período de dois anos, a ser lido e debatido nas

Universidades, famílias, comunidades, entre os professores e alunos, ante os sindicatos

e as autoridades. O objetivo era o de que todos juntos pudessem discuti-lo e aperfeiçoá-

lo. Tratava-se de uma „ação renovada em prol de um programa de alfabetização

„conscientizadora‟ em nosso país. Afirmava ainda o Bispo que a palavrinha

„conscientizadora‟ trazia seu sal: “[...] nem a alfabetização nem educação nenhuma

merecem o nome de educação se não ajudam as pessoas a tomarem consciência de

sua própria vida, da sociedade, da história.509

Continuava a descrever, naquele editorial, um pouco da memória, afirmando

que a prelazia de São Félix do Araguaia tinha uma história de 20 anos empenhados de

muitos modos, na Educação formal ou informal, como se diz. Com as companhas de

conscientização, na Comunidade da Igreja, na pastoral social, na CPT, na formação

política, nos sindicatos, com aquelas primeiras campanhas de Alfabetização, segundo o

método Paulo Freire, que já nos custaram muita perseguição:

Nas escolas do sertão e dos patrimônios. Com aquele ginásio a beira do

Rio Araguaia, que formou a primeira turma da região. Com muitos

agentes de pastoral e outros companheiros e companheiras da

Caminhada, que vieram trabalhar na Educação, aliciados ou convidados

pela Prelazia. O mesmo projeto INAJÁ, que forma professores da

região em período de férias e está sendo reconhecido no país como

projeto pioneiro, também recebeu bastante ajuda da Prelazia para sua

organização e funcionamento.

Agora, por ocasião do nosso levantamento pastoral e estimulados por

esse apelo nacional a CNBB, vamos implementar, com todo

entusiasmo, a PASTORAL DA EDUCAÇÃO, entre nós. Os pais, os

alunos, os professores, os agentes de pastoral e enfrentantess, as

comunidades todas, estão convidados para essa tarefa tão urgente e

cristã. A educação é necessidade de todos, serviço de todos, benefício

para todos. Crianças e adultos. Sempre é tempo de educar e de se

educar510

.

Camargo afirmou em sua narrativa que, no início do curso INAJA;

[...] ao iniciar o curso, percebemos por parte dos monitores, em maior

ou menor grau, um misto de perplexidade e mesmo discordância

509

Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Março de 1990 A16.9.01 -

p.2-8. Sem grifo no original. (imagem A16.9.03 p. 2-8) 510

Ibid.

Page 387: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

387

quanto à concepção de história por nós veiculada. Uma monitora de

São Félix do Araguaia chegou a dizer: „mas isto não é história‟.511

Tal constatação possibilitou confirmar a hipótese de que, embora os

professores não tivessem passado por formação em nível médio, opinavam sobre a

história „oficial‟ e a que deveria ser ensinada, e, como já mencionamos, a fonte seria a

Folha Alvorada e não, como disse Camargo:

Acredito que para os participantes do Projeto, estava claro apenas a

História que „não queriam‟. Isto porque, em um curso que antecedeu o

Inajá, consideraram imprópria a experiência com a área de Ciências

Humanas por esta ter se

desenvolvido de forma linear, factual, assentada numa organização de

conteúdos presente na denominada história oficial e divulgada através

de livros didáticos.512

Na edição da Folha Alvorada dos meses de novembro e dezembro de 1990,

foi veiculada notícia referente à formatura dos alunos matriculados no projeto INAJÁ,

que aconteceu na semana do dia 20 de outubro daquele mesmo ano. Tudo começou

assim dizia a matéria:

Em 1984 os professores Luiz e Eunice de Paula, da Escola Indígena

Tapirapé, entraram em contado com a UNICAMP, que passou a

assessorar o trabalho educacional ali desenvolvido na aldeia. A partir

das contribuições desses assessores, montou-se um projeto de

amplitude regional chamado „novas perspectivas do ensino no

contexto rural, urbano e indígena do Vale do Araguaia. Esse projeto

teve 5 etapas intensivas, de julho de 1985 até agosto de 1987. Já em

1988 começou o projeto INAJÁ para capacitar os professores rurais e

indígenas a nível de 2º grau.

Assessorado pelos professores da UNICAMP, o curso teve 6 etapas de

um mês. Inovador na metodologia, o projeto buscava „aprender a

partir da própria experiência‟. Daí o estudo da flora, fauna, geografia,

história, alimentação, saúde, costumes, cultura, lutas da região. Todos

os dados levantados pelos alunos.513

A matéria também noticiava o PROJETO INAJA como algo de novo na

Educação. Afirmava que no dia 20 de outubro de 1990, na cidade de São Félix do

511

CAMARGO. Dulce P. Mundos Entrecruzados: formação de professores leigos no Médio Araguaia.

Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação. Unicamp, 1992. Campinas, SP: Alínea,

1997.p. 100. 512

Ibid. 513

Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Nov./Dez. de 1990. A 16.9.

07, p. 5-8.

Page 388: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

388

Araguaia, 120 professores dos municípios de Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte,

São Félix e Ribeirão-Cascalheira, além de alguns professores indígenas, da aldeia

Tapirapé, receberam diploma de magistério a nível de 2º grau:

Numa formatura diferente, por que original e diferente foi o processo

de sua formação. Eram os alunos do INAJÁ, Como esta palmeira da

região, teimosa e fecunda, eles enfrentaram durante 3 anos uma luta

dura mas venceram.514

Aquela semana, segundo informa a Folha Alvorada, foi precedida por

momentos de debate assessorados pelo professor Rubem Alves. Foram montadas várias

exposições onde os alunos mostraram para a comunidade o fruto do seu estudo e, no

final, surgiram várias propostas para dar sequência ao trabalho, já que, a maioria dos

alunos queria continuar seu processo de formação.

Concretamente, a Fundação do Ensino Superior de Cáceres-MT se mostrou

disposta a abrir um núcleo na região do Médio Araguaia, visando oferecer cursos de

extensão universitária, biblioteca itinerante e licenciaturas parceladas. Continuava a

matéria:

Foi formada uma comissão integrada por pessoas ligadas ao projeto

INAJÁ e à área de educação, além dos representantes dos poderes

executivo e legislativo dos municípios interessados. Essa comissão

seria responsável por elaborar o cronograma das atividades, definir

local onde o projeto teria sua sede e encaminhar as propostas vindas

dos alunos.515

Em 1991, a Folha Alvorada anunciou, em sua edição número 160, a

preocupação em relação ao curso superior na região, pois era uma reivindicação dos

alunos que concluíram o ensino médio continuar seus estudos sem precisar ir para os

grandes centros, pois era uma minoria que conseguia acesso aos mesmos. Afirmou a

matéria que havia sido criada comissão representativa para encaminhar os trabalhos e,

em Cáceres, nos dias 12 e 13 de dezembro, com a presença de 15 ‘polos’

educacionais do Estado, discutiu-se a formação de uma política de ensino superior,

dentre outras decisões, ficou definido que um dos cinco novos núcleos, um seria no

Araguaia.516

514

Ibid., p. 5-8 515

Ibid., 516

Alvorada (1991), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1991. A 16.10. 01, p. 5-8.

Sem destaque no original.

Page 389: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

389

Logo no início do ano seguinte, na edição de número 166 da Folha

Alvorada, em capa emblemática, colocava em questão o V Centenário de Evangelização

na América Latina (1492-1992), a qual estampava, em primeiro plano, um jesuíta

empunhando a cruz com a mão esquerda ao alto, e segurava uma espada na mão direita.

No segundo plano, uma família indígena, composta por um homem, uma mulher e uma

criança, em posição submissa, tendo ao longe uma nau ancorada no porto, e, ao lado do

quadro, a frase 500 Anos De Que? A beleza da obra de Cerezo Barredo colocava em

dúvida as intenções daquela igreja opressora, que há muito já era denunciada pela

teologia da libertação, em especial por Pedro Casaldáliga, e em pinceladas cirúrgicas de

Cerezo Barredo. Esta edição da Folha Alvorada é bastante rica por abordar a questão

indígena, afirmando não ter havido qualquer descobrimento, mas sim, um

encobrimento. Também anuncia que durante o ano seria publicada uma edição dedicada

ao tema.

Todavia, para nosso trabalho, a principal informação foi encontrada na

página 4, a qual anunciava a Universidade de Férias, tão esperada, porém, em meio ao

descontentamento:

Em todo o país a Educação é um verdadeiro problema quando não é

um desastre total. A própria CNBB, nestes três últimos anos, vem se

preocupando diretamente com a Educação, em suas assembleias

gerais.

A educação e a saúde, aliás, quando ambas deveriam ser a primeira

preocupação de uma política e de uma administração que mereçam o

nome de humanas.

No Estado de Mato Grosso, particularmente, a Educação anda muito

mal mesmo. E as autoridades tem, nesta calamidade, uma

responsabilidade maior. Os professores não são valorizados e não é

respeitado o direito dos pais, dos mestres e dos alunos. Nessas todas,

chega a São Félix a oportunidade singular de uma UNIVERSIDADE

DE FÉRIAS, com as Faculdades de Letras, Matemática e Ciência da

Educação. Uma extensão universitária da Fundação de Ensino

Superior de Cáceres – MT. E a prefeitura de São Félix despreza a

oferta e se nega a acolher esse instrumento de progresso verdadeiro,

bem mais importante para todos que a luz elétrica na praia dos

turistas. Ainda bem que a prefeitura de Luciara salvou, pra Luciara e

para toda a região, a Universidade de férias.

O comentário fica por conta de todas as pessoas sensatas de São Félix

e de fora de São Félix Também. A Universidade começa a funcionar,

em Luciara, com o vestibular, marcado para os dias 9, 10 e 11 de

fevereiro.517

517

Alvorada (1992), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1992. A 16.11. 01, p. 4-8.

Page 390: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

390

Ao observarmos o sentimento que conduziu a escrita da matéria, percebe-se

uma satisfação pela conquista coletiva em relação à oferta de cursos superiores pela

Universidade do Estado de Mato Grosso, a qual descrevemos um pouco sobre a

trajetória pela qual envolveu sentimentos, vontades, sonhos e principalmente utopias,

cujo projeto se concretizava naquele momento, a Universidade „instrumento de

progresso verdadeiro‟ no Araguaia-Xingu, a qual se tornaria a melhor e uma das mais

importantes conquistas do povo da região, pois, a partir daquela data inaugurava-se uma

nova página na história da educação popular e democrática, pois se tratava de uma

universidade pública, início de uma história de sucesso que haverão de ser motivo de

muitas outras pesquisas518

.

Porém, foi verificada também uma insatisfação, pois, embora São Félix do

Araguaia tenha sido palco de contendas pela educação, assim como Santa Terezinha,

Luciara foi quem abriu as portas para sediar os primeiros cursos. Todavia, nem por isso

haveriam de „criar caso‟, pois a escola popular e democrática no Araguaia-Xingu se

fazia em rede, numa perspectiva de região, cabendo avaliação dos fatos às pessoas

sensatas, conforme concluiu a matéria,

Aproveitamos o ensejo para concluirmos o tópico, na esperança de ter

conseguido montar um quadro suficientemente capaz de explicar onde, como e por

quem foi concebida, edificada e praticada a escola popular e democrática, fruto das lutas

pela memória, no Araguaia-Xingu mato-grossense. Porém, trata-se de uma perspectiva

que não acaba em si, pois a escola é uma invenção prenhe de necessidades e um

contínuo processo de reinvenção.

518

A Universidade continua a ofertar cursos nas Parceladas, nos quais tive o prazer de contribuir com

algumas disciplinas, em Confresa e Luciara, junto aos cursos de Ciências Sociais, com as disciplinas de

Introdução à Filosofia e Antropologia Camponesa, em 2016. Em Luciara, com a disciplina Tecnologia na

Educação (2017) e em Confresa, Pedagogia 2ª Licenciatura, com a disciplina de Filosofia da Educação. Já

em Vila Rica, no curso de Licenciatura da computação, em 2011 e 2014, com as disciplinas Tecnologias

Educacionais, onde pude orientar, co-orientar e participar de inúmeros trabalhos de final de curso. Porém,

a maior experiência está ligada ao fato de ter convivido com a forma como são organizadas as etapas

intensivas (férias), onde a maioria dos acadêmicos se desloca para a cidade polo e ali permanece durante

o período de aulas (aproximadamente 45 dias), nos meses de férias dos períodos escolares e nas etapas

intermediárias. Ali, organizam coletivamente o espaço físico para alojamento, alimentação – cada semana

uma pessoa é escolhida para a gestão do recurso arrecadado para compra dos produtos necessários para

garantir o alimento de todos, bem como o pagamento das pessoas contratadas para aquele trabalho.

Também os gestores organizam grupos de estudo e monitoria (Focco ou Pibid), procurando incentivar e

„cuidar‟ para que não haja abandono nos cursos. Essa estratégia tem se mostrado eficiente, pois a

qualidade dos cursos pode ser mensurada no grande índice de aprovação no último concurso da Secretaria

de Estado de Educação, bem como nos vários artigos publicados pelos acadêmicos.

Page 391: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

391

Assim, na busca de respostas para esse movimento de re-fazer percursos,

trataremos a seguir dos desafios que cercam os professores de história, que história

ensinar, como ensinar e que perfil se faz necessário para mediar à produção de

conhecimento no século XXI.

4.5 – O saber-fazer do professor de história no presente e no futuro

Partiremos sempre do nosso „lugar‟ e de nossa „memória‟. Cremos

que radicar-se na própria realidade cotidiana é o melhor modo de se

lançar a um horizonte mundial e a uma neo-revolução histórica. O

lugar e a memória bem vividos, nutrem as raízes e ensinam.519

Os princípios da educação popular e democrática esteve presente na

formação dos acadêmicos dos cursos de licenciaturas plenas parceladas em história,

ministradas em São Félix do Araguaia, no início do século XXI, permitindo afirmar a

continuidade do projeto de escola popular e democrática principiado na década de 1970

no Araguaia-Xingu mato-grossense, pois, como expressa a epígrafe, partir do lugar e da

memória e radicar no cotidiano é instrumento para, no século XXI, caminhar em busca

de uma revolução histórica em tempos de neoliberalismo.

Apresentado o contexto e as problemáticas no tópico anterior, objetivamos

no presente, por meio de fonte primária, aventar algumas respostas, bem como

identificar as representações sociais sobre terminologias relacionadas ao conhecimento

histórico (saber) dos professores que atuam nessa disciplina, analisando suas

percepções sobre as palavras-conceitos entendendo-os como „temas geradores‟ usuais

do cotidiano da sala de aula.

Partimos do pressuposto de que, em sendo palavras bastante „comuns‟ do

cotidiano – sala de aula – a exceção da palavra „tubarão‟, pois poderia provocar

dubiedade entre o animal tubarão e o fazendeiro, por ter sido uma expressão própria de

uso de um grupo social crítico ao processo de latifundização das terras no Brasil

Central, entre as décadas de 1960 e 1980, as demais são bem conhecidas e utilizadas

diariamente pelos professores de história em sala de aula.

519

Mensagem de abertura extraída do convite de formatura dos concluintes da turma de Licenciaturas

Plenas Parceladas em História, pela UNEMAT, no ano de 2002. Arquivo da Prelazia de São Félix do

Araguaia. A 28.13.04 p. 4-8.

Page 392: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

392

Entendendo que dos processos de mediação e aprendizagem (fazer) na

disciplina de história emanam conhecimentos acerca de conceitos fundamentais, bem

como o domínio sobre eles no tempo, imaginávamos poder, de certa forma, perceber

alguma equivalência nas respostas. Igualmente, tínhamos por hipótese que as inserções

dessas palavras no formulário de pesquisa contribuiriam para que os professores

pudessem, ao tempo em que respondiam, refletir sobre os processos de ocupação e luta

pela terra no Araguaia-Xingu mato-grossense, especialmente embasados na memória

histórica.

A partir do formulário, traçamos um perfil mínimo dos colaboradores, na

perspectiva de entendê-los participantes de um processo de transformação dos meios

tecnológicos sociais digitais, cujo processo tem, como observado na justificativa,

transformado as relações sociais por meio comunicacional, os quais exigiam novos

processos de mediação, portanto, novas metodologias no fazer do professor de história,

no presente e no futuro.

Todavia, para entender como o professor se colocou diante deste desafio,

procuramos ouvi-lo por meio de questionário, respondido por 19 colaboradores de 4

cidades, São Félix do Araguaia, Ribeirão Cascalheira, Confresa e Santa Terezinha,

sendo a maior parte desta última. Observo que as cidades estão em um raio de 430 km

de distância, se considerarmos os extremos, Ribeirão Cascalheira e Santa Terezinha,

porém, todas pertencente à prelazia de São Félix do Araguaia, procurando não fugir do

recorte espacial da pesquisa que resultou na tese.

Assim, apresentamos um perfil mínimo, revelando um pouco sobre o grupo

de colaboradores:

Gráfico 1: Colaboradores da pesquisa

por sexo

Gráfico 2: Vínculo

Fonte: Elaborado pelo autor

Page 393: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

393

Percebe-se a prevalência do gênero feminino, porém, numa amostragem

maior o número chega a quase 2/3. Quanto à situação contratual, é possível dizer que o

número de professores concursados é pequeno em relação aos contratados

temporariamente (interinos), o que fragiliza os projetos das escolas, em razão de maior

rotatividade entre os profissionais, pois, em sendo efetivos, sua probabilidade de

permanência é maior, sem contar o aspecto da estabilidade profissional.

Gráfico 3: Tempo em que trabalha em

educação

Gráfico 4: Tempo em que trabalha

com ensino de história

Fonte: Elaborado pelo autor

Já em relação ao tempo em que o grupo de professores trabalha em

educação, 65% o fazem há mais de 10 anos e, em específico na disciplina história, 50%

deles trabalham há mais 10 anos.

Quanto à questão da formação, dos 19 colaboradores, somente 4 eram

formados em história, portanto, numa proporção de, aproximadamente, 20%. Porém,

quando da seleção para o doutorado, fizemos uma pesquisa em âmbito estadual com

todos os professores que atuavam na disciplina de história e por entender que esse dado

se revela importante para nosso trabalho, especialmente em relação à problemática de

não se ensinar a história de Mato Grosso, por razões bastante conhecidas, primeiro, por

não termos em ambas as redes, estadual e municipal, a adoção de didáticos de história

de Mato Grosso. Segundo dados extraídos do sistema Bi da SEDUC, em outubro de

2014, dos 2.856 (dois mil oitocentos e cinquenta e seis) professores atuantes na

disciplina história, somente 1.552 (mil quinhentos e cinquenta e dois), o que equivale a

(54%), possuem formação específica na área, 1.188 (41%) dos que têm formação em

nível superior em áreas distintas de conhecimento e 136 (4%) de formação limitada,

com nível de formação fundamental e/ou médio.

Page 394: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

394

Se consideradas as diferenças de público entre as redes municipal e

estadual, a estadual atende, em sua grande maioria, a alunos do ensino fundamental –

anos finais e ensino médio regular e EJA – Educação de Jovens e Adultos. Já na rede

municipal o público maior é atendido na educação infantil e anos iniciais do ensino

fundamental, onde a organização por uni docência é majoritária, portanto, o número de

professores por área de conhecimento apresenta menor demanda. Assim, o problema da

formação inicial faz-se presente, pois há uma demanda reprimida. Igualmente, a

formação continuada atenda a dimensão do conhecimento histórico aos professores que

atuam na disciplina em sala de aula. Em seguida, haveremos de apresentar o ponto

nevrálgico da pesquisa.

O formulário foi elaborado com 20 (vinte) questões, dentre as quais as de

múltipla escolha, a exemplo daquelas em que o colaborador tinha que justificar a

resposta, e, por fim, uma descritiva, na qual o professor deveria dissertar sobre a escola

de 2030, a escola do futuro. A tabulação e análise dos dados permitiu identificar as

representações sociais: 18 objetivas e 2 abertas, porém, das 18 objetivas, nas de número

13. 14 15 e 18 o colaborador era provocado a justificar a escolha.

Ao construir as questões, tivemos como parâmetro três objetivos: o

primeiro, entender a história ensinada nas escolas de educação básica, mergulhando na

representação dos professores. Para tanto, usamos a técnica de livre associação.

Selecionamos 34 palavras (expressão indutora), às quais deveriam, sob o olhar do

professor de história, acrescentar para cada uma delas 3 palavras que lhe viesse à

mente520

. O resultado passou por uma organização do grupo de palavras dispostas de

forma decrescente, em seguida tecemos uma análise da organização das expressões de

forma tal conseguimos aproximar do sentido coletivo (representação) dado à palavra

geradora inicial.

O segundo, compreender a percepção dos professores em relação à

tecnologia educacional e, por fim, o terceiro objetivo foi o de entender como eles

imaginam a escola do futuro.

520

As palavras não foram extraídas aleatórias de nenhum dicionário, a escolha partiu das expressões mais

usadas nas matérias da Folha Alvorada e, por conseguinte, ao longo da narrativa que ora compartilhamos.

Nosso objetivo era mensurar, como o professor de história concebe as palavras „conceitos‟ e as utiliza em

sala de aula, que, muitas vezes o fazem espontaneamente.

Page 395: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

395

Nossas reflexões partiram da necessidade em compreensão de como se

formam e como é mediado o conhecimento cotidiano no ensino de história em sala-de-

aula, portanto, o que as palavras são articuladas pelo professor quando faz mediação do

conhecimento histórico, para tanto, analisamos a partir das representações sociais.

O conceito estudado pela teoria das representações sociais pauta-se em um

conhecimento elaborado pelos sujeitos que ajuda a apreender os acontecimentos da vida

cotidiana, a dominar o ambiente, a facilitar a comunicação de fatos e ideias, orientando

e justificando os comportamentos. Portanto, um conhecimento socialmente elaborado

serve de modelo de pensamento que os sujeitos recebem e transmitem através da

tradição, da educação, assim, como da experiência pessoal de cada ser.521

Dessa forma, optar por esse caminho, de certa forma, nos possibilitaria

percorrer uma trilha que conduziria ao entendimento sobre o que ensina o professor de

história, quando ensina história na escola de educação básica, deixando transparecer seu

fazer cotidiano, mas também apreender sua percepção e representação sobre o aluno, no

que concerne à interação e uso das tecnologias na escola, pois:

Pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e

da cooperação. Representações, obviamente, não são criadas por um

indivíduo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma

vida própria, circulam, se encontram se atraem e se repelem e dão

oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto velhas

representações morrem.522

Assim, ao apresentarmos as palavras, tomamos como ponto de partida o

conhecimento elaborado pelo sujeito professor, decorrente de seu processo de formação

ao longo do tempo, cujo conhecimento é mediado em sala-de-aula num processo quase

sempre „construtivo-competitivo-conflitivo‟, entre aquilo que ele concebe enquanto

saber oriundo de suas vivências sociais, dente elas a acadêmica, e aquele apresentado

pelos livros didáticos, numa oscilação entre ciência e senso comum.

A escolha desta teoria para analisar de que maneira as mudanças sociais

vividas no cotidiano da sala de aula, bem como o impacto que as tecnologias digitais

521

ALVES-MAZZOTTI. Representações Sociais: desenvolvimentos atuais e aplicações à educação. In:

CANDAU, V. M.(Org.). Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender, Rio de Janeiro, DP&A,

2000, p. 57-73. 522

MOSCOVICI, S. Representações Sociais: Investigação em Psicologia Social. 5. Ed. Petrópolis-RJ:

Vozes, 2007, p. 41.

Page 396: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

396

sociais têm influenciado no pensar e fazer a escola de educação básica do século XXI,

se justificam por entender que, sob a lente da teoria conseguiremos perceber de que

forma o professor pensa, age, atualiza, transforma e é transformado pela sociedade, num

determinado recorte temporal e social. Contribuirá ainda para obtermos respostas em

relação ao objeto principal de nosso trabalho, a invenção da escola no Araguaia-Xingu

mato-grossense.

Antecipo dizer que não haveremos de mergulhar na teoria sobre a

representação social, até porque buscaremos, a partir do pensamento dos professores de

história em relação à história ensinada, analisar como pensam-praticam a arte de ensinar

os conceitos históricos e, em seguida, como veem a tecnologia, e por fim faremos

análise das respostas, tomando por parâmetro o primeiro princípio da educação popular

apresentado no presente capítulo, tópico 4.2.5:

1) O primeiro princípio afirma que a prática social é a fonte de todo conhecimento;

2) A teorização sobre a prática;

3) A prática social é o critério da verdade e o fim último de todo o processo de

conhecimento.

Dessa forma, apresentamos as expressões indutoras e as palavras associadas,

organizadas de A a Z, e, como dissemos, as sequenciamos de acordo com o número de

vezes expressas pelo coletivo. Após organização da sequência de palavras associadas,

foi analisado o resultado, considerando a produção das reflexões contidas na narrativa.

Observo que o objetivo não foi o de fazer um estudo comparativo entre aquilo que o

professor pensa/expressa em sala de aula com os significados, conforme dicionário

histórico, mas sim entender a representação das palavras (expressões) indutoras, por

meio das associadas.

Ao transcrever as palavras, procuramos fazê-lo de tal forma que não

houvesse alteração no sentido, respeitando, portanto, a grafia. Também, em algumas

palavras-chave as relacionamos com passagens da narrativa, cujo propósito foi o de

visualizar a memória dos colaboradores sobre os acontecimentos em torno da educação

popular e democrática no Araguaia-Xingu mato-grossense. Tínhamos por hipótese

inicial que os colaboradores, atuando numa região de conflitos e luta pela terra, cujos

processos foram objeto de farta literatura, relacionando as palavras com processos

Page 397: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

397

históricos local. Assim, revelamos as 34 palavras indutoras, palavras associadas e

respectiva análise.

Alienação - na concepção do coletivo e extraída a partir das respostas, alienação é a

forma pela qual a mídia (4x), em especial a TV Globo (3x), conduz à obediência, (1x)

induzindo (1x) as pessoas por meio de ideologias (1x).

Observa-se que, conforme a representação do coletivo, a mídia é o meio

pelo qual se disseminam formas de alienação, especialmente através da Rede Globo,

levando à obediência e induzindo ideologias.

Aluno - está ligado ao ato de estudar (3x) às aprendizagens (3x) sujeito (2x) potencial

(2x) com capacidade (2x) de buscar conhecimento (2x) futuro (2x) para transformação

(1x) política (1x).

O aluno, para o coletivo, liga-se ao ato de estudar e em condição de

aprendizagem, sendo este um sujeito com potencial e capacidade de buscar novos

conhecimentos para a transformação do futuro. Ao observar esta sequência, é possível

afirmar que está consolidado, na representação do coletivo de professores de história,

que o ato de estudar é o inaugural da aprendizagem e que ele é potencializador,

portanto, confere aqui a necessidade em desenvolver estratégias para que esse potencial

se torne aprendizagem real.

Analfabeto - é uma pessoa que não teve a oportunidade (4x) de estudar (1x), uma

negação (4x) por falta de política(o) (3x) que assegure o direito (2x) de estudar (1x).

Já sobre a pessoa analfabeta, parece-nos planificada a representação de que

historicamente o analfabetismo está ligado à oportunidade que não foi dada às pessoas

para que pudessem estudar, uma negação ao direito e ausência de políticas públicas

capazes de superar essa mazela social.

Aprendizagem - conhecimento (5x); experiência (3x); direito (2x); métodos (2x);

mediação (1x); oportunidade (1x); transformação (1x); busca (1x); dever (1x); mediador

(1x); ensinar (1x); competência (1x); disposição (1x).

Em relação à aprendizagem, trata-se de um processo em que o sujeito segue

um caminho que deve leva-lo ao conhecimento, que se dará pela experiência, sendo esse

um direito inalienável ao acesso e aos métodos de mediação que o aprendiz deve utilizar

Page 398: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

398

para a transformação da realidade, sendo este um dever do mediador, que deve fazê-lo

com competência e disposição. Parece-nos que os professores têm consciência de que a

aprendizagem é o único caminho que leva ao conhecimento.

Comunidade - grupo (5x); união (4x); cultura (3x); povo (2x); organizado (2x);

compromisso (2x); participação (1x); lida (1x); coletividade (1x) ; sabedoria (1x).

A comunidade, para o coletivo, se dá pela formação de um grupo por meio

da união de uma cultura disseminada, ou não, pelo povo, que se organiza imbuído de

um compromisso que resulta na participação desse grupo na lida em coletividade, trata-

se de uma sabedoria. Pacificada está a ideia de que comunidade é sinônimo de

organização de grupos. Assim, aproveitamos para fazer uma pergunta, a qual

responderemos ao final deste tópico: os professores de história, de posse desse

conhecimento, trabalham em equipe com os demais colegas de profissão? Se há

consciência de que, para haver união é necessário o trabalho em grupo, por que não se

alimenta essa atitude proativa em relação aos problemas do cotidiano escolar?

Estaríamos diante de falta de compromisso?

Autonomia - poder (4x); segurança (4x); liberdade (3x); independência (3x);

responsabilidade (2x); autoridade (2x); compromisso (1x);

Pode-se extrair do coletivo que autonomia significa poder, desde que haja

segurança e que este possa agir em liberdade, independência e responsabilidade.

Observa-se ainda que autonomia também é sinônimo de autoridade, compromisso.

Comunista - política (4x); igualdade (4x); Cuba (2x); China (2x); comunidade (1x);

coletividade (1x); partilha (1x); utopia (1x); bem comum (1x) ideologia (1x);

compromisso (1x); vergonha (1); sou contra (1); história (1x) Karl Marx (1x); Che

Guevara (1x).

Observa-se que, na representação do coletivo, o termo comunista está ligado

à política, onde prevalece a igualdade, podendo observar que o exemplo que têm em

mente são Cuba e China. Um retorno à narrativa é importante para fortalecer alguns

argumentos nela propostos, devendo-se lembrar que, ao usar a expressão comunista, o

governo brasileiro estava, na década de 1970, silenciando os povos, e „limpando‟ a

região, lançando na grande mídia a atuação de guerrilheiros e comunistas no Araguaia

Page 399: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

399

mato-grossense, cujas ações repercutiram em muitos acontecimentos no Araguaia, a

exemplo do que aconteceu com o agente pastoral e professor Juarez Daurell, no

episódio da inauguração da igreja em memória da morte do Padre João Bosco, em 1976,

conforme tópico 3.8.2. Os policiais ali espalhados ameaçaram as famílias dizendo que

os líderes, dentre eles o professor, eram guerrilheiros e comunistas e que recebiam

dinheiro de Moscou.

Conhecimento - busca (4x); aprendizagens (4x); estudos (2x); compreensão (1x);

cultura (2x); gradativa (1x); valores (1x); saber (1x); empírico (1x); descoberta (1x);

mundo (1x); liberdade (1x).

Para o coletivo, o conhecimento representa busca, e, como a resposta foi

extraída de um grupo de educadores, liga-se à aprendizagem, que se dá por meio do

estudo, da compreensão gradativa da cultura e parte dos saberes empíricos. O

conhecimento também está ligado ao gosto pela descoberta de ver o mundo em

liberdade.

Democracia - liberdade (8x); direitos (6x); expressão (5x); igualdade (1x); soberania

(1x); povo (2x); voto (1x); consequência de um regime político (1x).

Para o coletivo, democracia é sinônimo de liberdade, de direito à expressão

e à igualdade. Democracia acontece quando há participação do povo e se alcança por

meio do voto, trata-se, portanto, de um regime político. Porém, há de se problematizar,

mas, parece-nos que há consenso de que democracia é o direito à liberdade. Porém,

parece-nos que, ao citarem as palavras associadas, distanciaram, de certa forma, do

significado a que esta deve ter, qual seja, o de sistema de governo, de poder do povo.

Assim, haveremos de intensificar a reificação da expressão, pois, como vimos ao longo

da narrativa, a luta em torno das causas das famílias se confundia com a defesa da

democracia, em especial pelo direito ao voto, por meio da alfabetização.

No tópico 2.2 apresentamos um sentido de democracia como consequência

de um processo:

Um povo educado saberia combater as raízes da violência, da

injustiça e construiria uma verdadeira democracia.523

523

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03 P 2.3.

Page 400: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

400

Ao tomar por empréstimo, pela segunda vez, essa citação, publicada na

Folha Alvorada de 1970, reafirmamos que não haverá democracia se ela não for

primeiramente praticada no contexto escolar, pois, uma mente autoritária jamais agirá

democraticamente.

Disciplina - regras (2x); necessária (2x); organização (1x); processos educacionais (2x);

escola (2x); igreja (2x); família (2x); responsável (2x); organização (1x); conhecimento

(1x); coerência (1x); pontualidade (1x); retidão (1x).

Para o coletivo, a disciplina se dá por meio de regras, sendo elas necessárias

para a organização dos processos educativos, na escola, na igreja, na família e que, de

forma responsável, possibilitará a organização dos trabalhos em busca pelo

conhecimento, requerendo pontualidade e retidão. Assim, é possível perceber que a

disciplina aqui é vista enquanto meio de se organizar um processo para alcance de um

determinado fim. Dessa forma, pode-se inferir que os processos educacionais,

independente da presença ou ausência das tecnologias educacionais, prescindem da

disciplina.

Educação - conhecimento (3x); transformação (3x); futuro (3x); aprendizagem (2x);

escola (2x); família (1x); cidadania (1x); cidadão (1x); participação (1x); política (1x);

alienado (1x).

Ao apresentar as palavras associadas à educação, foi possível observar que

ela é um meio pelo qual se alcança o conhecimento, o qual visa a transformação da

realidade e preparação para o futuro. Esse movimento é possível desde que haja

aprendizagem na escola e na família. Educação também é garantia de cidadania, meio

pelo qual se exerce o papel de cidadão com condições de participar na política, fugindo

da alienação.

Vale a pena retomar aqui a definição do que significava educação, extraída

no encontro de professores de 1984:

[...] estava longe de ser uma educação boa, pois era marcada por

graves falhas; b) uma educação que oprimia e limitava o aluno em sua

criatividade; c) não ajudava o aluno a compreender a realidade e não

Page 401: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

401

formava consciência crítica; d) ensinava coisas que não tinha nada a

ver com a vida do aluno e sem aplicação no dia a dia.524

A citação desse texto foi apresentada no tópico 3.3, do terceiro capítulo. A

pergunta é: tomando a representação sobre a educação, os atuais professores de história

apresentam soluções para os problemas anunciados naquele encontro de 1984, último

ano da ditadura militar no Brasil?

Enfrentantes - coragem (4x); líder (4x); lutador (3x); militante (1x); defender (1x);

determinação (1x); sociedade (1x); diálogo (1x); ideologia (1x); solução (1x);

caminhada (1x); vitória (1x); professor (1x).

Enfrentantes, para o grupo, constitui uma categoria conhecida na região,

portanto, traduz a memória histórica em torno desse „agente‟ ser enfrentantes,

personagem ligado a um ato de coragem e liderança, um lutador, um militante que se

engaja nas causas em defesa da sociedade, estabelecendo diálogos e munido de

ideologia na busca pela vitória. Associa o enfrentantes ao professor. Embora somente

uma pessoa tenha relacionado o professor com a expressão indutora, de certa forma isso

é reafirmado em nossos argumentos ao longo da tese, como o de que os professores

assumem a função de enfrentantes, o que poderia ser feito por qualquer um, porém, por

razões já expressas na narrativa, o professor cumpriu papel fundamental na organização

da resistência e preparação das famílias „pobres‟ contra os opressores.

Escola - Conhecimento (3x); educação (3x); aprendizagem (2x); instituição (1x);

sabedoria (1x); instrumento (1x); oportunidade (1x); espaço (2x); desenvolvimento (1x).

Em relação à escola, a representação do coletivo ligou-a ao conhecimento, à

educação e à aprendizagem. Associou também com a figura do professor a sabedoria,

enquanto instrumento que oportuniza espaços para o desenvolvimento. Compete aqui,

igualmente, afirmar que a escola convoca para si, especialmente no Araguaia-Xingu

mato-grossense, a função de disseminadora de conhecimento, que, como vimos, vai

além do ato de alfabetizar.

Retomo agora a definição de escola que compartilhamos no tópico 1.9:

escola é uma instituição temporal marcada pelo conteúdo e forma, [...] porém, não basta

524

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A 16.3.07 P.13.14

Page 402: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

402

conhecer seu projeto, mas entende-la no interior de um processo de permanente

transformação [...] escola é um invenção social, e ela também se inventa, competindo ao

professor de história perceber que, ao ensinar, ele participa do processo social maior,

contribuindo para a manutenção da escola opressora, ou para sua transformação. No

tópico 1.10, afirmamos que escola é um conceito, um conjunto de significados e

significantes, pois ela, naturalizada, requer o olhar do historiador com lentes que o

possibilite enxergar seus múltiplos significados. Ela é uma invenção em litígio.

Família - base (5x); união (4x); valores (2x); amor (3x); apoio (2x); respeito (2x);

socialização (2x); segurança (2x); lar (1x); matrimónio (1x); identidade (1x); construção

(1x); instituição (1x).

As palavras associadas à expressão indutora de família possibilita-nos

confirmar a „convenção‟ feita em torno da representação da família, afirmando ser a

base da sociedade, visto que pautada na união entre seus membros e em valores de

amor, respeito e socialização. É a família que possibilita a „sensação‟ de segurança em

torno de um lar. Igualmente, é possível afirmar que permanece o sentimento de que a

família se constitui por meio do matrimônio, modelo „idealizado‟, porém, é também no

convívio intrafamiliar, especialmente entre aquelas pessoas em condições de fragilidade

devido aos atos de violência. Há que denunciar, não somente o ato de violência

intrafamiliar, mas as razões que antecedem ao ato, muitas vezes externas à „redoma‟ que

representa a família, pois, ao longo da narrativa pudemos observar que, por falta de

oportunidade, milhares de „peões‟, em busca de trabalho foram submetidos às mais

perversas formas de exploração, de dor e até de morte. Assim, fazer uso das

informações e reflexões propostas na narrativa é mais uma forma de „fortalecer‟ o

debate sobre a sociedade que temos e a sociedade que queremos. Além disso,

haveremos de fortalecer a instituição, ampliando o debate sobre a importância de sua

participação em torno da escola de educação básica.

Guerrilheiro - luta (4x); batalha (3x); combate (2x); Araguaia (2x); Che Guevara (3x);

Dilma (2x); Fidel Castro (2x); enfrentar (1x); coragem (2x); conquista (1x);

transformação (1x); mudança (1x) resistência.

A representação extraída das palavras associadas permite afirmar que na

expressão indutora proposta, guerrilheiro é símbolo de luta, de batalha e combate.

Page 403: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

403

Percebemos a memória agindo sobre as respostas, ao citar o Araguaia, pois, a região,

conforme apresentado na narrativa, embora não tivesse naquele solo derramado sangue

dos „guerrilheiros‟ do Araguaia, sofreram igualmente outros revezes, incluindo centenas

de mortes. Todavia, num sentido diferente de uma luta armada e o combate corpo-a-

corpo, mas pela mesma causa muitos no Araguaia-Xingu mato-grossense utilizaram

táticas de guerrilha para não ser „tombados‟ pelos opressores. Dentre as táticas e formas

de resistência, como vimos ao longo da narrativa, está a invenção da escola.

Observa ainda que, associada a guerrilheiro estão as figuras do médico

argentino e defensor da causa do pobres, assassinado na Bolívia, Che Guevara, ao ex-

presidente da república popular de Cuba, Fidel Castro, e Dilma Vana Rousseff, a 36ª

presidenta eleita no Brasil, deposta pelo golpe jurídico-parlamentar de 31 de agosto de

2016. Uma trama em torno de um „crime de responsabilidade‟ por „pedaladas fiscais‟.

História - conhecimento (3x); estudo ( 2x); democracia (2x); passado (1x); memória

(2x); presente (1x); registros ( 2x); disciplina (1x); tempo (2x); cultura (2x); futuro

(2x); ciência humana (1x); controvérsia (1x); consciência coletiva (1x); reflexão (1x).

Já sobre a história, as palavras associadas revelam-na enquanto estudo, mas

também conhecimento, à democracia, às narrativas produzidas sobre o passado pautado

na memória e nos registros históricos. Se revelou associada ainda à disciplina, à ciência

humana e ao tempo. Evoca para si a controvérsia, a consciência coletiva e a reflexão.

Assim, pensamos que a narrativa que ora compartilhamos traduz, com efeito, tais

associações feitas à palavra indutora.

Ideologia - é ideia (s) (8x); alienação (4x); pensamento (4x); ideal (2x); política (2x);

direito (2x); manipulação (2x); propaganda (1x); doutrina (1x); sonho (1x); utopia (1x);

visão de mundo (1); crença (1x); poder (1x).

Na representação do grupo de colaboradores, ideologia está associada a

ideias, porém, a alienação é recorrente nas palavras extraídas da pesquisa, tal que

podemos afirmar que ideologia, no sentimento dos professores de história, carrega um

grande peso de risco de alienação, porém, aqui pode ser entendida com dupla dimensão,

a saber: a ideologia enquanto alienação, ou o termo remete à alienação por alienados.

Refiro-me ao que se tem anunciado nas redes sociais e em algumas mídias televisivas,

Page 404: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

404

afirmando que há, na produção do MEC, ideologia de gênero. Porém, para a presente

reflexão não abordaremos tais campos de debates.

Outra associação feita é a de que, ideologia também pode ser vista enquanto

sonho, utopia, visão de mundo ou crença. Assim respondeu Casaldáliga, quando

perguntado se a Folha Alvorada tinha cunho ideológico, a resposta foi: “[...] cabeça sem

ideologia não seria cabeça pensante”.525

Nestes termos, penso que este trabalho pode

contribuir com os professores de história no sentido de desmistificar a expressão,

apontando caminhos para que nossos aprendentes possam evitar o uso indevido do

termo.

Índio - é sinônimo de cultura (5x) povo (4x) etnia (3x) desvalorização (3x)

discriminação (2x) comunidade (1x); terra (2x); identidade (2x); humano (2x); direito

(2x).

A palavra indutora índio foi associada a cultura, a povo e a etnia. Porém,

destacamos as expressões discriminação, humano, identidade e terra. Em sendo

professores de história, como já antecipamos, a maioria não é composta por

historiadores, mas por licenciados e bacharéis em outras áreas de conhecimento, o que

remete à questão da cultura e povo enquanto sinônimo de índio.

A problemática se ancora no fato de o termo „índio‟ induzir a pensar cultura,

antes de pensar cidadão, humano, identidade ou brasileiro. Assim, pensamos que nossa

historiografia, por deixa-los à margem da história, ao não espaço de debates sobre

políticas públicas, continuamos relegando-os ao segundo plano, quando a questão é

educação. Oferecemos (impomos) a eles uma escola estrangeira e os gestores da

educação não cumprem o que reza a LDB e a Constituição Nacional no tocante ao

financiamento público da produção de material didático que atenda a diversidade

existente no Brasil indígena.

Por essa razão, o índio ainda é visto como alegoria – o idílico, o exótico,

deixando de lado uma reflexão mais aprofundada sobre sua falta de segurança e

condições de permanência na terra, carência de políticas públicas que possibilitem sua

independência, autonomia e do exercício pleno da cidadania.

525

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1977 A16.0.45

P.1.2.

Page 405: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

405

A escola popular e democrática no Araguaia-Xingu precisa dar continuidade

aos „espaços‟ construídos, ampliando a participação e a troca de conhecimentos entre

indígenas e não indígenas. E, no aspecto escola, a experiência educacional entre os

indígenas habitantes das terras e águas entre o Araguaia-Xingu clama por estudos,

especialmente aquela edificada na década de 1970, que contou com a presença dos

professores Luis Gouveia e Eunice, apresentados no tópico 3.6.2 do cap. 3 da tese, pois,

aquela experiência entre os Tapirapé resultou em importantes desdobramentos,

incluindo a demarcação das terras da „Urubu Branco‟.526

Além disso, atualmente,

muitos professores indígenas estão fazendo 2ª licenciatura na Universidade Estadual de

Mato Grosso, a que tive o prazer de ser colaborador no núcleo de Confresa.

Jagunço - é quem pratica pistolagem (4x); morte (4x); Lampião (2x); opressão (1x);

expropriação (1x); analfabeto (1x); ignorante (1x); ditadura (1x); terra (2x); capanga

(1x); cangaceiro (1x); sofrimento (1x); irracional (1x); matador (1x); frieza (1x); usado

(1x); submisso (1x); mercenário (1x); perigo (1x)

A expressão jagunço está ligada diretamente aos crimes de pistolagem, à

morte, pois, como vimos ao longo da narrativa, trata-se de uma categoria bem conhecida

em Mato Grosso e em especial na região do Araguaia-Xingu. Pelas respostas por meio

das palavras associadas, percebemos que os professores têm por representação e

símbolo desta categoria o Lampião, porém, o „bandoleiro‟ Virgulino Lampião pode até

ter causa similar à dos pobres, à questão da terra, porém, os „contratos‟ eram bastante

diferentes, pois no Araguaia o jagunço era contratado (pago) para tirar a vida dos

„desafetos‟ aos tubarões, quase sempre posseiros e, em alguns casos, outros fazendeiros.

Porém, sobre ele recaem as práticas de agir a serviço da repressão, da expropriação, do

latifúndio, da ditadura, se constituindo nos capangas dos tubarões. Todavia, como foram

professores que colaboraram com a pesquisa, encontramos a dimensão humana

apresentando o jagunço como analfabeto, submisso e usado.

Latifúndio - terra (6x); expropriação (3x); propriedade (2x); morte (2x); fazendeiro

(1x); fazenda (1x); poder (2x); concentração (1x); capitalismo (1x); desigualdade (1x);

corrupção (1x); reforma agrária (1x); Blairo Maggi (1x); destruição (1x); poluição (1x).

526

Atualmente, oriento uma monografia de um pesquisador, professor indígena Kamaira‟i Sanderson

Tapirapé, cuja pesquisa busca entender a história tradicional na propagação da cultura do povo Apyãwa

(Tapirapé).

Page 406: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

406

A representação do latifúndio está ligada à terra, à expropriação dando um

sentido de propriedade, de fazendeiro, de fazenda. E, na representação dos

colaboradores está ligada à morte, à concentração, ao capitalismo, à desigualdade, à

corrupção e ao modelo de reforma agrária brasileira, a qual favorece aos „grandes‟

produtores, a exemplo do citado pelo coletivo, Blairo Maggi, emprestando somas

vultuosas para a produção de grãos, dos quais 99% não alimentam o brasileiro, e

deixam a grande maioria dos produtores de alimentos (agricultura familiar) excluída das

decisões sobre o que, onde, como e porquê fomentar a produção agrícola527

. Igualmente

está relacionada a destruição e degradação.

Liberdade - expressão (5x); pensamento (3x); conquista (4x); conhecimento (1x);

alegria (3x); democracia (2x); direito (2x); autonomia (1x); ser livre (2x).

A representação extraída das palavras associadas à liberdade indicou que ela

está vinculada à liberdade de expressão, de pensamento, de conquista, de acesso ao

conhecimento e de ser alegre. Liberdade é sinônimo de democracia, pois, como a

memória histórica não nos permite esquecer, em tempos de repressão a liberdade era a

primeira cassada. Também significa o direito de ser livre e autônomo. Parece-nos um

tema extremamente importante para ser tratado em sala de aula, pois, como já vivemos a

Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, a qual regulava a liberdade de manifestação do

pensamento e da informação no Brasil, citada no tópico 3.6.1 da tese, cuidado que

devemos tomar para que não sejam criadas outras do mesmo cunho de privação da

liberdade.

Livro didático - ferramenta (3x); ensino (2x); conhecimento (2x); suporte (1x); apoio

(1x); conteúdo (1x); metodologia (1x); aprendizagem (1x); informação (1x); alienação

(1x); intencionalidade (2x).

Seguindo a representação do coletivo em relação ao livro didático, trata-se

de uma ferramenta voltada ao ensino, na busca por conhecimentos, um suporte, um

527

Sobre essa questão, indico leitura sobre o resultado de uma pesquisa sobre Agricultura familiar e

políticas públicas, sob nossa orientação. Ver LUZ. Neusivânia Souza. Agricultura familiar, trabalho e

renda como Políticas Públicas no município de Santa Terezinha-MT. Confresa.. Monografia

(Licenciatura Plena e Bacharelado em Ciências Sociais) – UNEMAT. 2016.

Page 407: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

407

apoio aos professores, entretanto, apontam para uma crítica já apresentada ao longo da

narrativa, o fato de o mesmo estar repleto de intencionalidades e também ser potencial

instrumento de alienação, visto enfatizar que a história ensinada é aquela das e para o

interesse dos opressores. No tópico 3.6.1, tratamos como surgiu o Programa Nacional

de Livros Didáticos, apontando, inclusive, como se tornou política pública. Igualmente,

ao longo da narrativa ofereço reflexão sobre o uso dos suportes, a exemplo do livro

didático, infelizmente a formação inicial e tampouco a continuada deu conta de oferecer

formação (metodológica) para uso dos manuais e demais dispositivos.

Memória - conhecimento (5x); lembrança (4x); história (4x); recordação (2x);

identidade (2x); sabedoria (1x;) caminho para libertação (1x); cultura (2x); experiência

(1x); vida (1x); viver (1x).

As representações sobre a memória estão associadas ao conhecimento, às

lembranças, história, recordações e identidade, mas também às experiências. É possível

afirmar que a construção do conhecimento, com destaque ao conhecimento histórico

veiculado na escola de educação básica só ocorre na práxis, portanto, exige do professor

de história estratégias metodológicas para fazer com que os aprendentes percebam a

importância de refletir sobre seu contexto e, a partir dele, pensar outras dimensões de

sua existência, a exemplo de como foi construída a metodologia do projeto INAJÁ,

apresentado no início deste capítulo em forma concêntrica. Porém, existem inúmeras

formas de se mediar conhecimento se apropriando da memória. Em 2015 e 2016,

orientamos um trabalho no município de Santa Terezinha, onde as escolas adotaram a

metodologia de projetos de aprendizagem, nos quais todos os professores planejavam

por área de conhecimento e, com atividades integradoras, contribuíam com o projeto

maior proposto pelas Escolas, excelente experiência na „Esquina‟ de Mato Grosso528

.

528

Inúmeros foram os projetos e avaliações de resultado que operaram não só na transformação do meio,

me refiro ao Projeto Escola do Rio, onde foi recuperada a mata ciliar nas proximidades da Escola do Lago

Grande, dentre as atividades estava a de se produzir a memória da escola e da comunidade. Também

orientamos a produção de monografia de final de curso de graduação e de especialização, esta última foi

em forma de co-orientação com o Professor Ms. Ney, junto ao Instituto Federal de Confresa – MT, sobre

o trabalho desenvolvido na escola Municipal São João, as quais podem ser acessadas em SOUZA.

Ronivon, Costa de. Aprender e ensinar „ciências ambientais‟ por projetos de aprendizagens na Escola do

Rio – Santa Terezinha MT. Alto Araguaia. Monografia (Licenciatura Plena e Bacharelado em Ciências

Biológicas) – UNEMAT. 2016 e o segundo de MORAIS, José Manuel Ribeiro. Inovação e

sustentabilidade no campo: Projetos de aprendizagens na escola Municipal São João. Revista Prática

Docente – RPD. Confresa. MT. Volume 2. Número 2. Julho/Dezembro 2017.

Page 408: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

408

Ao longo da narrativa, procurou-se evidenciar o risco que se corre quando

há interesse em se apagar a memória, dados por meio da disputa. Assim, enquanto

professores de história, cuidados especiais devem adotados na busca da produção e uso

desse precioso instrumento de resistência. Como citado no texto, a segundo Le Gooff

(1994), os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desse mecanismo de

manipulação.

Negro - luta (6x); discriminação (3x); raça (3x); símbolo (2x); injustiça (2x); identidade

(1x); cidadão (1x); oprimido (1x); racismo (1x); sofrimento (1x); resistência (1x);

trabalho (1x); coragem (1x).

Já a representação sobre o negro está ligada à luta, discriminação de raça,

símbolo de dor, de injustiça e busca por identidade. Ao observar tais descrições,

percebe-se que, diferentemente daquilo que se apontou em relação à cultura do

indígena, seu símbolo é o de luta. Haveríamos de perguntar: qual a razão dessa

diferença? O negro também não é possuidor de cultura? Ou sua cultura é inferior à do

índio ou à do „branco‟? As perguntas foram feitas sem a pretensão de resposta nesse

momento, mas com o objetivo de afirmar que os negros habitaram primeiro as páginas

dos livros escolares de história, e, invariavelmente, apareceram como escravos,

portanto, uma categoria histórica numa busca incansável pela liberdade, física e social

presente no imaginário do brasileiro, especialmente entre os professores de história. O

professor de história possui uma dívida com essa causa. A exemplo do que aconteceu

com os professores que, ao término do curso de 1978, afirmaram que havia famílias que

insistiam em mudar seus alunos da sala de aula por conta do professor ser negro. Nesse

sentido, retomamos as palavras de Edwar Said (2011), citado tópico 2.3.1, segundo o

qual o preconceito racial é fruto do imperialismo, pois ele consolidou a mescla de

culturas e identidades, numa escala global. Assim, temos de contribuir para igualmente

ampliar a escala global do respeito à diversidade e seguir as reflexões suscitadas por

Pedro Casaldáliga na Folha Alvorada de 1981, citadas no tópico 3.6.2: “Está chegando

o „dia dos negros‟. Será que acabou mesmo a escravidão no Brasil?”.529

529

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1.21 p 02-21.

Page 409: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

409

Peão - Peão trabalhador (6x); exploração (2x); sofredor (2x); boi (3x); vaqueiro (2x);

pobre (3x); analfabeto (1x); exploração (2x); rodeio (2x); valente (1x); guerreiro (1x);

escravo (1x).

Já para a representação do peão afirmaram ser trabalhador ligado ao boi,

atividade que caracteriza esse trabalhador como um explorado, sofredor, analfabeto,

valente e guerreiro. Por se tratar de uma categoria bem conhecida por ter sido o braço

que derrubou, plantou e sofreu pelo processo de exploração do trabalho pelas empresas

latifundiárias, permanecendo ainda hoje à margem das políticas e garantias

constitucionais, o sinônimo de peão proposto pelos colaboradores foi o de trabalhador

pobre e explorado. Percebe-se que também é antiga e persistente sua caracterização,

como fez o CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação, citada no tópico

1.5 – de que o peão pode ser caracterizado como aquele trabalhador braçal que atua na

situação trabalhista criada pelos latifundiários. Assim, como função social do professor

de história, haveremos de buscar meios para que os alunos que estão matriculados em

nossas escolas não alimentem a continuidade desse processo, que não continue gado

humano, como referenciado no tópico 1.7 da narrativa.

Pobre - exploração (3x); opressão (3x); excluído (3x); política (2x;) miserável (2x);

desprovido (1x); desassistido (1x); indefeso (1x); vítima social (1x); miséria (1x);

pequeno (1x); cidadão (1x).

A representação de pobre extraída dos colaboradores afirma ser sinônimo de

exploração, fruto da opressão, excluído da política, desprovido de capital, desassistido

pelo poder público, indefeso e vítima social. O pobre é sinônimo de miséria. Fato é que

ser pobre se tornou símbolo de exclusão, que, deveras, haveremos de buscar na memória

e registros que possibilitam entender as razões que levam alguém a tirar os restos

mortais de uma pessoa, afirmando ter a necessidade de plantar capim, como aconteceu

com o Joaninha, “Com os ossos de sua mulher e sua filha (...) da companheira pobre e

boa” 530

, citado na introdução do segundo capítulo ou no caso ocorrido em 1979, em que

530

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1977. A 16.0. 70,

p. 5-15. O texto foi transcrito na íntegra, por se entender que essa narrativa tinha o propósito pedagógico

de anunciar, às famílias, a necessidade de resistir às mais variadas formas de violência a que poderiam ser

submetidas pelos opressores.

Page 410: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

410

o Sr. Nelson da cantina derrubou a bacia de bolo do menino vendedor, cujo intento era

comprar a „farda escolar‟, citado no tópico 2.4. Ou, conforme Alfredo Bosi (1992),

historicamente as camadas pobres da população brasileira (índios, caboclos, negros,

escravos, e depois forros, mestiços suburbanos, subproletários em geral) foram

colonizados com a cultura rústica, citado no tópico 3.6.2. Assim, haveremos de lançar

mão da história e contribuir para que haja um novo processo de transformação social,

fazendo com que as „camadas‟ se unam em torno da educação e promovam a

transformação.

Poder - dominação (3x); política (2x); político (2x); capitalismo (2x); autoridade (3x);

latifúndio (2x); soberania (2x); autonomia (1x); dinheiro (1x); hegemonia (1x).

O poder ganha, na representação do coletivo estudado, sinônimo de

autoridade, política, dominação, latifúndio e soberania. Ao observar por esse prisma,

não conseguimos enxergar outras formas de poder senão aquelas que estão veiculadas

pela mídia, porém, essa é uma realidade? Ou estamos assistindo a uma tentativa de

„desacreditar‟ na transformação? Estaríamos diante de um momento histórico em que a

estratégia de dominação continua sendo a velha e usual prática de plantar „verdades‟?

Bem, se a política é o poder que emana do povo para o alcance da democracia, não

basta dizer que nossa democracia está engatinhando e correndo risco de não andar. Aos

professores de história requer tomar posição que procure estabelecer um duelo na espera

do discurso, para ter mais segurança nas práticas. Se eximir da condição de „ter‟ o poder

para transformar a realidade é também uma forma de aceitar a relação opressor x

oprimido.

Política - corrupção (5x); vergonha (2x); governo (2x); organização (1x); injustiça (1x);

poder (1x); estado (1x); planejamento (1x); partidária (1x); justiça social (1x); povo

(1x); lava jato (1x).

A representação sobre a política não surpreendeu as respostas, em razão da

massiva investida contra essa ciência, por estarmos passando por crises institucionais

onde o „todos contra todos‟ se faz cardápio do dia. Porém, seguem os desdobramentos

em forma de palavras associadas, quando política passa a ser sinônimo de vergonha, de

Page 411: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

411

governo, de injustiça, de poder e de Estado. Porém, observa-se a dimensão da política

que não pode ser colocada em outro campo pertence à mesma moeda, porém numa face

em que aparece o planejamento, a justiça social, o povo, lembrando que a política

também é uma construção social, portanto, passível de transformação, e não pode

começar senão ao alcance de cada um professor de história.

Posseiro - Terra (10x); reforma agrária (4x); trabalhador (4x); sustento direito (3x);

agricultura ( 1x); agricultor (1x); pobreza (2x); cultivar (1x); cultura 1x); esperança

(1x); discriminação (1x) ; sofrimento( (1x) alimentação (2x) analfabeto (1x) cultivar

(1x) colonização (1x) política (1x).

Os posseiros, no âmbito da representação dos colaboradores, são sinônimos

de terra, de reforma agrária e de direito, sempre ligados ao sustento por meio da

agricultura, mas também atrelados à pobreza, à esperança, à discriminação, ao

sofrimento, ao analfabetismo e à colonização.

Percebemos que a ênfase maior foi dada à questão da terra e das formas pela

qual o trabalhador rural (do campo) se organizou para sua sobrevivência, porém,

dependente da reforma agrária que, por muitas vezes, deixou de ser interessante para

quem „manda‟ no governo. Parece-nos que essa não é uma charada difícil de ser

decifrada, pois a reforma agrária no Brasil não haverá de ter outro modelo que não o

defendido pela elite, uma vez herdeiros de uma prática de coronelismo, concentração de

terras, expropriação e exploração do trabalho. No decorrer da narrativa essa foi uma

tônica onde apresentamos o duelo estabelecido pela vida, e a escola enquanto

instrumento de defesa (de resistência) pelos posseiros, com o apoio da prelazia, em

particular de seu maior líder, Pedro Casaldáliga. Recuperar essa memória é fomentar o

debate e fortalecer aqueles que acreditam numa escola popular e democrática.

Professor - mediador (5x), profissão (2x); parceiro (2x); sobrecarregado (2x); lutador

(1x); trabalhador (1x); cansado (1x); conhecimento (1x); sonhador (1x); parceiro (1x);

companheiro (1x); valente (1x).

A representação extraída dos colaboradores em relação ao professor foi a de

mediador, profissional, parceiro, ser sobrecarregado, lutador, possuidor de

conhecimento, sonhador, companheiro e valente. Parece-nos que pairou sobre o

pensamento dos professores colaboradores o „modelo ideal‟ de um professor no século

Page 412: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

412

XXI, partindo da expressão mediadora, porém, haveremos de indagar: como seria se

não houvessem as “Várias professoras heroicas deste sertão ficam esperando o

pagamento durante meses e meses”531

, citado no tópico 1.6. Que escola teríamos hoje,

entre o Araguaia-Xingu mato-grossense, como seria se não tivesse a professora Ilda e o

Padre Manuel enfrentando o carrancista Zacarias? Aquela mesma que foi tachada como

comunista e subversiva532

, citada no tópico 1.7. Se não tivessem os professores, amigos

do padre, se envolvido na trama “[...] que se tratava de um prodigioso complexo de

Segurança Nacional, e que acabara de descobrir „Guerra Civil‟ e „Guerrilha‟ e os

culpados eram os amigos do Padre, os verdadeiros ofensores”.533

Se não tivessem os

professores quando a Dra. Giselda da FUNAI fosse à Aldeia Tapirapé querendo

expulsá-los, e, estando lá, responderam a ela que, embora a mesma estivesse repassando

uma ordem, dizendo que Don Pedro, sob ordem do Presidente da FUNAI, estava

proibido de lá entrar, os professores responderam que eram sustentados pelo Bispo, cuja

resposta não poderia ser mais hilária: “Quando o diabo não aparece, manda um

secretário”.534

Os professores Regina, Caçula, Hélio, Luis, Eunice, Elmo, Dineva, Thea,

Tânea, Rosalina, Juraci, Dagmar, Rubem, Alves, Paulo Freire e tantos outros beberam

das águas e sentiram o calor do sol, a poeira, os banzeiros do Araguaia-Xingu, ou

serviram de inspiração para eles. Enfim, temos mil e uma formas de buscar na memória

instrumentos de poder para continuar defendendo e ser defensores de uma escola

popular e democrática, reconhecendo todos aqueles(as) que, de forma direta ou indireta,

contribuíram para a escola do tempo presente e igualmente para a escola de 2030.

Progresso - desenvolvimento (4x); crescimento (4x); evolução (3x); avanço (2x); luta

(2x); melhoria (3x); luta (2x); desmatamento (2x); poluição (2x); falso desenvolvimento

(1x); desigualdade (1x); destruição (1x).

O progresso é, na representação dos colaboradores, sinônimo de

desenvolvimento, crescimento, evolução, avanço e melhoria que se conquista por meio

da luta, porém, como consequência podem (foi) ser também sinônimo de

desmatamento, poluição e falso desenvolvimento. Percebe-se, portanto, que o progresso

531

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1970. A16.0.05

P. 4.4. 532

Diário de Pedro Casaldáliga. Yo creo em La Justicia. Registro feito no dia 19 de março de 1972, p. 30. 533

Ibid. 534

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 4ª P.4.52.6.

Page 413: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

413

„almejado‟ é aquele difundido nas nuvens, afinal, tudo em nome do progresso. Porém,

em nome de qual progresso, como observamos ao longo da narrativa, foram promovidas

verdadeiras chacinas, genocídio aos indígenas e não indígenas, a exemplo das frases de

Zé das Trovas, citadas no tópico 2.2: “Uma promessa de progresso que nuca se

cumpriu, os tubarões estão querendo a terra para revender. [...] não plantam nem para

comer”535

, uma vez que em nome do progresso contaminam o lençol freático, as águas

dos rios, os córregos e suas nascentes. Assim, que promessa de progresso é disseminada

hoje e que nunca irá se cumprir?

Tecnologia é conhecimento (6x); facilidade (5x); desenvolvimento (3x); avanço (3x);

dependência (2x); alienação (2x); progresso (2x); ciência (2x); globalização (1x);

melhoria (1x); futuro (1x).

Quanto à tecnologia, ela está relacionada ao conhecimento, à facilidade, ao

desenvolvimento e avanço técnico, portanto, é possível perceber uma dimensão humana

da tecnologia, o que, de certa forma, distancia um pouco de como ela é vista na escola,

pois, há pouco tempo à tecnologia foi implantada parcialmente no espaço escolar, sendo

entendida como: livro, mimeógrafo, quadro negro (verde), giz, computador, mas

também Datashow, impressora e demais dispositivos eletroeletrônicos.

Ao proclamar as palavras associadas ao tom de humanizar o conceito,

contribui para sua dimensão de uso, rompendo o obstáculo do não domínio, o que será

melhor tratado no tópico a seguir. Para momento, continuamos a observar outros

significados presentes na representação dos professores colaboradores. Segundo eles, a

tecnologia é sinônimo de dependência, alienação, globalização, ciência e futuro.

Observamos que, ao situar as dimensões de dependência e alienação, é possível que

estejam em baila inúmeras dúvidas com relação ao propósito não revelado da

tecnologia, especialmente em relação ao custo amoedável, bem como aos sistemas de

dependência normalmente vigiados a sete chaves, referimo-nos aos colocados no

mercado pela Microsoft e outros sistemas operacionais proprietários.

Semelhante prática foi adotada pela cultura do livro didático (continua

sendo), porém, em curto espaço de tempo as plataformas digitais irão inaugurar novas

dimensões dos meios, exigindo inovadores métodos de mediação e aprendizagem e

535

CEDI, Zé das Trovas, Lavrador da Prelazia de São Félix do Araguaia MT. São Félix do Araguaia

CEDI, 1983, p. 12.

Page 414: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

414

desafiando especialmente os professores. Sobre esse tema, reservamos os últimos dois

tópicos desse capítulo.

Tubarão - poder (5x); peixe (4x); predador (3x); grande (3x); destruição (2x); violento

(2x); fazendeiro (1x); latifúndio (1x); capitalismo (1x); ricos (1x); multinacionais (1x).

Conforme observado nas palavras associadas à expressão indutora, tubarão,

na representação dos professores, foram as de peixe, predador, grande, destruição,

violência, fazendeiro, latifúndio. Percebemos que as expressões dão conta da voracidade

e do poder do peixe, porém, somente duas respostas convergiram para a memória

histórica da região e, portanto, à invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense

das últimas décadas do século XX. Dessa feita, é possível afirmar que a expressão

cunhada em um determinado momento histórico, e conhecida largamente pelas famílias

que viveram aquele momento, não ganha espaço em sala de aula no tocante à mediação

e aprendizagem histórica. Assim, requer investimento por parte das lideranças

educacionais, especialmente dos gestores escolares, na provocação de diálogos sobre o

processo que resultou nas cidades e especialmente nas escolas edificadas e ativas no

Brasil Central. Os apagamentos da memória, afirmados durante a narrativa, constituem

formas de dominação.

Violência - consequência (2x); agressividade (2x); Brasil (2x); morte (2x); tortura (2x);

crime (2x); insegurança (1x); negação (1x); ignorância (1x).

As representações sobre violência, embora essa expressão indutora seja, de

certa forma, fácil de ser definida, diferentemente de muitas outras as palavras associadas

extraídas das respostas dos colaboradores, não possibilitaram classifica-las com

facilidade, pois não houve „consenso‟ sobre o que é violência. Seguindo a definição

extraída, violência é consequência, agressividade, Brasil, morte, tortura, crime,

insegurança, negação e ignorância. Pelo visto, o contexto em que vivemos no país

proporciona certa „instabilidade‟ no sentimento coletivo, tornando a violência

consequência, porém, por trás existe um praticante, e, como vítima, outros humanos que

convencionaram viver numa sociedade cuja desigualmente permite tais mazelas. Como

a violência quase manchou a narrativa de sangue, suor e lágrimas, concluo apresentando

quem era o inimigo primeiro das famílias e, por conseguinte, da escola de educação

Page 415: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

415

básica no Araguaia-Xingu e do bispo Pedro Casaldáliga, que ilustra com suas palavras:

“Continuar detestando el capitalismo, la dictadura, el latifundio... Eso, por el contrario,

me obliga a hacer lo posible para que esos enemigos se acaben”536

, citado no tópico 2.2

do presente texto.

Concluímos este tópico, no qual apresentamos o resultado de parte da pesquisa

aplicada aos professores que atuam na disciplina de história, nas escolas entre o

Araguaia-Xingu mato-grossense, com a perspectiva de entender qual a representação

que eles elaboraram ao serem apresentados às 34 (trinta e quatro) expressões indutoras,

cujas expressões estão ligadas diretamente à construção da presente tese e constituem a

memória da invenção da escola dessa região mato-grossense, cujas expressões foram

analisadas a partir das palavras a elas associadas. Como pode ser observado ao longo da

análise, há necessidade de se construir um plano de formação continuada para os

profissionais sobre a história da escola e da educação regional, as quais poderão,

seguindo a perspectiva do conhecimento histórico, reinventar a escola do século XXI,

reificando as práticas e tomando como pressuposto metodológico a escola popular e

democrática.

No tópico a seguir será feita rápida reflexão sobre os desafios que são lançados

aos professores de história atuantes em sala de aula em tempos de cibercultura em

seguida analisado o restante da pesquisa aplicada aos 19 (dezenove) professores

colaboradores.

4.6. Escola 2030: Um novo perfil do professor de história - entre o ensinar e mediar

aprendizagens em tempos (self)

Dedicamos o presente tópico para compartilhar a problemática e apresentar

desafios do professor de história atuante na escola de educação básica, partindo do

princípio de que a escola e seus escolares estão imersos num processo comunicacional-

digital próprio da cibercultura. Seria tal imersão um processo natural, ligado a mais

uma „onda‟ que, com o passar dos anos, deixará de existir, possibilitando aos escolares

536

CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, México: Claves

Latinoamericanas, 1990, p. 245.

Page 416: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

416

retomar com segurança a récita do falar ditar, da distribuição da informação de forma

linear onde o professor é detentor do conhecimento? Os professores fazem uso dos

meios tecnológicos em sua prática pedagógica em sintonia com o espírito do tempo, se

o fazem, como o fazem, se não, qual a razão de não os utilizar? Estaria igualmente os

aprendentes e pais iludidos com o farto acesso à informação nas nuvens, acreditando

que o fato de existir a web, as redes sociais, as plataformas digitais conectadas pela rede

mundial de computadores, via Internet, onde está depositada, teoricamente, „toda a

história‟ que o professor atuante nessa área de conhecimento necessita. Nessa dinâmica,

seu cargo corre o risco de extinção? Que não se precise mais desse profissional? Essas

são as primeiras das inúmeras questões que emolduraram a pesquisa, porém, para que

pudéssemos fazê-lo conectado ao conjunto da tese, tomando o primeiro princípio da

Educação Popular e Democrática empreendida no Araguaia-Xingu, nas últimas décadas

do século XX, a qual apresentamos ao longo da narrativa.

A seguir, apresentamos gráficos gerados a partir dos resultados da pesquisa,

que, para efeito didático, são reveladas e quantificadas as respostas objetivas das

questões 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19. Posteriormente, alguns trechos das

justificativas apresentados pelos colaboradores.

Procurando contextualizar a leitor, apresento as questões elaboradas e

respectivos resultados apurados, em forma de gráfico:

Gráfico 5: Resposta à questão 10 - Em relação às tecnologias móveis digital, elas

mudam a maneira que nossos alunos pensa e aprende história?

Fonte: Elaborado pelo autor

Page 417: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

417

Perguntado se as tecnologias móveis mudaram a maneira de os alunos

pensar e aprender história, a grande maioria afirmou que sim, elas mudam. Embora

somente 26% concordam plenamente, não houve dúvida que elas alteraram a forma

como os alunos pensam e aprendem história quanto à interferência das tecnologias

móveis todavia, não teríamos como afirmar de que forma? Em que aspecto? Quais os

recursos? Essa poderá se tornar um desdobramento da presente tese.

Gráfico 6: Resposta à questão 12 - As tecnologias de informação e comunicação são

consideradas relevantes para o ensino de história

Fonte: Elaborado pelo autor

Já sobre a relevância, a maioria, 57%, concordam totalmente, e 42,1% em

parte. As respostas permitem afirmar que a maioria entende as tecnologias enquanto

relevantes para o ensino de história.

Gráfico 7: Resposta à questão 13 - Nós, professores de história integramos as

tecnologias educacionais (computador, tablete, smartphone, notebook e recursos web-

Internet) no ensino de história.

Fonte: Elaborado pelo autor

Page 418: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

418

Quanto à afirmativa de integração das tecnologias educacionais no ensino

de história, a grande maioria concorda em parte, o que nos permite dizer que há dúvidas

em relação ao uso das tecnologias no ensino de história.

Gráfico 8: Resposta à questão 14 - Começamos recentemente a usar o computador e

a Internet nas práticas do currículo escolar

Fonte: Elaborado pelo autor

Sobre o processo recente do uso dos computadores e a Internet nas práticas

do currículo, 73,7% concordam em parte, permitindo a resposta, mais uma vez, afirmar

que pairam dúvidas com relação ao uso das tecnologias ao currículo.

Gráfico 9: Resposta à questão 15 - Ainda não sabemos quais ferramentas existem

instaladas nos computadores das escolas e na web, que podem ser utilizados em

nossas práticas de mediação de aprendizagens na disciplina de história

Fonte: Elaborado pelo autor

Page 419: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

419

Quanto ao conhecimento sobre os recursos existentes nos computadores e

na web, as respostas permitiram afirmar que a maioria não os conhece. Essa realidade

vivida pelos professores indica a falta de iniciativa por parte dos gestores escolares, bem

como pelos próprios professores que, em sabendo da existência dos computadores à sua

disposição, não buscam explorar os recursos ali instalados e que possam auxiliá-los em

sua prática docente.

Gráfico 10: Resposta à questão 16 - 16 - Em decorrência da chegada dos computadores

conectados à Internet e dos dispositivos digitais acessíveis aos professores e alunos,

destaque as respostas que avalia relevantes:

Alternativas: a) Ampliou as discussões sobre o uso das tecnologias na escola;

b) Ampliou suas expectativas em relação às mudanças no currículo escolar via PPP

(Projeto Político Pedagógico);

c) Ampliou o monitoramento da implementação das TIC (Tecnologia da Informação e

Comunicação na Escola);

d) Ampliou debates entre professores de história e alunos sobre as mudanças que estão

ocorrendo na educação escolar;

e) Ampliou debates entre os escolares e os pais dos alunos sobre as mudanças que estão

acontecendo na sociedade

Fonte: Elaborado pelo autor

Embora as respostas indicassem a ampliação das reflexões sobre uso das

tecnologias no contexto escolar, é possível afirmar que tais discussões encontrem seus

limites no tocante às proibições de uso, em decorrência da sua utilização indevida pelos

adolescentes e jovens, a exemplo de alguns aplicativos, como o da baleia azul.537

537

Trata-se de um jogo digital em que o participante se depara com algumas etapas a serem cumpridas, ao

final, pode acarretar em suicídio.

Page 420: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

420

17 - Considerando sua atuação como professor de história, qual(is) dos objetivos abaixo

você elege como importante(s). Enumere em ordem crescente de 1 a 10.

Opções apresentadas ao colaborador Respostas em percentual e prevalência da opção

escolhida na sequência de 1 a 10 exceto as

proposições 1 e 10 (extremas) e 5

De 2-4 De 6-9

Preparar os alunos para o mercado de

trabalho

31,6% 31,6%

Promover atividades relacionadas com a

vida cotidiana e prática dos alunos

26,6% 26,6%

Assegurar um bom resultado do aluno em

testes de desempenho

5,3% 57,9%

Desenvolver habilidades de colaboração

entre os alunos voltados para a resolução

de problemas de seu contexto sócio

histórico e cultural

5,3% 36,9%

Satisfazer as expectativas dos pais e

comunidade escolar

10,6% 31,6%

Como observado nas respostas dos colaboradores, a opção de preparar os

alunos para o mercado de trabalho gerou dúvidas, cujos percentuais se igualaram (soma

2-4 = 31,6% e 6-9 = 32,6%), ou seja, não há decerto um projeto ao qual o coletivo da

escola, contando os professores de história em relação ao mercado de trabalho,

promovam atividades com a vida cotidiana dos alunos (soma 2-4 = 26,6% e 6-9 =

26,6%). Porém, ao perguntar sobre os testes de desempenho, as respostas revelaram que

a grande maioria (soma 2-4 = 5,3% e 6-9 = 57,9%) tem convencionado que prepara os

alunos para algum tipo de teste de desempenho, sendo possível que os professores se

reportem aos mecanismos de avaliação externa (Prova Brasil e ENEM).

Quando indagado sobre desenvolver habilidades de colaboração entre os

alunos para a resolução de problemas de seu contexto sócio histórico e cultural,

percebe-se que a maioria (soma 2-4 = 5,3% e 6-9 = 36,9%) afirma ser este um dos

objetivos do trabalho do professor de história. Por fim, perguntado sobre corresponder à

expectativa dos pais e da comunidade escolar, nos deparamos igualmente com os

percentuais (soma 2-4 = 10,6% e 6-9 = 31,6%), revelando ser esse um dos objetivos da

escola. Assim, entendemos que, mesmo não promovendo atividades relacionadas com o

cotidiano, dizem os professores que procuram satisfazer as expectativas dos pais e da

comunidade escolar.

Page 421: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

421

Ao concluir análise das respostas, podemos afirmar que a escola de

educação básica não segue com a prerrogativa de construir um projeto de escola popular

e democrática tomando seu primeiro princípio, citado no tópico no tópico 4.2.5, a escola

não faz a leitura da prática social tomada enquanto fonte de conhecimento, pois o

programa educativo deveria partir da problemática concreta de um determinado grupo

ou setor da sociedade, de suas necessidades específicas, do conhecimento que eles já

possuem de um determinado tema e do nível de consciência particular do grupo.

Portanto, as condições objetivas são relegadas ao segundo plano (vida cotidiana,

elementos provenientes de sua prática produtiva, de sua prática organizativa e de

contextos econômico e social).

Gráfico 11: Resposta à questão 18 - Diante das afirmativas abaixo, dê sua opinião:

Os alunos da escola onde você trabalha têm maior domínio das tecnologias digitais

que os professores

Fonte: Elaborado pelo autor

No sentido de entender a percepção dos professores em relação ao domínio

que os alunos têm sob as tecnologias digitais, comparadas às dos professores, a grande

maioria afirmou que sim, os alunos sabem mais. Aqui, devemos problematizar, uma vez

que a dimensão pensada pelos professores está relacionada ao uso técnico dos

dispositivos, uma vez que os alunos não apresentam „medo‟ ou „estranhamento‟ com o

„novo‟, além de acompanhar o espírito do tempo e as práticas sociais próprias da idade,

dedicando mais tempo à utilização de tais dispositivos. Todavia, o uso técnico não

significa que sabem explorar sua recursividade nas e para aprendizagens.

Page 422: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

422

Assim, haveremos de perseverar que, um passo precisa ser dado pelos

professores, qual seja, o conhecimento técnico não significa nada quando a dimensão da

demanda de aprendizagem está para além dessa fronteira, portanto, como os

aprendentes não vêm prontos para a escola, igualmente os professores não estão

preparados para usar os recursos tecnológicos nos processos de mediação e

aprendizagem. Como resposta a esse problema, haverão de buscar formas de sua

superação, por meio da formação continuada.

Gráfico 12: Resposta à questão 19 - Com a web (Internet) os alunos acabam

perdendo o contato com a realidade em que vive.

Fonte: Elaborado pelo autor

Ao questionar sobre o distanciamento da realidade por parte dos alunos, por

conta da web (Internet), as respostas foram bastante enfáticas, pois, para os maioria dos

professores os alunos acabam perdendo o contato com a realidade, no uso desse recurso.

Penso se há uma recorrência do uso de uma retórica pouco provável, pois,

ao adotarem essa perspectiva em relação à má utilização das tecnologias disponíveis aos

aprendentes, a exemplo de aplicativos como o baleia azul, om qual é bastante explorado

pela mídia, criminalizam as práticas disseminadas entre adolescentes e jovens.538

Ao assumir tal posição sem que reflita sobre tal problemática, desperdiçam

o potencial das tecnologias educacionais a seu favor, uma vez que dialogando com as

necessidades do cotidiano a escola atenderia as condições subjetivas da educação

538

O aplicativo baleia azul trata-se de um jogo que o usuário se submete a superar etapas que, ao final,

pode culminar em suicídio.

Page 423: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

423

popular e democrática, portanto, ao dela distanciar os alunos da realidade, haveremos de

perguntar que realidade estão tomando por parâmetro, uma vez que a tecnologia é uma

realidade social do tempo presente, portanto, não considerar seus conhecimento,

interpretações e formas de expressão, linguagem, valores, manifestações culturais e

artísticas, os professores e o coletivo da escola se distanciam dos propósitos da

educação popular e democrática, contribuindo para o afastamento do papel social da

escola no século XXI.

Muitos são os desafios que cercam os professores de história neste início de

século, pois toda inovação tecnológica (consequência da própria produção humana)

requer igualmente inovadoras atitudes, portanto, falar de história para os alunos nativos

digitais requer operar com múltiplos suportes tecnológicos, imagens, som, cores,

movimento, jogos, enfim, uma gama de artefatos e produtos próprios deste século,

muitos dos quais se encontram no contexto escolar, porém são ignorados pela maioria

dos professores.

Como observado, negar-se ao uso destes recursos é praticar uma escola cujo

propósito não é o de reconhecer as necessidades objetivas e subjetivas de uma escola

popular e democrática, pois, além de desconsiderar uma problemática concreta, não

cumpre a função social de mediar conhecimento histórico utilizando códigos e

linguagens acessíveis aos aprendentes.

É possível que tal decisão esteja atrelada à dificuldade de se mudar as bem

conhecidas estratégias, utilizando as páginas frias, inertes e linearmente distribuída nos

livros didáticos, optando por permanecer nos conhecimentos fragmentados e dispostos

desses livros, o que acaba fazendo com que nossos aprendentes permaneçam pensando

que a lógica do conhecimento está acondicionada em gavetas. Libertá-los e se auto

libertar é também uma função do professor de história, em tempos de cibercultura.

Reproduzo aqui uma expressão de um dos (as) colaboradores (as) em forma

de justificativa às respostas do questionário;539

Quando perguntado sobre o uso dos

dispositivos móveis, (questão 10) e se tais tecnologias mudam a maneira com que os

alunos aprendem história, o docente 12 afirmou que as tecnologias servem apenas para

539

Para fins didáticos e visando manter a integridade dos colaboradores, utilizarei número sequencial de 1

a 19, seguindo a ordem que responderam ao questionário. Anexo apresentaremos os nomes completo em

ordem alfabética dos colaboradores.

Page 424: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

424

outros fins sociais. Parece-nos que a resposta está ligada à crítica em relação às

tecnologias reveladas pela expressão – apenas.

Sobre essa questão, consideramos que os aprendentes, tal como os

professores, são „sujeitos‟ sociais à comunicação ativa possibilitada pelos dispositivos

móveis, cumprindo a função precípua da comunicação, além de que, de certa forma, as

redes sociais, via conexão com a Internet, libertou-os do meio físico, pois, em tempo

real comunicamos, a baixo custo, com pessoas distantes, encurtando as distâncias e

planificando o planeta terra. Convém ao professor possibilitar ao aprendente caminhos

para que este possa, inclusive usando as redes sociais, aprender história.

Assim, o professor de história na atualidade, independente da escola em que

esteja atuando, estará em meio a um tsunami comunicacional, mobilizado pelos

dispositivos móveis, o que requer, necessariamente, sua readaptação ao contexto

histórico da escola do século XXI. Para uma exitosa atuação, faz-se necessário

considerar algumas questões:

a) o perfil do aprendente;

b) o perfil da escola, contribuindo para que seu coletivo possa se tornar

comunicacional;

c) rever o papel do professor de história, assumindo sua posição de mediar a

produção de conhecimento histórico em tempos de cibercultura;

d) ampliar o uso dos suportes, indo além do livro didático, do giz e da lousa

convencional, já que o digital está disponível e reivindica seu espaço na sala de aula,

pois esta potencializará a comunicação, por estar integrada com os dispositivos móveis

e plataformas de aprendizagem por meio da web e;

e) Rever a metodologia para o ensino de história, de forma que ela possa

convergir para o fenômeno vivido pelos escolares, possibilitando-lhes dinamizar

aprendizagens do conhecimento histórico, fazendo história, pois, a escola que

conhecemos, em muitos aspectos, guardadas as devidas proporções, continuam iguais às

edificadas em meados do século XX, se observada do ponto de vista arquitetônico, uma

vez que a dinâmica dos espaços físicos segue o padrão de finais do século XIX.

f) Enfim, perceber que, a escola do século XXI, e especialmente o professor

de história têm ao alcance um potencial incalculável de troca de posição dos postulantes

à escola, visto que há alguns anos o professor era o único detentor do conhecimento –

Page 425: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

425

em tempos de cibercultura – dos dispositivos móveis, de novas linguagens e múltiplos

suportes, muitos dos educadores se tornaram dependentes dos conhecimentos e

habilidades que os aprendentes trazem de sua vivência em sociedade. Ao tempo em que

desloca o professor de seu „território‟, aproxima e democratiza as relações em sala de

aula, na perspectiva dialética.

Sobre essa questão, um(a) de nossos(as) colaboradora(as), ao justificar a

resposta à questão de número 18, onde foi perguntada sobre os alunos saberem mais que

os professores, a docente 2 disse: “[...] pelo fato de nossa comunidade ser carente, nem

todos os estudantes possuem acesso às tecnologias digitais”. Conhecendo a realidade de

nossas escolas no estado de Mato Grosso, embora exista o Programa Nacional de Banda

Larga nas Escolas, uma ação do Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, a

Internet não chegou com qualidade a todas as escolas, especialmente aquelas

localizadas do campo.540

Todavia, essa rede sozinha não resolve o problema da falta de

recurso para a inclusão dos aprendentes. Em sendo eleita por prioridade, essa ação

deveria ser um das mais importantes pautas no tocante aos insumos necessários para a

educação básica, todavia, ao disponibiliza-los, tornaria forte concorrente ao Plano

Nacional de Livros Didáticos, mais especificamente aos interesses das editoras, pois,

não há no país uma demanda por livros iguais aos adquiridos em nome de cada aluno e

aluna matriculados nas escolas públicas. Portanto, a escola se torna refém, bem como os

aprendentes, pela falta de um projeto, cujo propósito seja atender aos interesses do

aprendente e da comunidade.

Ao contrário de investir trilhões na impressão de livros didáticos, parte dos

recursos deveria ser realizado em livros digitais (e-book). Além disso, tal decisão seria

ecológica e sustentável. Mas, para esse alcance haveria de as escolas ter clareza de seus

540

Em 4 de abril de 2008, por meio do Decreto n. 6.424, o governo federal alterou o Plano Geral de

Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comunitário Prestado no Regime Público

(Decreto n. 4.769), pela conexão de todas as escolas públicas urbanas com MCOM, Ministério do

Planejamento – MPOG e com as secretais de Educação Estaduais e Municipais. Porém, estas últimas, que

são diretamente ligadas às escolas, não procuram fazer a gestão eficiente desse recurso. 540

Ao citar o e-book, não estamos pensando somente na diminuição da impressão dos livros e os vultosos

recursos pagos para sua distribuição, mas principalmente por abrir uma brecha, com o uso dos suportes

digitais, à possibilidade deste material ser interativo, portanto, daria autonomia aos professores de co-criar

o material didático. Manutenção dos serviços sem ônus até o ano de 2015. A gestão do programa deveria

ser feita em conjunto pelo Ministério da Educação – MEC, Agência Nacional de Telecomunicações –

ANATEL, em parceria com o Ministério das Comunicações – MCOM, Ministério do Planejamento –

MPOG e com as secretais de Educação Estaduais e Municipais. Porém, estas últimas que são diretamente

ligadas às escolas, não procuram fazer a gestão eficiente desse recurso.

Page 426: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

426

propósitos, contribuindo para a inclusão dos filhos das famílias que frequentam as

escolas públicas.

Outra questão precisa aqui ser apresentada, comete-se um equívoco pensar

que todos os aprendentes, crianças, adolescentes e até mesmo jovem dominam

igualmente o uso dos dispositivos digitais, pois, não se trata de uma tecnologia de baixo

custo, me refiro aos aparelhos celulares digitais, smartphone entre outros, pois muitas

famílias que têm seus filhos matriculados na escola pública não conseguem adquirir os

dispositivos, bem como não conseguem adquirir serviços de Internet em suas

residências.

Conhecendo essa realidade, o governo federal investiu na aquisição de

tablets para professores de Ensino Médio, com o propósito era oferecer-lhes uma

ferramenta para que pudessem dar início ao processo de uso, para, em seguida, feita a

avaliação e sendo ela positiva, adquirir o equipamento para os alunos. Porém, a

avaliação de uso por parte dos professores não foi exitosa, inclusive alguns deles se

recusaram a pegar o tablet541

.

Em se continuando esse distanciamento, a escola pública e em seu interior,

os professores continuarão contribuindo para a exclusão denunciada pela colaboradora

docente 6 que ainda há um número significante de discentes que ainda domina muito

pouco as tecnologias digitais”, ao justificar a resposta da questão 18.

Quando nos deparamos com o termo tecnologia na educação,

convencionada pelas terminologias (TIC) ou novas tecnologias da informação e

comunicação (NTIC), ou simplesmente tecnologias educacionais (TE), nossas

lembranças nos remetem a uma memória de curta duração, infestada de outras

terminologias originárias em diversos países, planeta afora, porém, difundia pelos

Estados Unidos da América, em altíssima velocidade por todo o globo terrestre, em

ondas arrebatadoras, forçando uma cultura da mídia, independente de raça, cor, credo,

541

Esse programa começou a ser implementado em 2012, no estado de Mato Grosso. Coordenamos esse

processo que adquiriu 9.000 (nove mil) aparelhos de 7 e 10 polegadas. Além do dispositivo, tinha

embarcado a plataforma E-Proinfo (ambiente virtual de aprendizagem) que o professor poderia utilizar

com seus alunos, bem como todos os links dos materiais de domínio público. Inicialmente surgiram

críticas, porque sua adoção encontrava a barreira da formação. Em resposta à questão, construímos um

curso específico e ofertamos via CEFAPROS, ainda assim, o sucesso ficou limitado a poucas centenas de

usuários. Um dos fatores de „desacreditar‟ o equipamento se deu por conta do aplicativo diário online,

exigido preenchimento dos professores utilizando a web, não rodar no tablet, não obstante o potencial

desse programa, infelizmente a cultura de uso das tecnologias ainda não conseguiu quebrar as barreiras da

falta de conhecimento, e em alguns casos, falta de compromisso.

Page 427: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

427

idade, formação. Foi nessa onda que surgiram os tablets, smartphones, notebook, lousa

digital, computador interativos e inúmeros outros dispositivos que vieram e se foram

sem deixar vestígios.

O fato é que, conforme expressou a colaboradora 18, ao justificar sua

resposta na questão 10, em relação à mudança da maneira dos alunos pensar e aprender

história: querendo ou não as tecnologias estão presentes em nosso cotidiano, fazer delas

um meio que facilite a mediação da aprendizagem é fundamental, pois é uma prática

inovadora no espaço escolar e que foge do ensino tradicional e monótono, apenas do

uso do livro.

Esse pensamento não está desvinculado de um momento histórico e de um

contexto cultural que visam o consumo (mas não somente) e, por não ser adotado e

internalizado pelos mediadores de aprendizagens nos espaços escolares, acabaram se

tornando, territórios de contenda.

Sobre essa mesma questão, contribuiu o colaborador 16 afirmando que as

tecnologias móveis vieram para facilitar o trabalho dos professores, porém, requer os

educadores que preparem mais, pesquise mais, agora podem ter outra preocupação e

fases próprias.

Parece-nos pacificada a ideia de que as tecnologias vieram para ficar e que

podem ampliar os horizontes de professores e alunos, ao fazer da „realidade estendida‟,

bem como da „sala de aula invertida‟, como têm defendido alguns educadores. O fato é

que o facilitar do trabalho requer ponderação, pois, nenhuma das tecnologias existentes

na escola, a exemplo da Internet, dos computadores, exceto a lousa digital e computador

interativo, foram inventadas para a educação, mas, esses dispositivos estão presentes no

cotidiano dos professores e dos estudantes, portanto, reivindicam seu espaço, devendo o

professor trazer para si a responsabilidade de uso associada a todas as ações docentes,

para que ele possa mediar a produção do conhecimento, considerando o projeto maior

de escola.

Ao incentivar a produção do conhecimento histórico local e regional, o

professor de história estimula o aprendente a ser sujeito de sua própria história, afinal, a

crítica sobre os mecanismos de opressão e invisibilidade histórica não estariam

centrados na questão daquilo que a escola tinha de ruim, tratado no tópico 3.8:

Page 428: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

428

O que tem de ruim é que eles não ensinam a verdade para os

estudantes crianças e adultos, só ensinam história mal contada que

eles inventam e não contam a verdade, como é preciso ensinar.542

Ou ainda, a crítica sobre o apagamento da memória praticado pelos livros

didáticos, quando não contam a verdade, mas só a história do opressor? O professor de

história tem em suas mãos a possibilidade em produzir saberes, curtir, comentar,

compartilhar, enfim, a liberdade, autonomia e responsabilidade apregoados pela escola

popular e democrática, podendo e devendo ser construídos com e por meio dos

dispositivos tecnológicos „móveis‟.

Ao lançar mão desses dispositivos, tal atitude não pode ser entendida

somente como – incluir mais um aparelho ao que já tínhamos ao nosso alcance, mas sim

uma oportunidade, em definitivo, de aprender com nossa própria prática, na relação

proposta pela escola popular e democrática – observar a prática, produzir teoria sobre

ela e agir sobre a própria prática, como já mencionado por Paulo Freire, no tópico 4.2.1

do presente capítulo:

Hay que pensar la práctica para, teoricamente, poder mejorar la

práctica. No hay que negar el papel fundamental de la teoria. Sin

embargo, la teoria deja de tener cualquier repercusión si no hay uma

práctica que motive a teoria.543

Assim como perseverou o citado, ao afirmar que o aprendente constitui

sujeito ativo no processo de aprendizagem, e melhor, por ser produtor de sua própria

história, tendo o professor como mediador e as tecnologias educacionais como meio,

utilizadas em larga escala para aprendizagens múltiplas e fora dos muros da escola e das

paredes da sala de aula, não seria esse um contrassenso, afinal, não ensinamos história

visando preparar o cidadão do futuro? E para que ele possa ter autonomia, segurança e

responsabilidade em seus atos, suas escolhas? Que futuro terá ele se não deslocarmos o

aprendente de um presente passado bastante conhecido nos registros dos livros

542

Alvorada (1977) Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia (1977) A16.0.44 P 5.7. 543

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Recorte de jornal sem identificação. DIII. 0.27 p. 5.5. O

evento foi construído como ato preparatório para a Assembleia Mundial de Educação de Adultos,

realizada em 21 de junho de 1985. Paulo Freire esteve como conferencista, momento em que publicou

alguns postulados que estaria trabalhando durante o evento. O texto refere-se a um excerto da entrevista

que deu ao jornal.

Page 429: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

429

didáticos, nos planos estaduais e municipais de educação, nos projetos políticos

pedagógicos e nos planos de aula do professor de história?

Aliás, se ampliarmos o foco e clareamos o universo dos territórios das

outras áreas de conhecimento e suas respectivas disciplinas, se observará que o

professores de matemática, geografia, química, física, biologia, filosofia e sociologia,

dentre outros, se assemelham aos professores de história, em aceitar os „limites‟ das

caixinhas „do conhecimento‟ e praticar isolada e friamente aos aprendentes. Se os

professores, incluindo os de história, não perceberem que a escola, sem um projeto

integrado com os problemas locais e em sintonia entre as áreas do conhecimento e

tampouco dialogar com a realidade vivida pelos aprendentes, cada vez menos alcançará

sucesso, pois o mundo fora dos muros da escola oferece, sem precedente na história,

mesmo que de forma aleatória, informações embarcadas nos mais variados suportes,

dentre as quais as vídeo-aulas (web-aulas) via Youtube. Confere dizer que existem

vídeo-aulas muito ruins, porém há excelente material disponível ao toque do dedo.

Ou façamos nós esse movimento em torno de observar a prática, teorizar e

transforma-la, ou acolhemos o ato falho de continuar dizendo que o problema não é

nosso e que, portanto, não temos nada com isso. Vivemos num momento em que se

expande a web-exclusão, e a web-dominação amplia seus „adestrados‟ consumidores,

tão igual quanto mais perversa que o analfabetismo do século XX e seus antecedentes.

Ser professor de história antes da web e em tempos de informações nas

nuvens continua exigir certos cuidados com „o fazer‟. Toda pessoa que decidir pela

profissão haverá de arregimentar-se de algumas certezas – alguns „saberes‟. Não há, em

hipótese alguma, uma receita pronta, um itinerário que você possa tomá-lo com certeza

de sucesso.

Para cada espaço-tempo, para cada escola, para cada sala-de-aula, para cada

grupo de aprendentes, para cada „conteúdo‟, tópico ou tema serão exigidos meios e

métodos distintos. Basta observar as disputas pelas memórias nas redes sociais.

Inventam-se „fatos‟, „verdades‟, disseminam-se ideologias e negando outras, alimentam-

se discursos. Nesse espaço-tempo é que os professores de história se encontram.

Pensar global, contraditoriamente têm conduzido muitos tornar-se cada vez

mais individualistas. Pensar global e agir local tem se constituído em dilema ético para

todos os professores de história. Seu fazer em tempos de cibercultura não deve fugir à

Page 430: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

430

sua função social de fazer com que nossos aprendentes se percebam agentes de sua

própria história, pois não basta ter acesso e conhecer outras milhares de „estórias‟, não

basta ter acesso a centenas de bibliotecas digital, museus, repositórios disponíveis na

web, ou, como já falamos anteriormente nas páginas dos livros didáticos, se elas não

fizerem com que possamos pensar a nossa própria história.

Haveremos de denunciar as tentativas de „massificação‟ de „adestramento‟

das pessoas, pois essa foi e continua sendo uma forma perversa de manter uma relação

violenta do opressor (detentor dos meios de produção, transformação, conhecimento

como bens amoedáveis) contra os oprimidos, sem escolas, sem condições para produzir

saberes que possam servir de „arma‟ nessa batalha inglória, não fosse a possibilidade de

conquistar a melhor e a mais contundente atalaia de defesa e instrumento de poder – o

conhecimento.

As muralhas das fortalezas, assim como as paredes das escolas e salas-de-

aula já não servirão de escudo, uma vez que deixaram de ser impenetráveis, pois, em

tempos de cibercultura, em tempos de comunicação instantânea, em tempos de realidade

estendida, ela se encontra invertida com a presença dos suportes tecnológicos, que,

antes, se limitavam a folhas do caderno e dos livros, ganhando novos formatos, numa

dinâmica inacreditável aos olhos dos professores das últimas décadas do século XX,

uma vez que elas foram literalmente deletadas, mesmo que fisicamente tenham

permanecido nos mesmos lugares.

Outrora, o melhor professor era aquele que se conhecia por meios dos

textos, das palestras e aulas, cujo limite era o tempo presencial. Hoje, as melhores aulas,

e seus autores e co-criadores estão espalhadas por todo o mundo, acessível pela rede

mundial de pessoas conectadas por computadores. Portanto, o que um dia se limitou aos

artefatos, aos espaços fisicamente edificados, hoje se multiplicou e está ao alcance de

todos. Porém, como saber onde estão, e se são confiáveis, senão por meio da orientação

e mediação do professor?

Assim, estamos diante de um risco, pois, se por um lado a impessoalidade

parece ser a marca registrada das relações sociais impostas pela cultura neoliberal e

difundia nas e pelas redes sociais, pela prática do „selfie‟, por outro lado surgem as mais

variadas formas de - tudo se vende - as manias que precisam ser eleitas como

Page 431: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

431

problemática das aulas de história, a exemplo dos „youtubers‟.544

Ao tempo que traz

para o centro das atenções „os sujeitos anônimos da história‟, sua invenção se faz dentro

de um padrão que possa se tornar ícone de um tempo, do contrário não será promovido

pelos „likes‟ nas redes sociais e não alimentará essa indústria nada ingênua da mídia. O

grande negócio é tudo aquilo que se pode consumir, mesmo que meia dúzia de frases de

efeito.

Não por acaso, a saga pela venda da imagem está por traz dos „makes‟ a

busca pela aparência ideal, mesmo que fora daquele espaço (ambiente físico ou virtual)

público sejam alimentas as mais variadas formas de comportamento, especialmente

revestidos da intolerância, do preconceito, do racismo, vitimando uma alienação sem

precedente na história.

Sobre a necessidade de o professor dominar os códigos e linguagem digitais,

José Manuel Moran trata de uma questão fundamental para entender os processos e

desafios que cercam a construção do conhecimento produzido no chão da escola, como

afirma o autor, o desafio é letrar digitalmente crianças e jovens, pois:

A educação escolar precisa compreender e incorporar mais as novas

linguagens, desvendar os seus códigos, dominar as possibilidade de

expressão e as possíveis manipulações. É importante educar para usos

democráticos, mais progressistas e participativos das tecnologias, que

facilitem a evolução dos indivíduos.545

Percebe-se que, num efeito dominó, as questões se entrelaçam e conduzem a

domínios correlatos, ou, como o titulo diz, à convergência, assim permeia nossas

pesquisas levando em conta a necessidade dos alunos.

Concluímos esse tópico na perspectiva de ter, a partir do expresso pelos

colaboradores, apresentado respostas às questões anteriormente levantadas em relação

544

Youtubers é uma nova terminologia para definir os usuários da Plataforma “Youtube”, que usam a web

como uma fonte de liberdade alternativa, mostrando seu quotidiano, partilhando informações, entretendo,

falando de comportamentos jovens. Tem transformado muitos em celebridade, a exemplo do canal de

comédia “Porta dos Fundos”, que possui mais de 10 milhões de subscritores. Esse fenômeno de massa

requer, por parte dos professores de história, maior atenção, afinal, gradativamente se tornam formadores

de opinião, restando-nos saber que opinião e que valores estão sendo inculcados na rede e por meio dela.

Para saber mais, acesse http://platinaline.com/saiba-o-que-sao-youtubers/ . ou

HTTPS://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_personalidades_do_YouTube . Acesso em 21/02/2017. 545

Moran, José Manuel. Novas tecnologias e mediação pedagógica / José Manuel Moran, Marcos T.

Massetto, Marilda Aparecida Behrens. Campinas, S.P: Papirus, 2.000, p. 36.

Page 432: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

432

ao uso das tecnologias no contexto escolar, avaliada sob o primeiro princípio da escola

popular e democrática. Igualmente, apresentamos os desafios encontrados pelos

professores em transformar sua prática. No próximo tópico delinearemos algumas

questões cujo foco será pensar a escola para 2030, a escola do futuro.

4.7 - Das práticas à teoria – da teoria às práticas: por uma reinvenção da escola no

Araguaia-Xingu no e para o século XXI, caminhos a seguir

Como observado anteriormente, as práticas de mediação e aprendizagem no

contexto escolar exigem novos conceitos sobre si e sobre os meios e métodos

demandados pelos escolares do presente e do futuro, em 2030. Pois, como afirmou a

colaboradora 18, ao justificar sua resposta à questão 18 afirmou que havia professores

que mal sabiam ligar o computador interativo e foram os alunos que auxiliaram.

A afirmativa permite admitir que nenhum professor precisa, de pronto, saber

tudo, mas, quando não souber, deve procurar quem sabe, pois é esse processo de troca

que enriquece o fazer na escola. Porém, uma vez tendo a oportunidade em aprender, que

o faça. Infelizmente, a compartimentação da escola acabou criando territórios

intransponíveis, a saber, a falta de „vontade‟ por parte de alguns professores de

aprender, procurando sempre aquele(a) que execute a função, como aconteceu por

muito tempo na escola das últimas décadas, se ela não dispunha de um técnico de

informática ou se um professor era o responsável pelo laboratório não estivesse na

escola, nenhum outro saberia colocar em uso os equipamentos.

O segredo está na transformação e reinvenção da escola por meio de novas

práticas, portanto, estudo sobre o que ensina o professor de história quando ensina

história, fazendo uso dos meios tecnológicos à disposição largamente utilizados fora dos

muros da escola. Tais transformações passam, inicialmente, pela transformação do

profissional da educação, e, para esse fim, há dois caminhos a seguir: retomar a

academia e se matricular em mais um curso superior, o que se torna inviável por várias

razões, primeiro, devido ao acesso ainda ser um problema, especialmente aos

municípios distantes dos grandes centros; segundo, pelo currículo da maioria dos cursos

de licenciatura ainda não contemplarem disciplinas relacionadas à tecnologia

educacional.

Page 433: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

433

Restando, portanto, a opção da formação continuada. Nesse sentido,

apresentamos, de forma sintética, os cursos que foram produzidos pelo Ministério da

Educação, em parceria com as Universidades, os quais foram disseminados em Mato

Grosso pelos Centros de Formação dos Profissionais da Educação, aos quais tivemos

sob nossa coordenação. Porém, antes de apresenta-los, azeitemos o diálogo com os

pensadores da formação continuada.

Nesse sentido, Tardif descreve:

[...] ora um professor de profissão não é somente alguém que aplica

conhecimento produzido por mecanismos sociais: é um ator no

sentido forte do termo, isto é, um sujeito que assume sua prática a

partir dos significados que ele mesmo lhe dá, um sujeito que possui

conhecimentos e um saber fazer provenientes de sua própria atividade

e a partir dos quais ele a estrutura e a orienta.546

Inicio descrevendo o curso Introdução à Educação Digital, cujo objetivo é o

de familiarizar o professor com a utilização dos recursos computacionais básicos

(Sistema Operacional Linux Educacional), com duração de 40 horas, distribuídas nas

modalidades, e ministrados presencial e a distância, visando a capacitação do cursista

para o domínio das ferramentas: editor de texto; apresentações de multimídia; recursos

da web para produção de trabalhos; pesquisa e análise de informações na Internet;

comunicação e interação (e-mail, lista de discussão, bate-papo).

Já o curso Tecnologias na Educação: Ensinando e Aprendendo com as TIC

objetiva subsidiar o professor na compreensão do potencial pedagógico das tecnologias

no ensino e na aprendizagem escolar. Com duração de 100 horas, também executado na

modalidade presencial e a distância, inclui como programação o planejamento de

estratégias de ensino e de aprendizagem, integrando recursos tecnológicos disponíveis e

a criação de situações de aprendizagem que levem o aluno à construção de

conhecimento, ao trabalho colaborativo, à criatividade e aos conhecimentos esperados,

em cada nível/série seguindo os Parâmetros Curriculares Nacional (PCNs).

Na mesma linha, o PITEC – Projeto Integrado de Tecnologia ao Currículo

visa capacitar professores e gestores escolares para que eles possam desenvolver

projetos, utilizados em sala de aula, junto aos alunos, integrando as tecnologias da

educação existentes na escola, bem como na construção de projetos de aprendizagem.

546

TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. 9 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.

230.

Page 434: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

434

Fonte: Gerado pelo autor em outubro de 2014 por meio do Sistema Integrado de Tecnologia Educacional

do MEC

Para concluir, foi ofertado o curso Redes de Aprendizagens, o qual visou

preparar os professores para compreender o papel da escola frente à cultura digital,

dando-lhes condições de utilização de novas mídias sociais no ensino, visando ainda

promover a análise do papel da escola e dos professores frente à cultura digital numa

sociedade altamente tecnificada. Compreender como as novas mídias sociais

diversificaram as relações entre as pessoas, e, em especial, como semelhantes mudanças

afetaram nossos jovens e se refletiram na sua relação com a aprendizagem e com a

escola, possibilitando a compreensão do potencial educativo das mídias sociais digitais.

.

106

25

29

262

185

84

0

74

79

0

34

157

30

0

69

30

29

72

226

0

35

0

102

27

48

80

90

133

0

0

213

0

194

119

108

120

0

93

163

147

1210

99

115

50

2

0 200 400 600 800 1000 1200 1400

Tangara da Serra

Sinop

São Félix do Araguaia

Rondonópolis

Primavera do Leste

Pontes e Lacerda

Matupá

Juína

Juara

Diamantino

Cuiabá

Confresa

Caceres

Barra do Garças

Alta Floresta

Gráfico 13: Distribuição númérica do número de cursistas atendidos pelos cursos de Formação Continuada em Tecnologia Educacional (IED, TIC, EP e

REDES) por CEFAPRO. Extraído do SIPI em 17 de outubro de 2014.

Redes de Aprendizagem

Elaboração de Projetos

Tecnologias na Educação: Ensinando e Aprendendo com as Tics

Introdução a Educação Digital

Page 435: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

435

Sobre a oferta e atendimento aos professores das redes estadual e municipal

de Mato Grosso, em relação aos cursos de formação continuada, soma-se o número de

cursos ofertados aos professores entre 2009 a 2014, os quais passaram de 56.000

(cinquenta e seis mil), só em 2014, conforme observamos no gráfico a seguir, tendo sido

atendidos 4.641 cursistas, nos quatro cursos. Só nos polos de São Félix do Araguaia e

Confresa, recorte espacial da pesquisa, foram ocupadas 700 vagas:

Todos os cursos apresentados foram desenvolvidos pelo MEC e, até 2014

tínhamos como pauta as políticas públicas, todavia, a partir daquele ano, por razões

ainda desconhecidas, a Secretaria de Estado de Educação não mais os ofertou. Verificar

as razões poderá se tornar um desdobramento da pesquisa, sendo que para o momento

voltamos nossas lentes para transcrever as respostas de seis, entre os 19 colaboradores,

ao serem desafiados a pensar a escola 2030, a escola do futuro responderam.

Quadro de respostas : A escola do futuro sob o olhar dos professores de história

Colaboradora 1- Toda tecnologia, onde muitos professores vão ser substituídos pela evolução

tecnológica, porém acredito que também os professores vão acompanhar este desenvolvimento

Colaboradora 2 - Gostaria que a escola do futuro fosse realmente universal, onde todas as

pessoas tivessem acesso permanecia, e que a educação fosse realmente prioridades para os

governante, que as riquezas gerada pelos trabalhadores e trabalhadoras desse país fosse

revertida em educação de qualidade, valorização dos professores, salas de aula amplas e

equipadas com diversas ferramentas tecnológicas de (notebook, lousa digital, data show,

Internet de qualidade, laboratórios por área de conhecimento), pois facilitaria muito o acesso

ao conhecimento.

Colaboradora 3 – Olha, o sonho grande parte dos professores seria ter uma sala adaptada, pra

cada disciplina, com os meios tecnológicos disponíveis em cada sala, sem precisar o professor

ficar mudando de sala, o aluno, sim, mudaria.

Colaborador 14 - Escola aberta, com computador e tablets estarão mais presentes na vida dos

professores, do que lousa e apostila, livros, maior parte do ensino será personalizada vai

acompanhar o ritmo e os interesses dos alunos, aulas online que as presenciais, elas terão

formato híbrido usando plataforma online e espaço físico onde ocorram as interações sociais, o

professor deixa de ser peça cultural para ser mediador do processo de aquisição do

conhecimento.

Colaboradora 18 - Penso numa escola que valorize e respeite a diversidade étnica, cultural,

social, econômica etc., uma escola que forme seres humanos autônomos e críticos, capazes de

lidar com as mudanças e transformações da sociedade. Pelo que percebo, a escola não está

conseguindo acompanhar tais transformações ocorridas no decorrer do tempo. Temos um

modelo de escola do passado para alunos do presente. Espero que até lá, tenhamos conseguido

suprir esta necessidade de um novo modelo de escola e educação significativo que esteja de

acordo com a realidade futura.

Colaboradora 18 Esse pensamento é desafiador, pois nos últimos anos as coisas se

transformam de maneira surreal e observo que a escola não tem conseguido acompanha-las,

Page 436: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

436

mas imagino que necessitamos de uma nova organização escolar principalmente que atenda os

anseios dos alunos em tempos de cibercultura. Nesta perspectiva, imagino uma escola 90%

digital, nesta o aluno deverá ter mais autonomia e colaborar com a construção do ensino

aprendizagem. A escola do futuro tem que oferecer muitas novidades para que os estudantes

vejam ela como algo prazeroso e não obrigatório.

Ao observar as respostas, percebemos que, ao pensar a escola do futuro, os

professores desenharam uma escola tecnificada, repleta de recursos à disposição dos

professores e aprendentes, uma escola que acompanhasse o espírito do tempo, uma

escola que respeitasse a diversidade étnica, cultural, social e econômica, enfim, uma

escola capaz de formar seres humanos autônomos e críticos. Desejavam ainda que os

governantes tivessem a educação enquanto prioridade, com valorização profissional, e

assim, assegurasse uma educação de qualidade.

Parece-nos que não há como imaginar uma escola em 2030 senão inversa

em seu próprio tempo. Todavia, para concluir o tópico, bem como o quarto e último

capítulo, importante se faz retomar os debates sobre a necessidade de se pensar-fazer o

projeto de escola popular e democrática, com intuito de desnaturalizar o saber-fazer do

professor de história em face à cibercultura. Não se trata de algo a ser desvendado no

futuro, mas a ser decifrado, decodificado e reificado por uma história do tempo

presente.

Page 437: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

437

Considerações finais

Na perspectiva de concluir a narrativa, nossa procura será a de, em poucas

linhas, desenhar a invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense. Porém, antes

de fazê-lo compartilhamos que, à medida em que a pesquisa avançava, os desafios iam

se avolumando como emaranhados de enigmas a ser decifrados sobre os pilares nos

quais se edificou a escola popular e democrática em tempos e pós governo militar.

No avançar da tessitura da narrativa, novos pensamentos, dúvidas e

sentimento da necessidade de respostas povoavam o fazer, e, sem perder de vista a

angústia inicial, entender como se organizou a escola, seus idealizadores e praticantes,

bem como a necessidade em responder em que princípios foi pautada sua invenção, que

importância pode a ela ser atribuída no processo de organização social, no tempo e

lugar, como as famílias se organizavam em torno da escola dos patrimônios e sertões

diante daquele quadro de perseguição, violência e morte nas águas e terras contíguas aos

rios Araguaia-Xingu na segunda metade do século XXI, mais especificamente entre as

décadas de 1970 e 2018.

Faz-se importante registrar que a pesquisa sobre a invenção da escola

naquele espaço específico revelou uma face do cotidiano que pode não ter existido

materialmente, porém, fortemente presente no discurso expresso em sucessivas

narrativas em fragmentos publicados pelo periódico Folha Alvorada, que, somados a

outras fontes, a exemplo do Diário e seus outros escritos de Pedro Casaldáliga, e

defrontadas com outras narrativas publicadas sobre aquela espacialidade, convergiram

para que pudéssemos compor a trama e delinear a narrativa como forma de resposta aos

objetivos inicialmente traçados.

Assim, construir uma narrativa sobre a invenção da escola no Araguaia-

Xingu requereu longa caminhada e travessias, algumas marcadas por descobertas

revigorantes, outras a peso de muitas dificuldades, espinhos, pedras e outros obstáculos

que se avolumavam à medida em que as forças se esvaiam. Mas, todas as vezes que me

deparava com os empecilhos, lembrava da frase marcante do Bispo, que o pior medo é o

medo do medo. Assim, encorajava-me em continuar a leitura da escola no tempo,

provocando novos encontros revestidos de utopias.

Page 438: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

438

Dessa feita, ao situarmos a escola em „tempo‟ e „lugar‟, percebemos que ela

conseguia escapar, transcendendo ao cronológico e ao espaço em que havia sido

edificada. Por essa razão, procuramos revelar uma face de sua invenção em forma de

narrativa.

Pensava ser esta uma tarefa fácil, contudo, os enigmas sobre a invenção da

escola se tornaram um desafio continuo, assim, encorajava-me a duelar sobre a leitura

da escola no tempo, provocando novos encontros marcados por denúncias e utopias.

Considerando ter nascido em Mato grosso, filho de pais migrantes (pai baiano e mãe

mineira), membro de uma família de 9 irmãos, cuja trajetória assemelhava à das

milhares de famílias que se deslocaram para Mato Grosso na perspectiva de ter acesso à

terram não podia negar que a formação escolar básica (1º e 2º graus) tenha sido numa

escola pública do interior do Estado, entre as décadas de 1980 e 1990, somada ao fato

de ter concluído o curso superior e a pós-graduação, em âmbito de mestrado em

História, pela Universidade Federal de Mato Grosso, em finais do século XX e início do

século XXI. E conhecer a realidade da escola pública de educação básica como

professor há quase 25 anos, mas não tendo contribuído nas pinceladas necessárias para

compor o quadro. Porém, embora a experiência tenha sido importante, mostrou-se

insuficiente, pois eram somente impressões, miragens do que a pesquisa poderia revelar

sobre o conflito permanente pelo qual passou a escola nas últimas décadas do século

XX, com prolongamentos no século XXI.

Embora a construção da narrativa tenha emoldurado o cotidiano dos

escolares, procuramos fugir às armadilhas do tempo, contextualizando as condições da

produção do trabalho, bem como as experiências vividas pelos protagonistas da escola

da educação básica.

Ao longo da pesquisa, buscou-se entender o sentido da invenção da escola

no Araguaia-Xingu mato-grossense, mais especificamente o sentido político da prática

educativa dos professores, em especial, os de história, na esteira da concepção de uma

escola popular e democrática no contexto das transformações operadas na ordem do

discurso e sua prática.

Porém, as respostas possíveis, as quais foram apresentadas ao longo da

narrativa, revelou a escola enquanto centro nevrálgico do processo de resistência e

organização social das famílias diante da ação opressora do latifúndio, com apoio do

Page 439: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

439

Estado, por conta desta ter sido edificada sob a luz de um projeto de sociedade mais

justo e igualitário, consignada à escola popular e democrática.

Em seu processo de construção, fez-se uso da cultura popular, a exemplo da

literatura de cordel, tomando a linguagem do cotidiano enquanto forma de promover,

em sentido amplo, a alfabetização das famílias, e, por conseguinte, o alcance do direito

ao voto e ao poder de denunciar os opressores.

Mesmo que mergulhada em dificuldades, a escola não se tornou uma ilha

banhada pelas águas do Araguaia ou do Xingu, mas, numa instituição sensível aos

problemas das famílias e de seus escolares.

Ao longo da narrativa, foi possível perceber os vários níveis da participação

popular na invenção da escola e na resistência, o que nos possibilita afirmar que ali se

fizeram ecoar gritos de democracia, mesmo que tivessem rodeados por grandes

extensões de terra e pastos, os quais se ouvia ao longe, nas fronteiras do Estado, do país,

não sendo suficientes para impedir que as lutas no Araguaia- Xingu mato-grossense

estivessem conectadas a outras lutas em torno da educação na América Latina,

tampouco deixou de ser ouvida na Europa por conta das denúncias feitas por Pedro

Casaldáliga em sua rede de sociabilidades.

Igualmente constatou-se que a escola/educação esteve presente nas ações do

líder religioso ampliado em sua rede de sociabilidade, anunciadas/denunciadas as

situações-problemas vividos pelas lideranças e pelos escolares com ressonância em todo

território nacional por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, seja no

exterior, com alcance ao Vaticano, como anunciado aos Papas Paulo VI e seu sucessor

Paulo II, conforme citado no tópico 3.8.2, quando o líder religioso apresentou, em 1986,

a Memória dos 10 anos do assassinato do Padre João Bosco.

Todavia, a alfabetização dos povos, recebeu maior empenho nas ações da

Prelazia, pois, “a fome da cabeça é maior que a fome da barriga”547

. Tal feito pode ser

percebido desde 1970, com a criação do Ginásio Estadual do Araguaia, que, somada as

outras ações antecedentes e consequentes, cumpriu função decisiva na organização e

permanência das famílias nas comunidades, a despeito dos interesses dos tubarões e

governo opressor.548

.

547

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970. A16.0.03 p 01-3 548

“[...] o povo esquecido, desesperançado” pois a “fome de cabeça é maior que a fome de barriga”.

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03 P3.3

Page 440: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

440

Para esse fim, observamos que a comunicação via periódico Folha Alvorada

tornou-se ferramenta de primeira ordem, não só para denúncia, mas difusão e troca de

informações, além de, como foi apresentado, servir de suporte aos professores de

história, em boa medida, a fim de fugir da „história mal contada‟.

A pesquisa documental e respectiva análise também permitiram afirmar que,

em torno da escola se produziram conhecimentos numa relação prática-teoria-prática,

pouco usual na cultura da escola pública brasileira da época, e extensiva às do século

XXI. Embora essa iniciativa antecedesse a invenção da escola no Araguaia-Xingu, pois,

como vimos no último capítulo suas origens datam da década de 1960, no Nordeste

brasileiro, quando ali se fez e dali derivaram inúmeras possibilidades de reinvenção da

escola popular e democrática.

Esperamos ter contribuído com a história da escola e, por meio dela,

fomentado a memória do rico processo de construção da educação no Araguaia-Xingu

mato-grossense, seja utilizando a estratégia da seleção das fontes e coleta de dados,

onde mostramos a possibilidade de realizar pesquisa documental aliada à técnica de

associação livre para se analisar a história ensinada; a possibilidade de os professores

observarem o cotidiano, lançando mão de novos meios e métodos em seu fazer docente;

que esse trabalho possa subsidiar novas pesquisas sobre o tema, cujos pontos

apresentamos em forma de síntese a seguir:

1 - No ano de 1968, em São Félix do Araguaia, município de Barra do

Garças, havia somente uma escola na Lagoa, hoje Vila São José, onde Dona Tunica

lecionava para crianças até a 4ª série (5º ano). Com a criação da Prelazia e com as

pesquisas realizadas, em 1970, pelo Professor Hélio de Souza Reis, publicadas pela

Carta Pastoral em 1971, denunciava-se que 52% dos adultos se declaravam analfabetos,

34% sabiam ler um pouco e só 9% tinham a 4ª série, portanto, a maioria da população

era analfabeta. Uma segunda pesquisa, com vistas a um planejamento para superação

daquele quadro, teve por base um curso ministrado por Maria Nilde Mascellani, de

visão global, com programação do trabalho da prelazia em torno da educação, conforme

apresentado no tópico 4.2.

2 - Em 1970, a criação do Ginásio Estadual Araguaia pela prelazia

(apresentado no tópico 2.3) que, para seu funcionamento trouxe os primeiros

Page 441: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

441

professores habilitados para lecionar para os alunos ali matriculados. Em 1972, formou-

se a primeira turma de 8ª série (9º ano). O prestígio da escola foi incomodando os donos

do poder local, alimentado pelo distanciamento dos tubarões, em razão da publicação da

Carta Pastoral que estabeleceu um divisor de águas entre o latifúndio e a prelazia. E,

quando a repressão militar, em 1973, atingiu a região e principalmente a prelazia, o

Ginásio Estadual foi o primeiro espaço a ser atacado, tendo seus professores

perseguidos, não tendo a prelazia como continuar este trabalho.549

Sobre esse episódio, convém dizer que motivos haviam de sobra, se

observados do ponto de vista da participação popular e democrática, uma vez que sua

organização em torno do GEA incomodava a ditadura militar, pois, ali havia duas

organizações, a União Estudantil de São Félix (UNESF)550

e a Associação de Pais e

Estudantes (APE). Congregava os alunos para representa-los e para promover seu

desenvolvimento nos diversos campos da atividade humana.551

A UNESF mobilizava os

alunos, conseguindo comprar um lote e estava adquirindo material para construir sua

sede. De abril de 1972 a setembro de 1973, 36 reuniões foram realizadas.

Era uma escola participativa e democrática. Como lembra Aldenira Setúbal,

da primeira turma do GEA, hoje (1994) professora da Escola José Fragelli em São

Félix, “[...] a união e o diálogo entre alunos, professores e pais era o que marcava o

ginásio‟. Havia „arte na educação”, diz ela. E outra ex-aluna, Shirley Luz Brio, hoje

(1994) professora municipal, diz que o GEA se destacava pela „organização‟: “A escola

parecia que acendia uma luz na vida da gente”, lembra.552

Todavia, considerando aquele momento turbulento do governo militar,

qualquer iniciativa que „atentasse‟ contra o governo opressor, mesmo que fosse uma

vara verde, seria suficiente para ser tomada por afronta à segurança nacional.

Explicamos, o professor Elmo, para evitar que um menino jogasse pedra na vidraça da

escola, lançou mão de uma vara verde e correu atrás do menino. Porém, este era filho de

549

Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Jul./ago. de 1990. A 16.9. 04,

p. 5-16. 550

Conforme a matéria, a UNESF, foi criada no dia 3 de abril de 1972 e esta funcionava como se fosse a

UNE de São Félix. Os pais também participavam da administração da escola. A Associação de Pais e

Estudantes – APE, criada em 9 de maio de 1972, avaliava o andamento do ginásio, determinava medidas

disciplinares, propunha mudanças na condução da escola e se preocupava com a cidade, com poder de

interferir no aprendizado dos alunos. (Procurou casas de festa para que não admitissem alunos nos

horários de aula, por exemplo). O Presidente eleito foi o Pastor Nelson, da Assembleia de Deus. 551

Alvorada (1995), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Mar/Abr. de 1995. A 16.14.

02, p. 8-8. 552

Ibid.

Page 442: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

442

um comerciante local e, passados três meses, serviu de pretexto para que o pai fizesse

uma reclamação formal contra o professor Elmo, ao diretor, padre Pedro Mari,

solicitando o afastamento do professor. Não bastasse a reclamação, passou a ameaçar o

professor de morte. Diante disso, professores, alunos e pais, de comum acordo,

decidiram suspender as aulas, até que fossem dadas condições de segurança para o

corpo de profissionais que atuavam na escola. A decisão foi comunicada às autoridades

e a todo o povo de São Félix. Era 24 de maio de 1973.

Poucos dias depois, grande contingente militar chegou a São Félix, estava-

se diante de um ato de subversão: os professores „tão dedicados‟, nada mais seriam do

que „perigosos agitadores‟, segundo os militares. No dia 4 de junho, os professores

foram obrigados a retornar às aulas, com soldados armados perfilados na porta das

salas. Os dirigentes da UNESF foram perseguidos e se esconderam. A equipe da

prelazia, responsável pelo Ginásio, foi obrigada a retratar-se da atitude tomada pelo

professor Elmo e pela decisão coletiva de parar as aulas, com intuito de preservar os

professores das ameaças de morte que vinham sendo anunciadas.

Com este pretexto, a repressão prendeu, em Serra Nova, o agente de pastoral

Edgard Serra e a visitante Thereza Salles, companheiros dos professores do Ginásio

Estadual Araguaia. No início de junho, nova investida com prisões e torturas, atingindo,

sobretudo, os agentes de pastoral da prelazia, a ex-aluna Adauta e o líder dos posseiros

de Serra Nova, Lulu.

Tal tratamento desmotivou completamente os professores e as lideranças da

escola. Em setembro, a União dos Estudantes de São Félix encerrou suas atividades, e

os professores fizeram um comunicado à cidade de que não mais retornariam em 1974.

Assim, o ano de 1973 foi encerrado num clima misto de perplexidade e espanto, e o

GEA deixou de existir.553

3 - Porém, no sertão, as campanhas missionárias levavam educação através

dos cursos de alfabetização de adultos, como apresentado no tópico 4.4.1 do capítulo

IV, já que, para aqueles que sabiam ler, era ofertado curso de complementação. Partindo

da realidade do povo, escolheram-se as palavras geradoras da alfabetização, de acordo

com o método Paulo Freire. Todavia, como se observou ao longo da narrativa, o

processo de „semear‟ escola no sertão se deu a partir da união das famílias em

553

Alvorada (1995), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Mar/Abr. de 1995. A 16.14.

02, p. 8-8.

Page 443: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

443

comunidade, sempre „animados‟ pela prelazia e pela rede de enfrentantess, dentre eles

professores, muitos dos quais se tornaram, aos olhos dos opressores, subversivos

guerrilheiros.

4 - Os índios Tapirapé também sentiram a necessidade de alfabetização,

enquanto mecanismo de enfrentamento à sociedade dos brancos, sobretudo na luta pela

terra. Assim, em 1973, a Prelazia iniciou uma escola na aldeia, com os professores Luiz

e Eunice. Com o passar dos anos, a escola produziu seu próprio material didático,

através de cartilhas, gramáticas e outros livros, todos redigidos na língua Tapirapé.

Igualmente ocorreram várias tentativas de atendimento às escolas das

aldeias Karajá. Porém, como vimos ao longo do capitulo 2, dezenas de escolas foram

edificadas com recursos da própria comunidade e nelas vários agentes da pastoral

assumiram o ensino, como professores, diretores ou na orientação pedagógica.554

5 - Com a criação de novos municípios, a maior parte dos agentes ligados à

educação participou do processo político local, para garantir que a educação fosse

prioridade na administração, o que se concretizou de 1982 a 1988, com as Prefeituras

Populares de São Félix, Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte e Canarana. Essa

ampliação se deu, literalmente, pela educação.

6 - Já em relação ao problema levantado por Maria Nilde Mascellani, em

1972, sobre a formação dos professores, dentro do projeto de escola/educação no

Araguaia-Xingu foi implantado, entre 1978 e 1981, um projeto inaugural dos Cursos de

Capacitação de Recursos Humanos de 1º grau para os professores, bastante tratado no

tópico 2.3 da tese. O resultado desse curso produziu bons frutos, os quais

desembocaram no Projeto INAJÁ, concebido para atender à formação de 2º grau aos

professores leigos. Como apresentado no capítulo 4 da tese, o INAJÁ, em sua primeira

edição, atendeu a 160 professores dos municípios de São Félix, Santa Terezinha,

Ribeirão/Cascalheira e Porto Alegre do Norte nos períodos de férias. O curso teve início

em 1988, tendo sido concluído em meados de 1990.

Os dois cursos nasceram da iniciativa de pessoas ligadas ou sintonizadas

com a filosofia educacional da prelazia. E, seguindo os pressupostos de uma escola

popular e democrática, contaram com a participação coletiva para sua criação, bem

como com a participação da comunidade, para que não viesse a ser prejudicado quando

554

Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Jul./ago. de 1990. A 16.9. 04,

p. 5-16.

Page 444: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

444

da „falha‟ do Estado e das prefeituras, responsáveis pelos recursos necessários para sua

execução. Nesse particular, só se pôde concretizar o projeto com o apoio da igreja

católica, que cedeu a infraestrutura para a realização dos cursos.555

Como observado no

tópico 4.4, durante a semana dedicada à formatura dos cursistas do INAJÁ, foram

intensificados os debates sobre a necessidade de cursos superior na modalidade de

férias, portanto, plantava-se ali a pedra fundamental das licenciaturas Parceladas da

Universidade do Estado de Mato Grosso.

7 – Conforme apresentado na narrativa, esta universidade estadual cumpriu

e cumpre papel fundamental no projeto de educação popular e democrática, inaugurado

no Araguaia-Xingu na década de 1970, embora sua oferta tenha iniciado 20 anos depois.

Assim, como o INAJÁ, está diretamente ligada ao movimento de educação popular,

com estreita ligação ao processo de produção de conhecimento anunciado na presente

narrativa.

A luta pela terra e pela vida passava pelo direito à educação e à participação

política nos processos de tomada de decisão. Para tanto, a escola serviu de atalaia e de

mecanismo de resistência, meio pelo qual pôde construir conhecimento sobre a

realidade de indígenas e não indígenas e criticamente usar tais conhecimentos para a

transformação da própria realidade. Portanto, a teoria do conhecimento serviu de

sustentáculo para o projeto de escola popular e democrática, que agora ganha algumas

páginas para que se evite o apagamento da sua memória.

Assim como foi extremamente importante a invenção da escola no

Araguaia-Xingu mato-grossense nas últimas décadas do século XX, asseveramos que a

reinvenção da escola do século XXI passa pela democratização do acesso à cultura

digital.

8 - A pesquisa revelou-nos o porto que deu abrigo às concepções de escola

de educação básica, nas décadas de 1970 a 1990, e, posteriormente, em menor

intensidade nas décadas de 2000 até os dias atuais. Como foi apresentado ao longo da

narrativa, essa escola específica foi pensada aos moldes de uma escola popular e

democrática, seguindo, portanto, os ensinamentos de Paulo Freire, de Maria Nilde

Mascellani, de Rubem Alves e especialmente daqueles que, na prática construíram

formas de „ver‟, „sentir‟ e „intervir‟ na realidade por meio da ação coletiva.

555

Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Jul./ago. de 1990. A 16.9. 04,

p. 5-16.

Page 445: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

445

Embora tenhamos afirmado suas características, pode-se observar em

documento aquilo que resultou em aprendizagens importantes para uma escola popular

e democrática, embora tenhamos afirmado a falta de um projeto de escola no século

XXI, capaz de dar respostas aos problemas vividos pela comunidade. Igualmente, não

podemos afirmar que a comunidade escolar deixou de manifestar suas posições diante

dos problemas, a exemplo do que ocorreu recentemente numa escola rural da cidade de

Ribeirão Cascalheira, ocasião em que a comunidade escolar manifestou

descontentamento em relação à transferência de uma de suas professoras para outra

escola, o que a impediria de continuar trabalhando naquela comunidade, como

observamos a seguir:

Page 446: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

446

Page 447: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

447

Para concluir, ao adotar os três pontos apresentados por Sacristán sobre a

necessidade de intervenção no currículo, apresentamos em seguida projeções para a

educação praticada numa escola sustentável do século XXI:

Intervir no currículo real implica em modificar o ambiente escolar

considerando três dimensões: físicas (arquitetura e disposição do

espaço mobiliário), organizativas (formas de organizar os alunos/as na

escola, dentro das aulas, distribuição de tempo) e pedagógicas

(relações entre professores/as, entre estes e os alunos/as, entre

alunos/as etc.).556

Parece-nos que falar em escola e sustentabilidade não é novidade no século

XXI. Porém, não tem ganhado espaço na pauta dos dirigentes da educação brasileira,

pois prevalecem iniciativas visando diminuir custos para o atendimento às famílias que,

para que seus filhos não ampliem as estatísticas do analfabetismo, os direcionam para a

escola.

O propósito desses parágrafos finais é para afirmar que uma educação

sustentável, sem tirar o direito das famílias e dos professores, bem como fazer uso de

uma „escola que ensina‟, é possível.

A sustentabilidade, embora não seja um conceito novo, no século XX

ganhou maior evidência, especialmente a partir da ECO 92, onde as nações,

principalmente as do 1º mundo, conhecedoras das consequências das grandes guerras e

tendo em vista a devastação das florestas para ceder espaço à exploração econômica e

visando a aceleração da produção industrial, colocou em risco a vida na terra. Como

forma de reparar o equívoco e equilibrar o desenvolvimento econômico com

preservação ambiental, tomou a sustentabilidade enquanto salvação para a humanidade,

e nesse quesito adotou a escola como difusora desse ideário. Todavia, não foram dadas a

ela condições para tal fim.

Nesse sentido, após uma década de pesquisa e reflexão sobre o paradigma

que pode convergir para uma educação sustentável, apresentamos uma proposta de

escola que está sendo projetada para o Araguaia-Xingu, mais precisamente em

556

SACRISTÁN, Jimeno. O currículo uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 2000, p. 134.

Page 448: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

448

Confresa-MT, cujo projeto arquitetônico apresentamos anexo. O propósito é que a

escola possa atender as dimensões espaço-tempo, aliadas à realidade tecnológica vivida

pelos aprendentes do século XXI, e, que seja popular e democrática, desde que

observados os pontos:

1) Que seja uma escola fundamentada na gestão democrática, onde as decisões

possam emanar do coletivo, e que seu currículo (Projeto Político Pedagógico) considere

a realidade social onde está edificada, a partir da qual revelará os problemas e soluções

a serem tratados por um currículo ativo e transformador da realidade dos estudantes e

seus familiares;

2) Uma escola integrada ao meio (social e ambiental) e preocupada com a

formação continuada de seus gestores, técnicos e, principalmente, dos professores, pois

a formação inicial possibilitada a estes está aquém das demandas socioeducacionais

exigidas no contexto do século XXI;

3) Que integre as tecnologias educacionais convencionais e digitais

(dispositivos móveis, tablet, lousa digital) e, por meio da mediação docente possam

desenvolver estratégias metodológicas próprias, inter e transdisciplinar, tomando a

própria escola enquanto laboratório de aprendizagens (dando sentido à sustentabilidade

por meio de projetos de aprendizagens);

4) Que tenha como filosofia uma sociedade sustentável por meio de ações

capazes de otimizar os recursos materiais existentes no espaço da escola e da

comunidade, acompanhando o espírito do tempo valorizando o trabalho coletivo e em

rede;

5) Uma escola com arquitetura inovadora: balanço energético com uso de

materiais e equipamentos adequados, produção de energia elétrica FV (passando de

consumidor a produtor de energia), captação e reaproveitamento de água, teto jardim e

aspirador de água, para melhor conforto térmico, dispensando uso de condicionadores

de ar, mobilidade com passarelas e elevador, espaços interativos com áreas de estudos,

sala multiuso (dando novo sentido às bem conhecidas salas de aula 6x8), laboratórios de

aprendizagens (tecnológico, bibliotecas), espaço de lazer com mesas de jogos e

equipamentos esportivos, refeitório, ginásio esportivo-cultural integrado com vestiários,

tabela reclinável e arquibancadas integradas à escola.

Page 449: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

449

Por fim, esperamos com a apresentação das disputas pela memória e a luta

pela escola popular e democrática no Araguaia Xingu mato-grossense, objeto de nossas

inquietações, possam servir de estímulo na busca por novos pesquisadores e outras

formas de compreender o processo pelo qual delineamos nosso caminhar557

.

557

A concepção desse projeto teve origem em 2008, no âmbito da Secretaria de Estado de Educação, mais

especificamente na Coordenadoria de Formação em Tecnologia Educacional, e as pesquisas foram

desencadeadas pelo coordenador (autor dessa narrativa) e pelo arquiteto e urbanista José Pedro Porrat,

para atender ao projeto deveria ser conseguido um computador por aluno, que seria implantado em de 5

(cinco) escolas da rede Estadual e 4 (quatro) da rede municipal. Todavia, foi observado que a arquitetura

das escolas eram incompatíveis para uso dos classmate (pequeno notebook) que foram entregues aos

professores e alunos. Como desdobramento, a pedido do Secretário de Estado de Educação Ságuas

Moraes foi projetada para substituir o antigo prédio da EE. José Magno, em Cuiabá. Porém, por razões

que fogem às questões técnicas, não foi possível edificar. Acompanharemos a execução desse projeto

com perspectiva de contribuir no processo de implementação registrando os aspectos inerentes à

participação dos professores e comunidade sob a perspectiva da escola popular e democrática.

Page 450: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

450

REFERÊNCIAS

Bibliografia

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 ed.

Recife; São Paulo: FJN; Massangana; Cortez, 2009.

ALVES, Roberta Monteiro. Literatura de cordel: Por que e para que trabalhar em sala

de aula. Revista Fórum Identidades. Universidade Federal de Sergipe – UFS. Ano 2,

Volume 4, p. 103-109, jul.-dez de 2008, p. 108.ISSN. 1982-3916.

ALVES-MAZZOTTI, A. J. Representações Sociais: desenvolvimentos atuais e

aplicações à educação. In: CANDAU, V. M. Linguagens, espaço e tempos no ensinar e

aprender (ENDIPE) – Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

ARAÚJO, Maria do Socorro de Sousa. Territórios amazônicos e Araguaia Mato-

grossense: configurações de modernidade, políticas de ocupação e civilidade para os

sertões. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas,

Instituto de Filosofia Ciências Humanas. Campinas. SP. 2013.

BALDUS, Herbert; WAGLEY, Charles. Tapirapé: Tribo Tupi no Brasil Central. São

Paulo: Nacional; EdUSP, 1970

BARCA, I.; SCHMIDT, M. A. (Org.). Aprender História: perspectivas da educação

Histórica. Ijuí: EdUnijuí, 2009

BARROZO, J. C. (org.) Mato Grosso: do sonho à utopia da terra. Cuiabá: EdUFMT;

Carlini & Caniato, 2008.

BEISIEGEL, Celso Rui. Política e Educação popular: teoria e prática de Paulo Freire

no Brasil. São Paulo: Ática, 1992.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história

da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São

Paulo: Brasiliense, 1994.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandez. Ensinar História: fundamentos e métodos.

São Paulo: Cortez, 2004.

BOBBIO, Norberto. Teoria geral da Política: a filosofia política e as lições dos

clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. 11 ed. Rio de Janeiro: Elsevier,

2000.

BOBBIO, Norberto. Teoria geral da Política: a filosofia política e as lições dos

clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. 11 ed. Rio de Janeiro: Elsevier,

2000

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma

teoria do sistema de ensino. 3 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

BRANDÃO. Carlos Rodrigues, O que é educação popular. São Paulo: Brasiliense,

2006.

Page 451: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

451

CANTUÁRIO. Maria Raimunda dos Santos. “Oh de casa! Oh de Fora! Vamos

chegando e vamos entrando”: lavradores às margens do Araguaia mato-grossense

(1950-1990). Dissertação (Mestrado em História) – UFMT – Instituto de Ciências

Humanas e Sociais, ICHS, 2012.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na História do Brasil. São Paulo:

Contexto; EdUSP, 1988

CARMARGO, Dulce Pompeu. Mundos entrecruzados. Projeto Inajá: uma experiência

com professores leigos no Médio Araguaia-MT (1987-1990). Tese (Doutorado em

Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,

1997.

CARVALHO, Murilo, Sangue da terra. A luta armada no campo. São Paulo: Brasil

Debates, 1980.

CASALDAGLIA, Pedro. Diário 1977-1983. En rebelde fidelidade. Tercer libro del

diario de Pedro Casaldáliga, Desclée, Bilbao, 1983.

CASALDÁLGIA, Pedro. Conflitos de terra e carrancismo em Campos Limpos, Mato

Grosso. 1973 A19.2.06 P.2.6. 1973 A19.2.06 P.2.6

_____. Diário. Yo creo em La Justicia. Registro feito no dia 19 de março de 1972, p. 30.

_____. Missa da terra sem males. Rio de Janeiro, Tempo e Presença, 1980. CEDI,

Centro Ecumênico de Documentação e Informação, „Povos Indígenas do Brasil 1983‟ in

Aconteceu, no.14, São Paulo, 1984..

_____. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Claves Latinoamericanas,

México 1990

_____. Bispo da prelazia de São Felix do Araguaia. Dissertação de mestrado. Programa

de Mestrado em Ciência da Religião da UCG. Goiás. 2005

_____. Cantares de la entera libertad. Antologia para a la Nueva Nicarágua. Prólogo

de José Coronel Urtecho. Manágua: IBCA – CAV – OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino.

A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. São Paulo:

Iandé, 2016

_____. Em rebeld fidelidade. Diario de Pedro Casaldáliga. 1977-1983 Desclée de

Brower, Bilbao (España) s/d.

_____. Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização

social. São Félix do Araguaia, 1971. (mimeo).

_____. Uma Igreja em conflito com o latifúndio e a marginalização social. S. Félix, 10

de outubro de 1971.

_____. Yo creo en la justicia y en la esperanza. El Credo que ha dado sentido a mi vida,

Desclée de Brower, Bilbao (España) 1976, 202 p.

_____. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Claves Latinoamericanas,

México 1990, 344 p.

_____. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Claves Latinoamericanas,

México 1990.

Page 452: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

452

_____. Carta Pastoral – Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a

marginalização social. Prelazia de São Félix do Araguaia 1971.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede - A era da informação: economia,

sociedade e cultura; 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CEDI, Centro Ecumênico de Documentação e Informação, „Povos Indígenas do Brasil

1983‟. Acontece. São Paulo, n. 14, 1984.

CEPA, 1984. Coedición de Instituto Histórico Centro Americano, Centro Ecumenico

Antonio Valdivieso y Centro de Educacíon y Promocíon Agraria. (Bibl. Antonio

Miranda, 81 p.).

CERTEAU, M.de. A invenção do cotidiano, 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

_____. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Traduzido por

Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990

_____. A História Cultural: entre práticas representações. Lisboa: Brasil, 1987.

DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3 ed. São Paulo: Atlas,

1997.

ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha. Campinas, SP: EdUnicamp,

2000.

ESTERCI, Neide, Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa.

Petrópolis: Vozes, 1987.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968

FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1986.

FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História & ensino de História. 2ª ed. Belo

Horizonte: Autêntica,

2004, p. 92.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da liberação: uma introdução ao

pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980.

_____. Pedagogia do Oprimido, 43 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005,

_____. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo:

Cortez, 1982.

_____. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1967.

_____. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

_____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:

Paz e Terra, 1996.

_____. Pedagogia da esperança. 13 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006

_____. Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP, 2000.

Page 453: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

453

GADOTTI, Moacir. Paulo Freire e educação popular. Revista trimestral de debate da

FASE. Porto Alegre, n, 113 s/d., p 21- 21. Possivelmente o artigo tenha sido publicado

em 2007, pois, conforme o autor, naquele ano eram lembrados os dez anos da morte de

Paulo Freire. In. http://formacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/paulo-

freire-por-moacir-gadotti.pdf Acesso em 20 de fevereiro de 2018.

GADOTTI, M. et al. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre: Artes Médicas

Sul, 2000.

_____. Pedagogia: diálogo e conflito / Moacir Gadotti, Paulo Freire e Sérgio

Guimarães. 4 ed. São Paulo: Cortez, 1995.

GARRIDO, E.; PIMENTA, Selma Garrido; MOURA, Manoel Oriosvaldo. A pesquisa

colaborativa na escola como abordagem facilitadora para o desenvolvimento da

profissão do professor. In Alda Junqueira Marin, Educação continuada. Campinas:

Papirus, 2000.

GATTI, Dagmar Aparecida Teodoro. O Inajá e a materialização de um projeto sócio

educacional em Mato Grosso (1980-1997). Confresa MT. Monografia (Licenciatura e

Bacharelado em Ciências Sociais) – UNEMAT, 2016.

GATTI JÚNIOR, Décio. A Escrita da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-

1990). São Paulo: EdUSC; EdUFU, 2004.

GERMANO. José Willington. De pé no chão também se aprende a ler: política e

educação no Rio Grande do Norte. 1960-1964. Dissertação (Mestrado em Sociologia) –

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

UNICAMP/Campinas. 1981.

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 3 ed. São Paulo : Atlas,

1996.

GOMES, Maria Oldeíde P. Culturas híbridas: Karajá e Tapirapé e a reconstrução de

identidades. Confresa, 2016. Monografia (Licenciatura em Ciências Sociais) –

UNEMAT, 2016

GOMES. Paulo César. Os Bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da

espionagem. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2014.

GONZAGA, Agnaldo Divino. Anel de tucum: a missão evangelizadora de Pedro

Casaldáliga, bispo da prelazia de São Félix do Araguaia. Dissertação (Mestrado em

Ciência da Religião) – Programa de Mestrado da UCG, Goiás. 2005.

GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização

no Brasil contemporâneo. Cuiabá: UNICEM, 2002.

_____. História, trabalho e memória política. Trabalhadores rurais, conflito social e

medo na Amazônia (1970-1980). Revista Mundos do Trabalho.UFPE. v. e, n. 11,

janeiro-junho de 2014 p. 137.

GUIMARÃES. Antonio Sérgio de. A recepção de Fanon no Brasil e a identidade

negra, publicado na revista Novos Estudos, CEBRAP. SP. 2008.

GUTIERREZ, Priscila Brossi. Blogs na sala de aula; Cresce o uso pedagógico de

publicações de textos na Internet. In: 0/8/

Page 454: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

454

HOBSBAWN, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

IANNI, Otavio. A luta pela terra: história social da terra e da luta pela terra numa área

da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1978.

_____. Enigmas da Modernidade-Mundo. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2003,

IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e

a incerteza. 6 ed. São Paulo: Cortez: 2000. (Questões da nossa época).

JOANONI NETO, Vitale. Amazônia na década de 1970. A fronteira sob o olhar do

migrante. Revista Eletrônica da ANPHLAC. São Paulo, n. 16, p. 186 -206, jan./jul.

2014.

JONASSEN, D. Design of Constructivist Learning Environments. (Consultado na

Internet em novembro de 2010, no endereço

http://www.coe.missouri.edu/~jonassen/courses/CLE/index.html).

KALINA VANDERLEI. Dicionário de conceitos históricos. 2 ed., 2 reimpressão. São

Paulo: Contexto, 2009.

KENSKI, Vani Moreira. Educação e tecnologias: O novo ritmo da informação.

Campinas, SP. Papirus, 2007.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 3. ed. Campinas, SP: EdUNICAMP, 1994.

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento na era da

informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

LIBÂNEO, José Carlos. Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do

pensamento pedagógico brasileiro? In: PIMENTA, Selma Garrido e GHEDIN,

Evandro. (Orgs.) Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São

Paulo: Cortez, 2002.

LITTO; FORMIGA (Orgs) A educação formal básica\fundamental e a EaD in

Educação a distancia: o estado da arte. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2009.

MARTINS, Dalísia Elizabeth. As comunicações fluviais pelo Tocantins e Araguaia no

século XIX. Goiânia: Oriente, 1973.

MARTINS, Edilson. Nós do Araguaia: Dom Pedro Casaldáliga, bispo da teimosia e

liberdade. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano.

São Paulo: Hucitec, 1997.

MEIRELLES, Helly Lopes. Direito administrativo brasileiro. 21 ed, São Paulo:

Malheiros, 1996.

MENEZES, Renata de Castro. Reforçando a rede de uma igreja missionária: Avaliação

pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Paulo: Paulinas, 1997. (Coleção

perspectivas pastorais, 7).

MORAN, José M. Ensino e aprendizagem inovadores como tecnologias audiovisuais e

telemáticas‟. In Moran, J. M.; Masetto, M.T.; Behrens, M.A. Novas Tecnologias e

Mediação pedagógica. Campinas, S.P.: Papirus, 2000.

Page 455: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

455

_____. Novas tecnologias e mediação pedagógica. Campinas, S.P: Papirus, 2.000.

MORENO, Gislaene; HIGA, Tereza C. Geografia de Mato Grosso: Territórios,

Sociedade, Ambiente. Cuiabá: Entrelinhas. 2005.

MORIN, E.; ALMEIDA, M. C.; CARVALHO, E. A. (Orgs). Educação e

complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2001.

MOSCOVICI, S. Representações Socias: investigações em Psicologia Social. 5ed.

Petrópolis-RJ: Vozes, 2007.

MOURA, Carlos et al. A Igreja dos Oprimidos. São Paulo: Brasil Debates, 1981.

NADAI, Elza. O ensino de História na América Latina. In: Anais do Seminário

Perspectivas do Ensino de História. São Paulo: Feusp, 1988.

NIDELCOFF, Maria Teresa. Uma escola para o povo. Tradução: João Silvério

Trevisan. 37 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

NÓVOA, Antônio. Formação de professores e profissão docente. In: _____. Os

Professores e a sua formação. Lisboa: Nova Enciclopédia, publicações Dom Quixote,

1992. (Temas de Educação, 39).

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem,

corrupção e violência. São Paulo: Iandé, 2016, 530 p.

OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. A educação e a luta no Araguaia (Mato Grosso).

Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo. Departamento de Geografia. Área de concentração:

Geografia Humana. USP. 2016.

OLIVEIRA, Pedro A.; Ribeiro de; RODRIGUES, Solange dos Santos e MENEZES,

Renata de Castro. Reforçando a rede de uma igreja missionária: Avaliação pastoral da

Prelazia de São Félix do Araguaia. São Paulo: Paulinas, 1997.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à vista: discurso do confronto – Velho e Novo Mundo.

São Paulo; Campinas: Cortez; EdUnicamp, 1990

ORTEGA Y GASSET, J. Em torno a Galileu: esquema das crises. Petrópolis: Vozes,

1989.

PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz. Memória social da Guerrilha do Araguaia e da guerra

que veio depois. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Belém, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.- dez.

2011.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias.

Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, n. 53, p. 14, 2007.

PIAIA, I. I. Geografia de Mato Grosso. 3. ed. ver. amp. Cuiabá: EdUNIC, 2003.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação

intelectual. Mangualde: Edições Pedagogo, 2010.

RAVAGNANI, O. M. A Experiência Xavante com o mundo dos brancos. Tese

(Doutorado em Sociologia) – São Paulo: Fundação Escola de Sociologia e Política de

São Paulo, 1978.

Page 456: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

456

REIS, Breno Maciel Souza. Pensando o espaço, o lugar e o não lugar em Certeau e

Augé: perspectivas de análise a partir da interação simbólica no Foursquare.

Contemporânea. Rio de Janeiro, n. 21, ano 11, v. 1, p. 136-148, 2014

REIS, José Carlos. Escola dos Analles: A inovação em história. São Paulo: Paz e Terra,

2000.

BARROS. José D‟Assunção. Teoria da História. Petrópolis: Vozes, 2012.

RIBEIRO, Renilson R. Fora da realidade. Revista de História da Biblioteca Nacional,

Rio de Janeiro, v. 1, n. 3, p. 79-81, 2005.

_____. O saber (histórico) em parâmetros: O ensino de História e as reformas

curriculares das últimas décadas do século XX. Revista Humanidades. Publicação do

Departamento de História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ensino do Seridó. Campus de Caicó. v. 5. N. 10 Abr./Jun. de 2004. ISSN –

1518-3394.

_____. Entre textos e práticas: ensino de história, instituição escolar e formação

docente. História & Ensino, Londrina, v. 21, n. 2, p. 151-179, jul./dez. 2015.

RODRIGUES, Alessandra Pereira Carneiro. Cartilha do Araguaia. „Estou Lendo!!!‟ :

seu circuito de comunicação (1978-1989). Dissertação (Mestrado em Educação) –

Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso.

Rondonópolis, MT: UFMT, 2012.

ROSA. Juliana Cristina da. A luta pela terra Marãiwatsede: povo Xavante,

agropecuária Suiá Missú, posseiros e grileiros do Posto da Mata em disputa (1960-

2012). Dissertação (Mestrado em História) – UFMT. Instituto de Ciências Humanas e

Sociais, Programa de Pós-Graduação em História. Cuiabá, 2015.

SACRISTÁN, Jimeno. O currículo uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre:

Artmed, 2000

SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SANTOS, Beatriz Boclin Marques dos. O currículo da disciplina escolar História no

Colégio Pedro II – a década de 70 – entre a tradição acadêmica e a tradição

pedagógica: a História e os Estudos Sociais. Tese (Doutorado em Educação) – UFRJ.

Instituto de Educação/Programa de Pós-graduação, 2009.

SAVIANI, Demerval. História das Ideias Pedagógicas. Campinas: Autores Associados,

2008.

SANTOS, Edilson Pereira, Embiras. São Paulo. Ed. Giostri. 2015, p. 58.

SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos. Kalina Vanderlei Silva,

Maciel Henrique Silva. 2 ed., 2 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.

SIQUEIRA, Elizabeth Madureira; DOURADO, Nileide Souza; RIBEIRO, Roberto

Silva. Universidade Federal de Mato Grosso 40 anos: trajetória, personagens. Cuiabá:

EdUFMT, 2011, 2003.

SOARES. Luís Antônio Barbosa. Trilhas e caminhos: povoação não indígena no Vale

do Araguaia – MT, na primeira metade do séc. XX. Dissertação (Mestrado em História)

– UFMT/ICHS, 2004.

Page 457: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

457

STEIL, Carlos Alberto, TONIOL, Rodrigo. O catolicismo e a igreja católica no Brasil à

luz dos dados sobre a religião no sendo de 2010. Debates do NER, Porto Alegre, ano 14,

n. 24, p. 223-243, jul./dez. 2013.

TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. 9 ed. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2002.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 15 ed.

Petrópolis-RJ: Vozes, 2014.

VALÉRIO, Mairon Escorsi. Entre a cruz e a foice: D. Pedro Casaldáliga e a

significação religiosa do Araguaia. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas na área de concentração de História Cultural – Unicamp,

Campinas, 2007.

VALVERDE, O; FREITAS, T. L. O problema Florestal da Amazônia Brasileira.

Petrópolis; São Paulo: Vozes; São Paulo: Iandé, 2006.

VELHO, Otávio Guilherme. Frentes de Expansão e Estrutura Agrária. Rio de Janeiro:

Zahar, 1981

VIEIRA, Maria Antonieta da Costa. A procura das Bandeiras Verdes: viagem, missão e

romaria-movimentos sócio religiosos na Amazônia Oriental. Campinas, SP. 2001

VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Orlando Villas Boas: expedições, reflexões e

registros. São Paulo: Metalivros, 2006

ZÉ DAS TROVAS, lavrador da Prelazia de São Félix do Araguaia MT. CEDI, 1983.

I Simpósio do Ensino Vocacional, XX Reunião Anual da SBPC. São Paulo: julho, 1968.

Documentação

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0. p. 1.2.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Recorte de jornal sem identificação.

DIII. 0.27 p. 5.5.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII.0.29. p. 10-37.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII.0.29 p. 12-37

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0. 20b p. 1.4.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0. 20b p. 2.4.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0. 20b p. 3.4.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0. 20b p. 4.4.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0.29 p. 13-37.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 16-37.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 19-37.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0.37 p. 15-60

Page 458: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

458

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0.37 p. 17-60

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0. 45 páginas 5, 7, 13, 11, 18,

4, 9, 8, 12, 19, 2, 20, 15, 14, 17, 24, 16, 25, 21, 26.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 01.37

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia .DIII. 0. 38 p. 7.8 e 8.8.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 07.37

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 08.37

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 15.17.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 17.37.

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 38. p. 1-8

Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 38. p. 4-8.

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03

P3.3.

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.02

P2.2.

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de

1970 A16.0.04 P.3

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de

1970 A16.0.07 P.1.6

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de

1970. A16.0.05 p. 4.-4

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03

p 2-3.

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Dezembro de

1970. A 16.0. 06 p 2-4

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Maio de 1970

A16.0.03 p 2-3.

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970. A

16.0.03 p 01-3.

Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970. A

16.0.03 p 01-3.

Alvorada (1971), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1971. A

16.0.07 p 1-06

Alvorada (1971), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1971. A

16.0.07 p 1-06

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, janeiro de

1974 A16.0.12. P.1.2.

Page 459: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

459

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974 A16.0.17

P.3.4.

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974. A 16.0.

15 P2.2.

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974. A 16.0.

14 p1-1.

Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974. A 16.0.

14 p1-1.

Alvorada (1975), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974.

A16.0.46 p 2-6

Alvorada (1975),Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1975. A16.0.23

p 2-3.

Alvorada (1976), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1976. A 16.0.

27 p.2-2.

Alvorada (1977) Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia (1977) A16.0.44 p 5-7.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de

1977 A16.0.49 P.2.8.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de

1977 A16.0.49 P.2 e 3.8.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de

1977 A16.0.49 P.6.8.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de

1977 A16.0.49 P.6.8.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de

1977 A16.0.49 P.7.8

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de

1977 A16.0.49 P.7.8.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de

1977 A16.0.45 P.1.2.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0.

17 p 3-4.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de

1977. A 16.0. 70, p. 5-15.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0.

52 p 2-10

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0.

41 p 2.-5.

Folha Alvorada. (1977).Prelazia de São Félix do Araguaia (1977) A16.0.44 p 3-7

Page 460: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

460

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0.

55 p 4-8

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Agosto de

1977. A 16.0. 36 p 4-5.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977 A19.2.16

P. 1.4.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Maio de 1977.

A 16.0. 44 p 3.7

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0.

50 p 15-16.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0.

50 p 15-16.

Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A

16.0.46 p 2-6.

Alvorada (1977). Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix 1977. A

16.0.51. p 4-4.

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0.

54 P3.8.

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0.

55 p 4-9.

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0.

55 p 6-9.

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0.

61 p 1-9.

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0.

53 p 3-8.

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A

16.0.55 p 4-9

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0.

55 p 3-9.

Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Janeiro de

1978. A 16.0. 52 p 05-10..

Alvorada (1979), folha da prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.

63 P1.17).

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.70

P.7.15

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.70

P.7.15

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.59

p.6-12

Page 461: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

461

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A

16.0.62 p 7-8

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A

16.0.63 p 12-17.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A

16.0.64 p 6-14

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A

16.0.62 p 7-8

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A

16.0.63 p 12-17.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A

16.0.64 p 6-14

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.65

p 06-10.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Fevereiro de

1979 A16.0.63 p.2.17

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Fevereiro de

1979 A16.0.63 p 02.-7.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Abril de 1979.

A 16.0. 65 P7.10.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A 16.0 p

71 p. 5-11.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.

65 p 08-15.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.

70 p 04-10.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A

16.0.66 p 10-15.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.

59 p 04-12

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.

65 p 03-10.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.

70 p 1-15.

Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. março.

A 16.0. 64 p 09-14.

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A

16.1.14.p 1-.19.

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A

16.1.10 p. 10-11

Page 462: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

462

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A

16.3.04 p 09-15

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A

16.1.110 p 04-11.

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980

A16.1.27 p 09-18

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A16.

1.25 p 05-15

Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A16.

1.25 p 05-15.

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.14

p 15-19.

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A

16.1.15 p 2-19

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A

16.1.15 p 08-19.

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A

16.1.15 p 08-19

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A

16.1.15 p 10-19

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.14

p 04.19

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.26

p 13-17.

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A

16.1.21 p 02-21

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A

16.1.22 p 17-19.

Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1.

19 p 6-19.

Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.18

p 08-17

Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.27

p 09-18.

Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 15.1.25

p. 14-15

Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.29

p 12-26.

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Março de 1983

A16.2.02 P.8.14.

Page 463: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

463

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.02

p 08-14

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.01

p 16-18

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.05

p 08-14.

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Novembro de

1983 A16.2.01 p 12-18

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Novembro de

1983 A16.2.01 p 15-18

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.09

p 15-17.

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983. A 16.2.

06 p 14-15

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.1.32

p 13-19.

Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Novembro de

1983. A 16.2. 01 p 16-18.

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A16.3.09

p 10-15.

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A

16.3.07 p 13-14

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A

16.3.10 p 11-12.

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A

16.3.10 p 12-12.

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984. A 16.3.

08 p 11.16.

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984. A 16.3.

08 p 10.16.

Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984. A 16.3.

08 p 11.16.

Alvorada (1987), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1987 A 16.06

p 02-12.

Alvorada (1988), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1988. A

16.7.01 p.6.8.

Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de

1990. A 16.9. 03, p. 2-8.

Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Nov./Dez. de

1990. A 16.9. 07, p. 5-8

Page 464: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

464

Alvorada (1992), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1992. A 16.11.

01, p. 4-8

Alvorada (1996), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de

1996 A16.15.03 P.08.10.

Folha Alvorada Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. A 16.15.03

P.08.10

MATO GROSSO. SEDUC. Relatório Final do Projeto Inajá. Mato Grosso, Brasil,

1991.

MATO GROSSO, SEDUC. Secretaria adjunta de políticas Educacionais,

superintendência de Formação dos Profissionais da educação básica, Orientativo. 2010,

2014.

O ESTADO DE S. PAULO; FOLHA DE S. PAULO. Boletim IBRA informa. Instituto

da Reforma Agrária. São Paulo: Folha de São Paulo, s/d.

REVISTA NOVA ESCOLA. Araguaia: Leigos conquistam uma nova formação e

adaptam o ensino à realidade local. Ano IV, nº 32, agosto de 1989, p. 11-19.

Page 465: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

465

Relação dos colaboradores que responderam ao questionário entre os meses de outubro

de 2017 e fevereiro de 2018.

Colaborador Local

Alessandra Santos Dias Confresa

Cézar Gatti Santa Terezinha

Cleiton Moraes Rodrigues Confresa

Demetrio Vitor Junior Querência

Demilton Cruz Ferreira Santa Terezinha

Edilson Pereira dos Santos Santa Terezinha

Fabiana Fonseca Santa Terezinha

Gilvanes Pereira de Souza Ribeirão Cascalheira

Jacira Alves Dias Ribeiro Confresa

Marcos de Melo Cerqueira Santa Terezinha

Marleides Sousa Silva Santa Terezinha

Paula Cássia Strutz Santa Terezinha

Rosana Pereira Confresa

Rosana Pereira de Oliveira Confresa

Rosimeire Santos Diniz Confresa

Rosimeire Santos Souza Santa Terezinha

Santinha Souza Santa Terezinha

Selma Fonseca da Silva Aguiar Confresa

Valdeci Pereira Soares Santa Terezinha

Questionário aplicado.

Pesquisa de doutoramento: A invenção e reinvenção da Escola no Araguaia-Xingu Mato-grossense e a arte de ensinar história em tempos de cibercultura - 1970/2017. Edevamilton

de Lima Oliveira.

Notável colaborador (a),

Nossa pesquisa tem por objetivo entender a invenção da Escola pública no Araguaia-Xingu

Mato-grossense e a arte de ensinar história em tempos de cibercultura. A partir dos dados

obtidos com vossa colaboração traçaremos um perfil dos profissionais a partir da história

ensinada. Os resultados comporão o 4º capítulo da tese que, uma vez concluída será enviada em

formato e-book para todos os colaboradores.

Sua contribuição é de suma importância, pois, resultarão reflexões a cerca das perspectivas

metodológicas para ensinar história na escola de educação básica do Século XXI.

Agradecido pela colaboração.

1 - Nome:_______________________________________________________

2 - Sexo: ( ) masculino ( ) feminino

3 - E-mail: ______________________________________________________

4 - Cidade:________________________

Page 466: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

466

5 - Há quanto tempo trabalha em educação:_____ anos.

6 - Situação de vínculo: ( ) efetivo ( ) contratado

7 - Foi cursista Inajá: ( ) sim ( ) não

8 - Quantos alunos você atende anualmente na escola?:______ alunos

9 - Por meio de seu olhar como professor de história escreva 3 palavras ou expressões que lhe

vem à mente quanto você lê as palavras a seguir:

Alienação

Aluno

Analfabeto

Aprendizagem

Autonomia

Comunidade

comunista

Conhecimento

Democracia

Disciplina

Educação

Enfrentantes

Escola

Família

Guerrilheiro

História

Ideologia

Índio

Jagunço

Latifúndio

Liberdade

Livro Didático

Memória

Negro

Peão

Pobre

Poder:

Política

Posseiro

Professor

Progresso

Tecnologia

Tubarão

Violência

10 - Em relação às tecnologias móveis digitais, elas mudam a maneira que nossos alunos

pensam e aprendem história?

( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo

em parte ( ) Discordo totalmente

Justifique_____________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________

11 - Como a história de Mato Groso é trabalhada no currículo de sua escola?

Page 467: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

467

Resposta:_____________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

________________________________

12 - As tecnologias de informação e comunicação são consideradas relevantes para o ensino de

história.

( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo

em parte

( ) Discordo totalmente

Justifique_____________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_______________________________

13 - Nós, professores de história integramos as tecnologias educacionais (computador, tablete,

esmartphone, notebook e recursos web-Internet) para ensinar história.

( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo

em parte

( ) Discordo totalmente

Justifique_____________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_______________________________

14 - Começamos recentemente a usar o computador e a Internet nas práticas do currículo

escolar.

( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo

em parte

( ) Discordo totalmente

Justifique_____________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_______________________________

15 - Ainda não sabemos quais ferramentas existem instaladas nos computadores das escolas e

na web que podem ser utilizados em nossas práticas de mediação de aprendizagens na disciplina

de história.

( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo

em parte

( ) Discordo totalmente

Justifique_____________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_______________________________

16 - Em decorrência da chegada dos computadores conectados à Internet e dos dispositivos

digitais acessíveis aos professores e alunos, destaque as respostas que avalia relevante:

( ) ampliou as discussões sobre o uso das tecnologias na escola

( ) ampliou suas expectativas em relação as mudanças no currículo escolar via PPP (Projeto

Político Pedagógico

( ) ampliou o monitoramento da implementação das TIC – Tecnologia da Informação e

Comunicação na Escola

Page 468: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

468

( ) ampliou debates entre professores de história e alunos sobre as mudanças que estão

ocorrendo na educação escolar

( ) ampliou debates entre os escolares e os pais dos alunos sobre as mudanças que estão

acontecendo na sociedade

17 - Considerando sua atuação como professor de história, qual (quais) dos objetivos abaixo

você elege como importante (s). Enumere em ordem crescente de

Preparar os alunos para o mercado de trabalho ( )1; ( )2; ( )3; ( )4; ( )5; ( )6; ( )7; ( )8; ( )9;

( )10

Promover atividades relacionadas com a vida cotidiana e prática dos alunos ( )1; ( )2; ( )3; (

)4; ( )5; ( )6; ( )7; ( )8; ( )9; ( )10

Assegurar um bom resultado do aluno em testes de desempenho ( )1; ( )2; ( )3; ( )4; ( )5; (

)6; ( )7; ( )8; ( )9; ( )10

Desenvolver habilidades de colaboração entre os alunos voltados para a resolução de problemas

de seu contexto sócio histórico e cultural ( )1; ( )2; ( )3; ( )4; ( )5; ( )6; ( )7; ( )8; ( )9; ( )10

Satisfazer as expectativas dos pais e comunidade escolar ( )1; ( )2; ( )3; ( )4; ( )5; ( )6; ( )7; (

)8; ( )9; ( )10

18 - Diante das afirmativas abaixo, dê sua opinião: Os alunos da escola onde você trabalha tem

maior domínio das tecnologias digitais que os professores.

( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo

em parte

( ) Discordo totalmente

Justifique_____________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_______________________________

19 - Com a web (Internet) os alunos acabam perdendo o contato com a realidade em que vive.

( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo

em parte

( ) Discordo totalmente

Justifique_____________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_____________________________________________________________________________

_______________________________

20 -Como você pensa a escola no ano 2030 (Escola do Futuro)?

Resposta

Page 469: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ...

469

Anexo I