A ironia melancólica na lírica do Melodino

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Como processo retórico que dissimula a verdade, que dá ambiguidade à interpretação, ou que tenta iludir o presente disfórico, a ironia encontra-se presente na obra de Francisco Manuel de Melo (1608-1666) para atenuar determinados aspectos autobiográficos onde a passividade melancólica do sujeito mais se destaca.Com efeito, alguns sonetos deste autor, compostos em meados do séc. XVII e incluídos no volume As segundas três musas do Melodino, a segunda parte das suas Obras Métricas, encontram-se ligados a um período difícil da sua vida. Muitas vezes de índole fútil e circunstancial, verificamos que a ironia presente nestes poemas esconde a dor sentida pelo próprio sujeito lírico, sob cuja capa o autor se esconde, para atenuar o seu profundo estado melancólico.Este pequeno conjunto da obra do Melodino constitui, enfim, uma imagem microcósmica de um mundo ao revés e ilustra a ideia da estética barroca como uma degenerescência da estrutura apolínea do Renascimento, onde o ser humano se torna uma entidade resignada e passiva, aceitando as adversidades da vida na sua conjuntura histórica, social e pessoal.

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A ironia melanclica na lrica do MelodinoAntnio Martins Gomes (FCSH Centro de Histria da Cultura)

Em 1940, Feliciano Ramos destaca, de forma inequvoca, os aspectos autobiogrficos mais negativos na obra lrica de D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), os quais, apesar da sua maior ou menor dissimulao, considera serem elementos contributivos para uma compreenso mais abrangente do seu contedo:A obra potica de D. Francisco, apesar de antilrica, deixou-nos escutar os gemidos dum homem que o destino fadou para a amargura: nela se repercute o eco duma mgoa pessoal que discretamente se dilue e esconde. (Ramos 1940: 61)

J em 1955, Joo Gaspar Simes refora esta mesma ideia, dando a entender que a vida conturbada e incerta deste polgrafo seiscentista est especificamente ligada sua criao literria em verso:No podemos separar por completo a vida de D. Francisco Manuel de Melo da gnese da sua obra potica, e esse facto, o facto de a sua vida ter sido acidentada e dramtica, que enriquece, talvez, as suas poucas peas em verso que datam da maturidade. (Simes 1955: 432)

Com efeito, estes dois excertos introdutrios coincidem no grau de importncia atribudo componente autobiogrfica na lrica do Melodino, onde o contedo temtico de muitos dos seus textos envolve alguns dos momentos mais negativos e amargurados da sua vida. Citemos o caso do soneto XII de A Tuba de Calope, Ora bem digo eu que sois demnio, no qual o prprio autor se revela e se dirige directamente em todas as estrofes ao seu amigo D. Antnio lvares da Cunha1. no ltimo verso onde se concentra o maior peso autobiogrfico, quando o sujeito do poema passa a acumular a sua funo com a de autor do mesmo, dando indicaes conjunturais precisas acerca do espao fsico onde esteve recluso, entre 1645 e 1649, do dia da semana em que o redige e de um destinatrio especfico: Torre Velha. Segunda-feira. Vosso.

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Antnio lvares da Cunha o fundador da Academia dos Generosos (1647-1668), de cuja agremiao literria Francisco Manuel de Melo tambm fez parte e qual presidiu em cinco sesses.

Como refere Pina Martins em 1969, a propsito deste autor estranhamente esquecido ou menosprezado por Aguiar e Silva na sua incontornvel dissertao de doutoramento Maneirismo e Barroco na Poesia Lrica Portuguesa, o prisioneiro da Torre Velha fez da sua vida um poema, ou melhor, a sua vida est, toda ela, com o sinete de uma experincia dolorosa, nalguns dos seus poemas. (Martins 1969: 6) So vrios os aspectos da vida de Francisco Manuel de Melo, nascido em 1608, que podem justificar a propenso mais disfrica na sua produo lrica. Recordemos, de forma cronolgica, alguns deles, ocorridos num dos perodos mais atribulados da Histria de Portugal, nomeadamente as ltimas dcadas da ocupao filipina e as primeiras da dinastia brigantina, iniciada sob os augrios auspiciosos da Restaurao e terminada com a Revoluo Republicana, imbuda do sonho utpico de uma sociedade mais justa e igualitria: - aos 7 anos morre-lhe o pai; - aos 28 perde a me e a irm; - aos 29 preso no Castelo de S. Jorge, reincidindo no ano seguinte; - aos 31 preso em Madrid (acusado de conjurar com o Duque de Bragana e de no ter denunciado as conspiraes da nobreza portuguesa ao poder institudo); - aos 35, sob a acusao de cumplicidade num assassinato, preso na Torre de S. Sebastio (Restelo); - aos 37 transita para a Fortaleza da Torre Velha, situada no Lazareto, junto Caparica2; - aos 41 transferido para a priso do Castelo de S. Jorge; - aos 46, aps 11 anos ininterruptos de cativeiro, v comutada a sua pena de degredo perptuo para frica e exilado para o Brasil, onde permanece trs anos. Proveniente do vocbulo grego que significa dissimulao, a ironia uma figura de tropos que geralmente causa ambiguidade no leitor atravs de uma coliso verbal de elementos contraditrios e dicotmicos, sendo ainda um processo retrico em que o significado primrio de um texto se confunde com o2

A Carta de Guia de Casados, dirigida ao seu primo D. Francisco de Melo, AlcaideMor de Lamego, tambm aqui escrita e concluda a 5 de Maro de 1650.

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seu significado implcito3. Como refere Maria de Lourdes Ferraz, a ironia mais facilmente se caracteriza pelo que no do que pelo que . No uma mentira []. No pretende a confuso relativamente ao que quer significar, mas no evita a ambiguidade do que se diz. (Ferraz 2000: 183) a partir da segunda metade do sc. XIX que a aplicao da ironia se verifica com uma maior frequncia na literatura portuguesa, em autores como Camilo Castelo Branco, Ramalho Ortigo, Fialho de Almeida, e sobretudo Ea de Queiroz. Dos escassos autores que antecedem este perodo, Francisco Manuel de Melo um deles. Nas suas mais diversas obras, comum encontrarmos algumas situaes irnicas quando o autor coloca em confronto unidades textuais opostas num mundo geralmente desconcertado, onde a vida perspectivada de forma maniquesta e impera um forte sentimento de instabilidade e de mutabilidade (Maravall 1997: 209). Pelo contrrio, numa sociedade organizada, onde tudo permanece aparentemente no seu respectivo lugar e mantm a sua constncia, o processo irnico no funciona de forma to eficaz. Vejamos alguns exemplos encontrados nos Aplogos Dialogais. Redigida na dcada de 50, esta quadrilogia incide sobre a crtica social e a duvidosa aplicao da Justia, espelhando, mutatis mutandis, a experincia do prprio autor: - nos Relgios Falantes, o no belo e modesto relgio da aldeia de Belas dialoga com o elegante e altaneiro relgio da lisboeta Igreja das Chagas, enquanto ambos aguardam pelo seu conserto numa relojoaria; - no Escritrio Avarento, duas moedas portuguesas conversam com duas moedas castelhanas acerca das mos por onde passaram, situao que permite denunciar a corrupo social e o fomento da guerra como instrumento ao servio dos mais poderosos; - na Visita das Fontes, o dilogo principal mantido entre a Fonte Nova do Terreiro do Pao e a Fonte Velha do Rossio, que a visita, e durante o qual se critica a fraca devoo de alguns clrigos ou a m administrao da justia.

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On pourrait dire, comme le fait Wayne Booth, que lironie, quoique structurellement assimilable la mtaphore (et par l la parodie), est, en termes de stratgie, soustrayante, quelle dtourne le lecteur de la signification de surface; []. (Hutcheon 1977: 469)

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Por ltimo, temos um texto terico cuja ironia comea desde logo pelo seu ttulo, onde uma biblioteca lisboeta se transforma em hospcio: os ilustres interlocutores do Hospital das Letras o dilogo mais extenso so o fillogo flamengo Justo Lpsio (1547-1606), o autor satrico italiano Trajano Bocalino (1556-1613), o escritor espanhol Francisco de Quevedo (1580-1645) e o prprio autor, os quais dissecam e diagnosticam o estado de sade dos livros, e, de acordo com o procedimento mdico, prescrevem o receiturio mais apropriado para tratar as enfermidades da arte potica. No que diz respeito ao Auto do Fidalgo Aprendiz, publicado em 1655, a cultura provinciana e rude de D. Gil Cogominho entra em confronto com o espao sofisticado da grande cidade4. Tambm as Cartas Familiares, publicadas em Roma em 1664, e de disposio similar a um dirio de priso, esto, segundo Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, tingidas de amargo sorriso (Saraiva / Lopes 1996, 466). E, em abono da verdade, no ser igualmente uma situao irnica a elaborao em forma epistolar de um compndio matrimonial por um autor que nunca se casou nem teve vida familiar?! Para ilustrar quatro tipos especficos de ironia presentes na lrica melanclica de Francisco Manuel de Melo, optmos por um nmero idntico de sonetos publicados na segunda parte das Obras Mtricas5, intitulada As Segundas Trs Musas do Melodino6. Comecemos pela leitura do soneto XXII, denominado Desgraa, inveja de tudo, para abordar a ironia de oposio, cujo processo descreve uma situao diametralmente antagnica experincia presente do prprio sujeito7:

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Esta dicotomia espacial na narrativa suceder tambm no sc. XIX em romances como A Queda dum Anjo (1865), de Camilo Castelo Branco, ou em Prspero Fortuna (1910), de Abel Botelho, cujos protagonistas se tornam mais ambiciosos e permeveis corrupo a partir do momento em que so contaminados pelo espao diabolizante da cidade de Lisboa. 5 Esta obra subdivide-se, por sua vez, em trs partes A Tuba de Calliope, A anfonha de Euterpe e A Viola de Thalia , e ter sido elaborada na segunda metade da dcada de 40, durante o seu tempo de priso. 6 Segundo Pina Martins, esta obra elaborada em 1649 e dedicada a D. Rodrigo de Menezes, Presidente do Pao, a expresso literria autntica de uma experincia humana profundamente sentida e vivida. (Martins 1969: 5) 7 Como refere D. C. Muecke, lironie se caractrise pas tant par lambigut ellemme, que par une curieuse qualit de sensation gnre par la copresence dlments contradictoires. (Muecke 1977: 480)

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Junto do manso Tejo, que corria Para o Mar, que nos braos o esperava, Jaz um Pastor, que no semblante dava Mostras da dor que o corao cobria, Falava o gesto quanto nalma havia, Que, qui por ser muito, ela o calava: Mas vencido do mal, que o atormentava, Sem licena do mal, assim dizia: Corre alegre, e soberbo, doce Tejo, Pois vives sem fortuna, de que esperes Que encaminhe teu passo a teu desejo; Vais, e tornas, e irs, como vieres. Ditoso tu, que vs o que eu no vejo! Ditoso tu, que vais aonde queres!

Neste soneto de

reverberao clssica e ndole buclica,

representada na sua primeira metade a imagem dicotmica de um pastor em estado de solido e imobilidade que contempla e invoca o Tejo, cujas guas correm livres ao encontro do vasto oceano. Ao entrarmos nos tercetos, vemos o sujeito lrico a outrar-se no manso rio contemplado e a imaginar outras terras onde o seu olhar sonha desaguar, a ansiar por horizontes mais alm, mas a manter-se na sua inerte solidez perante a transitoriedade do elemento lquido que flui para um futuro que o sujeito no espera vir a ter. Os dois ltimos versos trazem superfcie do texto lrico a colossal distncia existente entre o pastor passivo, preso ao espao telrico e atrs do qual o prprio autor aparenta dissimular-se, e o afortunado curso de gua no seu devir cclico e heraclitiano ao longo de um mundo sem fronteiras. Neste sentido, a presena do rio como pano de fundo lrico pode ser interpretada como uma metfora da liberdade e uma anttese do estado de intranquilidade e parlise tanto do sujeito do poema como do seu prprio autor, ambos confinados a um espao limitado e conformados com a sua sorte. O percurso do rio no horizonte contemplado, a correr para o mar em plena liberdade, ope-se prpria situao esttica de duas entidades vivas: pastor e autor. Esta descrio irnica pode ser assim a imagem especular de um indivduo que padece, de forma singular, com a injustia que sobre si praticada e que nada pode fazer para corrigir o desconcerto do seu mundo. Passemos leitura do soneto XXV, intitulado De consoada a uma Prima sua, no qual possvel encontrar a ironia socrtica, baseada num processo retrico que tem como objectivo procurar a verdade atravs da 5

maiutica, uma estrutura reflexiva assente em perguntas cujas respostas se conhecem por antecipao:Que vos hei-de mandar de Caparica, De que vs, Prima, no faais esgares? Porque de graas, e bnes aos pares, Disso, graas a Deus, sois vs bem rica. Mel e acar? So cousas da botica. Coscores? So piores que folares. Perus? No, que so pssaros vulgares. Porcos? S de o dizer nojo me fica. Mandara-vos o sol, se desta cova Mo deixaram tomar; mas fechada, E inda o mais para mim a rua nova. Pois se h-de ser de nada a consoada, Mandar-vos-ei, sequer, Prima, esta trova, Que o mesmo vem a ser que no ser nada.

A maiutica , com efeito, um processo pedaggico executado atravs de perguntas formuladas sucessivamente pelo sujeito com o intuito de reconhecer uma determinada situao. No caso do presente soneto, citado por Hernni Cidade como um dos raros poemas a abordar a temtica da priso e do desterro (cf. Cidade 1968: 413), esta tcnica argumentativa empregue pelo sujeito no se faz por via linear, uma vez que, estando a entidade destinatria distante, tem de ser o prprio emissor a responder. Contudo, no final do processo pergunta-resposta, d-se o esperado reconhecimento da situao: o Melodino no encontra, entre os poucos bens materiais ao seu alcance, algo com qualidade suficiente para satisfazer a sua familiar; nem mesmo este brilhante soneto, ironicamente reduzido no penltimo verso a trova termo associado medida velha e atravs do qual consegue denegrir a sua composio em medida nova e no remate do verso final a nada, uma das imagens barrocas por excelncia, seja ela manifestada por via gongrica, eufusta, marinista ou preciosista. O processo irnico implica ainda uma perda de identificao e um maior grau de distanciamento, e isso verifica-se na bipolarizao de dois espaos fsicos e sociais distintos: a priso, apartada da cidade, e o meio aristocrtico lisboeta, metonimicamente representado pela Rua Nova 8 e que o8

Eis a descrio que Damio de Gis faz deste espao pblico, em plena Lisboa quinhentista: Continuando em linha recta em direco praia, [] Passamos pela Rua Nova dEl-Rei, repleta de gravadores, joalheiros, lapidrios, ourives de prata,

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sujeito aprisionado evoca. na terceira estrofe onde se encontram os contrastes que melhor acentuam essas diferenas: priso e liberdade, estatismo e movimento, escurido e sol, claro e escuro, rotina e novidade, solido e mar de gente. Em nota ltima, este soneto exemplifica ainda o aspecto artificioso e conceptista da esttica barroca, de cujo contedo se excluem as preocupaes sociais ou as grandes causas ideolgicas, cumprindo assim o preceito da arte pela arte, que perspectiva a poesia como um acidental divertimento, conforme os pressupostos tericos explanados no Hospital das Letras. Por sua vez, a ironia de conciliao pode ser ilustrada com o Soneto XL, onde o autor Responde a um amigo que mandava perguntar a vida que fazia em sua priso:Casinha desprezvel, mal forrada, Furna l dentro, mais que inferno escura; Fresta pequena, grade bem segura, Porta s para entrar, logo fechada; Cama que potro, mesa destroncada; Pulga que, por picar, faz matadura; Co s para agourar; rato que fura; Candeia nem cos dedos atiada; Grilho que vos assusta eternamente; Negro boal, e mais boal ratinho Que mais vos leva que vos traz da praa; Sem Amor, sem Amigo, sem Parente; Quem mais se di de vs diz: Coitadinho! Tal vida levo. Santo prol me faa!

Segundo Maria Luclia Gonalves Pires, a originalidade da poesia do Melodino est tambm na elegante ironia com que consegue transformar vicissitudes biogrficas em jocosos motivos poticos; []. (Pires 2002: 108. Sublinhado nosso). A exemplificar esta ideia, nada melhor do que o soneto atrs transcrito, considerado por Correia de Oliveira o poema mais representativo da biografia do autor e um perfeito exemplar de clssico humorismo, escrito na priso da Torre Velha e em resposta carta de umourives de ouro, douradores, cambiadores; e, cortando sempre esquerda, chega-se a uma outra rua, tambm chamada Rua Nova dos Mercadores, muito mais ampla que as outras ruas, ornada de ambos os lados com belssimos edifcios. Aqui se juntam, compita, todos os dias, comerciantes de quase todos as partes e povos do mundo, com extraordinria concorrncia de gente, por causa das facilidades que o comrcio e o porto oferecem. (Gis 2001: 50)

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amigo que lhe pedia notcias da vida que levava. (Oliveira 1966: 61-62. Sublinhado nosso) Com efeito, este soneto, onde as condies srdidas em que o autor se encontra so de algum modo atenuadas pelo seu tom humorstico9, tem uma estrutura evolutiva feita do exterior para o interior: na primeira estrofe, existem trs elementos de ligao ao exterior (fresta, grade, porta); na segunda estrofe, revelam-se os elementos de ligao ao interior da priso (cama, potro, mesa, rato, candeia); e na terceira estrofe, o sujeito concentra-se no seu prprio infortnio. A quarta estrofe termina, por sua vez, com um tom de seriedade e autocomiserao como um efeito de alvio e uma forma de assimilao de um estado de esprito calmo e tolerante, a revelar uma presena estica e uma austeridade epicurista perante todas as agruras sentidas. O sujeito do poema j nem deseja sequer a sua liberdade, mas apenas que essa vida vazia e sem sentido que leva lhe faa algum proveito, correspondendo a uma atitude de desengano, ou, na feliz sntese de Correia de Oliveira, de uma serena resignao (cf. Oliveira 1966: 62), algo recorrente na lrica seiscentista. A terminar, a ironia do destino pode ser identificada no soneto LXXXI, tambm conhecido como Aplogo da Morte:Vi eu um dia a Morte andar folgando Por um campo de vivos, que a no viam. Os velhos, sem saber o que faziam, A cada passo nela iam topando. Na mocidade os moos confiando, Ignorantes da Morte, a no temiam. Todos cegos, nenhuns se lhe desviam; Ela a todos co dedo os vai contando. Ento quis disparar, e os olhos cerra: Tirou e errou. Eu, vendo seus empregos To sem ordem, bradei: Tem-te, homicida! Voltou-se, e respondeu: Tal vai de guerra! Se vs todos andais comigo cegos, Que esperais que convosco ande advertida?

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Lhumeur est lexpression dun tat desprit calme, pose, qui, tout en voyant les insuffisances dun caractre, dune situation, dun monde o rgnent lanomalie, le non-sens, lirrationnel et linjustice, sen accommode avec une bonhomie resigne et souriante, persuade quun grain de folie est dans lordre des choses; []. (Moner 1975: 582)

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Segundo Pina Martins, talvez especificamente melodnico o recurso expressividade de um humorismo transcendente para significar a problemtica da dor pelo prprio sujeito experimentada. (Martins 1969: 7. Sublinhado nosso). Esta forma de ironia metafsica pode ser observada neste soneto, onde a cegueira da humanidade se confronta com a cegueira do destino, em que a comdia da vida se representa ao lado da tragdia da morte. Excluindo desta anlise a clebre alegoria da Justia, tradicionalmente representada de olhos vendados, a cegueira, para alm de ser vista como uma expiao de pecados cometidos, simboliza ainda uma tomada de conscincia da realidade. o caso do grego Tirsias, que, em consequncia de cegar por ter ousado contemplar Atena a deusa da sabedoria a banhar-se na fonte, v o destino dos homens; de dipo, o heri grego que vasa os seus prprios olhos com os alfinetes de Jocasta e passa a reconhecer a inelutabilidade do destino; ou de Sanso, o heri nazareno a quem os olhos so arrancados por se ter deixado enlear na trama daquele engano da alma, ledo e cego, aplicando a to conhecida expresso camoniana que d o mote ao enredo trgico de Ins de Castro. Este poema apresenta-nos uma viso do mundo como espao transitrio, como estalagem (cf. Maravall 1997: 211). Esta composio , no fundo, um ensaio sobre a cegueira humana, onde velhos e moos, apesar de terem os olhos abertos, se deixam iludir com os seus projectos de vida sem verem que a Morte pode bater porta a qualquer hora. Indo para alm da noo seiscentista da poesia como divertimento, o sujeito lrico deste soneto o nico que v a morte, essa particularidade to singular do solitrio heri romntico acaba por transmitir uma mensagem didctica no apelo moderao da vida humana perante a ironia do destino cego, que se diverte custa dos homens, como bem sugere o Conde de Glouscester na tragdia King Lear, de William Shakespeare: Tal como as moscas esto para as crianas traquinas, assim estamos ns para os Deuses: matam-nos por pura diverso.10 A concluir, podemos afirmar que o pequeno conjunto de sonetos melodnicos atrs analisado constitui uma imagem microcsmica de um mundo10

Traduo livre dos versos 36 e 37 da cena IV, de King Lear: As flies to wanton boys are we to the Gods; / they kill us for their sport.

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ao revs e ilustra claramente a ideia da esttica barroca como a mais pura e completa degenerescncia da estrutura apolnea do Renascimento, onde o ser humano se torna uma entidade resignada e passiva, predisposto a aceitar sem revolta as adversidades da vida na sua conjuntura histrica, social e pessoal.

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