A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO FORMA DE … · Cidadania e Políticas Públicas e do grupo de estudos...
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A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO FORMA DE FORTALECIMENTO DA
CIDADANIA PARTICIPATIVA FRENTE À VIOLÊNCIA ESTRUTURAL
Rosane Teresinha Carvalho Porto∗
RESUMO O presente trabalho tem por finalidade apresentar abordagens conceituais sobre a Justiça Restaurativa e procurar identificar nos seus procedimentos, que se valem da comunicação não-violenta o exercício e fortalecimento da cidadania participativa no processo democrático frente à violência estrutural. Além disso, dispõe do referencial teórico de Jürgen Habermas, em especial a teoria da ação comunicativa para compreender o recepcionamento desse modelo de justiça, em fase de experimentação na 3ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, na execução de medidas socioeducativas. PALAVRAS-CHAVES: JUSTIÇA RESTAURATIVA, DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, VIOLÊNCIA ESTRUTURAL.
RESUMEN El presente trabajo tiene por finalidad presentar abordajes conceptuáis sobre la Justicia Restaurativa y buscar identificar en sus procedimientos que se valen de la comunicación no violenta como vehículo para el ejercicio y fortalecimiento de la ciudadanía participativa en el proceso democrático frente a la violencia estructural. Además, dispone del referencial teorético de Jürgen Habermas, en especial la teoría de la acción comunicativa para comprender el recepcionamento de ese modelo de justicia, en fase de experimentación en la 3ª Vara del Juizado de la Infancia y de la Juventud de Porto Alegre en la ejecución de medidas socio-educativas.
PALABRAS LLAVES: JUSTICIA RESTAURATIVA, DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, VIOLENCIA ESTRUCTURAL.
∗ Especialista em Direito Penal/ Processo Penal da Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC Mestranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC e pesquisadora/bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa em Direito, Cidadania e Políticas Públicas e do grupo de estudos de práticas restaurativas da AJURIS.
INTRODUÇÃO
A fim de contextualizar sobre o modelo da Justiça Restaurativa, de maneira a
percebê-la como o exercício da cidadania participativa no atual modelo de democracia,
ocorre que se faz necessário compreender que tal processo efetivamente se desenvolve
dentro do sistema de justiça, se a visão social se tornar sensível e coerente ao ponto de
avaliar que a atual sistemática de justiça não tem apresentado resultados satisfatórios
que possibilitem contribuir na diminuição da violência e da criminalidade. Por óbvio, tal
problemática não se restringe apenas ao sistema judiciário, mas à sociedade; por isso, ao
se propor um outro sistema de justiça que, em especial, atenda aos adolescentes autores
de ato infracional, está-se buscando uma outra forma de olhar e incluir o outro, além de
alternativas que contribuam para o enfrentamento de problemas da nefasta violência
estrutural. Feitas as considerações gerais, cumpre o aprofundamento do tema por meio
da análise, mesmo que sucinta da violência estrutural e de seus reflexos na
criminalidade, para, após, definir a comunicação não-violenta. Na seqüência, será
aprofundada uma abordagem conceitual sobre a Justiça Restaurativa e ,por fim, a
cidadania participativa na execução de medidas socioeducativas, valendo-se do
referencial teórico de Jürgen Habermas. É o que se quer considerar.
1 VIOLÊNCIA ESTRUTURAL E SEUS REFLEXOS NA CRIMINALIDADE
De imediato se faz necessária uma abordagem conceitual sobre a violência
estrutural e sobre seus reflexos na criminalidade, especialmente os atos infracionais
cometidos por adolescentes. Ocorre que, ao se propor uma guinada de percepção e
adoção de procedimentos no sistema de justiça, como o da Justiça Restaurativa,
independente de começar pela área da infância e da juventude- não se pode ignorar o
contexto de sociedade em que tal sistema estará inserido e deverá enfrentar, podendo
refletir-se em prováveis limitações.
De qualquer forma, tais limitações não devem servir como argumentos de
refutação contrários à sua operacionalização e aplicação, pois o atual modelo de justiça
também tem limitações e nem apresenta avanços que possam questionar e contribuir
para que isso seja suprido.
Nesse sentido, ante as seqüelas da globalização e das regras do mercado,
centralizando na relação o consumidor e não o cidadão, aumenta desenfreadamente a
violência1 e a criminalidade. Observa-se, com isso, que os indivíduos não conseguem se
inserir na sociedade, e principalmente, no mercado e, conseqüentemente, acabam
perdendo seu referencial e especialmente não reconhecendo no outro seu semelhante.
Logo, pela violência, no seu âmbito geral, os sujeitos impõem sua vontade
independentemente de ser contrária ao outro ou à comunidade.
Por conta disso, Johan Galtung nos anos 60 definiu a violência estrutural2, como
sendo a violência ocasionada pelas estruturas políticas, econômicas ou sociais que criam
situações de opressão, de exploração ou de alienação.3 Do mesmo modo, pode-se ainda
dizer que esse tipo de violência deixa clara, a ausência de políticas públicas por parte do
Estado para o enfrentamento das demandas sociais. Aliás, não se quer dizer com isso
que incumbe apenas à Administração Pública mobilizar e enfrentar os problemas de
ordem social, política e de outros, ao contrário, o engajamento é de todos os sujeitos que
conectados e preocupados com o coletivo, poderão encontrar soluções para as mais
diversas demandas que também contribuem para a instauração da violência e da
criminalidade.
Assim sendo, pelo fato primordial de a sociedade estar desconectada de tal forma
que seus indivíduos não se sintam pertencendo a uma determinada comunidade,
percebe-se explicitamente a violência das instituições ou que parte de suas estruturas.
Ademais, esse quadro se agrava por conta da exclusão social que, valendo-se do
1 MULLER, Jean- Marie. O princípio de não-violência. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.30. [...] toda a violência é um processo de homicídio, de aniquilamento. Talvez o processo não vá até o fim, mas o desejo de eliminar o adversário, de o afastar, de o excluir, de o reduzir ao silêncio, de o suprimir, vai tornar-se mais forte do que a vontade de chegar a um acordo com ele. Do insulto à humilhação, da tortura ao homicídio, são múltiplas as formas de violência e múltiplas as formas de morte. Atacar a dignidade do homem é atacar a sua vida. Violentar é sempre fazer calar, e privar o homem da sua palavra é já privá-lo da sua vida. Não convém falar da “violência” como se ela existisse por si mesma no meio dos homens, de alguma forma exterior a eles, e como se agisse por si própria. Na realidade, a violência apenas age através do homem; é sempre o homem responsável pela violência. 2
entendimento de Jürgen Habermas, também caracteriza o não - reconhecimento do
outro, e, por conseguinte, a violência será uma imposição de um indivíduo sobre o
outro, para conseguir ser inserido e aceito. Nesse diapasão, é possível compreender que
quando um adolescente rouba um tênis de outra pessoa deixa implícita, a sua
necessidade básica humana de reconhecimento e inserção, mesmo que seja pela força.
Veja bem, não se quer com isso justificar ou aceitar o ato infracional cometido pelo
adolescente, pois a responsabilização é necessária. Apenas se quer demonstrar que tais
atos não são isolados, pois existe um tecido social comprometido diante de tudo isso e
que é preciso todos acordarem-se e darem-se conta de que o atual sistema de justiça não
está sendo suficiente.
É importante desde logo salientar que a violência estrutural também se caracteriza
pela forma de discurso utilizada pelo Estado, quando tenta mascarar interesses em prol
de uma classe dominante, deixando de lado a operacionalização de políticas públicas
para todos os cidadãos. Ademais, com tantas demandas e tantos conflitos sociais,
geradores de grandes massas de excluídos sociais, é possível constatar que atualmente o
Estado e as suas instituições também chamando à co-responsabilidade a sociedade,
tendem a divagar com discursos utópicos sobre direitos fundamentais a todos, políticas
públicas de inclusão social, Estado Democrático de Direito, cidadania e assim por
diante.
Significar dizer que não basta definir e reproduzir discursos condizentes e
aceitáveis pelo sistema4, é preciso ter coragem e ir mais além, querer enxergar o
diferente, ter a vontade da verdade, assumir uma posição, defendendo efetivamente o
interesse de todos os sujeitos de direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
Assim, mais uma vez, mesmo Foucault não tendo abordado diretamente a emancipação
do sujeito, por ter uma concepção de natureza profunda sobre o poder da linguagem a
3 MULLER, Jean- Marie. O princípio de não-violência. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.30 4FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996.p.35. É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma "polícia” discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos.
tudo isso, entende que é preciso denunciar e desmascarar as tais ‘verdades’ dispostas
estrategicamente por quem tem a legitimidade para governar.
Completando o estudo sobre a violência estrutural, delineia-se, a seguir, o
conceito sobre a comunicação não-violenta, pois essa técnica ou esse procedimento,
aplicado tanto na Justiça Restaurativa como pelos atores sociais na sociedade, pode
auxiliar no enfrentamento das mazelas dirimidas pela violência estrutural.
2 A COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA
Antes de definir o que seja a comunicação não-violenta, passe-se rapidamente ao
significado de ação não-violenta. Para Muller :
A ação não-violenta é exatamente aquilo que está dizendo: ação que é não violenta, e não inércia. Essa técnica consiste não apenas em palavras, mas em protesto, não-cooperação e intervenção ativos. É mais do que claro que se trata de uma ação a (sic) em nível de grupo ou de massa. Certas formas de ação não-violenta podem ser consideradas como tentativas de convencer mediante ação; outras, tendo participação suficientes, podem conter elementos de coerção. 5
De outro modo, o que também se quer dizer, é que quando o homem sofre a
violência e a ocasiona no outro, descobre o requisito da não-violência no seu eu, pois a
sua conclusão sobre a não-violência decorre depois de esbarrar na realidade violenta à
sua volta. Assim sendo, pode-se concordar com Muller quando ele enfatiza : « A não-
violência não é conclusão de um raciocínio, não é uma dedução, mas sim uma opção da
razão ».6 Com efeito, a comunicação não-violenta é um processo de linguagem que
vem ao encontro desse despertar do homem sobre suas necessidades humanas no mundo
compartilhado, que pode ser acolhido pela matriz habermasiana, como dito
anteriormente, isto é, pautada na razão comunicativa.
Assim sendo, entende-se por Comunicação Não-violenta (CNV) como sendo um
processo de linguagem que capacita o ator social a ouvir e a conectar-se com os
sentimentos e as necessidades ante os próprios julgamentos e também com relação ao
outro. Nada mais que falar e ouvir com compaixão, ou seja, utilizar a linguagem não-
5 MULLER, Jean- Marie. O princípio de não-violência. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.12-13. 6 Ibidem, p,58.
violenta para se comunicar com o outro. Marshall B. Rosenberg (psicólogo clínico e
criador da teoria) assim denomina: “uma forma de comunicação que nos leva a nos
entregarmos de coração”.7 Para o estudioso, a CNV auxilia na conexão do sujeito com
os outros e consigo mesmo, possibilitando o florescimento natural da compaixão. Além
disso, guia os participantes do diálogo no processo de reformulação sobre a forma
utilizada para expressão e escuta, mediante a concentração em quatro componentes:
observação, sentimento, necessidades e pedido.8
Logo, o processo da CNV ao se valer da observação deixa claro que o participante
do ato da fala coordena seu plano de ação, de forma a verificar se o que o outro está
dizendo ou fazendo é enriquecedor ou não para sua vida. Por conta disso, o sujeito tem
que ser capaz de articular essa observação sem fazer nenhum julgamento ou qualquer
avaliação, ou seja, dizer apenas o que agrada ou não em relação ao que o outro ator do
diálogo está fazendo. Em ato contínuo, o segundo componente do processo é o
sentimento, que diz respeito ao sentimento do participante ao observar a referida ação,
podendo estar magoado, assustado, alegre, irritado, etc. Após a identificação do
sentimento, é possível reconhecer o terceiro componente, que sinaliza para qual das suas
necessidades estão ligados os sentimentos apontados. E por último, o pedido que deve
ser bem específico.9
Em geral, as pessoas não expressam claramente seus sentimentos quando se
comunicam, pois os sentimentos não são considerados importantes no sistema imposto
pela sociedade. Aprende-se mais palavras de rotulação, etiquetamento, estigmatização e
“maneiras certas de pensar” definidas pelos que detêm poder de autoridade. Em outros
termos, as instituições do Estado, por sua vez, que fazem parte da sociedade, exercem
um poder disciplinador, como diria Michel Foucault10, preparando os indivíduos para a
relação poder-dever; conseqüentemente, não interessa e por isso os sujeitos não
conseguem expressar claramente seus sentimentos. Devido a isso, fica-se sempre
7 Rosenberg, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução Mário Vilela. São Paulo: Agora, 2006, p.21. 8 Ibidem, p.25. 9 Ibidem, p.25.
imaginando o que os outros pensam ou acham que é certo dizer ou fazer; por sua vez, há
um esquecimento de se olhar para dentro do “eu”.11
Sobre as necessidades humanas básicas, estas são compartilhadas por todos os
sujeitos, independente da condição e da posição social. Para a CNV, as pessoas
geralmente confundem estratégias com necessidades.12 Um exemplo bem simples e
claro é quando afirmam “ter necessidade do dinheiro”. O dinheiro não é uma
necessidade, é uma estratégia de que se vale o ser humano, e de que precisa para
satisfazer uma necessidade, podendo ser a autonomia, a auto-afirmação, o amor, o calor
humano, a comunhão espiritual (beleza, harmonia, ordem, paz), as necessidades físicas
(abrigo, água, alimento, expressão sexual), entre outras.13 Além do dinheiro, tem-se que
o poder também não é uma necessidade básica do ser humano, embora ele seja
empregado como instrumento negativo para alimentar o ego; ele pode ser utilizado
como estratégia representando um ato a serviço da vida, não como mecanismo de
manipulação e sim como compartilhamento sem imposição. De certo, o poder (latim
10 C.f FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 29. ed. Petrópoles: Vozes, 2004. 11 Rosenberg, Marshall B. Comunicação não – violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução Mário Vilela. São Paulo: Agora, 2006, p.70-71.Sobre como achamos que os outros estão se comportando do que realmente estamos sentindo: A. “Sinto-me insignificante para as pessoas com quem trabalho”. A palavra insignificante descreve como acho que os outros estão me avaliando, e não um sentimento real, que, nessa situação, poderia ser “Sinto-me triste” ou “Sinto-me desestimulado.” B. “Sinto-me incompreendido.” Aqui, a palavra incompreendido indica minha avaliação do nível de compreensão de outra pessoa, em vez de um sentimento real. Nessa situação, posso estar me sentindo ansioso, ou aborrecido, ou estar sentindo alguma outra emoção. C. “Sinto-me ignorado”. Mais uma vez, isso é mais uma interpretação das ações dos outros do que uma descrição clara de como estou me sentindo. Sem dúvida, terá havido momentos em que pensamos estar sendo ignorados e nosso sentimento terá sido de alívio, porque queríamos ser deixados sozinhos. Da mesma forma, terá havido outros momentos em que nos sentimos magoados por estar sendo ignorados, porque queríamos participar. 12 MASLOW, Abraham H. Introdução à Psicologia do ser. Tradução de Álvaro Cabral. 1970. Eldorado, p. 27-28. As necessidades básicas ( de vida, de segurança, de filiação e de afeição, de respeito e de dignidade pessoal, e de individuação ou autonomia), as emoções humanas básicas e as capacidades humanas básicas ao que parece, neutras, pré-morais ou positivamente “boas”. A destrutividade, o sadismo, a crueldade, a premeditação malévola etc. parecem não ser intrínsecos, mas, antes, constituiriam reações violentas contra a frustração das nossas necessidades, emoções e capacidades intrínsecas. A cólera, em si mesma, não é má, nem o medo, a indolência ou até a ignorância. É claro, podem levar (e levam) a um comportamento maligno, mas não forçosamente. Esse resultado não é intrinsecamente necessário. A natureza humana está muito longe de ser tão má quanto se pensava. De fato, pode-se dizer que as possibilidades da natureza humana têm sido, habitualmente, depreciadas. 13 Rosenberg, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução Mário Vilela. São Paulo: Agora, 2006, p.86-87.
potere, « ser capaz » ) pode ser compreendido como a habilidade de definir as
necessidades humanas e resolvê-las, isto é, como energia vital.14
No exemplo trazido por Marschall, é possível visualizar os quatro componentes do
processo da CNV. Pois bem, trata-se de uma mãe dialogando com o seu filho
adolescente. “Roberto, quando eu vejo duas bolas de meias sujas debaixo da mesinha e
mais três perto da TV, fico irritada, porque preciso de mais ordem no espaço usado em
comum”. De imediato, a mãe continuaria o diálogo, utilizando do quarto componente,
ou seja, fazendo um pedido específico ao filho, desta forma: “Você poderia colocar suas
meias no seu quarto ou na lavadora?” 15
De outro modo, com esses quatro componentes do processo da CNV, os sujeitos
do diálogo, à medida que tiverem suas atenções voltadas para o processo, estabelecerão
um fluxo de comunicação que venha resultar na compaixão. Por sua vez, a utilização da
expressão “Não-Violenta” é a mesma atribuição dada por Gandhi, referindo-se à
compaixão que o ser humano expressa naturalmente quando abdica da
violência.16Embora algumas pessoas possam não se considerar violentas, não são raras
as ocasiões em que as palavras induzem à mágoa e à dor de si próprio ou do outro.
Da mesma maneira que a compaixão significa colocar-se no lugar do outro,
sentimento que retoma o grau de pertencimento do sujeito com relação ao grupo e
principalmente ao outro, principalmente nos momentos de dor e desgraça, leva a
abordar o mais puro sentimento que está presente nas relações sociais: o amor.
Importam aqui as contribuições de Humberto Maturana sobre o amor:
[...] o amor é a condição dinâmica espontânea de aceitação, por um sistema vivo, de sua coexistência com outro (ou outros) sistema(s) vivo(s), e que tal amor é um fenômeno biológico que não requer justificação: o amor é um encaixe dinâmico recíproco espontâneo, um acontecimento que acontece ou não acontece. Como um encaixe dinâmico recíproco espontâneo, o amor ocorre ou não ocorre. Se o amor ocorre, há socialização; se não ocorre, não há socialização. Além disso, eu também estou dizendo que como tal, o amor é a expressão de uma congruência estrutural espontânea que constitui um
14 MULLER, Jean- Marie. O princípio de não-violência. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p,06. 15 Ibidem, p.25. 16 Ibidem, p.21.
começo que pode ser expandido ou restringido, ou pode mesmo desaparecer na deriva estrutural co-ontogênica que começa a acontecer quando ele acontece. E, uma vez que eu digo que os fenômenos sociais são fenômenos que se dão na deriva estrutural espontânea co-ontogênica, eu também estou dizendo que o amor é o fundamento do fenômeno social e não uma conseqüência dele, e que os fenômenos sociais, em um domínio qualquer de interações, duram somente enquanto o amor persistir nesse domínio.17
Portanto, a comunicação não-violenta também auxilia nas interações sociais e
possibilita a conservação do amor nas relações sociais. Além disso, ao se pretender a
socialização de pessoas, por exemplo, adolescentes autores de atos infracionais (assunto
que será tratado mais adiante), é preciso praticar a compaixão conforme o processo da
CNV e, acima de tudo, o amor. Sem o amor não ocorre a socialização.
De outra modo, ao aplicar os quatro componentes da CNV, resta prestar atenção
no que os outros estão observando, sentindo, precisando e pedindo; aliás, essa parte da
comunicação denomina-se “receber com empatia”. Como bem demonstra Marshall: “ a
empatia é a compreensão respeitosa do que os outros estão vivendo.” Para tanto, ela
perpassa os sentidos, para que se consiga efetivamente escutar com o coração, de forma
a agir com compaixão e amor.18
O sujeito que se interessa em trabalhar com adolescentes autores de ato infracional
no processo restaurativo precisa desenvolver sua empatia, bem como a capacidade de
externar o amor; caso contrário, sem sentir tais sentimentos, não terá condições de dar-
lhes a devida atenção. Ademais, quando o adolescente, aceita participar de um círculo
restaurativo, ficando frente a frente com a sua vítima e a comunidade em que convive,
ele (não esquecendo também a vítima) necessita ser ouvido e escutado.19 .
Aliás, a escuta é o ponto de partida de todo processo restaurativo, pois requer
ouvir de modo ativo e sem a pretensão de julgar. Por isso, tanto juizes, coordenadores
dos círculos restaurativos ou qualquer pessoa que esteja na condição de ouvinte e tenha
a pretensão de se comunicar de maneira não-violenta, valendo-se do poder da empatia,
precisa observar alguns aspectos: ouvir com atenção e receptividade, antes de expressar
seu posicionamento mesmo que contrário; explicar que tipo de conversa pretende ter,
17 MATURANA, R., Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1997, p.184. 18 MULLER, Jean- Marie. O princípio de não-violência. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.133.
com o objetivo de ajudar o interlocutor a cooperar, bem como evitar desentendimentos;
procurar expressar-se com clareza, falando devagar, passando ao outro todas as
informações acerca do que está sentindo e pensando; traduzir e explicar as críticas e
reclamações (e a dos outros) em termos de reivindicação; elaborar perguntas abertas e
criativas; expressar consideração, gratidão e encorajamento, etc.20
Diante de tais abordagens sucintas sobre a comunicação não-violenta, que também
é utilizada como procedimento nas práticas da Justiça Restaurativa, na 3ª Vara do
Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, interessa discorrer rapidamente sobre
essa experiência. Além disso, vale dizer que a Justiça Restaurativa é o resultado da
comunicação não-violenta.
3 UMA ABORDAGEM CONCEITUAL SOBRE A JUSTIÇA RESTAURATIVA
Feitas as considerações anteriores, passar-se-à a exposição de maneira resumida da
origem da Justiça Restaurativa no mundo, destacando a experiência brasileira da 3ª Vara
do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul. E
em seguida, uma breve abordagem conceitual construída por alguns operadores
jurídicos e pensadores na área.
A denominação Justiça Restaurativa21 é atribuída a Albert Eglash que, em 1977,
escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution. Segundo a
concepção de Eglash, discorrida no referido artigo, há três respostas ao crime, que são: a
retributiva baseada na punição; a distributiva, voltada para a reeducação; e a
19 Ibidem, p.159. 20 NETO, Scuro Pedro. Justiça Restaurativa: desafios políticos e o papel dos juízes. Revista da AJURIS/Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. V.33, n.103. Porto Alegre: AJURIS. p.231-251, set.2006. 21A Justiça Restaurativa é definida pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas como sendo um processo em que todas as partes envolvidas em um ato que causou ofensa reúnem-se para decidir coletivamente como lidar com as circunstâncias decorrentes desse ato e quais suas implicações para o futuro. (Resolução 99/2002) (informação verbal) Notícia fornecida pelo Dr. Leoberto Narciso Brancher- Juiz da Infância e Juventude de Porto Alegre. II Simpósio sobre Juventude, Violência, Educação, Justiça. O processo educativo destinado a adolescentes em conflito com a lei no Brasil e nos Estados Unidos, Porto Alegre, em agosto de 2006.
restaurativa, tendo como fundamento a reparação.22 No tocante a esse modelo de justiça,
o mesmo integra a legislação de alguns países, destacando-se a Nova Zelândia.
Entre os conceitos mais relevantes de Justiça Restaurativa no mundo está o do
advogado norte-americano Howard Zher, considerado um dos fundadores e principais
teóricos sobre Justiça Restaurativa, tendo como destaque a obra “Changing Lenses”
(trocando as lentes). Desenvolveu uma concepção detalhada das concepções
fundamentais da Justiça Restaurativa, merecendo ênfase os seguintes pontos: o crime é
fundamentalmente uma violação de pessoas e relações interpessoais; as violações criam
obrigações e responsabilidades; e a Justiça Restaurativa busca curar e corrigir
injustiças.23
A partir dos anos setenta, e principalmente durante a última década, vêm
crescendo internacionalmente as discussões em torno da Justiça Restaurativa. Dentro
desse cenário, ressalta-se que os primeiros registros sobre práticas restaurativas foram
apontados nos Estados Unidos, em 1970, sob a forma de mediação entre réu e vítima. O
Instituto para Mediação e Resolução de Conflito (IMCR) utilizou 53 mediadores
comunitários e recebeu 1.657 indicações em 10 meses. Por volta do ano de 1976, foi
criado no Canadá e na Noruega o Centro de Justiça Restaurativa Comunitária de
Victoria. Em meados de 1980, na Austrália, surgiram três Centros de Justiça
Comunitária experimentais em Nova Gales do Sul. Além desses países, cite-se o Reino
Unido, no ano de 1982, com o primeiro serviço de mediação comunitária; no ano de
1988, na Nova Zelândia, tendo como seu marco inicial a mediação vítima-agressor e
depois de um ano foi recepcionada pelo respectivo ordenamento jurídico a « Lei Sobre
Crianças, Jovens e suas famílias », incorporando a Justiça Penal Juvenil.24
22 GALLI, Marcelo. Um novo modo de olhar o Direito. Revista Visão Jurídica, São Paulo, n.4,p.14-16, jan.2007. 23 ZEHR, Haward; MIKA, Harry. Conceitos fundamentais da justiça restaurativa. Michigan: Michigan University, [s.d.] Mimeo.
24 BRANCHER, Leoberto Narciso. Diferentes países e culturas, a mesma inquietude social<Disponível em: www.justica21.org.br/interno.php?ativo=HISTORIA> Acessado em 22 de abril de 2006.
Ademais, no ano de 1994, nos Estados Unidos da América, pesquisadores da
área localizaram 123 programas de mediação vítima-infrator no país. Ressalta-se que no
de 1999 foram realizadas conferências de grupo familiar de bem-estar e projetos piloto
de justiça em curso na Austrália, na Nova Zelândia, nos Estados Unidos, na Grã-
Bretanha e mais África do Sul.25 Aliás, em meados de 2001 o Conselho da União
Européia decidiu sobre a participação das vítimas nos processos penais para
implementação de lei nos Estados. No ano de 2002, as Resoluções do Conselho
Econômico e Social da Organização das Nações Unidas - ONU criam conceitos
relativos à Justiça Restaurativa, apoiando a sua implementação.
Destacando a experiência da Nova Zelândia26, também Chile, Argentina e
Colômbia caminham em direção à Justiça Restaurativa. Além disso, no Brasil ressalta-
se a experiência com as práticas restaurativas desenvolvidas pela 3ª Vara do Juizado da
Infância e Juventude de Porto Alegre.
Ante essa breve contextualização histórica, sem esgotar o assunto, entende-se por
Justiça Restaurativa o procedimento adotado entre os interlocutores ou as partes
envolvidas e unidas pelo conflito ocasionado em decorrência da infração que, ao
exporem seus sentimentos, suas emoções e, principalmente, suas necessidades básicas
humanas, se predispõem a legitimarem um acordo e validá-lo entre si. O propósito
inicial, quando observados alguns relatos dos operadores e profissionais diretamente
envolvidos com a política pública socioeducativa restaurativa, é o de incluir o outro pela
escuta, independente da posição que ocupa no processo, além de procurar refletir sobre
o enfrentamento de conflitos como a violência produzida e sofrida pelos adolescentes,
autores de ato infracional.
25 Ibidem. 26 O movimento foi gerado a partir da grande insatisfação na comunidade Maori pela maneira que eles e seus jovens eram tratados pelas agências sociais e pelo sistema de justiça criminal. Ver: MARSHALL, Chris; BOYACK, Jim & BOWEN, Helen. Como a Justiça Restaurativa Assegura a Boa Prática: Uma Abordagem Baseada em Valores. n: Bastos, Márcio Thomaz; Lopes, Carlos e Renault, Sérgio Rabello Tamm (Orgs.). Justiça Restaurativa: Coletânea de Artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. Disponível em: <www.justica21.org.br/interno.php?ativo=BIBLIOTECA> Acessado em: 17mai2006.
A esse respeito, Melo define Justiça Restaurativa, partindo do pressuposto que este
modelo apresente soluções alternativas ou complementares ao sistema tradicional de
justiça, especialmente ao retributivo. Portanto,
Sua ênfase volta-se, de um lado, à procura por amparo às vítimas e ao atendimento de suas necessidades, dando-lhe um papel ativo na condução das negociações em torno do conflito. De outro lado, busca não apenas a responsabilização do causador do dano, valendo-se de recursos outros à punição e à sua estigmatização, mas também, pelo encontro que se dá entre um envolvido e outro no conflito, dar ocasião para o confronto de todas as questões que, a ver de cada qual, o determinaram e para o encaminhamento de possibilidades de sua superação ou transfiguração.27
Além da responsabilização do causador do dano, esse modelo disponibiliza um
espaço de discussões entre os interlocutores envolvidos e ligados pelo ato infracional,
mas que deixem de lado os estigmas e as rotulações. Logo, o que se espera é uma
mínima possibilidade de restauração nas relações.
Do mesmo modo, De Vitto afirma que a aplicação prática desse modelo é o que
mais se aproxima do que se deve esperar da intervenção do Estado em reação ao
fenômeno delitivo: uma tentativa de conciliar as justas expectativas da vítima, do
infrator e da sociedade.28
Por outro lado, Alison Morris diz que, por definição, não se sabe ao certo o que se
pode precisar ou esperar que a justiça restaurativa “restaure” efetivamente. Embora
coloque que a restauração significa, para as vítimas, a recomposição da segurança, da
dignidade, do auto-respeito e do senso de controle.29
27 MELO, Eduardo Rezende. et. al; Justiça Restaurativa e seus desafios histórico-culturais.Um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa e, contraposição à justiça retributiva. In:SLAKMON, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, (Org.), Justiça Restaurativa, Brasília-DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento- PUND, 2005, p. 53-77. 28DE VITTO, Renato Campos Pinto,et. al; Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos Humanos:SLAKMON, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, (Org.), Justiça Restaurativa, Brasília-DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento- PUND, 2005, p. 41-50. 29 MORRIS, Alison et. al; Criticando os críticos Uma breve resposta aos críticos da Justiça Restaurativa In:SLAKMON, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, (Org.), Justiça Restaurativa, Brasília-DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento- PUND, 2005, p. 449-450.
Mesmo que não se tenha a exatidão do que seja restaurar, uma interessante
pesquisa sinaliza e otimiza a implementação da Justiça Restaurativa:
Dados mais recentes (Maxwell et al. 2001), sobre 300 jovens que participararam dessas reuniões restaurativas em 1998 na Nova Zelândia, mostram, após uma análise preliminar, que mais da metade deles disseram que se sentiam envolvidos no processo decisório; mais de dois terços, que tiveram oportunidade de dizer o que queriam; mais de 80%, que entendiam a decisão; e mais de dois terços disseram que concordavam com a decisão. Da mesma forma, pesquisas recentes na Austrália mostram que os jovens infratores vêem as reuniões restaurativas como justas e estão satisfeitos com seus processos e resultados (Palk et al. 1998; Cant e Downie 1998; Strang et al. 1999; Trimboli, 2000; Daly 2001). No entanto, eu também entendo que “restaurar” significa a compensação dos males causados tanto pela vítima como aqueles por ela sofridos. Isto significa que nossas atitudes devem não somente ter como objeto as conseqüências do crime, mas também os fatores que a ela estão subjacentes. Nenhum processo, não importa o quão inclusivo, e nenhum resultado, não importa o quão reparador, poderão magicamente desfazer os anos de marginalização e exclusão social experimentados por tantos infratores (ver também Polk 2001), muito menos poderão suprir a necessidade que têm as vítimas de ajuda e aconselhamento terapêutico no longo prazo. [...].30
Embora as experiências na 3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude sejam
recentes para uma avaliação dos seus resultados, e que Morris entenda que ainda não há
uma definição sólida e única do que realmente signifique restaurar neste modelo de
justiça, sua afirmação é bem-vinda no que diz respeito à situação que nenhum resultado
reparador poderá desfazer anos de marginalização, pobreza, exclusão e desigualdade
vivenciados pelos infratores, no caso em tela, pelo adolescente. Por isso, nada demais
em reconhecer que assim como o outro sistema de justiça, o retributivo (pautado
exclusivamente na punição), também o da Justiça Restaurativa tem limitações.
Limitações, como mencionado antes, construídas devido à invasão ou às distorções
sofridas na comunicação que denotam a colonização do mundo da vida.
Dessa circunstância decorre que a possibilidade de a vítima, o infrator e a
comunidade participarem no processo judicial evoca a importância dos atores sociais no
processo e retoma o viés da democracia participativa. Importa, então, no próximo item,
focar o entendimento de Jürgen Habermas sobre democracia, de maneira a visualizar
30 MORRIS, Alison et. al; Criticando os críticos Uma breve resposta aos críticos da Justiça Restaurativa In:SLAKMON, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, (Org.), Justiça Restaurativa, Brasília-DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento- PUND, 2005, p. 449-450.
esse processo na execução de medidas socioeducativas, por conta da Justiça
Restaurativa.
4 O EXERCÍCIO DA CIDADANIA PARTICIPATIVA NA EXECUÇÃO DE
MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
Nessa dimensão é possível perceber que a Justiça Restaurativa, relacionando-a
com a racionalidade comunicativa, pode contribuir no exercício da ação comunicativa,
especialmente no processo da cidadania participativa na esfera pública. Para Habermas:
A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana.31
Com relação à esfera pública, caracterizada como um espaço argumentativo, os
atores sociais podem levantar seus atos de fala e consolidar seus discursos pelo acordo.
Aproveitando a construção Habermasiana sobre esfera pública, é possível aproximar tal
conotação da Justiça Restaurativa. Veja bem, quando o adolescente autor de ato
infracional reconhece a autoria e aceita participar do círculo restaurativo-espaço
proporcionado ao encontro seu com a vítima e a comunidade -, identifica-se uma
estrutura comunicacional do agir de cada um dos atores sociais para o entendimento.
Nesse espaço, todos participam, erguendo seus atos de fala, mas de uma maneira tal que
seus desejos, suas visões de mundo venham à tona, porém sejam válidas somente
quando fundamentadas, reconhecidas no círculo e obviamente pelo ordenamento
jurídico.
Ademais, Habermas menciona a necessidade de os interlocutores terem condições
e capacidade para agirem e falarem comunicativamente. Nesse sentido, pode-se
considerar que a comunicação não-violenta é uma ferramenta que operacionaliza os
diálogos desses atores no círculo restaurativo.
À medida que se estudam alguns pontos sobre a teoria da ação comunicativa, é
possível identificar a sua relação direta com a Justiça Restaurativa. Torna-se oportuna a
menção dessa teoria porque a mesma auxilia na compreensão da sociedade e, em
especial, da própria Justiça Restaurativa. Ademais, não há de se falar em cidadania e
democracia sem entender a rede comunicacional proposta por Habermas.
É sabido que Habermas desenvolveu seus estudos voltados às ações sociais, em
especial, a ação comunicativa e a ação instrumental. Na ação comunicativa, o uso da
linguagem é orientado para o entendimento, sendo que os participantes unem-se em
torno da pretensa validade de suas ações de fala ou constatam dissensos, os quais eles,
de comum acordo, levarão no decorrer da ação.32 Em outras palavras, a comunicação
voltada para o outro, no sentido de ele não ser o meio para se chegar aos fins, como se
dá quando um participante ou indivíduo age instrumentalmente.
Logo, na ação instrumental33 os sujeitos agem com perspectivas voltadas
exclusivamente para o sucesso. Do mesmo modo, poder-se-ia se dizer que a violência,
além de ser uma distorção na comunicação para o entendimento mútuo, existe pelo
caráter instrumental dado à mesma pelos homens.
Desse modo, em tese, pode-se dizer que o atual sistema de justiça por não utilizar
o direito como uma linguagem socializadora, age instrumentalmente, isto é, pouco
importa dispor de um espaço de escuta nos moldes da comunicação não-violenta para os
interlocutores do processo judicial. Dito de outro modo, significa dizer que a relação de
poder e as ideologias discursivas presentes no processo judicial podem retirar de seus
31 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factcidade e validade, volume II; tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92. 32 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factcidade e validade, volume I; tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 36. 33 MULLER, Jean- Marie. O princípio de não-violência. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 10. Se examinarmos a história, a violência pode parecer pesar sobre a humanidade como uma fatalidade. Se o homem fosse um animal, seria o mais cruel dos animais. Mas o homem é um ser dotado de razão, e é precisamente por isso que é o mais cruel dos seres vivos. Se o homem não fosse dotado de razão, não teria sido capaz de programar consciente e cientificamente as tragédias de Auschwitz, de Hiroxima e do Arquipélago de Gulag. E há muitas outras tragédias, que ocorreram pelo mundo fora antes e depois destas, e que podem simbolizar igualmente o horror da violência organizada pelo homem contra o homem.
membros a capacidade de agir e falar, dificultando a exposição de debates e
posicionamentos que recepcionem o interesse mútuo34. As distorções descritas acima
são denominadas por Habermas como colonização do mundo da vida.
Feitas essas assertivas, pretende-se nesta etapa do trabalho enfocar os princípios
básicos definidos por Habermas, pois sabe-se que os mesmos servem de fundamento
para a aplicabilidade do direito, podendo ser aqui relacionada a implementação da
Justiça Restaurativa no Estado Democrático de Direito. Além disso, legitima o exercício
da cidadania participativa no atual modelo democrático.
Portanto, entende-se que na propositura dos acordos nos círculos restaurativos,
dois princípios básicos elucidados por Habermas devem estar presentes, ou seja, o
princípio D (de discurso) e o princípio U (de universal). Pelo princípio D: “São válidas
as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu
assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”35Até porque com a
prática argumentativa se instaura uma concorrência pelos melhores argumentos, em que
a orientação se dê por um acordo mútuo.36
Por outro lado, tem-se o princípio U, pelo qual uma norma só é validada quando
as conseqüências presumíveis e os efeitos secundários para os interesses específicos e
para as orientações valorativas de cada um, decorrentes do cumprimento geral dessa
mesma norma, podem ser aceitos sem coação por todos os atingidos em conjunto.37
Esses princípios servem para a fundamentação dos direitos, diga-se de passagem,
para salvaguardar o interesse mútuo dos interlocutores do círculo restaurativo. Do que
foi dito, vale lembrar ainda:
34 GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2005, p.301. 35 HABERMAS,Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997 2v. p.142. 36HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002,p. 58. 37 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002,p. 56.
Nos discursos de fundamentação moral o princípio do discurso assume a forma de princípio de universalização, porque nas questões morais a referência deve ser a humanidade toda- interesse simétrico de todos. E como fica a fundamentação do direito? Nos discursos jurídicos o princípio do discurso assume a forma de princípio da democracia, porque nas questões jurídicas o sistema de referência é a comunidade político-jurídica.38
No que diz respeito à moral, há de se mencionar o Imperativo Categórico de Kant,
em que as máximas (regras ou deveres) eram impostas a todos, não possibilitando a
discussão e nem a construção que de fato interessaria aos atores sociais. Percebe-se que
a construção sobre a fundamentação da moral por Habermas parte de Kant, porém, em
sentido inverso, isto é, se justificam quando os interlocutores sobre o ponto de vista
moral argumentam e escolhem o melhor argumento que venha atender ao interesse
mútuo.39 Logo, nos discursos de fundamentação moral, o princípio assume a forma de
princípio de universalização, pelo fato de os questionamentos morais deverem estar
voltados à humanidade.
Se ao contrário, as pessoas quiserem permanecer com a convicção aristotélica de
que o juízo moral ligado ao ethos de um lugar particular, então há de se estar preparado
para renunciar ao conteúdo emancipatório do universalismo moral, além de negar a
violência estrutural que está inserida no contexto social marcado pela exploração,
repressão a uma crítica inexorável.40
Por sua vez, essa interligação permite ver as categorias de direitos que geram o
próprio sistema jurídico, desde os direitos básicos, inerentes ao discurso como
condições de validade ou como o processo de legitimação de outros direitos. Desse
modo, os princípios inscritos no discurso constituem os direitos básicos que devem ser
38 Ibidem, p.55. 39 HELFER, Inácio.Inclusão do outro, dever moral e direito segundo Habermas. In:Rogério Gesta Leal et al.(org.). Direitos Sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. T. 6. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006. 40 HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do discurso. Instituto Piaget, Lisboa, ? 1991,p.90.
reconhecidos mutuamente pelos cidadãos, caso estes queiram utilizar o médium direito
positivo para regular legitimamente a convivência41.
Logo, o lugar de onde provêm esses direitos, como o direito à vida, a liberdade, à
educação, é a razão comunicativa, ou seja, não mais o sujeito e sim o discurso42. Em
outras palavras, o reconhecimento dos direitos fundamentais e humanos na Constituição
da República Federativa de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente como outras
legislações pertinentes são oriundas da ação comunicativa que se dá pelo exercício da
cidadania e da democracia participativa, pois os sujeitos ao identificarem e
fundamentam e reconhecem suas necessidades humanas básicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o problema da violência estrutural, que tem no seu bojo mecanismos
desencadeadores da criminalidade, da pobreza, da exclusão social e outros, se apresenta
nesse cenário a Justiça Restaurativa que, numa perspectiva procedimental, poderá
auxiliar no enfrentamento de tais problemas tão complexos, pelo menos dando maior
significância ao papel social do Judiciário.
Nesse sentido, ao se propor compreender a funcionalidade da Justiça Restaurativa,
lincando a ela o exercício da cidadania participativa e da democracia na execução de
medidas socioeducativas, a teoria da ação comunicativa de Habermas é uma lupa de
decodificação e facilitadora para o entendimento de tal modelo que se vale, além de
outras ferramentas, da comunicação não-violenta para obter sucesso e tentar diminuir os
danos causados pelo ato infracional (o crime) aos atores sociais envolvidos.
Por conta disso, não se quer afirmar ingenuamente que a implementação desse
modelo de justiça, seja na sua íntegra ou como complemento às políticas de
atendimento previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, resolverá por completo
as demandas sociais e diminuirá os índices de violência e criminalidade. Contudo,
41 LUDWIG, C. L et al. Discurso e direito: o consenso e o dissenso. In: ____. Direito e discurso discursos do direito. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p.56. 42Ibidem, p.45-65.
significa afirmar que com a sua efetivação e eficácia social se dará um avanço na longa
caminhada que a sociedade precisa fazer, de maneira a reconhecer no outro as
necessidades humanas básicas que são inerentes e comuns a ambos.
REFERÊNCIAS
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