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SUMÁRIO

Os desastres de Sofia ........................................................ 11A repartição dos pães ........................................................ 29A mensagem ..................................................................... 33Macacos ............................................................................ 48O ovo e a galinha ............................................................. 51Tentação ........................................................................... 61Viagem a Petrópolis .......................................................... 63A solução .......................................................................... 72Evolução de uma miopia .................................................. 75A quinta história ............................................................... 82Uma amizade sincera ........................................................ 85Os obedientes ................................................................... 89A Legião Estrangeira ......................................................... 95

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Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abando-nara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar nocurso primário: era tudo o que sabíamos dele.

O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros con-traídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos.Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio deouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída porele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controladaimpaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, euadivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muitoalto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas,até que ele dizia, vermelho:

– Cale-se ou expulso a senhora da sala.Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me man-

dar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu oexasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o obje-to do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Nãoo amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o comouma criança que tenta desastradamente proteger um adulto,com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homemforte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De noite, antes dedormir, ele me irritava. Eu tinha nove anos e pouco, dura ida-de como o talo não quebrado de uma begônia. Eu o espicaçava,

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e ao conseguir exacerbá-lo sentia na boca, em glória de martírio,a acidez insuportável da begônia quando é esmagada entre osdentes; e roía as unhas, exultante. De manhã, ao atravessaros portões da escola, pura como ia com meu café com leite e acara lavada, era um choque deparar em carne e osso com o ho-mem que me fizera devanear por um abismal minuto antes dedormir. Em superfície de tempo fora um minuto apenas, masem profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura.De manhã – como se eu não tivesse contado com a existênciareal daquele que desencadeara meus negros sonhos de amor –de manhã, diante do homem grande com seu paletó curto, emchoque eu era jogada na vergonha, na perplexidade e na assus-tadora esperança. A esperança era o meu pecado maior.

Cada dia renovava-se a mesquinha luta que eu encetara pelasalvação daquele homem. Eu queria o seu bem, e em respostaele me odiava. Contundida, eu me tornara o seu demônio etormento, símbolo do inferno que devia ser para ele ensinaraquela turma risonha de desinteressados. Tornara-se um prazerjá terrível o de não deixá-lo em paz. O jogo, como sempre, mefascinava. Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mascom uma sabedoria com que os ruins já nascem – aqueles ruinsque roem as unhas de espanto –, sem saber que obedecia auma das coisas que mais acontecem no mundo, eu estava sendoa prostituta e ele o santo. Não, talvez não seja isso. As palavrasme antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam,e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditassem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era apenas isso. Meu en-leio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não possome resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de queuma história é feita de muitas histórias. E nem todas possocontar – uma palavra mais verdadeira poderia de eco em ecofazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras. As-sim, pois, não falarei mais no sorvedouro que havia em mim

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enquanto eu devaneava antes de adormecer. Senão eu mesmaterminarei pensando que era apenas essa macia voragem o queme impelia para ele, esquecendo minha desesperada abnegação.Eu me tornara a sua sedutora, dever que ninguém me impusera.Era de se lamentar que tivesse caído em minhas mãos erradasa tarefa de salvá-lo pela tentação, pois de todos os adultos ecrianças daquele tempo eu era provavelmente a menos indicada.“Essa não é flor que se cheire”, como dizia nossa empregada.Mas era como se, sozinha com um alpinista paralisado pelo ter-ror do precipício, eu, por mais inábil que fosse, não pudesse se-não tentar ajudá-lo a descer. O professor tivera a falta de sortede ter sido logo a mais imprudente quem ficara sozinha comele nos seus ermos. Por mais arriscado que fosse o meu lado,eu era obrigada a arrastá-lo para o meu lado, pois o dele eramortal. Era o que eu fazia, como uma criança importuna puxaum grande pela aba do paletó. Ele não olhava para trás, nãoperguntava o que eu queria, e livrava-se de mim com um safa-não. Eu continuava a puxá-lo pelo paletó, meu único instru-mento era a insistência. E disso tudo ele só percebia que eu lherasgava os bolsos. É verdade que nem eu mesma sabia ao certoo que fazia, minha vida com o professor era invisível. Mas eusentia que meu papel era ruim e perigoso: impelia-me a voraci-dade por uma vida real que tardava, e pior que inábil, eu tam-bém tinha gosto em lhe rasgar os bolsos. Só Deus perdoaria oque eu era porque só Ele sabia do que me fizera e para o quê.Eu me deixava, pois, ser matéria d’Ele. Ser matéria de Deusera a minha única bondade. E a fonte de um nascente misticis-mo. Não misticismo por Ele, mas pela matéria d’Ele, mas pelavida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora. Aceitava avastidão do que eu não conhecia e a ela me confiava toda, comsegredos de confessionário. Seria para as escuridões da igno-rância que eu seduzia o professor? e com o ardor de uma freirana cela. Freira alegre e monstruosa, ai de mim. E nem disso eu

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poderia me vangloriar: na classe todos nós éramos igualmentemonstruosos e suaves, ávida matéria de Deus.

Mas se me comoviam seus gordos ombros contraídos e seupaletozinho apertado, minhas gargalhadas só conseguiam fazercom que ele, fingindo a que custo me esquecer, mais contraí-do ficasse de tanto autocontrole. A antipatia que esse homemsentia por mim era tão forte que eu me detestava. Até quemeus risos foram definitivamente substituindo minha delica-deza impossível.

Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de torná-lo infeliz já me tomara demais. Suportando com desenvoltaamargura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre cam-baios, humilhada por não ser uma flor, e sobretudo, torturadapor uma infância enorme que eu temia nunca chegar a umfim – mais infeliz eu o tornava e sacudia com altivez a minhaúnica riqueza: os cabelos escorridos que eu planejava ficaremum dia bonitos com permanente e que por conta do futuro eujá exercitava sacudindo-os. Estudar eu não estudava, confiavana minha vadiação sempre bem-sucedida e que também ela oprofessor tomava como mais uma provocação da menina odiosa.Nisso ele não tinha razão. A verdade é que não me sobravatempo para estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta metomava dias e dias; havia os livros de história que eu lia roendode paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtasesde tristeza, refinamento que eu já descobrira; havia meninosque eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdiahoras de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais ou-tras horas de sofrimento aceitando-os com ternura, pois o ho-mem era o meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça dopecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem falar queestava permanentemente ocupada em querer e não querer sero que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é quenão podia; ter nascido era cheio de erros a corrigir. Não, não

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era para irritar o professor que eu não estudava; só tinha tem-po de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com umafalta de graça que mais parecia o resultado de um erro de cál-culo: as pernas não combinavam com os olhos, e a boca eraemocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas – na minhapressa eu crescia sem saber para onde. O fato de um retrato daépoca me revelar, ao contrário, uma menina bem plantada,selvagem e suave, com olhos pensativos embaixo da franja pe-sada, esse retrato real não me desmente, só faz é revelar umafantasmagórica estranha que eu não compreenderia se fosse asua mãe. Só muito depois, tendo finalmente me organizadoem corpo e sentindo-me fundamentalmente mais garantida,pude me aventurar e estudar um pouco; antes, porém, eu nãopodia me arriscar a aprender, não queria me disturbar – tomavaintuitivo cuidado com o que eu era, já que eu não sabia o queera, e com vaidade cultivava a integridade da ignorância. Foipena o professor não ter chegado a ver aquilo em que quatroanos depois inesperadamente eu me tornaria: aos treze anos,de mãos limpas, banho tomado, toda composta e bonitinha,ele me teria visto como um cromo de Natal à varanda de umsobrado. Mas, em vez dele, passara embaixo um ex-amiguinhomeu, gritara alto o meu nome, sem perceber que eu já não eramais um moleque e sim uma jovem digna cujo nome não podemais ser berrado pelas calçadas de uma cidade. “Que é?”, in-daguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como res-posta gritada a notícia de que o professor morrera naquelamadrugada. E branca, de olhos muito abertos, eu olhara a ruavertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como ade uma boneca partida.

Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o quecontei, misturado e em conjunto, que escrevi a composiçãoque o professor mandara, ponto de desenlace dessa história e

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começo de outras. Ou foi apenas por pressa de acabar de qual-quer modo o dever para poder brincar no parque.

– Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a com-posição. Mas usando as palavras de vocês. Quem for acabandonão precisa esperar pela sineta, já pode ir para o recreio.

O que ele contou: um homem muito pobre sonhara quedescobrira um tesouro e ficara muito rico; acordando, arru-mara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundointeiro e continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara paraa sua pobre, pobre casinha; e como não tinha o que comer, co-meçara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tantocolhera, tanto começara a vender que terminara ficando mui-to rico.

Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando como lápis, como se quisesse deixar claro que suas histórias nãome ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era. Ele contarasem olhar uma só vez para mim. É que na falta de jeito deamá-lo e no gosto de persegui-lo, eu também o acossava como olhar: a tudo o que ele dizia eu respondia com um simplesolhar direto, do qual ninguém em sã consciência poderia meacusar. Era um olhar que eu tornava bem límpido e angélico,muito aberto, como o da candidez olhando o crime. E conse-guia sempre o mesmo resultado: com perturbação ele evitavameus olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de umpoder que me amaldiçoava. E de piedade. O que por sua vezme irritava. Irritava-me que ele obrigasse uma porcaria de crian-ça a compreender um homem.

Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sinetado recreio. Aquele meu colégio, alugado dentro de um dos par-ques da cidade, tinha o maior campo de recreio que já vi. Eratão bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo.Tinha árvores espalhadas, longas descidas e subidas e estendi-da relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito

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para pernas compridas de menina, com lugar para montes detijolo e madeira de origem ignorada, para moitas de azedas be-gônias que nós comíamos, para sol e sombra onde as abelhasfaziam mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora vividopor nós: já tínhamos rolado de cada declive, intensamentecochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de váriasflores e em todos os troncos havíamos a canivete gravado datas,doces nomes feios e corações transpassados por flechas; meni-nos e meninas ali faziam o seu mel.

Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras es-condidas já me chamava. Apressei-me. Como eu só sabia “usarminhas próprias palavras”, escrever era simples. Apressava-metambém o desejo de ser a primeira a atravessar a sala – o profes-sor terminara por me isolar em quarentena na última carteira– e entregar-lhe insolente a composição, demonstrando-lheassim minha rapidez, qualidade que me parecia essencial parase viver e que, eu tinha certeza, o professor só podia admirar.

Entreguei-lhe o caderno e ele o recebeu sem ao menos meolhar. Melindrada, sem um elogio pela minha velocidade, saípulando para o grande parque.

A história que eu transcrevera em minhas próprias palavrasera igual a que ele contara. Só que naquela época eu estava co-meçando a “tirar a moral das histórias”, o que, se me santifica-va, mais tarde ameaçaria sufocar-me em rigidez. Com algumafaceirice, pois, havia acrescentado as frases finais. Frases quehoras depois eu lia e relia para ver o que nelas haveria de tãopoderoso a ponto de enfim ter provocado o homem de ummodo como eu própria não conseguira até então. Provavelmenteo que o professor quisera deixar implícito na sua história tristeé que o trabalho árduo era o único modo de se chegar a terfortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: al-guma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menosse espera, que é só descobrir, acho que falei em sujos quintais

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com tesouros. Já não me lembro, não sei se foi exatamente isso.Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu ex-posto um sentimento simples mas que se torna pensamentocomplicado. Suponho que, arbitrariamente contrariando o sen-tido real da história, eu de algum modo já me prometia porescrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandesrecompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É possíveltambém que já então meu tema de vida fosse a irrazoável espe-rança, e que eu já tivesse iniciado a minha grande obstinação:eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo mefosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história,na composição eu sacudia dos ombros todos os deveres e delasaía livre e pobre, e com um tesouro na mão.

Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio inú-til de ter sido a primeira, ciscando a terra, esperando impacientepelos meninos que pouco a pouco começaram a surgir da sala.

No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na minhacarteira não me lembro o quê, para mostrar ao caseiro do par-que, meu amigo e protetor. Toda molhada de suor, vermelhade uma felicidade irrepresável que se fosse em casa me valeriauns tapas – voei em direção à sala de aula, atravessei-a corren-do, e tão estabanada que não vi o professor a folhear os cader-nos empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eufora buscar, e iniciando outra corrida de volta – só então meuolhar tropeçou no homem.

Sozinho à cátedra: ele me olhava.Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa

conta. Ele me olhava. Meus passos, de vagarosos, quase ces-saram.

Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio cochicha-do da classe, sem a admiração que minha afoiteza provocava.Tentei sorrir, sentindo que o sangue me sumia do rosto. Umagota de suor correu-me pela testa. Ele me olhava. O olhar era

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uma pata macia e pesada sobre mim. Mas se a pata era suave,tolhia-me toda como a de um gato que sem pressa prendeo rabo do rato. A gota de suor foi descendo pelo nariz e pelaboca, dividindo ao meio o meu sorriso. Apenas isso: sem umaexpressão no olhar, ele me olhava. Comecei a costear a paredede olhos baixos, prendendo-me toda a meu sorriso, único traçode um rosto que já perdera os contornos. Nunca havia perce-bido como era comprida a sala de aula; só agora, ao lento passodo medo, eu via o seu tamanho real. Nem a minha falta de tem-po me deixara perceber até então como eram austeras e altasas paredes; e duras, eu sentia a parede dura na palma da mão.Num pesadelo, do qual sorrir fazia parte, eu mal acreditavapoder alcançar o âmbito da porta – de onde eu correria, ahcomo correria! a me refugiar no meio de meus iguais, as crian-ças. Além de me concentrar no sorriso, meu zelo minuciosoera o de não fazer barulho com os pés, e assim eu aderia à na-tureza íntima de um perigo do qual tudo o mais eu desconhe-cia. Foi num arrepio que me adivinhei de repente como numespelho: uma coisa úmida se encostando à parede, avançandodevagar na ponta dos pés, e com um sorriso cada vez mais in-tenso. Meu sorriso cristalizara a sala em silêncio, e mesmo osruídos que vinham do parque escorriam pelo lado de fora dosilêncio. Cheguei finalmente à porta, e o coração imprudentepôs-se a bater alto demais sob o risco de acordar o gigantescomundo que dormia.

Foi quando ouvi meu nome.De súbito pregada ao chão, com a boca seca, ali fiquei de

costas para ele sem coragem de me voltar. A brisa que vinhapela porta acabou de secar o suor do corpo. Virei-me devagar,contendo dentro dos punhos cerrados o impulso de correr.

Ao som de meu nome a sala se desipnotizara.E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi

que o professor era muito grande e muito feio, e que ele era o

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homem de minha vida. O novo e grande medo. Pequena, so-nâmbula, sozinha, diante daquilo a que a minha fatal liberda-de finalmente me levara. Meu sorriso, tudo o que sobrara deum rosto, também se apagara. Eu era dois pés endurecidos nochão e um coração que de tão vazio parecia morrer de sede.Ali fiquei, fora do alcance do homem. Meu coração morria desede, sim. Meu coração morria de sede.

Calmo como antes de friamente matar ele disse:– Chegue mais perto...Como é que um homem se vingava?Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo

que eu mesma lhe jogara e que nem por isso me era conheci-da. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido seeu não a tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dadovida. Até que ponto aquele homem, monte de compacta tris-teza, era também monte de fúria? Mas meu passado era agoratarde demais. Um arrependimento estoico manteve erecta aminha cabeça. Pela primeira vez a ignorância, que até entãofora o meu grande guia, desamparava-me. Meu pai estava notrabalho, minha mãe morrera há meses. Eu era o único eu.

– ... Pegue o seu caderno..., acrescentou ele.A surpresa me fez subitamente olhá-lo. Era só isso, então!?

O alívio inesperado foi quase mais chocante que o meu sustoanterior. Avancei um passo, estendi a mão gaguejante.

Mas o professor ficou imóvel e não entregou o caderno.Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando

lentamente os óculos. E olhou-me com olhos nus que tinhammuitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com asinúmeras pestanas, pareciam duas baratas doces. Ele me olhava.E eu não soube como existir na frente de um homem. Disfar-cei olhando o teto, o chão, as paredes, e mantinha a mão aindaestendida porque não sabia como recolhê-la. Ele me olhavamanso, curioso, com os olhos despenteados como se tivesse

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acordado. Iria ele me amassar com mão inesperada? Ou exigirque eu me ajoelhasse e pedisse perdão. Meu fio de esperançaera que ele não soubesse o que eu lhe tinha feito, assim comoeu mesma já não sabia, na verdade eu nunca soubera.

– Como é que lhe veio a ideia do tesouro que se disfarça?– Que tesouro? – murmurei atoleimada.Ficamos nos fitando em silêncio.– Ah, o tesouro!, precipitei-me de repente mesmo sem en-

tender, ansiosa por admitir qualquer falta, implorando-lhe quemeu castigo consistisse apenas em sofrer para sempre de culpa,que a tortura eterna fosse a minha punição, mas nunca essavida desconhecida.

– O tesouro que está escondido onde menos se espera.Que é só descobrir. Quem lhe disse isso?

O homem enlouqueceu, pensei, pois que tinha a ver otesouro com aquilo tudo? Atônita, sem compreender, e cami-nhando de inesperado a inesperado, pressenti no entanto umterreno menos perigoso. Nas minhas corridas eu aprendera ame levantar das quedas mesmo quando mancava, e me refizlogo: “foi a composição do tesouro! esse então deve ter sido omeu erro!” Fraca, e embora pisando cuidadosa na nova e es-corregadia segurança, eu no entanto já me levantara o bastanteda minha queda para poder sacudir, numa imitação da antigaarrogância, a futura cabeleira ondulada:

– Ninguém, ora..., respondi mancando. Eu mesma inven-tei, disse trêmula, mas já recomeçando a cintilar.

Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concretacom que lidar, começava no entanto a me dar conta de algomuito pior. A súbita falta de raiva nele. Olhei-o intrigada, deviés. E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva come-çara a me amedrontar, tinha ameaças novas que eu não com-preendia. Aquele olhar que não me desfitava – e sem cólera...Perplexa, e a troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento.

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Olhei-o surpreendida. Que é que ele queria de mim? Ele meconstrangia. E seu olhar sem raiva passara a me importunarmais do que a brutalidade que eu temera. Um medo pequeno,todo frio e suado, foi me tomando. Devagar, para ele não per-ceber, recuei as costas até encontrar atrás delas a parede, e de-pois a cabeça recuou até não ter mais para onde ir. Daquelaparede onde eu me engastara toda, furtivamente olhei-o.

E meu estômago se encheu de uma água de náusea. Nãosei contar.

Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez,eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba aocerto o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numaboca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu viaera anônimo como uma barriga aberta para uma operação deintestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara – o mal-estar jápetrificado subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagaro-samente hesitando e quebrando uma crosta – mas essa coisaque em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se pa-recia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pétentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não seio que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buracoda fechadura e em choque deparasse do outro lado com outroolho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que eratão incompreensível como um olho. Um olho aberto com suagelatina móvel. Com suas lágrimas orgânicas. Por si mesmo oolho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o esforço do ho-mem foi se completando todo atento, e em vitória infantil elemostrou, pérola arrancada da barriga aberta – que estava sorrin-do. Eu vi um homem com entranhas sorrindo. Via sua apreen-são extrema em não errar, sua aplicação de aluno lento, a faltade jeito como se de súbito ele se tivesse tornado canhoto. Sementender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entre-ga dele e de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso

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de homem. Minhas costas forçaram desesperadamente a parede,recuei – era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demaispara eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais san-grento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matériainerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo... Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embru-lhava o estômago. Estavam pedindo demais de minha coragemsó porque eu era corajosa, pediam minha força só porque euera forte. “Mas e eu?”, gritei dez anos depois por motivos deamor perdido, “quem virá jamais à minha fraqueza!” Eu oolhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o queeu vira poderia cegar os curiosos.

Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso queaprendera:

– Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouroque é só descobrir. Você... – ele nada acrescentou por um mo-mento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo comose ele fosse o meu coração. – Você é uma menina muito engra-çada, disse afinal.

Foi a primeira vergonha real de minha vida. Abaixei osolhos, sem poder sustentar o olhar indefeso daquele homem aquem eu enganara.

Sim, minha impressão era a de que, apesar de sua raiva, elede algum modo havia confiado em mim, e que então eu o en-ganara com a lorota do tesouro. Naquele tempo eu pensavaque tudo o que se inventa é mentira, e somente a consciênciaatormentada do pecado me redimia do vício. Abaixei os olhoscom vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara naminha luta contra mim mesma, pois coroava de insucesso osmeus métodos e talvez terminasse um dia me corrigindo: eunão queria era esse agradecimento que não só era a minha piorpunição, por eu não merecê-lo, como vinha encorajar minhavida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía. Eu bem

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quis lhe avisar que não se acha tesouro à toa. Mas, olhando-o,desanimei: faltava-me a coragem de desiludi-lo. Eu já me habi-tuara a proteger a alegria dos outros, a de meu pai, por exem-plo, que era mais desprevenido que eu. Mas como me foi difícilengolir a seco essa alegria que tão irresponsavelmente eu cau-sara! Ele parecia um mendigo que agradecesse o prato de comidasem perceber que lhe haviam dado carne estragada. O sangueme subira ao rosto, agora tão quente que pensei estar com osolhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo engano,devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mes-ma noite aquilo tudo se transformaria em incoercível crise devômitos que manteria acesas todas as luzes de minha casa.

– Você – repetiu então ele lentamente como se aos poucosestivesse admitindo com encantamento o que lhe viera poracaso à boca –, você é uma menina muito engraçada, sabe?Você é uma doidinha..., disse usando outra vez o sorriso comoum menino que dorme com os sapatos novos. Ele nem aomenos sabia que ficava feio quando sorria. Confiante, deixa-va-me ver a sua feiura, que era a sua parte mais inocente.

Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia aoacreditar em mim, tive que engolir a piedade por ele, a vergo-nha por mim, “tolo!”, pudesse eu lhe gritar, “essa história de tesourodisfarçado foi inventada, é coisa só para menina!” Eu tinhamuita consciência de ser uma criança, o que explicava todos osmeus graves defeitos, e pusera tanta fé em um dia crescer – eaquele homem grande se deixara enganar por uma menina safa-dinha. Ele matava em mim pela primeira vez a minha fé nosadultos: também ele, um homem, acreditava como eu nas gran-des mentiras...

... E de repente, com o coração batendo de desilusão, nãosuportei um instante mais – sem ter pegado o caderno corripara o parque, a mão na boca como se me tivessem quebrado

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os dentes. Com a mão na boca, horrorizada, eu corria, corriapara nunca parar, a prece profunda não é aquela que pede, aprece mais profunda é a que não pede mais – eu corria, eucorria muito espantada.

Na minha impureza eu havia depositado a esperança deredenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minhabondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eufizera à minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim pu-rificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da almasuja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e des-truía meu amor por ele e por mim. Minha salvação seria impos-sível: aquele homem também era eu. Meu amargo ídolo quecaíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa esem candura, e que se deixara docilmente guiar pela minhadiabólica inocência... Com a mão apertando a boca, eu corriapela poeira do parque.

Quando enfim me dei conta de estar bem longe da órbitado professor, sofreei exausta a corrida, e quase a cair encostei-me em todo o meu peso no tronco de uma árvore, respirandoalto, respirando. Ali fiquei ofegante e de olhos fechados, sen-tindo na boca o amargo empoeirado do tronco, os dedos me-canicamente passando e repassando pelo duro entalhe de umcoração com flecha. E de repente, apertando os olhos fecha-dos, gemi entendendo um pouco mais: estaria ele querendodizer que... que eu era um tesouro disfarçado? O tesouro ondemenos se espera... Oh não, não, coitadinho dele, coitado da-quele rei da Criação, de tal modo precisara... de quê? de queprecisara ele?... que até eu me transformara em tesouro.

Eu ainda tinha muito mais corrida dentro de mim, forceia garganta seca a recuperar o fôlego, e empurrando com raivao tronco da árvore recomecei a correr em direção ao fim domundo.

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Mas ainda não divisara o fim sombreado do parque, e meuspassos foram se tornando mais vagarosos, excessivamente can-sados. Eu não podia mais. Talvez por cansaço, mas eu sucum-bia. Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das árvoresse balançava lenta. Eram passos um pouco deslumbrados. Emhesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que umadoçura toda estranha fatigava meu coração. Intimidada, euhesitava. Estava sozinha na relva, mal em pé, sem nenhumapoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anuncia-da. E de cansaço abaixando àquela suavidade primeira umacabeça finalmente humilde que de muito longe talvez lem-brasse a de uma mulher. A copa das árvores se balançava paraa frente, para trás. “Você é uma menina muito engraçada, vocêé uma doidinha”, dissera ele. Era como um amor.

Não, eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, euera muito séria. Não, eu não era doidinha, a realidade era omeu destino, e era o que em mim doía nos outros. E, porDeus, eu não era um tesouro. Mas se eu antes já havia desco-berto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e comque se rói a vida – só naquele instante de mel e flores desco-bria de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu teriacurado quem sofresse de mim. Eu era a escura ignorância comsuas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando aminha vida inevitável – que podia eu fazer? eu já sabia que euera inevitável. Mas se eu não prestava, eu fora tudo o queaquele homem tivera naquele momento. Pelo menos uma vezele teria que amar, e sem ser a ninguém – através de alguém. Esó eu estivera ali. Se bem que esta fosse a sua única vantagem:tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim,ele começara pelo que poucos chegavam a alcançar. Seria fácildemais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amaro impuro era a nossa mais profunda nostalgia. Através de mim,a difícil de se amar, ele recebera, com grande caridade por si

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mesmo, aquilo de que somos feitos. Entendia eu tudo isso?Não. E não sei o que na hora entendi. Mas assim como porum instante no professor eu vira com aterrorizado fascínio omundo – e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que parasempre e em um segundo eu vi – assim eu nos entendi, e nun-ca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo.O que quer que eu tenha entendido no parque foi, com umchoque de doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorânciaque ali em pé – numa solidão sem dor, não menor que a dasárvores – eu recuperava inteira, a ignorância e a sua verdadeincompreensível. Ali estava eu, a menina esperta demais, e eisque tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aoshomens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.

Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter per-mitido que eu o fizesse enfim sorrir, por isso ele me anunciara.Ele acabara de me transformar em mais do que o rei da Cria-ção: fizera de mim a mulher do rei da Criação. Pois logo amim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seucoração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eunascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor.Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar demorte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde olobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome?Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa de-mais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo ine-vitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãosque ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois pre-ciso tanto, tanto, tanto – uivaram os lobos, e olharam intimi-dados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outropara amar e dormir.

... E foi assim que no grande parque do colégio lentamentecomecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não

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A LEGIÃO ESTRANGEIRA

merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não,esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outrashistórias. Em algumas foi de meu coração que outras garrascheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojode meu grito.

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A REPARTIÇÃO DOS PÃES

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação.Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-locom quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz eficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós alipresos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obri-gados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eunão queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora dajanela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu o amarfanhava como aum lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúdedo ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com vocêque eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamosdevagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir osábado ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem,até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado parausá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração jáconhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quermais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo hetero-gêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava comopela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menosficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo quecorreria de coração batendo para outros, outros cavalos.

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A LEGIÃO ESTRANGEIRA

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha abênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos coma mesa. Não podia ser para nós...

Era uma mesa para homens de boa vontade. Quem seria oconviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nósmesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava aquem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Cons-trangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre atoalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs verme-lhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele qua-se estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignosna sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriça-dos como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros so-bre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhadosque ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbasúmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagosde uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperarpelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esma-gadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém:para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E alaranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse. Junto doprato de cada mal convidado, a mulher que lavava pés de es-tranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar– um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ouuma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços.Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos li-mões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessa-do com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negrode tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante denós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é,não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe

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um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens emulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assimcomo apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de nin-guém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco apar do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores,à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses,aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comi-do quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para odia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que mefazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão como sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já estáperto da comida. Porque agora estávamos com fome, fomeinteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho,com os olhos tomava conta do leite. Quem lento bebeu o leite,sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Queexistiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carnetrinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Nin-guém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem deninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos.Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente aterra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe,e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade dequem não engana o que come: comi aquela comida e não o seunome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comidadizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudome pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura,comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança.Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida.Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e nãoposso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não

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A LEGIÃO ESTRANGEIRA

quero formar a vida porque a existência já existe. Existe comoum chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor.Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somosfortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.

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