A legislação e os modos operantes de resistência · Lei 12.990/2014 - Reserva aos negros 20% das...

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A legislação e os modos operantes de resistência Lucimar Felisberto dos Santos 1 Resumo: O objetivo desta análise é expor e esclarecer a um público mais amplo a situação do sistema educacional brasileiro quanto à implementação de políticas para reparar os efeitos do preconceito racial e da discriminação. O debate tem duas linhas de análise: primeiro, políticas públicas que visam um reparo da alteração de alguns componentes curriculares. Lei 10.639 / 2003, que prevê o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nas instituições educacionais do país e da Lei 11.645 / 2008, que exigiu o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e enfatiza os sentidos das lutas para uma educação pública progressiva , qualidade e democracia. A segunda linha de análise é a experiência dos estudantes de pós-graduação que têm o privilégio de prosseguir o ensino superior através do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação do Programa de Bolsas Internacionais (IFP). O programa foi aplicado no Brasil entre 2002 e 2011. Durante esse período, 40 bolsas foram premiadas com duração máxima de 24 meses para mestrado e 36 meses para um doutorado. Tal política ofereceu oportunidades para homens e mulheres com potencial de liderança em seus campos para continuar seu estudo e promover o desenvolvimento de seus países e uma maior justiça social. Abstract: This proposal is to expose and clarify to a wider public the situation of the Brazilian educational system regarding the implementation of policies to repair the effects of racial prejudice and discrimination. The debate has two lines of analysis: first, public policies that aim at a repair from the alteration of some curricular components. Law 10.639 / 2003, which provided for the teaching of Afro-Brazilian History and Culture in the country's educational institutions and Law 11.645 / 2008, which 1 Pós-doutora em História pela UFRJ - [email protected]

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A legislação e os modos operantes de resistência Lucimar Felisberto dos Santos1

Resumo:

O objetivo desta análise é expor e esclarecer a um público mais amplo a

situação do sistema educacional brasileiro quanto à implementação de políticas para

reparar os efeitos do preconceito racial e da discriminação. O debate tem duas linhas de

análise: primeiro, políticas públicas que visam um reparo da alteração de alguns

componentes curriculares. Lei 10.639 / 2003, que prevê o ensino da História e Cultura

Afro-Brasileira nas instituições educacionais do país e da Lei 11.645 / 2008, que exigiu

o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e enfatiza os sentidos das lutas para uma

educação pública progressiva , qualidade e democracia. A segunda linha de análise é a

experiência dos estudantes de pós-graduação que têm o privilégio de prosseguir o

ensino superior através do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação do

Programa de Bolsas Internacionais (IFP). O programa foi aplicado no Brasil entre 2002

e 2011. Durante esse período, 40 bolsas foram premiadas com duração máxima de 24

meses para mestrado e 36 meses para um doutorado. Tal política ofereceu

oportunidades para homens e mulheres com potencial de liderança em seus campos para

continuar seu estudo e promover o desenvolvimento de seus países e uma maior justiça

social.

Abstract:

This proposal is to expose and clarify to a wider public the situation of the

Brazilian educational system regarding the implementation of policies to repair the

effects of racial prejudice and discrimination. The debate has two lines of analysis: first,

public policies that aim at a repair from the alteration of some curricular components.

Law 10.639 / 2003, which provided for the teaching of Afro-Brazilian History and

Culture in the country's educational institutions and Law 11.645 / 2008, which

1 Pós-doutora em História pela UFRJ - [email protected]

mandated study "of Afro-Brazilian History and Culture and It emphasizes the senses of

struggles for a progressive public education, quality and democracy.

The second line of analysis is the experiences of graduate students who have the

privilege of pursuing higher education through the International Graduate Fellowships

Program of the International Fellowships Program (IFP) . The program was enforced in

Brazil between 2002 and 2011. During this time, 40 scholarships were awarded with a

maximum duration of 24 months for a master's degree and 36 months for a doctorate.

Such a policy offered opportunities for men and women with leadership potential in

their fields to continue their study and promote the development of their countries and

greater social justice.

Sobre uma política “legal”

Os direitos conquistados duramente pelas populações negras brasileiras vêm

sendo incisivamente atacados neste último ano no Brasil. Sendo mesmo necessário um

novo posicionamento dos movimentos negros ante a esses ataques. Como esse é um

fenômeno atualizado, agora fruto tanto da crave crise política por qual passa o nosso

país quanto da percepção dos grupos privilegiados em reação àquelas conquistas, muito

certamente, serão produzidas análises mais sistematizadas sobre o impacto do fenômeno

nas relações raciais futuramente. Entretanto, eu não poderia abrir a apresentação do meu

trabalho sem antes chamar a atenção para o assunto. Fundamentalmente por que aqui

tratarei daqueles “direitos duramente conquistados” e de seus desdobramentos no

Sistema Educacional brasileiro.

O principal argumento que será desenvolvido neste trabalho é que os avanços

alcançados na luta antirracista no Brasil nas duas últimas décadas têm a ver com a

atuação no campo do Direito. Isso porque visando coibir a discriminação racial e

estabelecer parâmetro para diminuir a desigualdade social existente entre os diferentes

grupos raciais, uma das possibilidades estratégicas para que se atentaram os

movimentos negros brasileiros, em um período posterior, foi a inclusão, via esfera

legislativa, da dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado. Como

resultados desta “política”, a promulgação de leis e decretos que regulamentam as

relações raciais no país. Dentre elas, podemos destacar as seguintes:

Lei 10.639/03 - Institui a obrigatoriedade no ensino fundamental e médio,

público e particular, do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira;

Lei 10. 678/03 - Cria a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade

Racial da Presidência da República;

Lei 12.288/10 - Institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à

população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos

étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas

de intolerância étnica;

Lei 12.711/12 – Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas

instituições federais de ensino técnico de nível médio, estabelecendo que as vagas

nestas instituições de ensino sejam preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados

pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência. Com as modificações da

redação da Lei 13.409/2016, a lei estabelece a gradativa proporcionalidade do total de

vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas

com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição

segundo censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE;

Lei 12.990/2014 - Reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos

públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos, no âmbito da

administração federal – direta e indireta, das autarquias, das fundações públicas, das

empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, nos três

poderes da República;

Decreto 4.887/03 – Regulamenta o procedimento para identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação e titularidade das terras ocupadas por

remanescentes das comunidades dos quilombos;

Decreto 6872/09 - Aprova o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial -

PLANAPIR, e institui o seu Comitê de Articulação e Monitoramento;

Em verdade, sabe-se que leis, por si sós, não estabelecem relações raciais mais

igualitárias. Mas o que tem sido visto a partir da falta de consenso que elas vêm

provocando, é que os processos de suas elaborações e implementação têm sido

complexo, resultando em inflamados debates, que, ao fim e ao cabo, são de especial

importância para a divulgação/valorização do legado cultural africano que recebemos

desde o século XVI. O que colabora na ampliação do parco conhecimento que a

população em geral tem de nossa cultura. Ou seja, essa “política legal” é em verdade um

processo gerador de dissenso – foram muitas as ações encaminhadas ao judiciário

brasileiro reclamando a inconstitucionalidades dessas leis, todas julgadas

improcedentes.

Por exemplo, no dia oito de agosto de 2017, a constitucionalidade da lei de cotas

– também raciais – no serviço público federal – nas três instancia de sua atuação – foi

deferida pelo Supremo Tribunal Federal. Não foi sem uma profunda reflexão sobre a

memória da nação brasileira que o relator, o ministro Luís Roberto Barroso e os outros

magistrados chegaram a esta decisão. Reflexão esta que ficou registrada e repercutiu em

todo território nacional. Tendo em vista o lugar de fala dos magistrados,

fundamentalmente, ainda que a trajetória percorrida pela lei seja conflitante, ela

colabora na produção de um novo olhar sobre a história africana e afro-brasileira e suas

possíveis relações como o percurso histórico brasileiro.

Entretanto, temos em mente que a função dessas leis antirracistas não é outra

senão o de coibir a discriminação racial e estabelecer políticas que contribuam para

diminui desigualdade que são determinadas pela condição racial de um indivíduo. A

reflexão proposta nesta comunicação é essencialmente em relação às possibilidades

abertas com esses tipos políticas – de reparação dos efeitos do preconceito e da

discriminação raciais – no sistema educacional brasileiro.

Primeiramente, defendemos que uma vez outorgadas e comprovada a sua

constitucionalidade, as leis servem de instrumento com a força de exigir que os que

atuam no Sistema Educacional contribuam nos efetivos projetos e nas ações que tenham

como objetivo a execução da lei. Mesmo aqueles que não refletiram sobre o assunto,

aqueles que relutam em abraçar a causa ou mesmo os que não entendem que a principal

motivação das leis antirracistas se assenta no dever de reparação histórica decorrente

das relações escravistas e de um racismo estrutural e persistente existente na sociedade

brasileira.

No que respeita a lei altera Diretrizes e Base da Educação brasileira (10.639/03),

tendo sido assegurada a instituição e a obrigatoriedade, no ensino fundamental e médio,

público e particular, do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, não só

os professores de disciplinas como História e Artes são solicitado a participar da

execução da lei. Tanto eles como profissionais de outras áreas do saber são instado, e

questionado quanto a não participação. Até por que, ainda que de forma tímida, há uma

cobrança dos órgãos de controle da Educação quanto à implementação da lei. Mesmo

que geradora de desconforto, esse é uma das dimensões positivas das repercussões da lei

10.639, mas não só dela.

Como professora da Educação Básica, atuei nos últimos quinze anos em cinco

diferentes unidades escolares nas periferias do estado do Rio de Janeiro, em uma região

de muito conflito por causa do tráfico de drogas conhecida como Baixada Fluminense

(em Duque de Caxias), e no município de Guapimirim. Numa densa análise das relações

raciais a partir da observação dos diferentes processos de socialização, venho observado

a diminuição do bullying com motivação racial e o aumento do “orgulho negro” entre a

minha clientela de alunos. Atribuo este comportamento a uma silenciosa característica

pedagógica das leis antirraciais.

Ainda que os casos notificados de racismo venham aumentando

consideravelmente no país – também como decorrência do efeito da legislação que

aguçou a percepção de todos os envolvidos quanto às formas de discriminação ligadas a

categorias raciais –, no universo das salas de aula do Ensino Básico os alunos negros

têm exercido a sua negritude de forma mais plena. Mesmo no imaginário infanto-

juvenil, a ideia da seguridade de certos direitos com base na condição racial, parece ter

funcionado como munição para o enfrentamento de diferentes formas de atitudes

agressivas: verbais ou físicas, intencionais e repetitivas, mesmo as que ocorrem sem

motivação evidente e são exercidas por um ou mais indivíduos. Ainda que ainda causem

dor e angústia por terem por objetivo intimidar ou atacar, a pessoa agredida agora tem a

possibilidade ou capacidade de se defender. Inclusive deixando claro que se está diante

de uma contravenção ou de um crime.

A mudança de atitude pode ser vista na ostentação da identidade negra: no

cabelo black e nos dreads, no batom e nos esmaltes com cores mais fortes e mesmo nos

desenhos das sobrancelhas e nos couros cabeludos, dos meninos e meninas. O “Negro é

lindo” deixou de ser uma frase de camisetas de algodão e passou a ser incorporado em

personagens reais. Esse fenômeno não era estranho em realidades como a da cidade de

Salvador, no estado da Bahia – que é considerada a cidade mais negra fora da África – e

em alguns outros centros urbanos.

Mas o que ora chamo a atenção é para o crescimento do movimento de

afirmação da identidade racial entre os estudantes do Ensino Básico, que vem agora se

intensificando nas periferias do Estado do Rio de Janeiro. Incluindo um aumento na

parcela daqueles que se autodeclaram negros por se reconhecerem na categoria dos

pardos. Ocorre então um processo de apropriação cultural dentro do próprio grupo

racial. O que talvez corrobore na explicação do crescimento demográfico deste grupo

étnico na sociedade brasileira.

De acordo com a análise populacional feita com o corte étnico-racial pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira que se

autodeclara negra ou parda aumentou na última década. Segundo a Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílios (PNAD) em 2015, 53% dos brasileiros se declararam pardos

ou pretos, diante de 45,5% que se disseram brancos. Há dez anos, em 2004, 51,2% dos

brasileiros se diziam brancos diante de 42% pardos e 5,9% pretos (totalizando 47,9% de

pretos e pardos). Foi em 2007 que os números viraram, quando 49,2% se disseram

brancos, 42,5% pardos e 7,5% pretos (totalizando 50% de pretos e pardos). Desde

então, segundo os dados estatísticos, o número de pessoas que se diz negro ou pardo só

faz crescer.

De um modo geral, em atendimento às exigências da lei 10.639, os professores

elaboram projetos com o sentido de educar para igualdade racial. O modo operante

desses projetos é dar oportunidade para o público infantil e juvenil vivenciarem a

cultura afro-brasileira, contribuindo para a construção do olhar étnico racial e do

comportamento cidadão. Em meio aos vários dissensos já comentados, ainda é possível

com esses projetos fomentar a discussão, reflexão e o diálogo pedagógico entre os

educadores à cerca das possibilidades de desenvolvimento de práticas educativas

inclusivas e de valorização étnico racial.

No ambiente escolar, portanto, a função da lei é desenvolver atitudes de

valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, à sua cultura e à

sua história. Além de contribuir para a diminuição do processo de exclusão social e

incorporação do preconceito pelas crianças. O fenômeno se dá a partir do conhecimento

da diversidade cultural das populações negras.

As medidas compensatórias

Somada à percepção de direitos assegurados, as ações afirmativas – medidas

tomadas que visam atribuir direitos iguais a grupos da sociedade que são oprimidos ou

sofrem com as sequelas do passado de opressão – encerram a base da estrutura desta

conjuntura que informa a performance na qual a sociedade brasileira transforma os

sentidos de suas relações raciais. Isto por que, historicamente, ainda que os brasileiros

descendentes de africanos possuíssem todos direitos legais de igualdade em relação aos

outros cidadãos, tais direitos não são cumpridos efetivamente. E devido ao não

cumprimento dos direitos iguais a todos igualmente, as ações afirmativas são

reconhecidas como necessárias. Portanto, as ações afirmativas, como os sistemas de

cotas sociais e raciais nos vestibulares e concursos públicos, buscam equiparar a

desigualdade social que, consequentemente, gera a desigualdade econômica.

Ainda que se tenha que comprovar a compatibilidade das ações afirmativas com

os princípios de igualdades constante na nossa Constituição, não vem sendo de outra

forma, que não seja a incisiva atuação no campo do Direito, que vimos a cultura afro-

brasileira inserida nas escolas, no mercado de trabalho e nas universidades. Ou mesmo o

acesso da população negra às universidades ou a postos de trabalho com melhores

condições de emprego e renda.

Especificamente no que diz respeito à Educação Superior, o problema deixa de

ser a adoção de atitudes de valorização e respeito às pessoas negras, e menos o da

diminuição do processo de exclusão social e incorporação do preconceito, para enfocar

na demanda do acesso a este nível de ensino pelas populações negras brasleiras.

Funcionando como uma política pública atuante nesta questão específica, a Lei nº

12.711/2012 garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59

universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos

oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de

jovens e adultos. É a Ação afirmativa no Ensino Superior via estabelecimento de cotas

sociais e raciais.

De acordo com as determinações da lei, as vagas reservadas às cotas (50% do

total de vagas da instituição) são subdivididas — metade para estudantes de escolas

públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per

capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um

salário mínimo e meio. Em ambos os casos, também é levado em conta percentual

mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo

com o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Atualmente, das 59 universidades existentes no país, 36 já tem algum tipo de

ação afirmativa. Os modos de execução da lei são diversos, uma vez que as instituições

têm autonomia para organizar a chamada “reservas de vagas”. Podendo atender ao

público negro – cotas raciais – ou/e o público oriundos de escolas públicas, de baixas

condições socioeconômicas e mesmo aquele com algum tipo de deficiência – cotas

sociais.

A lei prevê ainda um acompanhamento aos estudantes cotistas, que fica a cargo

de um comitê composto por representantes do Ministério da Educação, da Secretaria de

Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e da Fundação Nacional do Índio

(Funai), com a participação de representantes de outros órgãos e entidades e da

sociedade civil.

Ressalta, mais uma vez, que algumas das justificativas para as ações afirmativas

no acesso ao ensino de nível superior é o fato de que a educação é um instrumento que

possibilita a ascensão social. Através de dados, foi demonstrado o escasso acesso da

população pobre e negra no ensino superior brasileiro. Entretanto, o percentual de

negros no nível superior quase dobrou em 10 anos: em 2005, um ano após a

implementação de ações afirmativas, apenas 5,5% dos jovens pretos ou pardos de 18 a

24 anos freqüentavam uma faculdade. Em 2015, a alíquota checou a 12,8%, ou seja,

houve um sensível acréscimo dos estudantes negros na mesma faixa etária matriculados

no ensino superior. Comparado com os brancos, no entanto, o número equivale a menos

da metade dos jovens brancos com a mesma oportunidade, que eram 26,5% em 2015

e 17,8% em 2005. Aqui também se leva em conta as razões históricas, como a

escravidão e outros fatores que contribuíram para efetivar as desigualdades. Com a

transformação da percepção das relações raciais, vislumbra-se a dívida do Poder Público

em relação a esses setores da sociedade

Ademais, é o segundo o artigo 5º da Constituição Federal que serve de base para

os debates sobre a necessidade ou não de políticas públicas necessárias especificamente

às populações negras do nosso país. E segundo este artigo, “todos são iguais perante a

lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade”. Entretanto, são diversos os jogos de simulação que

historicamente têm crivado importantes setores da sociedade brasileira. Por exemplo,

não obstante análises sobre as características étnico-raciais feitas pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Bstatística (IBGE) ter comprovado que a população negra

brasileira em 2010 era composta de 50,7% de autodeclarados negros (7,6% de preto e

43,1% de pardos), apenas 1,4% dos juízes brasileiros eram pretos e 14% pardos.

Rever esta situação acaba sendo, em verdade, uma exigência constitucional. As

ações afirmativas dão suporte e apoio de mecanismos institucionais para que a exigência

do principal instrumento legislativo do país seja cumprida. Uma vez que elas consistem

em política direcionada à promoção de igualdade material e objetivam suprir

desigualdades étnicas, sociais ou econômicas advindas de um passado perpassado por

medidas vexatórias de promoção de desigualdade, segregação e falta e política de

inclusão social, destacadamente no contexto pós-Abolição. As ações afirmativas

consistem ainda em medidas com a finalidade de corrigir tratamentos preconceituosos e

a permitir que todo indivíduo tenha acesso equânime e digno ao exercício de sua

cidadania.

As medidas compensatórias na pós-graduação

Entre os anos 2002 e 2010 alguns alunos de pós-graduação que tiveram o

privilégio de prosseguirem no ensino superior graças ao Programa Internacional de

Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford (International Fellowships Program - IFP).

Durante aquele período, foram oferecidas, anualmente, 40 bolsas que tiveram uma

duração máxima de 24 meses para mestrado e de 36 meses para doutorado. Foram oito

seleções processadas no Brasil originaram oito turmas de bolsistas. Com tal política, foi

oferecida oportunidade para que mulheres e homens, com potencial de liderança em

seus campos de atuação, prosseguissem em seus estudos superiores, capacitando-se para

promover o desenvolvimento de seus países, bem como maior justiça econômica e

social.

O programa da Fundação Ford foi pioneiro. Mas como repercussão de seus

resultados, temos que alguns programas de pós-graduação já estão se posicionando

positivamente a favor da adoção das ações afirmativas. Finalizando este texto quero

abordar o aporte dado pela Fundação Ford à formação pós-graduada de antropólogos,

cientistas políticos e sociólogos. Muitos dos quais já atuam nestes programas como

docentes. Aqui destaco a minha trajetória e a de mais quatro ex-bolsistas do programa.

Lucimar - Pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e; Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Experiência em pesquisas e estudos sobre História, Historiografia e Relações raciais no Brasil Colonial, Imperial e Republicano, com ênfase nas especificidades da história do Rio de Janeiro, escravista e urbano; sobretudo nas mudanças conjunturais ocorridas na virada dos séculos XIX ao XX. Principais temas de interesse: escravismos e processos abolicionistas; experiências sociais de crioulos, africanos e afro-descendestes; conformação do mercado de trabalho livre e assalariado; processos de racialização das relações sociais; Pós-Abolição; processos diaspóricos. Professora das redes municipais de educação de Duque de Caxias e Guapimirim.

Deusa Doutora em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal de Santa Catarina ( UFSC, 2011). Mestra em História

(área de concentração Estudos Históricos na América Latina) pela Universidade do Vale

do Rio dos Sinos (Unisinos, 2016), e Graduada em Licenciatura em História pela

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, 2003). Atuou como consultora

técnica na CEMDP (Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) da SDH-PR

(Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República) no Grupo de Trabalho

Araguaia entre 2012-2013, e como pesquisadora no Grupo de Trabalho Araguaia da

Comissão Nacional da Verdade (CNV), entre agosto e dezembro de 2014. Atualmente é

professora Adjunta da UFPA, Campus do Baixo Tocantins .

Josemeire Alves Pereira: Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em

História da Unicamp, na Área de História Social e na Linha de Pesquisa História Social

da Cultura. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais

(2006) e mestrado em História, também pela Unicamp (2012). Tem experiência na área

de História (ensino e pesquisa), com ênfase em História Social, atuando principalmente

nos seguintes temas: Pós-Emancipação, relações raciais, representações sociais, favela,

memória, Belo Horizonte. Atuou também na área de Produção Cultural (elaboração de

projetos culturais comunitários).

Waldemir Rosa: Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade

Federal de Goiás (2001), mestrado em Antropologia Social pela Universidade de

Brasília (2006) e doutorado também em antropologia social pelo Museu Nacional da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014). Atualmente é professor de

Antropologia, sub-área Diáspora Africana na América Latina e Caribe, na Universidade

Federal da Integração Latino-Americana - UNILA. Temas de pesquisa: antropologia

urbana, relações raciais, relações de gênero (enfoque em masculinidades), políticas afro-

reparatórias, epistemologias do Sul, antropologia da educação e das políticas públicas.

Karine Teixeira Damasceno: Doutoranda em História na Universidade Federal

da Bahia (UFBA) na área de História com projeto de título: Mulheres negras e os seus

na região de Feira de Santana, Bahia (1861-1900) desde 2015, Bolsista da Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) - desde junho de 2015; Mestra em

História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP) na área de História

Social com trabalho intitulado: Mal ou bem procedidas: cotidiano e transgressão das

regras sociais e jurídicas em Feira de Santana (1890-1920) em 2011; ex-bolsista do

Programa Internacional da Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford (IFP) - Turma

2008 e Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Estadual da Feira da

Santana (UEFS/BA) em 2006.

A oportunidade de participar do Programa Bolsa da Fundação Ford me

possibilitou avançar tanto profissionalmente quanto pessoalmente, enquanto ativista do

movimento de mulheres negras Brasileiras. Findado o mestrado assumi a secretaria

executiva da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), a

qual exerci tal função dos anos 2010 a 2016. Foi a partir dessa experiência que

participei de audiências internacionais da ONU e OEA representando o Brasil, mais

especificamente as mulheres negras Brasileiras, e estive a frente da Organização da

Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, a violência e pelo Bem Viver, que

reuniu cerca de 50 mil mulheres negras em Brasília no ano de 2015. E esta eperiência só

foi possível por que tinha neste momento capacidade para assumir essa função.

Capacidade esta que me foi possibilitada por ter sido parte de um programa tão seleto

quanto o programabolsa, que amplia mais que conhecimentos, mas também proporciona

empoderamento político, fazendo com que seus participantes sintam-se parte de um

mundo que até então era vivenciado quase que como uma utopia. Atualmente mantenho

meu ativismo no movimento de mulheres negras, elaborando e executando projetos

sociais, com mulheres e meninas, mas também atuo como psicóloga na Defensoria

Publica do Estado do Rio Grande do Sul”