A LEITURA ZIZEKIANA DOS CLÁSSICOS DO CINEMA

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS

BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.

GT29 - Ciências Sociais & Cinema: entre narrativas, políticas e poéticas.

3º Secção: Cinema e Ciências Sociais, diálogos e experiências.

A LEITURA ZIZEKIANA DOS CLÁSSICOS DO CINEMA DIANTE DOS PROBLEMAS

CENTRAIS DA SOCIOLOGIA DA ARTE

Ricardo Alexsandro de Santana

Mestrando em Sociologia do PPGS-UFPB

E-mail: [email protected]

Recife, junho de 2012.

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A LEITURA ZIZEKIANA DOS CLÁSSICOS DO CINEMA DIANTE DOS PROBLEMAS

CENTRAIS DA SOCIOLOGIA DA ARTE.

Ricardo Alexsandro de Santana1

Resumo:

Este trabalho se debruça sobre alguns dos problemas centrais da Sociologia

da Arte: a preocupação com o tratamento no nível analítico da obra de arte

e a interrelação Obra, Autor e Público, reconhecendo que a obra de arte, por

se constituir como um produto da civilização, está sujeita à análise

sociológica na mesma medida em que tal análise deverá respeitar sua

relativa autonomia. Considerando as preocupações de Antonio Candido, no

que se refere ao devido tratamento da análise sociológica da obra de arte,

expressa em alguns de seus ensaios, nos quais o mesmo coloca em xeque

a tradição interpretativa de uma sociologia da arte pautada numa

perspectiva externalista, traçaremos uma leitura crítica da obra de Slavoj

Zizek, O Guia do Cinema Pervertido, observando como o mesmo, diante

dos desafios de uma sociologia contemporânea da arte, realiza suas

interpretações de clássicos do cinema mundial.

Palavras-chave: Sociologia da Arte, Método.

Introdução

A relação entre o pensamento sociológico e a arte foi marcada por diversas

etapas em seu desenvolvimento, no entanto, tal relação nem sempre foi de um todo

harmoniosa. O lugar da arte no pensamento social, no mais das vezes, foi visto

como um reduto de significação única, ainda resguardado da lógica de reificação

que os objetos de cultura pareciam ganhar na modernidade dentro lógica do capital,

que transforma as formas mais completas da relação subjetiva do homem e seus

construtos culturais em mercadorias, em si, objetivadas.

Outros mais céticos, quanto a essa interpretação da arte como uma esfera

1 Professor de Sociologia da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco, mestrando do

Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGS-UFPE).

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sagrada e observando a inserção da lógica fetichista e reificadora do capital nos

vários campos da vida social, teceram abordagens não tão animadoras sobre o lugar

da arte em seu tempo. Os objetos artísticos, nessa interpretação, distanciavam-se

cada vez mais de uma relação de originalidade, seja por conta de sua

reprodutibilidade, ou por sua inserção em uma indústria cultural.

Tais interpretações, mesmo que céticas em relação a uma certa aura da

esfera artística, não deixaram de considerá-la, de certa maneira, como um campo,

que, se não autônomo, prenhe de significados próprios que ainda seguia uma lógica

particular.

Com a mudança paradigmática, ocorrida na chamada virada pós-moderna, a

esfera da arte deixa de ter um sentido autônomo em relação a outras esferas da vida

social. A noção de homologias entre os campos da vida social, junto à crítica das

metanarrativas do projeto racional moderno, traz o discurso (a linguagem) e as

relações de poder, para o centro do palco das preocupações sociológicas com a

arte.

Mesmo reconhecendo diferentes posicionamentos em relação ao lugar da

arte na teoria social, a sociologia, nunca se afastou dos estudos das obras de arte

desde seus primórdios até a contemporaneidade. Diante disto, a preocupação sobre

qual o lugar da arte na teoria social dá lugar a uma inquietação sobre os processos

metodológicos então aplicados pelos sociólogos, na abordagem compreensiva das

obras desse campo.

Nesse terreno metodológico, a discussão passa a ser sobre a necessidade de

encontrar uma maneira mais apropriada de uma sociologia da arte tratar o seu

objeto. A discussão contemporânea gira em torno de uma forma de abordagem que,

além de localizar a obra, o autor e público como dimensões associadas, procure

fugir de esquemas explicativos que possam trazer uma indesejada superficialidade à

análise, pelo desconhecimento, por parte do sociólogo, das operações formais que

estão em jogo em cada linguagem artística.

Longe de querermos esgotar tal problemática, nosso objetivo com este artigo

é justamente o de fomentar as discussões sobre um método sociológico que se

queria menos ortodoxo em relação ao trabalho com a esfera da arte.

Utilizaremos como recurso para tal empreitada, as reflexões do sociólogo e

crítico literário Antonio Candido e a sua ideia de fortuna crítica sociologicamente

orientada, para uma leitura sociológica do documentário de Sophie Fannes, O guia

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Pervertido do Cinema (The Pervert's Guide to Cinema, 2006). Procuraremos

identificar como os elementos externos ao documentário são estruturados em sua

forma e, em um segundo momento, utilizaremos o método de Candido, como um

tipo ideal, para a análise do recurso metodológico utilizado por Slavoj Zizek em sua

leitura psicanalítica de clássicos diretores e filmes do cinema mundial moderno.

1. Guiando Slavoj Zizek, ou sendo guiado por ele? As sendas de um guia

pervertido.

As reflexões que se desenvolverão neste artigo estão resguardadas pelo que

deve ser a máxima primordial da Sociologia e/ou de qualquer ciência, sair da

camada superficial de análise, e assim partir para uma compreensão mais

satisfatória de seu sujeito/objeto de investigação. A ressalva se justifica, pelo nosso

esforço ainda que de forma tangencial nesse breve artigo, em suspender, nesse

momento, a personagem de nosso estudo enquanto figura midiática.

O Slavoj Zizez2 que aqui nos interessa, mais diretamente, figura em um rol de

pensadores contemporâneos que, a contrapelo das necessidades de uma

especialização acadêmica estéril, envolve-se em reflexões das mais variadas gamas

e transita com facilidade, e não sem sofrer críticas por essa versatilidade, por

variadas problemáticas de nossa vida social em suas produções.

Essa característica dá ao pensamento e à obra de Zizek uma substância

intelectual e teórica, que perpassa várias de suas reflexões sobre economia, política,

sociedade civil e cultura. Em todos esses campos percebe-se a presença de

matrizes teóricas que vão de Hegel passando por Marx, em uma espécie de

marxismo hegeliano, de Freud a Lacan, e de Alfred Hitchcock aos Os Irmãos Marx3.

Debruçaremos-nos, mais especificamente, sobre uma parte de seus

trabalhos, em que Zizek dialoga de maneira mais direta com a arte, nesse caso, com

o que ele mesmo denomina ser a sua forma suprema, o cinema. Como foco central,

entre alguns de seus artigos, entrevistas e ensaios sobre o mundo da sétima arte,

analisaremos o documentário Guia Pervertido do cinema, dirigido por Sophie

2 É importante ressaltar que para uma reflexão mais aprofundada da obra de qualquer

pensador prezaríamos por um aparato metodológico que levasse em consideração a biografia e história do sujeito analisado em todas as suas nuances.

3 Grupo de comediantes americanos de Hollywood.

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Fiennes4.

Nosso objetivo, além de buscar chaves e categorias teóricas que nos auxiliem

a problematizar os percalços centrais de uma sociologia da arte, é estabelecer uma

reflexão sobre as características metodológicas que são usadas por Zizek na

confecção da mensagem do seu Guia Pervertido, que produzem uma sofisticada

fortuna crítica do cinema moderno.

1.1 Do contexto ao texto: uma leitura possível.

O documentário, grosso modo, elege temas que classicamente são

abordados pela psicanálise, usando-os como ferramentas analíticas à compreensão

das particularidades internas de algumas linguagens cinematográficas. Diante dessa

empreitada, desejo e realidade, temas caros à psicanálise lacaniana, são abordados

nas obras de cineastas como Alfred Hitchcock e David Lynch.

Partindo do pressuposto lacaniano de que os nossos desejos nunca serão

satisfeitos por completo, por pautarem-se em uma falta ontológica própria à

realidade, e pensando qual o papel do cinema moderno perante essa problemática,

Zizek nos diz no início do documentário:

O problema não é se nossos desejos se encontram satisfeitos ou não... o problema é saber o que desejamos. Não há nada de espontâneo, de natural, no desejo humano. Nossos desejos são artificiais. Devemos nos “ensinar” a desejar. O cinema é a arte pervertida por excelência. Não te dá aquilo que deseja... Te diz como desejar. (Guia Pervertido do Cinema, 2006)

Evitando, em nosso procedimento, apenas a análise da camada superficial do

documentário, é importante ressaltar, além da leitura psicanalítica dos filmes, a

riqueza interna de ambientação e montagem do mesmo, antes de partirmos para a

reflexão sobre a sua mensagem mais explícita. Nesse momento, buscamos analisar

como o pensamento de Zizek estrutura-se na forma do documentário.

A montagem de O Guia Pervertido do Cinema não segue uma lógica linear, o

que vemos é a execução de uma bricolagem que ganha relevo entre as cenas onde

Zizek, não apenas discorre de fora sobre possíveis chaves interpretativas das obras

que analisa, mas se situa no interior das mesmas, tornando-se um espectador

4 Sophie Fiennes é diretora e produtora de cinema na Inglaterra.

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privilegiado que está presente nas cidades e em alguns dos sets das filmagens das

tramas.

Nossa memória é ativada com uma série de flashbacks, que se distribuem ao

longo dos temas que estão sendo discutidos, podendo vários filmes apresentarem

aspectos que se encaixam na discussão conceitual que Zizek desenvolve naquele

dado momento.

Várias questões da ordem da forma dos filmes são abordadas no

documentário. Quando o tema são os remakes5, por exemplo, fica claro que se trata

menos de reportar-se ao “original” em termos de conteúdo narrativo, do que de uma

revisitação em termos da forma. Nesse momento, vemos Zizek sentado em uma

privada semelhante a que aparece no filme de Francis Ford Coppola, The

conversation (1974), e é da latrina, como que experimentando a cena por dentro,

que somos brindados com a análise do intertexto da cena em que o personagem

principal, o detetive Genne Hackman, procura vestígios de sangue de um possível

assassinato no banheiro do Hotel como o primeiro assassinato em Psicose (1960)

de Alfred Hitchcock.

Adentrando na camada formal de Psicose, Zizek analisa a subsequente

limpeza do banheiro pelo dono do Hotel Bates, Norman Bates e após sua “mãe” ter

cometido o assassinato da trama, de súbito, somos levados mais uma vez ao filme

de Coppola, só que dessa vez, o que está em jogo é o desfecho das cenas de

ambos os filmes. Em The conversation, o desfecho não se dá com o trabalho bem

feito de limpeza de vestígios da morte, como em Psicose, e sim, com o sangue

emergindo da privada. São ressaltadas também semelhanças em relação ao

cenário, à atuação dos atores e à montagem dos cortes das cenas.

O narrador do documentário, em vários momentos, é também parte explícita

da cena que analisa, como quando Zizek observa o filme Veludo Azul (1986), de

David Lynch, de dentro do set filmagens ao mesmo tempo em que se desenvolve

uma das cenas principais da trama, ou como quando passeia de barco pela baía de

São Francisco, na Califórnia, EUA, onde uma das personagens do filme Os

Pássaros (1963), de Hitchcock, realiza o percurso entre o real e a fantasia, sendo

atacada pela primeira vez por um pássaro.

Ainda em outros momentos, são feitas referências implícitas às camadas

5 O temo remake é aqui usado na acepção que Zizek opera. No segundo capítulos do livro Lacrimae Rerrum.

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textuais dos filmes. No começo e durante todo o documentário, vemos Zizek,

aguando as plantas de um jardim, e mais tarde percebemos o intertexto desse

momento com aquilo que ele denomina se tratar de uma imersão no território

lynchano, em referência ao diretor David Lynch e aos seus esquemas narrativos. Ou,

explicitas, quando ele fala ao espectador de um não-lugar, um mundo virtual e

binário, hesitando em tomar a pílula azul ou a vermelha, como o faz o personagem

Neo, do filme Matrix (1999), de Andy Tarkovsky.

A pergunta que nos surge é a seguinte: o que representa a figura de Zizek

dentro do documentário?

O que, ao mesmo tempo inquieta o espectador do documentário, e que, numa

análise precipitada, poderia ser visto como apenas uma leitura psicanalítica dos

filmes e de seus diretores por parte de Zizek, transforma-se em algo mais complexo,

onde aquele que narra e analisa a mensagem dos filmes, confunde-se com o crítico,

o mero espectador, o figurante, o assistente de produção da filmagem,

descambando na confecção de uma espécie de narrador onisciente que por vezes é

também personagem central da trama.

Diante dessas nuances, é que compreendemos que as facetas de teórico

crítico e da psicanálise, e do filósofo, Slavoj Zizek, compõem e estruturam-se na

forma do documentário de Sophie Fiennes. E é desse modo que:

O fator social (externo) desempenha certo papel na constituição da estrutura da obra, tornando-se interno, fundido-se texto e contexto numa interpretação dialética íntegra e é somente partindo desta combinação que o processo de interpretação se torna completo. (CANDIDO, 2010, p. 25).

É por essa perspectiva que devemos ver a personagem que a diretora Sophie

Fiennes constrói no documentário, e só depois dessa análise, que procura fugir a

uma leitura puramente externalista, é que poderemos abordar as outras camadas da

obra e o que mais diretamente nos interessa para a discussão de nosso artigo.

Não podemos nesse momento exagerar na tinta, e tratar o narrador, e por

vezes, personagem, Zizek, apenas em uma dimensão puramente ficcional. Mesmo

reconhecendo que haja espaço para tal manobra estilística, por parte da diretora do

documentário, não é nossa intenção e nem acreditamos que seja possível abstrair a

figura de Zizek enquanto filósofo e crítico de arte de forte orientação psicanalítica.

Sendo assim, passaremos a focar nossa discussão sobre o documentário

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diante do que este nos fornece como fomento a discussão das problemáticas

metodológicas que, O guia Pervertido do Cinema, suscita.

Poderíamos agora perguntar: dentro do campo de discussão metodológica da

Sociologia da Arte, o que O Guia do Cinema Pervertido nos oferece como matéria de

problematização? Em termos metodológicos, essa leitura psicanalítica, levada a

cabo pelo documentário, enriquece nossa experiência diegética dos filmes

abordados ou a compromete?

2. A relação entre arte e sociedade: o problema do método na sociologia da

arte.

O visual é essencialmente pornográfico, isto é, sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento; nessa ótica, pensar seus atributos transforma-se em algo complementar se não houver disposição de trair o objeto (JAMESON, 1995, p.1).

O que podemos perceber como argumento de Fredric Jameson, presente na

epígrafe supracitada, é sua percepção sobre a “riqueza ilimitada do objeto visual”.

Não que com isso se devam excluir as interpretações, mas acima de tudo é

necessário que atentemos para o fato de que o mundo das visualidades, dos filmes

e das imagens “são uma experiência física e como tal são lembrados, armazenados

em sinapses corpóreas que escapam a mente racional” e esquemática, situando-se

em nossa memória.

Dando prosseguimento ao seu argumento, que preza por uma teorização de

cunho marxista, Jameson ressalta de maneira explícita, a importância da localização

histórica como componente da interpretação sociológica:

[…] a única maneira de pensar o visual, de inteira-se de uma situação em que a visualidade é tendência cada vez mais abrangente, generalizada e difundida é compreender sua emergência histórica. (JAMENSON, 1995, p.1).

Desse modo, vemos o pensamento de um autor que devolve aos processos

estéticos um lugar privilegiado no escopo de sua teoria social.

No entanto, ao pensarmos em uma história do olhar da Sociologia frente às

produções artísticas, adentramos em um território marcado por controvérsias em

relação à legitimidade dos sociólogos - a princípio não inscritos (iniciados) no

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“mundo das artes”- ao abordarem as relações entre arte e sociedade.

Diante desses impasses e entraves à propriedade da leitura sociológica da

arte, seguiremos um esforço de problematização dessas questões recorrendo ao

pensamento do sociólogo e crítico literário, Antonio Candido, mais especificamente

em seu ensaio intitulado, Crítica e Sociologia, presente no livro Literatura e

Sociedade (1985), para refletirmos sobre possíveis saídas metodológicas para uma

Sociologia da Arte contemporânea.

No início da obra Literatura e Sociedade nos diz Candido:

Nada melhor do que chamar atenção sobre uma realidade do que exagerá-la. Mas também, nada mais perigoso, porque um dia vem a reação indispensável e a relega para a categoria do erro, até que se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de vista objetivo, sem desfigurá-la de uma lado nem de outro (CANDIDO, 2010 p.13).

A ideia de exagero a que Candido se refere, e que será desenvolvida no

decorrer de seu ensaio, trata da tendência em teoria, na operação da fortuna de

crítica de uma obra de arte em pautar-se pelos extremos de uma análise de caráter e

perspectiva puramente internalista ou externalista.

2.1 Ortodoxias e sofisticações: o método de Candido como um tipo ideal.

No caso de uma tradição sociológica da arte mais ortodoxa, argumenta-se

que quando esta se devota ao estudo da relação entre arte e sociedade, em

oposição aos estetas e aos personalistas românticos (que viam a forma, de maneira

virtual e independente em relação ao contexto), no mais das vezes, relega-se a obra

ao estatuto de puro “reflexo” das relações com o meio social.

É o que tem ocorrido com o estudo da relação entre arte e o seu condicionamento social, que a certa altura do século passado chegou a ser vista como chave para compreendê-la, depois foi rebaixada como falha de visão, - e talvez só agora comece a ser proposta nos devidos termos. (CANDIDO, 2010, p.13)

Podemos, então, perguntar: quais perspectivas metodológicas guiam essa

compreensão sociológica?

Várias foram as formas metodológicas de abordagem da investigação

sociológica das obras de arte, no entanto, podemos, grosso modo, dividi-las em

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duas principais correntes: (1) uma de caráter “externalista” preocupada em

identificar na obra de arte o reflexo do ambiente social de sua gênese, ou da posição

(classe) do autor, reservando à forma, e à lógica interna da obras um papel

secundário; (2) outra preocupada em coadunar perspectivas internalista e

externalistas em que se privilegiem tanto problemas externos quanto internos da

obra de arte (MORAIS; SOARES, 2006).

A abordagem de caráter puramente externalista pode ser identificada nas

primeiras incursões de uma sociologia baseada, primordialmente, em explicações

sobre o ambiente social gerador da criação ou sobre a posição social do artista. Já a

análise pautada pela síntese busca uma abordagem sociológica que procure

trabalhar também a dimensão estética da obra, pensando-a na completude entre

forma e contexto. Sendo assim, a investigação sociológica deveria se orientar

duplamente, reconhecendo os momentos de relativa autonomia do artista e da obra,

e também, suas relações com o meio social nos seus processos de gênese.

É o que vem sendo percebido ou intuído por vários estudiosos contemporâneos, que, ao se interessarem pelos fatores [externos], procuram vê-los como agentes da estrutura não [apenas] como enquadramento ou matéria registrada pelo trabalho criador. […] A marcha da teoria levou a senso mais agudo entre traço e contexto […] (CANDIDO, 2010, p. 15-17) [grifo nosso].

O que se observa contemporaneamente é que, independente dos paradigmas

teóricos aos quais, hoje, os sociólogos da arte estão ligados, a questão do método

ainda é um dos problemas centrais de discussão e o dissenso só se agrava. Uma

escolha metodológica não se dá de forma pura e neutra, ela reflete implicitamente as

intencionalidades e os paradigmas teóricos aos quais o sociólogo está envolvido.

Mas, hoje em Sociologia, é quase impossível que quando perguntado sobre o

que compreende como ferramenta metodológica necessária à compreensão da obra,

do autor ou da recepção, que pesquisador da arte declare que é necessário que se

evite a lógica do reflexo e que se atente para a dimensão da formal do objeto.

Diante dessas colocações é que se pensará uma alternativa metodológica,

que além de operar uma síntese entre texto e contexto, verifique, sem essencializar

a obra, e nem tão pouco tratá-la como uma espelho direto da realidade, como os

elementos externos da vida social são estruturados na forma do objeto artístico, para

que, em seguida, possamos dissertar sobre sua mensagem em termos sociológicos.

Aqui é preciso deixar claro, que, de certo, o objeto de investigação de

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Candido é a Literatura, e que o seu maior esforço é o de trazer à tona os problemas

de uma gama de tradições interpretativas clássicas dentro da Sociologia da

Literatura, identificando suas nuances positivas e negativas. Reconhecemos, acima

de tudo, que é necessário para uma abordagem sociológica da arte, que se queria

válida, a observância das particularidades de cada “texto” artístico.

Não é nossa intenção comparar ou igualar o processo de confecção literário

ao cinematográfico, em primeiro lugar, por reconhecermos o cinema como a arte que

inaugura um novo tipo percepção, uma nova relação entre obra e público, uma

percepção coletiva por excelência. E ainda, por acreditarmos que é necessário o

contato do sociólogo, seja da literatura ou do cinema, com as infinitas nuances que

cada modalidade artística oferece, em termos de elementos internos e externos às

mesmas. Seria um erro ingênuo a crença de que poderíamos tratar duas linguagens

artísticas dispares com os mesmo instrumentais analíticos.

O exagero a que nos propomos nessa seção do artigo, parafraseando

Candido, é o da utilização da problematização efetuada por ele para pensarmos os

problemas centrais de uma sociologia da arte em termos de um tipo ideal

relacionado ao método de compreensão sociológica da relação entre os elementos

externos, sociais ou psicológicos, atuando como chaves para uma hermenêutica das

obras.

Desse modo, não será nosso interesse a análise, mais diretamente, nesse

momento, do documentário O guia Pervertido do Cinema, em si, como operamos na

primeira secção desse artigo. Neste momento, deslocaremos o nosso olhar para as

problemáticas diante da postura metodológica que Zizek adota em suas

interpretações dos diretores e filmes no documentário, reconhecendo que essa

nossa operação nos oferecerá como matéria uma reflexão crítica para o campo da

Sociologia da Arte em termos de método.

3. Os entraves metodológicos do Guia do Cinema Pervertido de Zizek.

Dentre os vários trabalhos de Slavoj Zizek, como crítico cultural que tem por

objeto de reflexões o cinema moderno, chamamos a atenção para a orelha, na

edição brasileira, de um de seus livros mais importantes, para, em seguida,

voltarmos ao Guia Pervertido do Cinema:

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Antes mesmo de ser um pensador dedicado a examinar o funcionamento dos mecanismos de representação do cinema como quem monta e desmonta um quebra-cabeça, Zizek passa a impressão de ser um espectador contumaz. […] Seu modo investigativo e lúdico de olhar para o cinema escapa da armadilha [da] “pseudossofisticação”, por respeitar a lógica interna dos filmes, fundada na articulação dos elementos estéticos que produzem sentido em vez de submeter esses filmes a procedimentos de análise que, voltados ao uso mecânico do cinema como suporte para a demonstração de teses, às vezes parecem revogar princípios que constituem a narrativa cinematográfica. (RIZZO, 2009) [grifo nosso].

A citação acima faz parte da orelha do livro Lacrimae Rerrum (2009), uma

coletânea de 5 (cinco) ensaios críticos sobre cinema, onde Zizek explora de

maneira mais detalhada questões como: a ideologia presente nos hollywoodianos, a

teologia materialista presente nos filmes de Krzysztof Kiélowski, a arte do sublime

ridículo nos filmes de David Lynch, a coisa vinda do espaço interior nos filmes de

Andrey Tarkovski e a possibilidade de uma maneira certa de fazer um remake

dialogando os filmes de Hitchcock.

Não podemos discordar de Sérgio Rizzo6, quanto à observância da erudição e

da qualificação de Zizek enquanto um espectador contumaz. Também é notório,

tanto no livro, quanto no documentário, a sua preocupação como os elementos

estéticos do filmes que analisa. No entanto, poderíamos nos concentrar nas

considerações expressas por Rizzo, mais precisamente nas ultimas linhas da

citação, e perguntarmos, no caso específico do documentário O Guia Pervertido do

Cinema: há ou não há, um “uso mecânico” das obras analisadas como suporte para

a demonstração de teses zizekianas?

Ao todo, no documentário, são discutidos 42 (quarenta e dois) filmes e 28

(vinte e oito) diretores, em um espaço de tempo de cerca de 2 horas e 20 minutos. A

sensação que nos toma é a de que todo o cinema do século XX é passado a limpo

na chave interpretativa de categorias da psicanálise. É diante dessas características

que podemos refletir sobre um trecho de uma entrevista realizada com Antonio

Candido, onde o mesmo foi perguntado sobre a essência do seu método e

respondeu:

Fiz um esforço grande para respeitar a realidade estética da obra e sua ligação com a realidade […] Minha conclusão foi muito óbvia: o crítico tem que proceder conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras

6 Sérgio Rizzo é jornalista, mestre em Artes/Cinema e doutor em Meios e Processos

Audiovisuais pela Universidade de São Paulo.

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que pedem um método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do vocabulário, a classe social do autor; uso. (TAVARES, 2011, p. 4).

Será que todos os filmes analisados por Zizek, no Guia Pervertido do Cinema,

cabem na chave interpretativa da psicanálise?

Em nosso entendimento, um dos entraves do método que Zizek utiliza na

análise dos filmes não é a utilização da ferramenta conceitual da psicanálise, que

quando usada na devida dosagem é um elemento importantíssimo e válido para a

fortuna crítica de uma obra, mas a sua superdeterminação e sua utilização

excessiva. Seria realmente necessária a utilização do método psicanalítico à

exaustão? Esse procedimento, ao invés de enriquecer a leitura, não compromete a

dimensão diegética dos filmes?

Compreendemos, que, além dessa característica, o perigo do método reside

em não levar em conta a dimensão do valor estético e a relativa autonomia de seus

jogos formais. A equação explicativa psicanálise-autor-obra pretende revelar algo de

escondido e nebuloso na criação autoral dos diretores. Na maior parte do

documentário, vemos um Zizek que não hesita em duvidar de suas descobertas.

Em seu ensaio sobre Hitchcock, no livro Lacrimae Rerrum, Zizek lança mão

de um conceito que intitula de Sujeito Suposto Saber, para justificar sua busca por

elementos de uma singularidade da linguagem hitchcockiana. Basicamente, esse

conceito se refere a uma certa postura que o público tem diante de uma obra de

arte, que pelo seu caráter de culto a priori, traz a sensação ao espectador de que

nada na operação do autor é contingência, e de que, se algo escapou ou não

encaixa ao nosso entendimento, a culpa é toda nossa, e não do autor (ZIZEK, 2009).

Concordamos com essa saída conceitual por verificarmos como legítima toda

tentativa e esforço do crítico na compreensão da singularidade criadora de qualquer

artista. É bem verdade que o valor de culto que delegamos a algumas criações

artísticas, em alguma medida, nos afasta de um contato mais profundo com a obra,

mas, diante da operação analítica que Zizek desenvolve em O guia do Cinema

Pervertido, poderíamos nos perguntar: não estaria Zizek, por vezes, querendo ser a

voz reveladora dessas possíveis operações, de um Sujeito Suposto Saber? Estaria

ele, enquanto crítico, reconhecendo as contingências das criações que analisa? Ou,

como aquele espectador que devota um valor de culto a obra, não estaria ele

cultuando a si mesmo, enquanto um complexo de Sujeito Suposto Saber?

Uma outra dimensão problemática refere-se à construção de uma possível

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linha estético-temática nos filmes dos diretores que Zizek analisa mais de perto. Há

um exercício louvável em relação a isso, quando há uma leitura psicanalítica da

forma dos 4 (quatro) filmes de Hitchcock da década de 1950, Um corpo que cai,

Psicose, Os pássaros e Janela indiscreta, onde, categorias da psicologia, como o Id,

o Ego e Superego, são ativadas em uma chave interpretativa que procura

demonstrar como essas ideias se estruturam em algumas das decisivas cenas e

argumentos dos filmes.

Com uma análise mais pormenorizada desses 4 (filmes) de Hitchcock,

poderiam ser produzidas variadas reflexões, mas tratar com essa mesma chave

analítica, outros filmes, como O Veludo Azul, ou A Estrada Perdida, de David Lynch,

gera um abismo que mereceria uma outra ordem de considerações conceituais

dirigidas à forma e ao conteúdo das particularidades de cada filme e diretor. Seria

impossível abordar, de maneira que fugisse de uma leitura superficial, a riqueza de

tantas obras em espaço de apenas 2 horas e 20 minutos.

Considerações finais.

Optamos por correr o risco. E o que procuramos, nesse curto espaço, foi

desenvolver uma reflexão sintética sobre temas complexos que são caros ao âmbito

teórico e metodológico da Sociologia da Arte. Nossa intenção com a confecção

desse artigo foi a de enriquecer o terreno de problematização de questões centrais

dessa área do saber sociológico, mais especificamente, em relação aos métodos

das abordagens.

Lançamos mão, como estratégia para ampliar a discussão, de um diálogo

com a proposição de Antonio Candido de uma leitura sociológica que leva em

consideração, em primeiro lugar, como os fatores externos à obra se estruturam em

sua camada textual. A sua compreensão da dialética necessária entre contexto e

texto na análise das obras de arte foi utilizada por nós como um tipo ideal, que

balizou nossa análise em diversas etapas.

Em um primeiro momento, operamos a verificação de como o filósofo, crítico

da cultura e teórico da psicanálise, Salvoj Zizek, foi estruturado no documentário de

Sophie Fiennes, O guia Pervertido do Cinema, como um narrador onisciente e

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personagem da trama. Em seguida, buscamos perceber como o método

psicanalítico de Zizek operou diante da tensão de utilizar ou não de seu objeto de

análise, nesse caso, os clássicos do cinema mundial, como um mecanismo de

manipulação mecânica de comprovação de suas teses compreensivas e críticas

sobre as obras.

Procuramos, diante de nossas colocações, pensar os três pilares que devem

ser levados em consideração em uma leitura sociológica da arte, a dimensão do

Autor, da Obra e do Público, vendo-as como uma unidade em que as partes

possuem, em determinada dimensão, uma autonomia relativa.

Percebemos entraves e possibilidades na análise e nas leituras de Zizek,

porém, preocupamo-nos mais com o que essa leitura forneceria de problemática ao

nosso campo de estudo específico, a Sociologia, do que com fazer um julgamento

crítico da produção. No entanto, não nos isentamos da crítica, quando esta foi

pertinente, e nem em emitir nosso juízo de valor sobre o trabalho.

Tivemos sempre em perspectiva, que todas as formas de orientação de

análise e leituras do objeto artístico são válidas, quando tomadas as devidas

precauções para que não haja uma obliteração do objeto artístico, ou uma super-

interpretação das obras.

Page 16: A LEITURA ZIZEKIANA DOS CLÁSSICOS DO CINEMA

Referências Bibliográficas.

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Entrevista com Slavoj Zizek concedida ao Programa Mileniun da Globo News.

Disponível em: http://g1.globo.com/platb/globo-news-milenio/2011/01/31/slavoj-zizek-

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http://filosofiacomcafe.blogspot.com.br/2009/02/roda-viva-slavoj-zizek.html. Acesso

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JAMESON, F. (1995). Marcas do Visível. Rio de Janeiro: Graal.

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