A lembrança mais antiga que tenho da minha vida...

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Maio de 2011Primeira Edição

Coordenação editorial: Gláucia HelenaEditor: Georges Martins

Produção gráfica: Fernando DutraRevisão: do Autor

_________________________________________________________________Siuves, Paulo – O Oráculo de Greg Hobsbawn – Belo Horizonte/MG

Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2011 144p.ISBN 978-85-7810-967-7

1. Ficção Brasileiro 1. Titulo._______________________________________________________________

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, porqualquer meio e para qualquer fim, sem a autorização

prévia, por escrito, do autor.Obra protegida pela Lei de Direitos Autorais

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Paulo Siuves

O ORÁCULO DE

Greg Hobsbawn

Maio de 2011

Rio de Janeiro - Brasil

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O ORÁCULO DE GREG HOBSBAWN

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O ORÁCULO DE GREG HOBSBAWN

Por Paulo Siuves Lembrança mais antiga que tenho da minha vida é de uma mesa de madeira de seis lugares, tampo em mogno trabalhado por exímio artesão, uma

obra de arte, um presente de casamento que se tornou meu lugar preferido para brincar na minha tenra idade. Meu pai numa extremidade e minha mãe noutra numa discussão nada amistosa, talvez marcando o fim do casamento dos meus pais. Minha mãe disse que, à época, eu contava três meses de idade. Talvez a briga aconteceu, mas lembro-me muito bem daquele fim de tarde, o céu avermelhado, a brisa que entrava pela porta da varanda denunciava um início de ano, talvez um verão...

A

Meu pai é Primeiro Sargento PM, estive com minha mãe poucas vezes na companhia da cavalaria da PM à sua procura, aí já não sei se ele era seu marido ou se já haviam se separado. Fato é que estive lá e adorei o ambiente, a disciplina, os cães e os cavalos bem tratados, a cortesia com que nos recebiam, talvez eu já tivesse uns dois anos de idade, porque eu me lembro de ter subido num tanque de guerra do Exército Brasileiro, hoje eu não sei o que tem a ver o tanque do Exército numa companhia de cavalaria da PM, mas estava lá na época. Então minha admiração a meu pai elevou-se à categoria de um semideus. A farda, o capacete, que embora parecia um pinico, com a inscrição PM na frente, etc. Tudo era muito bom de ver.

Morávamos num apartamento duplex no centro do Rio de Janeiro.Uma vista privilegiada da enseada do Guanabara, na varanda tinha uma mesa de chá e ao lado uma rede, minhas irmãs e meu irmão sempre brigavam por ela, até a empregada vivia às espreitas por uns minutos ao sabor do ócio nela. Mas meu lugar predileto era embaixo da mesa de jantar. Nela tinha uma divisão no meio onde se encaixava uma parte para alongá-la quando vinham mais convidados para os jantares famosos na casa dos Hobsbawn.

As cadeiras de madeira de lei, pesadas, tinham estofamento no assento e no encosto, um bordado vinho e

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caramelo. Sobre a mesa uma toalha branca de renda pendia até certa altura. Minhas digitais ficavam freqüentemente impressas nessas beiradas. Levei uma sova histórica quando puxei o forro e junto com ele veio o vaso MING que minha mãe amava e ostentava com orgulho. Ninguém tomava um café na minha casa sem elogiar esse vaso. No susto, tentei correr, infelizmente, para a proteção dos braços de minha mãe, vi seus olhos incrédulos observando os últimos cacos do jarro tilintarem pelo chão, meu coração disparado, minhas mãos trêmulas agarravam a barra da saia dela, aí senti um safanão, como um cãozinho de estimação, que não entendi uma palavra sequer do dono, olhei para ela e para o chão, senti os tapas e ouvi os berros, sem entender nada, chorei aos soluços balbuciando pedidos de desculpas ou sei lá o quê. Fui salvo pelo meu primeiro herói: – meu pai – pegou-me no colo e me balançou, chorei um tempão, adormeci no seu ombro.

Meses depois chegava outro vaso de um antiquário de Londres, custara ao meu pai uma pequena fortuna, mas trouxe no seu interior um punhado de paz e meu perdão junto da minha mãe.

A situação entre meus pais deteriorava-se dia após dia, eram raros os momentos em que víamos os dois conversando, as brigas eram constantes e por causa disso, minha mãe decidiu pela separação. Mudamos para Jaguarê, uma cidade o interior de Minas Gerais. Minha mãe alugou uma casa simples porque decidira não dar ao meu pai o direito de nos ver crescer. Ela não tinha um emprego, ma acreditando que poderia levantar uma renda com os conhecimentos que tinha em geografia e geologia, poderia dar suporte aos agropecuários da região. Ledo engano. Eles mal tinham recursos para pagar ao banco pelos empréstimos, como iriam gozar das vantagens de ter uma consultora para assessorá-los nos negócios que herdaram? Sem contar na obstinação de ter herdado dos pais e avós todo o conhecimento para suas plantações ou criação bovina, caprina e ovina.

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O ORÁCULO DE GREG HOBSBAWNLogo os recursos bancários da minha mãe entraram

em colapso. O jeito era aliviar para o meu pai.

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meu primeiro encontro com o meu pai em Jaguarê foi muito agradável. Vê-lo com bermuda, camiseta e boné, foi algo transcendental. Meus

irmãos e eu que só o víamos de farda ou de terno, rimos ás lágrimas por causa de suas pernas brancas apesar de fortes. Nós o vimos brincar pela primeira vez, corremos nas ruas de terra, brincamos no riacho Jaguaré que emprestou seu nome à cidade, tomamos sorvetes na praça, brincamos no coreto e aproveitamos para comprar um carro pra facilitar nossa vida naquele lugar às vezes, inóspito. No dia em que ele precisou voltar pro Rio de Janeiro, chorei. Ele então me tomou no colo e conversamos de – homem pra homem – seus conselhos naquele dia ficaram gravados na minha memória e me embasaram por toda a vida:

O

─ Moço – disse ele – seja lá o que for fazer faça o melhor, nos estudos ou no trabalho. Nas amizades ou nas inimizades, na guerra ou em paz. Seja o melhor. Se você quiser ser médico, policial, pedreiro ou coisa qualquer seja o melhor.

─ Pai, se um dia eu fizer uma coisa feia, como do dia do vaso Ming da minha mãe, você vai me defender?

─ Meu filho. Desde que você nunca minta pra mim, eu vou sempre estar do seu lado. Se você matar alguém e me ligar dizendo, antes de qualquer um vir me dizer, que você matou por tal motivo. Eu vou ficar do seu lado. – Sua expressão mudou de passiva para severa – olha, se você for um policial, seja o melhor e se for um marginal, seja o melhor.

─ Você quer dizer se eu decidir ser um ladrão? – Interrompi-o com estupefato.

─ Claro que sim – respondeu sem repreender-me – o mais importante é que você cerque-se de pessoas em quem vai poder confiar, torne-se inatingível e seja sempre o melhor.

Meu pai é o melhor policial da sua companhia e talvez de todo o estado. Já vi o governador em nossa casa algumas vezes e todos os superiores gostam de prestar-lhe

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continência, sabidamente de brincadeira, mas o respeitam profundamente, apesar de ele ser apenas sargento – minha mãe costuma dizer isso com freqüência – Ninguém tinha a coragem e destreza dele.

Fomos com ele até a fazenda do Sr. Ramiro, de lá ele tomou um avião para o Rio e meus olhos não permitiram ver a porta se fechar atrás dele. Na verdade, eu chorava tanto que não o vi na escotilha do avião, apenas balancei a mão chorando.

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ui um adolescente feliz. Com conduta exemplar tanto na escola como na sociedade em geral. Raras vezes me meti em confusão, mas quando me meti,

foi uma confusão dos diabos.F

Reuni três amigos e resgatamos um amigo que fora detido numa cidade a duzentos quilômetros da nossa por causa da morte de um cavalo.

Pegamos o carro de um professor e saímos o mais rápido possível para voltarmos em cinco horas. Tempo entre o término das aulas do turno da manhã e o turno da tarde. Íamos passar a tarde na “biblioteca fazendo um trabalho de ciências” registramo-nos no livro de presença da biblioteca e saímos sem sermos notados. Roubamos o carro do seu Jairo, professor de religião, e fomos buscar nosso amigo. Instalamos uma bomba caseira nos fundos da igreja e fomos para a delegacia dar queixa do roubo de uma bicicleta, quando a bomba estourou, o delegado pediu-nos para aguardá-lo ali que voltaria em breve. Foi só usar um pé de cabra para arrombar o compartimento da cela onde ele estava, como era o único preso, foi moleza. O nosso azar foi de sermos imprudentes ao entrarmos na BR para voltarmos para as estradas secundárias, nos cem metros que percorremos fechamos uma moto e o motoqueiro, indignado, anotou a placa do carro do seu Jairo para denunciar a direção perigosa. Daí a polícia teve uma linha para investigar a fuga da delegacia e o ato de vandalismo na igreja da praça. Dizem que foi um prejuízo de algumas centenas de dólares, aja visto que o patrimônio católico foi tombado pelo patrimônio histórico do país e foi preciso trazer restauradores da faculdade federal de Minas Gerais.

Enfim! Chegaram ao carro do seu Jairo, para ligar a coincidência de o Lucas ser da mesma cidade, o fato ter ocorrido no mesmo horário e de ele passar a ser visto livre pela cidade, foi só uma questão de tempo, em uma semana chegaram a nós.

Minha sorte (ou azar) foi que liguei para o meu pai para contar as travessuras da semana e quando o fato

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chegou às telas da TV, tive o apoio dele para me conduzir durante as autoridades, queriam a minha cabeça – como mentor do crime – numa bandeja de prata.

Meu pai encontrou dificuldades junto à polícia Federal – onde o crime ganhou âmbito – não tinha conseguido trânsito o suficiente nesse meio. Quando a notícia ganhou importância no telejornal nacional e a opinião publica foi instigada, fui para o reformatório. Foi a pior experiência da minha vida. Cinco dias que valeram uma vida. Lá dentro descobri o cigarro, o valor do dinheiro e, por incrível que pareça, o tráfico de influência. Por causa do meu pai, fiquei às noites em um quarto confortável, com TV, telefone e se quisesse, meninas, não que meu pai fizesse essas coisas chegarem até a mim, mas, quem tinha costas quentes ficava famoso e as coisas aconteciam. Porém, a ausência da minha mãe e a vergonha de estar ali me fazia chorar todas as noites.

Dois dias antes de sair conheci a personificação do demônio. RATAN passou a noite derradeira escondido no meu quarto.

Completei dezessete anos e muitas coisas aconteceram para que eu pudesse crescer e me tornar homem. Com cadastro na polícia eu não podia fazer muita coisa sem ser lembrado por alguém que todos estavam me vigiando. Eu estava sendo observado o tempo todo. Por um lado era bom que me mantinha concentrado em coisas que realmente importavam, mas por outro lado era um porre ter que ficar de fora de algumas zoações dos meus amigos, eu queria namorar e beber, enfim cair na farra, no entanto, até meus amigos como o Léo bomba, o Gil, o Digão e o Lucas me lembravam que eu deveria ficar de fora de umas e outras. Mas na maioria das vezes eles deixavam de fazer algo pra me preservar. Deixavam de beber pra me acompanhar no refrigerante ou suco, deixavam de azarar algumas garotas pra que eu não ficasse sozinho.

Os anos passaram e, enfim cheguei na maioridade ileso, com corpo e mente sãos. Amigos fiéis. Minha mãe demonstrou todo orgulho que sentia de mim quando

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completei dezoito anos sem me envolver novamente em problemas mais graves como os filhos de alguns ricos que crescem e se tornam alienígenas, que dominam a terra e desprezam os reles seres humanos analfabetos que ganham salário mínimo. Meu pai acompanhou minha formação sem muita eficiência, mas com influencia positiva e certeira. Fiz-me a imagem e escultura de meu pai, arranquei-lhe os erros e os aprimorei em mim. Ou seja, não sou o melhor exemplo de “vida em família”, mas também não sou o pior filho de Deus, tenho os amigos fiéis a mim, tenho o olhar altivo de meu avô paterno e o corpo esculpido de meu pai. Tornei-me um homem aos dezoito anos e aos dezenove já estava trabalhando com minha mãe na sua ONG. Eu sou o caçula entre quatro irmãos, dois homens e duas mulheres.

Meu irmão George, o Jorginho, é o orgulho dos meus tios e tias. Tem o nome do meu avô. Dele esperavam os motivos de orgulho, ostentando quatro nomes como os engenheiros, médicos e outros profissionais bem sucedidos – GEORGE MARTINEZ DE ALMEIDA HOBSBAWN – ele poderia ser o que quisesse, mas tinha de ser um homem bem sucedido, esperavam que fizesse um bom casamento, fizesse fortuna e elevasse o sobrenome da família à esfera da alta sociedade brasileira, não como emergente, mas como um puro-sangue brasileiro. Quando foi estudar administração em Harvard, dominando a língua e os costumes americanos, todas as atenções recaíram sobre giovanne, minha irmã mais velha.

Ela fazia o último período da faculdade de direito na UFRJ. Estava morando com meu pai e namora um senador safado. Tivemos um embate por causa dele, minha irmã Geanne me chamou de delinqüente juvenil e eu disse que iria conversar mais com o senador para me aprimorar na arte das falcatruas nacionais. Giovanna me chamou para conversar e eu, no auge da arrogância adolescente, não aceitei aos berros, quase saí no corpo-a-corpo com ela. Foi o senador que interveio e apartou-nos do embate.

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Geanne é uma menina metida a sabe tudo, quase todos os dias tinha briga entre nós dois, “dois adolescentes não dividem o mesmo espaço” era o que ela costumava gritar em prantos contra mim. Sem Giovanna para acalmar os ânimos mamãe quase pirava.

Minha mãe, desde a separação, vivia num celibato, nada de namorados, meu pai também. Quando ela sofreu um trágico acidente voltando de Belo Horizonte, na BR e ficou paralítica. Um sentimento de descrença em Deus cresceu em mim por quê uma mulher que vivia exclusivamente para os filhos, tinha que passar por isso?

Suas obras sociais ficaram famosas em todo o estado mineiro ganhando proporcionalmente fama em âmbito nacional. O trabalho dela com as mães solteiras ganhou prêmios em vários países. Chamado de “MÃES DA ENXADA” recuperava famílias, colocando crianças na escola, socorrendo em hospitais crianças e adolescentes em risco iminente de morte e promovendo cursos de re-qualificação profissional para quem quisesse desistir do “sonho na grande cidade” possibilitando o regresso à cidade natal desses cidadãos desassistidos pelo governo.

Há um cadastro com cinco mil famílias nessa ONG, com mais de setenta por cento de sucesso e aceitação na sociedade de baixa renda.

Usando do tráfico de influência regido por meu pai, fiz minha incursão na prática da assistência social. Promovi palestras de combate às drogas e à violência. Criei cursos de qualificação profissional e encaminhamento ao primeiro emprego de jovens de toda a região de Jaguarê e ganhei status de cidadão HONORIS CAUSA da cidade aos vinte anos. No entanto, queria muito, muito mais que isso. Decidi voltar para o Rio de Janeiro para cursar a faculdade de sociologia.

Logo após terminar o curso superior de administração, comprei uma casa nos arredores da maior favela do Brasil nas periferias do Rio de Janeiro na expectativa de criar um partido político com ajuda do meu cunhado.

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Acho que as influências não são um perigo na adolescência, mas por toda a vida. Aos vinte e três anos estava cercado por charlatões de todos os níveis sociais e culturais. Pastores evangélicos, párocos católicos, professores de yoga, pais de santo, etc. além dos profissionais liberais da mais variada gama de exercício. Pessoas de todas as índoles me cercaram e, por vezes, traficantes me ligavam para permitir minha entrada nas favelas ou a saída de algum morador. Como foi o caso de dona Sônia.

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uma manhã de abril peguei o celular de uma mãe desesperada e liguei para um chefe do crime organizado:N

─ Alô! – Disse uma voz cavernosa do outro lado.─ Bom dia chefia! – Respondi com naturalidade.─ O que pega aí mermão?─ Eu sou Greg preciso de um lero contigo.─ Pode ser aqui mermo. Daqui a meia hora.Desligou. Chamei o táxi de um conhecido peguei

dona Sônia, a mãe desesperada e fui até a entrada da favela. Liguei novamente.

─ RATAN. Pode falar!Aquele nome me provocou náuseas, lembrei-me do

demônio na instituição para menores.─ Irmão cheguei. Pode subir?─ Quem tá contigo?─ Dona Sônia, mãe do Foca.─ Beleza.Desligou novamente sem pedir detalhes. Na subida

da favela encontrei alguns Falcões – crianças empunhando armas. Elas me conduziram até o RATAN.

─ Sou Greg. Nos conhecemos em Minas há alguns anos, lembra?

─ Minas é grande, cumpade. – disse RATAN. Pondo-se em pé na calçada. Ele vestia uma calça de

nylon preta e camisa de malha vermelha. Julguei que o volume na sua cintura fosse uma arma de fogo.

─ No reformatório de Jaguarê, Você passou uma noite escondido no meu quarto.

─ Saquei. Aí veio, salvou grandão. Em que eu posso te ser útil, grã-fino?

─ Dona Sônia precisa retirar a mudança dela do barraco ali embaixo. O filho dela tá contigo e, não entendi direito, mas depende de tu pra ela sartá fora.

─ Aí, mano, to te devendo aquela paradinha lá de Minas. Vou aliviar pra ela por tua causa, falou? Mas o Foca tá me devendo.

Disse riscando o chão com o tênis. Era um tênis importado da Nike certamente produto de roubo.

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─ Dá pra negociar? - Perguntei descrente da possibilidade.

─ Cem “dólar” e ele limpa a cara.─ Você pode mandar buscar no meu escritório.Fiz um movimento que revelou o preparo da gangue

para proteger o RATAN. Umas dez armas foram apontadas para nós.

─ Calma! – ordenou ele pondo as mãos na frente do corpo com as palmas para baixo.

Vi anéis de ouro e prata nos dedos dele, inclusive um anel de bacharel em direito.

Aí percebi que tinha que impressionar. Dei a ele o cartão do meu pai, o escritório fica dentro do 40° batalhão da PM no centro do Rio.

─ Só! Pega aí. – ordenou-me com parcimônia. ─ Mas o Foca sai depois que a grana chegar, beleza?

─ Beleza. Posso vazar agora?─ Té mais ver.Nos cumprimentamos aos moldes dos malandros e

desci o morro para o barracão de dona Sônia.Ela tinha trinta e dois, parecia ter chegado aos

quarenta e cinco. Tinha a pele avermelhada pelo sol. É passadeira, nunca havia assinado a carteira profissional. Teve um namoro com um traficante morto na carceragem do Carandiru, deixando um filho. O Foca. Menino dedo duro ganhou apelido de fofoqueiro, diminuiu para Fofoca e, enfim para Foca. Um X9 de quatorze anos.

No barracão havia um televisor de quatorze polegadas, um fogão seminovo uma geladeira antiga, uma mesa com duas cadeiras, alguns banquinhos de madeira, duas camas e uma cômoda de quatro gavetas, mas só existiam três. Embaixo onde faltava uma gaveta, ela guardava caixas com documentos, umas pastas de arquivos com sei lá o que, uma caixa de sapato com fotos e cartas e outros papéis...

Chamamos uma perua, e carregamos seus pertences e nos preparamos para sair, ainda sem destino definitivo,

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um homem de barba e bigode, meio calvo fechou nossa passagem e disse pra esperarmos ali mesmo.

O terror se apoderou de mim, meu batimento cardíaco quase era visível sob a camisa de malha. A respiração tornou-se ofegante e tudo ficou meio amarelado. Não sei se era o sol de quase onze e meia da manhã ou se era o terror de ter sido barrado dentro da favela.

Aí apareceu RATAN com um menino gorducho maltrapilho e fedorento. Dona Sônia suspirou:

─ Meu filho!! – lágrimas rolaram sobre seu rosto, entre soluços abraçou o pivete.

─ Leva esse truta. Quero mais a grana não, fico empatado contigo?

─ Pode crer. – respondi estupefato.─ Aí , quero levar um lero contigo. Pode ser?Fiquei meio atônito com o pedido, mas como recusar

um pedido do líder do poder paralelo dentro da área dele?─ Vou te bipar no celular. Arquiva com meu nome e

ligue quando precisar.Peguei o celular e liguei no celular dele. Aí ele sorriu

mostrando um dente quebrado quase no meio.─ Só! Tu é meu truta – disse ele sorrindo.─ Deixa o grã-fino ir embora ...Abriram passagem e seguimos viagem. O motorista

da perua ficou intrigado e fez mil perguntas sobre minha atitude com RATAN.

Algumas eu respondi outras dei evasivas, mas fiquei com a certeza de que esse era um início de um longo relacionamento com o poder paralelo.

Liguei para o meu pai contando a fria que me meti naquela manhã. Ele respondeu:

─ Lembra de quando conversamos? Acho que você tinha uns cinco anos, quando fui visitar você em Jaguarê pela primeira vez?

─ Com certeza, pai!─ Tudo o que você fizer meu filho, faça o melhor,

cerque-se de pessoas devotas à você e torna-se inatingível, entendeu? I-NA-TIN-GI-VEL.

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─ Pai . Tenho uns grilos quanto ser totalmente cidadão honesto e coisa e tal...

Realmente eu estava estupefato com a diferença nos modos de vida entre Jaguaré no interior de Minas e a cidade do Rio. Ser sociólogo no Rio, não seria nada fácil...

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udei-me para o Rio de Janeiro trazendo na bagagem um sonho de um Brasil melhor, com exemplo da minha mãe, quis cursar sociologia.

Com o acidente e a situação posterior dela, passei a assumir certas responsabilidades dentro da organização “Mães da Enxada”. Tenho vinte e cinco anos, mas conhecia os meandros da alta sociedade mineira, em todos os grandes centros e concentração da classe “A”, inclusive emergente. Greg Hobsbawn não era visto como menino desde os dezessete anos. Há muito tempo mamãe se orgulhava de me ter por companhia nos almoços e jantares, nas viagens nacionais ou internacionais, nas reuniões com políticos e empresários. Aprendi cedo a gostar da linguagem formal, festividades tradicionais, dos termos de boa apresentação que abre portas nesse meio.

M

Mamãe sempre bem vestida parecia uma lady londrina, encontrava facilidade para converter os céticos nos projeto em defensores de carteirinha, as doações vinham de onde menos esperava. Os tramites políticos foram facilitados ora pelos conselhos certeiros de papai, ora pelos argumentos habilidosos de mamãe, mas os que mais contava pontos foram as partidas de tênis, futebol, golfe, squash, as disputas de hipismo e outras técnicas esportivas que desenvolvi. Às vezes era difícil perder uma partida quão medíocre era o meu adversário, mas perdendo a batalha em campo, ganhava a guerra fora dele.

O importante era abrir portas. Minha mãe, arraigada de preceitos cristãos, quando não encontrava terreno fértil nos corações dos empresários ou políticos, rezava por eles e me ensinou a não guardar magoas, pois “quem dá aos pobres empresta a Deus”. Mas, seguindo os passos de papai, ligava para o “colaborador” e expunha – sem pudor algum – sua decadente situação, caso não desejasse mesmo contribuir algo de ruim poderia acontecer, então seria melhor que ele contribuísse. Assim tinha garantido os recursos para minha ascensão político-social.

Com minha mãe presa a uma cadeira de rodas contratei um motorista particular. O Lucas matador de cavalos.

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eu pai viveu intensamente o período do regime militar e cercou-se de gente poderosa, em cada estado do Brasil, tinha a quem recorrer. Eu

queria esse poder sem ter de ingressar na polícia militar. Então fiz amigos na política, valendo-me do meu cunhado, na polícia, através de papai, na alta sociedade, pelas trilhas abertas por mamãe, no poder paralelo, centrando uma base assessorada por RATAN, fiz minha fama em todos os níveis da sociedade. Sou um tipo de coronel do século XXI. Meu braço direito para os “serviços inextricáveis” é o Lucas. Homem de confiança da mamãe – Mamãe nem imagina em que nos metemos.

M

A medida em que a corrupção entrava pelas janelas, o sonho da sociologia saia pelas portas. Apoiei meu cunhado José Martins da Veiga na candidatura ao senado, desviando parte dos recursos da ONG para a sua campanha em troca de ter facilitado, em seu primeiro mandato, os repasses um tanto inchados das verbas de governo para instituições antropológicas, inúmeras vezes recebi verbas quando não tinha nada nos cofres públicos para as instituições de todo o país. O senador Martins da Veiga foi reeleito com votação histórica. Entrei na política nacional sem nunca ter pisado em prédios públicos brasiliense, com salário mensal e grande prestígio.

O governo inventou um tal confisco pegando a todos de surpresa – Menos a mim – as instituições bancárias entraram em crise, o empresariado alarmado procurou saídas em vão, a população inacreditou na verborragia nova nos telejornais de todo o país.

No fim da primeira semana do tal confisco, na sexta-feira, meu celular toca. Seis e meia da manhã. Atendo sonolento:

─ Alô?!─ Greg! Problemas pra você resolver... – Anunciou

a voz do Lucas.─ A essa hora?─ É pra ontem, irmão! – Disse ele com tensão entre

alarmado e eufórico.

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─ Bom! Então manda. – Falei sentando-me na cama.─ O pai do Edgard, aquele francês da fábrica de

tecidos, lembra?─ Edgard Guzzo D’Vita? Quem é o pai dele?─ Não importa. O cara foi seqüestrado e tá foda,

cara!─ Hã! Onde eu entro nessa? – Perguntei sem

interesse.─ O Edgard não tem a quem recorrer, véio. No

ultimo contato, disseram que vão matá-lo caso ele não arranje um milhão de dólares. Aí, me ligou pra ver se você tem, um empréstimo, ofereceu juros, favores, o que você quiser.

A voz dele agora era só euforia. Edgard, embora francês, tinha um pé na Itália por parte da mãe. Conheceu alguns membros da máfia italiana.

Os problemas da máfia com a INTERPOL impossibilitaram a evasão de divisas dessa grana.

─ É de caráter urgente-urgentíssimo. Em dinheiro vivo, pra ontem... – Alertou Lucas com os pensamentos na máfia.

─ Pede pro RATAN o telefone da fazenda na Colômbia. Só consigo lembrar de lá. – Desligou.

Levantei-me e comecei inconscientemente a bolar um plano pra juntar a grana e trazê-la pro Rio.

Liguei pro meu pai e conversei com ele sobre a situação, se deveria pagar o resgate, caçar os seqüestradores ou sair à francesa da situação. Pagar o resgate. Caçar os seqüestradores, resgatar a grana e devolvê-la aos donos o mais rápido possível, mas como fazer tudo isso?

Como um oráculo onde somente eu poderia abri-lo, meu pai formou um plano:

─ Greg! Aquele safado do morro aí tem contatos na Colômbia ou na Venezuela?

─ Tem sim Senhor. – respondi.─ Liga pra lá e peça o dinheiro. Você vai buscar de

helicóptero essa noite. Certifique-se de que são pessoas de palavra e não, nunca se esqueça que são criminosas

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escórias da humanidade e que você vai ficar em débito com eles.

─ Qual garantia eu vou dar de que não é um truste?─ Quando verem o helicóptero do Exército

Brasileiro não terão dúvidas de que estarão negociando com pessoas de palavra. Se pedirem armas, negue. Se pedirem juros negocie. Se pedirem preso fora do Brasil, desligue o telefone, dentro do Brasil, peça nomes e me retorne, vamos ver de quem se trata!

─ Onde o senhor vai dispor de helicóptero, pai?─ Contatos meu filho. Questão de feeling...─ Tá bom. E depois de pagarmos o resgate e termos

o velho em segurança?─ Vamos limpar o Brasil dessa corja. Visionários

não trabalham com seqüestros, principalmente estrangeiros. – Riu e tossiu por causa dos cigarros.

─ Vamos lá, então daqui a trinta minutos ligo pro senhor. Até já.

Quando Lucas chegou, ofegante, com RATAN no celular eu já tinha respostas. Liguei para um tal Ramon na Bolívia que se mostrou solícito ao meu pedido.

─ Tenho um material guardado na PF do Recife. Se liberar pra mim eu empresto o dinheiro e ficamos, digamos, quites por hora.

─ Que material é esse? ─ Setenta e cinco quilos de pasta de coca e pó. Eu

quero as quatro armas. É artilharia antiaérea. Vai melar pra você, mas é isso aí.

─ Eu levo a pasta e o pó. As armas eu não posso prometer. Tem gente aqui doida com armas...

─ Então não dá pra negociar.─ Espere dez minutos, eu te ligo.Deixei o Lucas ligando para seis homens que seriam

contratados como guardas e fui ao oráculo.─ Pai, estão pedindo armas que estão em Recife.─ Aguarde na linha...Ouvi meu pai ligando de outro aparelho para um

major em Recife e oferecer algo que não pude entender,

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em parte por que estava com a atenção desviada para o Lucas, em parte por causa da distância em que ele deixou o telefone. Tinha a ver com política, apoio a projetos contra o governo, o negócio foi fechado e a droga iria sumir num incêndio do depósito onde as provas dos crimes ficam arquivadas.

─ Filho, tudo acertado. Sua mercadoria vai estar aí ao entardecer, ok?

─ Valeu pai. A benção!─ Deus te abençoe.Voltei pra sala. Lucas quis saber detalhes da

operação. Expliquei-lhe e liguei pro general Braga para liberação de dois helicópteros do Exército. Liguei pro RATAN para garantir que ele iria conosco para reconhecer as pessoas com quem estávamos lidando.

Ás sete horas da noite o material chegou no aeroporto e foi embarcado num dos helicópteros, Lucas, RATAN e eu embarcamos no outro. Atravessamos o céu do Brasil, chegamos numa pista clandestina da fazenda onde a guerrilha conseguia proteger-se da ASFARC.

O líder se aproximou de nós escoltado por três homens magros altos dispostos a atirar se uma mosca desembarcasse conosco da aeronave. O Ramon é um líder medíocre de idéias que namoram os filmes americanos onde ele detém todo o poder, quem vive e quem morre. Um tipo de exército paramilitar sem um objetivo claro, um ideal bem definido a perseguir.

Exibindo um sorriso de ditador, com dentes branquíssimos e uma presa de ouro, anéis e divisas de militar, um metro e sessenta de altura no máximo, de puro convencimento.

─ Sejam bem vindos a Bolívia. – Bradou ele me estendendo a mão. – Vejo que enfim você criou juízo, heim, RATAN? Este homem me parece de boa índole. Um líder exponencial.

─ Tenho uma certa pressa de retornar ao Brasil. Podemos negociar? – Interrompi a bajulação gratuita.

─ Claro! Tempo é dinheiro. Não é assim que dizem no Rio? – Fazendo chacota.

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─ Tragam a mercadoria para o Sr Ramon.Os rapazes, ao comando de Lucas, desembarcaram

um baú com a droga e as armas ao mesmo tempo em que dois homens de Ramon trouxeram as maletas com o dinheiro.

─ Verdinhas em notas de cinqüenta, com numeração aleatória e surradas. Tudo contado. Quer conferir?

─ RATAN! A palavra é sua...─ Tá limpeza, Greg. O chegado é de confiança, meu

chapa a décadas.Estendi a mão e ele me puxou para um abraço.

Estranhei o comportamento, mas retribui-lhe meio de lado, sem dizer nada. Voltamos para as aeronaves e regressamos sem muitas palavras.

Cheguei à casa do Sr Edgard às nove horas da manhã. Havia um horário marcado para o próximo contato. Meu pai mandou dois policiais P2 da DASP – Delegacia Ante Seqüestro – à paisana para ouvir a ligação e tentar rastrear sem intervir nas negociações com os criminosos. Edgard quis impedir que a polícia tomasse qualquer providência, foi só falar que os meliantes seriam apagados para ele suspirar sem ter o que dizer. Montaram o cenário na sala sem muito estardalhaço, implantaram as escutas e os computadores que fariam o serviço ficar fácil.

Nove e meia. O telefone toca. Edgard atende no viva-voz.

─ Camarada Edgard? –Disse uma voz feminina tentando ser o mais grave possível.

─ Edgard, pode falar. – Disse com voz angustiante, o sotaque estava carregado por causa da aflição. Uma gota de suor brotou na testa como se estivesse trabalhando com a marreta “aviso prévio”.

─ Já tem o dinheiro?─ Como o combinado. Um milhão de dólares numa

mala de viagem.─ Há um fusca azul-claro na porta da sua casa com

a chave na ignição e uma bomba instalada. Você tem dois

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minutos para dar a partida, caso contrário ele explode, e em seguida a cabeça do seu velho, ok?

─ Ok, entendi. Para onde devo ir?Os policiais faziam sinais para que ele prolongasse a

conversa.─ O seu escritório fica a seis quadras daí, correto?─ Correto, e daí?─ Na porta do prédio há um telefone público. Atrás

dele tem um papel com o endereço para onde você deve ir. Está colado com DUREX, atrás do aparelho, vá agora!

─ Quero prova de que meu pai está vivo. – Bradou ele com visível sofreguidão.

─ Ouça a voz dele...─ Alô? Edgard? – Era a voz do pai dele.─ Papai, você está bem? Não te maltrataram?─ Até agora não me fizeram nada. Alimentaram-me e

bebi água. Estou bem, filho...─ Seu pai manda lembranças. Agora você tem

cinqüenta segundos para dar a partida. – O click do telefone foi como um tiro no ouvido do Edgard.

Os policiais conseguiram rastrear o telefonema, como era longe o local de onde partiu a ligação, as ordens dos seqüestradores foram colocadas em práticas. RATAN e Lucas seguiram o fusca em duas motos mantidas à distância. Edgard, sozinho no fusca desceu para o escritório, pegou o papel no telefone público. Um recorte de revista com o endereço da rodoviária. Seguiu para lá e abandonou o fusca, sem trancar as portas, no estacionamento com o dinheiro no banco de trás. Alguém abriu a porta do motorista, tirou o dinheiro e jogou numa Kombi que passou do outro lado com a porta aberta. Fizemos de conta que não vimos. RATAN seguiu a Kombi até a favela do Cafezal onde outro carro esperava com o motor ligado. Um carro importado preparado para corrida. O motorista da Kombi desembarcou com pressa e embarcou no outro carro. A polícia seguiu a pessoa que pegou o dinheiro no fusca para não perdê-lo de vista até que fosse seguro abordá-lo e detê-lo. Até aí eram três homens.

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Uma divisão da DASP, orquestrada por mim pelo rádio chegou ao local onde haviam feito a última ligação. Um telefone público na porta de uma padaria. Burros n’agua.

Um helicóptero da PM seguiu o carro a uma altitude que eles não desconfiaram da perseguição. Saíram da cidade e pegaram uma estrada de terra rumo a um sítio, um haras desativado os carros da minha ONG seguiram os comandos do helicóptero a quinhentos metros atrás dos seqüestradores. Eles abriram as portas do cativeiro e saíram em três carros do mesmo tipo. Agora eram quatro homens e uma mulher. Carros preparados para correr. Edgard recebeu uma ligação dando o paradeiro de seu pai. Ele foi ás pressas resgatar o seu velho, o senhor D’Vita foi deixado sozinho numa casa e nenhum dos seqüestradores foi preso no local do cativeiro. Enquanto nós seguimos os bandidos.

Eles deram algumas voltas e se sentiram seguros para voltar ao centro do Rio e entrar num sobrado para a troca de roupas e sei lá o que mais. O helicóptero nos deu a posição deles e eu fiquei extremamente excitado com o sucesso da operação.

Após cercar o prédio, invadimos o local com as armas cuidadosamente preparadas e silenciadas. Não deu nem tempo dos nove homens e uma mulher que estavam dentro alcançarem as suas armas e já estavam mortos.

Edgard foi interceptado pela polícia no trânsito com desculpa de uma blitz de rotina para evitar que ele chegasse onde seu pai estaria, mas a polícia civil já o havia levado para o hospital.

Enfim, recuperei a mala com todo o dinheiro e eliminei os causadores do problema.

─ Parabéns pela operação, meu filho!─Obrigado, papai. Mas, a glória é sua. Foram seus

homens, suas ordens... – Disse, modestamente para meu pai, meu herói, meu Oráculo.

─ Ninguém sabe sobre mim. É assim que tem de ser. – sentenciou ele.

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Contratei um avião comercial para levar os dólares ao Ramon e deixei a encargo de Lucas preparar quatro homens habilidosos para nos escoltar. Meu telefone tocou. Nele a secretária de mamãe:

─ Senhor Gregório, sua mãe passou mal aqui e estamos levando-a para o Hospital das Clínicas.

─ Certo! Chame um táxi se for preciso. Eu encontro vocês lá.

O fato de minha mãe passar mal repentinamente me abalou e transferi as responsabilidades da viagem, da entrega do dinheiro e tudo mais para o Lucas. Confio nele, mas coloquei outro homem de minha confiança junto dele, afinal, RATAN não era o que eu podia chamar de “homem de confiança”. Chamei Silviano e o enviei no avião para Bolívia.

Eles estavam com um milhão de dólares mais dez por cento de juros que Ramon cobrou pelo empréstimo. Na verdade era mais um presente meu para ele do que cobrança de juros. Num mundo capitalizado podemos comprar devoção. Eu sabia que Ramon não me procuraria se não fosse um caso extremo e urgente, porque com cem mil dólares a mais na carteira é pra comprar sossego. Como o vaso MING de mamãe.

Passei as primeiras horas da madrugada no hospital ao lado da minha progenitora e tive um sonho ruim com Lucas e Silviano. Peguei meu celular a fim de ligar para Lucas, no entanto meu celular estava sem serviço dentro do hospital. Fui à recepção do hospital e pedi para fazer uma ligação e o celular de Lucas estava desligado. Um calafrio percorreu minha espinha e pensamentos ligados ao sonho me excitaram. Liguei no celular de Silviano também desligado. Liguei, enfim, no celular de RATAN sua voz embargada não me transmitiu segurança:

─ Aí, irmão! Tudo dentro dos conformes... – Disse isso e desligou sem que eu pudesse emitir qualquer palavra.

Percebi que algo estranho estava no ar. Voltei para perto da minha mãe, fechei os olhos e não consegui mais sequer cochilar. Sentado na cadeira, meu coração pulsava

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com força pressentindo um cheiro que jamais senti antes: – Medo – algo estava errado e ninguém precisou me dizer isso.

Os homens que Lucas contratou viram uma oportunidade inédita em suas vidas toscas. Um milhão e duzentos mil dólares dentro de uma mala, sem registro em lugar algum sobrevoando uma floresta densa. Planejavam me matar e repartir o dinheiro entre si? Aí vale o que o meu pai costuma dizer: A males que vem pra bem! Eu não estava no avião.

Executaram com um tiro na nuca de Lucas, abortaram o plano inicial, Silviano foi alvejado algumas vezes, RATAN bradou logo que havia pensado nisso e se vendeu para eles, e os pilotos foram tomados de seqüestro, receberam novas instruções para voltarem e pousar num campo clandestino no interior de Minas Gerais. RATAN, assim que pode me ligou passando as novas.

─ Jogaram o Lucas e o Silviano num rio dentro da floresta avião abaixo, mano! Estou correndo risco de morte. – Falou entre sussurros alarmado...

─ E os pilotos? – Perguntei assombrado.─ Mortos, mano! Assim que pousamos, mataram os

dois e atearam fogo no bimotor. Tenho que desligar, depois a gente fala...

Fiquei congelado, ouvindo o sinal de ocupado no telefone sem acreditar no que estava acontecendo.

Oito horas da manhã do segundo dia após a morte de Lucas meu telefone tocou. Era o Ramon interpelando-me pelas suas verdinhas. Aos berros, me disse que não tinha nada com isso. Seus capangas viriam atrás de mim para me fazer devolver seu dinheiro...

─ Ramon, perdi dois dos meus melhores homens, outros dois pais de família pagaram com a vida e tenho um amigo jogado às cobras, mas vou te devolver a grana. Deixa eu resolver isso do meu jeito?

─ Cara, tem peixe grande atrás de mim. Vai ser mais dois no inferno se você não trouxer essa grana em dois

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dias. – Vociferou algumas injúrias e promessas, depois desligou.

Senti a morte me rondando. Os homens que estavam com os dólares sabiam que eu iria caçá-los em cada muquifo do Brasil. Ramon, por causa da grana, viria em meu encalço. Eu teria que correr atrás dos malditos ladrões que mataram meus amigos e fugir de Ramon. O que fazer agora?

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recisei recorrer-me ao oráculo, como sempre ele têm repostas para minhas implicações, fui até o 40º BI conversar com meu pai. Cheguei lá e senti que

fazia bastante tempo em que fui visitar meu pai em seu local de trabalho. O regime militar havia deixado de ter minha admiração, mas meu pai sempre foi o meu maior orgulho e exemplo de vida, de homem, de tudo. Entrei no prédio e percorri os corredores que dão acesso aos diversos departamentos da estrutura organizacional da PMRJ, encontrei alguns velhos conhecidos que me cumprimentaram, passei por outros que já não me reconheciam mais, algumas Pfem’s me fizeram acompanhá-las com o canto do olho, mas apenas isso, ali eu sabia que o respeito está acima de tudo. Enfim cheguei no escritório do meu pai, ele estava numa reunião com a secretária dele e foi preciso esperar alguns minutos para ela sair da sala e me dar entrada.

P

─ Pai, com mamãe no hospital, George em Harvard, Giovanna na Europa e Geanne em Brasília, como vou agir?

─ Filho. Você é inatingível ou não? – Perdendo a paciência com meu chororô.

─ Preciso da sua cobertura. – Clamei como uma fera acuada.

─ Tudo bem! Acalme-se. Vou recuperar a sua grana.Eu confio em meu pai. Mas confio nos meus

inimigos. Sei que não vou poder baixar a guarda enquanto esse maldito dinheiro não atravessar a fronteira para o seu dono.

A aeronáutica tentou contacto comigo falando do desaparecimento da aeronave dos radares, começaram as buscas imediatamente. Procuraram em todas as partes por onde os radares captaram a presença do avião, até o local onde pousou. Mas não encontraram nada. Isso sequer saiu nos noticiários e só as famílias dos pilotos se ocuparam das buscas. No entanto eu não podia fazer nada por causa da polícia federal. Aquilo seria um prato cheio para pudicos e despudorados. Para quem quisesse fazer o bem

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ou para quem quisesse obter lucros com a desgraça alheia. Quatro dias se passaram. Voltei para a fazenda do Sr Ramiro, em Minas Gerais. Fiquei lá por trinta e sei horas, sentindo-me um covarde. Ele me cedeu um quarto do casarão e fiquei lá tentando falar com RATAN, eu andava de um lado para o outro dentro daquela casa me sentindo solitário. A casa era grande e tinha moveis antigos, uma radiola medieval mesmo assim bonita, sem vestígios de cupim. Uma tv preto e branca e outra num modelo mais novo em cores, dali eu via a ministra falar asneiras nos telejornais e via novelas, filmes, mas nada disso conseguia me distrair, nem mesmo quando a filha do caseiro vinha fazer a faxina da casa de short e mini blusa pra me provocar. Às vezes eu tentava conversar com ela, mas o seu jeito de não se interessar por coisas realmente úteis me irritava e nem o jeito de falar com sotaque mineiro interiorano me fazia distrair. Não falei com ninguém da minha família nesse período, estava concentrado no meu problema, menos na hora em que essa menina veio procurar sexo e me deitei com ela na cama de casal do quarto que seu Ramiro não me cedeu, como todo bom caseiro, o pai dela tinha as chaves de toda casa e aquele quarto serviu-me de consultório terapêutico. Eu tinha certeza que a solução para o meu problema seria por conversar com RATAN por telefone e no momento em que soube onde estavam, voltei para o Rio levando três amigos comigo. Eles gostam de uma boa briga como galos de rinha. Armei-os com as novidades da indústria bélica e comecei um plano para me livrar de Ramon – meu problema imediato.

Meu celular tocou, Geanne estava no Rio de Janeiro para ficar com mamãe.

─ Mamãe disse que não te vê há seis dias, cara, como você consegue ser tão irresponsável?

─ Geanne, estou com problemas sérios e temo pela nossa família... – Era preciso abrir o jogo antes que uma bomba caísse sobre a minha família. O presidente de uma das ONG’s mais premiadas do Brasil, envolvido com o tráfico, evasão de divisas etc.

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─ Em quê você está metido? – Perguntou-me com real estupefato.

─ Maninha! Senta. Vou te contar os detalhes...Comecei a discorrer desde o seqüestro do pai de

Edgard Guzzo D’Vita. As dificuldades em arranjar o dinheiro por causa de confisco, nenhum banco podia liberar tanto dinheiro em tão pouco tempo.

Todos os empresários contabilizavam prejuízos e a forma que o tráfico arranjou para captar recursos foi o seqüestro.

Matamos a corja toda, ela esboçou uma incrédula reação e reprovação. Não acreditou que as polícias Militar, Civil e o Exército tivessem participado de uma operação esdrúxula como a que eu orquestrei e pediu para que eu tirasse mamãe e ela do Brasil até passar a crise que eu provoquei. Cismou que RATAN não era de confiança e cobrou atenção com a ONG de mamãe – A menina dos olhos da família Hobsbawn.

A aeronáutica encontrou os restos do avião e concluiu que não ouve queda, mas um incêndio criminoso, mas ninguém queria arriscar um palpite sobre o que estava acontecendo. Só se falava em tráficode drogas e queima de arquivos. Nos arquivos da viagem na aeronáutica aparecia o nome de RATAN, do Lucas, do Silviano e dos outros quatros homens que Lucas contratou, mas só encontraram os corpos dos dois pilotos. Isso os deixava fora das investigações sobre tráficode drogas então as investigações passariam para a Polícia Federal. E foi aí que meu pai entrou, com alguns contatos a PF passou a investigar o desaparecimento do Lucas e do Silviano. Foram semanas de buscas na floresta por onde o avião passou e nas margens do Rio Amazonas e afluentes.

Papai mandou mamãe e Geanne para o Canadá, sobre o pretexto de mamãe tratar-se com especialistas de lá, não foi difícil convencer minha mãe.

Na saída do hospital houve troca de tiros com os homens de Ramon. Eles foram plantados na porta do hospital e não podiam deixar ninguém ligado a mim ou a

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minha família passar sem ser percebido. Não queriam perdê-las de vista acreditando que eu iria aparecer no hospital.

No décimo dia RATAN fez um último contato comigo me dando sua atual posição. Os meliantes então começaram a suspeitar dele e numa discussão sobre sua fidelidade ao grupo ele quebrou o celular arremessando-o na parede. A minha situação começou a piorar quando os homens dele me procuraram para saber dele. O morro estava empolvoroso com uma guerra pelo domínio do comando de uma das maiores favelas do Rio, traficantes dos morros vizinhos queriam dominá-la por causa das posições estratégicas que ela fornecia, além do volume de dinheiro decorrente de armas e drogas.

Minha casa foi invadida paralisando os serviços da ONG. Minha fonte de renda estava comprometida e meu estado psicológico abalado. O risco tornou-se insustentável para mim.

Meu cunhado esforçava-se no senado para mandar tropas do Exército para o morro de RATAN, o governo todo tomou conhecimento da importância desse nome para manter a ordem naquele púlpito eleitoral. Meu nome deteriorou-se na sociedade por causa da falência dos negócios enquanto o nome RATAN ganhava prestígio – ele nem imaginava isso – logo a TV dava notícias de desaparecimento de Greg Hobsbawn.

Tornei-me um exilado dentro do Rio. Qualquer passo que eu movesse, seria de conhecimento tanto dos ladrões, quanto dos homens de Ramon. Sem levar em conta que os homens de RATAN queriam explicações do seu sumiço. Ele era um prisioneiro numa cela de um milhão e duzentos mil dólares.

─ Acho que conseguimos algo, filho! – Meu pai estava excitado com as notícias que recebera.

─ O que houve?─ Gastaram dinheiro para comprar cinco carros

importados, com certeza é dinheiro de Ramon.─ Onde foi esta compra? – Perguntei.

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─ Em Belo Horizonte. Pagaram à vista e em dólar. São uns burros, vai ser fácil pegá-los agora.

Mau pai pediu ao General Braga para destacar uma pequena companhia da inteligência do exército para Minas e investigar esse esnobe investimento. Um grupo da inteligência do Exército Brasileiro caiu em cima deles como carrapato em gado gordo. Porém as instruções de meu pai não eram de prender e recuperar a grana. Ele quer os homens para ver os tipos com quem Lucas se enganou. Papai também confiava nele e o admirava, tanto pela personalidade quanto pela fidelidade. Lucas tinha ideais e os perseguia. Não era de falar muito, mas falava com certeza, era prudente, sabia onde podia se meter. Não teve filhos, nem deixou um amor a sofrer por ele. Talvez o único amor da sua vida era a nossa amizade. Éramos mais que amigos. Fomos fiéis nesse sentido e fomos gratos um a outro.

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ucas contava com grande empolgação como fora surpreendido na cadeia pública do interior de Minas para libertá-lo. Tudo por causa de uma

cartucheira do tio: um fazendeiro que cultiva cana de açúcar. Ele só apertou o gatilho porque tinha certeza da mira. Só que o cavalo do Dr. Paranhos, um advogado influente na região, vereador da pequena e pacata Jaguarê, estava atrás de uma moita, pastando inocentemente, e foi alvejado no pescoço, vindo a falecer minutos depois. Era um reprodutor que ficava solto para exercitar os membros – eram as pernas que deveria se exercitar – na pastagem vasta da fazenda vizinha.

L

As fêmeas ficavam presas. O macho, livre, leve e solto.

O Dr. Paranhos abriu processo contra o Lucas, mas ele era menor de idade e não poderia ficar preso. Estava sob tutela da polícia civil por não existir, na região, um juizado de menores. Eu me indignei com a situação do meu amigo do peito e bolei o plano. Chamei meus três amigos e contei-lhes meu plano.Gil era o homem bomba, repetiu a quinta série três vezes e a sexta série duas. É o mais velho de nós quatro.

Beto boy, era motorista de fuga. Ele que garantiu que iríamos e voltávamos em tempo recorde, só precisava de um bom carro abastecido. Digão, um monstro perto de nós três. Meio turrão, mas inteligente para coisas do mal. Ele quem fez a bomba e montou na porta da igreja, enquanto Gil e eu montamos guarda nas esquinas da igreja, Digão e Beto armavam a bomba e um arcaico dispositivo para detoná-la.

Beto era o mais boy dos quatro, então fomos à delegacia com o falso argumento de que sua bicicleta de trilha havia sido roubada na praça da prefeitura quando entramos na sorveteria e nos distraímos por um momento.

Saímos nos esquivando com os olhos esbugalhados em todas as direções galgando cada metro até o carro como se fôssemos alienígenas tentando não chamar a atenção. Uma fritada nos pneus no calçamento da rua principal da cidade e chegamos na BR. O Lucas gritou de

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euforia tirando a nossa atenção da pista, aí uma moto apareceu como que do nada indo parar no acostamento o piloto esbravejou e acelerou para tomar a placa do carro. Quando entramos na estrada de terra ele parou a moto e bateu o punho cerrado na palma da mão esquerda como se dissesse: “Vão se ferrar!”

Rimos e nos cumprimentamos pelo plano bem-sucedido.

Foram esses três que eu trouxe para o Rio comigo. Gil bomba, malhado, exímio atirador. Beto boy, o Rambo da Jaguarê, Digão, um guarda-roupa turrão e mal encarado. Três homenzarrãos doidos para vingar a morte de Lucas. Também fiéis a mim e dispostos a levar chumbo no meu lugar.

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eu irmão recebeu as noticias dos desdobramentos de meus negócios escusos por meu pai, não questionou muito. Ele se dispôs a

voltar ao Brasil para continuar os trabalhos das “Mães da Enxada”, mas meu pai não permitiu. Alguns políticos inimigos do militarismo começaram a especular com o dinheiro que estava passeando pelo país como sendo uma parte do financiamento para um novo golpe militar. Temiam o retorno do regime como uma forma de não permitir que os desacertos do governo se prolongassem por muito tempo. E visto claramente que o poderio militar estava sendo posto para escanteio. Ninguém aprovava as decisões políticas para a área. Porém, o dinheiro de uma guerrilha que nada tem a ver com o país tupiniquim e em nada mudaria o cenário social em que o Brasil se afundava. O senhor Edgard Guzzo D’Vita foi chamado para depor numa espécie de CPI informal, suas ligações com RATAN, embora indireta, virou notícia nos meios televisivos. Claro que queriam um bode expiatório caso algo maior acontecesse e a opinião pública fosse instigada a pressionar os políticos contra algo que eles ainda não tinham conhecimento pleno.

M

Falaram em um golpe militar contra a democracia, mas não tinham sucesso em nenhuma linha de investigação pelo simples fato de que não existia essa intenção, não nessa confusão dos diabos que me pressionava contra a parede.

Agora é hora de invocar os deuses políticos para drenar as atenções de toda a sociedade para outro foco.

George veio para o Brasil e, com autorização de meu pai, ele marcou uma reunião em Brasília com meu cunhado, seu assessor, meu pai e eu, discutimos que a melhor saída seria mexer nos bolsos da burguesia, afinal quem iria se preocupar com golpes militar se um golpe econômico era potencialmente possível? George se incumbiu de espalhar boatos na bolsa de Nova York sobre a quebra da produção de grãos do Brasil e a queda de valor da moeda acompanhada da maior inflação da história.

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Uma viagem de senador Martins da Veiga, a Europa para “acalmar” os ânimos dos investidores e negociar uma abertura menor das exportações / importações diminuindo o risco Brasil para os investidores estrangeiros, foi amplamente divulgada em todos os meios de comunicação. Foi o suficiente para desviar todas as atenções, por um tempo.

George e eu somos bem diferentes, temos aptidões distintas. George é um C.D.F, com todas as características de um. Desde pequeno usa óculos para corrigir um estrabismo acentuado. Acostumou-se a usar cabelos crescidos para tentar diminuir o efeito “monstrengo” que a prótese o fazia ver ao espelho. Um rosto redondo de bochechas rosadas e olhos verdes poderia ser um galã, não fosse a baixa estima por causa dos fracassos com as mulheres. Sempre foi alto para sua idade juvenil, porém não se preocupou com o físico, limitava-se a invejar meu porte atlético.

Gosto de jogar, qualquer jogo onde tenha uma bola rolando e um amigo disposto, estou por perto vôlei, futebol e handball são meus jogos preferidos. George prefere xadrez e ping-pong. Disputamos algumas partidas no hipismo e até tentamos jogar hóquei, não deu certo porque para ele eu sempre estava roubando.

Então nosso relacionamento limitou-se à ONG, até o dia em que ele descobriu o meu caixa dois. O senador Martins da Veiga interveio para dissipar o mau clima e propôs a George um emprego em Brasília, ele respondeu com arrogância que o meio político era para homens sem escrúpulos e que era melhor convidar a mim, já que nos dávamos tão bem. Na verdade não era, à época, bem assim, avistamos um meio de negociar com nossas posições e decidimos erguer bandeiras brancas. George, então, afastou-se e decidiu ir para Harvard. Crescemos como Jacó e Esaú, procurando um lugar ao sol até que mamãe conseguiu nos reaproximar.

Propus a George uma partida de xadrez. Se eu ganhasse fumaríamos o “cachimbo da paz” e se ele

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ganhasse eu reconheceria sua superioridade intelectual e deixaria a ONG para que ele administrasse. Ele zombou da proposta e aceitou a partida. Jogamos por uma semana a primeira terminou empatada, a segunda eliminamos o temporizador e jogamos a hora que queria, saindo e voltando sem que o parceiro estivesse presente. Eu ganhei, ele pediu revanche e ganhou pedi a chamada “nega” e venci a batalha. Ele então se aproximou e disse estar convencido da minha honestidade, começamos a trabalhar juntos, mas ele continuou a faculdade nos Estados Unidos. Não falamos mais no assunto desde então.

Depois da conversa com papai ele me ligou.─ Greg, você é mesmo um delinqüente, mas tudo

bem, vamos superar mais essa como uma família.─ Sim, George. – Soltando um profundo suspiro.─ Eu preciso agora é desviar as atenções políticas

do caso para resolver o problema sem atingir papai, entende?

─ Ele está movendo os pauzinhos do jeito dele, mas eu pensei em algo. Vamos marcar no gabinete do Zé Martins amanhã ás sete e meia, ok?

─ Papai concordou?─ Sim, claro. Na verdade foi ele quem pediu.─ Hum! Papai e suas idéias miraculosas...─ Dá pra você ir sem chamar atenção? – George

agora sabia da caçada a minha cabeça e o valor exato que ela valia.

─ Hoje eu sou um elefante branco com laço de cetim no pescoço, mas, tenho meus métodos. Estarei lá.

─ Se cuida, mano. – Disse ele demonstrando bom ânimo.

Nos dias que se seguiram, pude respirar e procurar uma solução longe dos holofotes. Exceto do bando de carniceiros que RAMON enviou para o Brasil.

Minha dificuldade maior era contatar RATAN, mas não se prolongou muito e o contato veio por Edgard.

─ Greg? Edgard.─ Alô, Edgard. Onde você está?

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Paulo Siuves

─ Voando para Goiás. RATAN está em Minas na divisa com Goiás e conseguiu credibilidade com os raptores de seu dinheiro.

─ Essa maldita grana não é minha, se fosse eu gastaria cada dólar para caçar e matar esses desgraçados...

─ Calma, Greg. RATAN está num hotel na cidade de Pojucã.

─ Ótimo! Se ele te ligar diga-lhe que já estou lá.─ Tal ok! Até mais tarde!─ Até.Desliguei o celular já com o telefone no ombro,

discando o número de papai, afinal táticas de resgate era coisa de gibi para ele. Recolhi-me em meu oráculo!

O telefone chamou sem que ninguém atendesse, maus pensamentos encheram minha fértil imaginação, disquei novamente sentindo a boca seca, com receio de que mais alguma coisa estivesse saindo errada. A ligação não se completou, disquei terceira vez, errei o número. Disquei impaciente pela quarta vez. O telefone chamou três vezes e meu pai atendeu:

─ Alô!─ Pai? Tudo bem? - Mal consegui esconder o

nervosismo.─ Tudo bem, tá acontecendo mais alguma coisa?─ Aqui não, temi que estivesse acontecendo algo com

o senhor aí.─ Então para de choramingar como bebê...─ Pai, RATAN está num hotel na cidade mineira de

Pojucã. O bando está com ele, aparentemente, ele está bem.

─ Ótimo. O quê você pensou em fazer.─ Resgatá-lo.─ Grande idéia!! – Senti a ironia na voz dele.─ Pai, eu...─ Você pode fazer do mesmo jeito que resgatou o

Lucas, chame seus meninos, roube um carro e vá lá...─ Pai, calma. Dessa vez vai ser do seu jeito...

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Papai suspirou e eu pude ouvir sua cadeira rangendo quando ele se refestelou do mesmo jeito que fazia quando chegava em casa, tirava a farda e ia ver o telejornal. Ele tinha uma poltrona bem de frente pra TV Empire e ninguém se atrevia a assentar-se nela quando ele estivesse em casa ou mesmo na eminência de chegar.

─ Muito bem! – Disse ele com a voz grave de quem está cansado. – Há uma única chance de conseguirmos o que você propôs, se algo der errado, por menor que seja esse erro, vão acontecer mortes e alguém vai ter de responder por isso.

─ Estou entendendo.─ Muito bem! Alugue um avião sem piloto. Eu me

encarrego do resto.─ Sim senhor, me encarrego disso pessoalmente.─ Greg. Assegure-se de que esteja abastecido para

não nos atrasarmos no regresso. Isso será extremamente rápido.

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Paulo Siuves

eto boy me ligou. Há um opala preto, com vidros escuros, parado em frente à sede da ONG, minha casa no Rio de Janeiro. Três e quarenta da tarde.

Há algo errado porque nunca deixam carros estacionados por tanto tempo naquela rua. Preciso de um plano rápido para descobrir o que há de errado naquele carro. Não dá para empregar o *MO de papai nesse caso.

B─ Beto, há espaço para estacionar na frente do

carro?─ Não.─ Muito bem. Arrombe o carro da frente, depois

estacione um outro carro colado na dianteira desse opala, bloqueie-o de alguma forma, entendeu?

─ Saquei. Eu tiro o carro da frente e Digão estaciona o outro na frente. Deixa o resto comigo.

Assim que Digão estacionou o carro da ONG na frente um cara saiu do opala para tentar impedir que ele deixasse o carro tão próximo. Porém, o cara não se sentiu à vontade para discutir com o negão. Pior, Ele sempre está com um “soco inglês” no bolso e não hesitou em exibi-lo.

O cara com sotaque boliviano recuou e Digão entrou na sede. Confirmando as suspeitas do Beto boy. Eram os homens de Ramon. Eles trancaram o carro e tomaram um táxi até a estação rodoviária e sumiram no meio da multidão.

Digão e Beto Boy foram para a casa de meu pai onde passamos a noite.

Às quatro da manhã fomos para o aeroporto, embarcamos no bimotor e voamos para Minas.

Os homens de papai já estavam de campana em torno do hotel. RATAN está num quarto do terceiro andar com toda a trupe. Vi os carros comprados com a grana de Ramon, entrei com Beto e Gil pelos fundos. Conferi a munição na Magnus, eles fizeram o mesmo e ficamos aguardando a deixa para entrarmos em ação.

O recepcionista, assustado, depois de falar em quais quartos eles estavam hospedados, pegou a gorjeta e se mandou. Quartos trezentos e seis trezentos e oito e

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trezentos e nove. Quatro policiais subiram para o terraço para dar cobertura e dar os sinais de invasão.

A ordem de papai era clara – entrar e dominar. Sem mortos – fiquei imaginando como seria a cara do sujeito que orquestrara o golpe em mim e em Lucas. Deve ter sido o mesmo que puxou o gatilho. Do telhado. Um dos P.M. ’s – à paisana é claro – fez o sinal para invadirmos o prédio, todos cautelosos em silêncio, nos esgueirando pelos corredores, parede a parede, andar por andar, numa cena cinematográfica. Com meu pai no comando qualquer ação em campo era simples, essa então era uma ordem simples - Invadir, Aborda e imobilizar – três, quatro homens em cada parte. Eu arrombei o quarto trezentos e seis.

Bombas de efeito moral explodiram. Lanternas foram acesas, gritos armas apontadas para homens e mulheres despidos nas camas, totalmente surpreendidos. RATAN está no quarto trezentos e nove, aos berros gritando seu nome:

─ Eu sou RATAN, calma lá, não atirem. Eu sou RATAN!

─ Deixem esse comigo. – Meu pai ordenou que o soltassem.

─ Você é um rato morto, RATAN! – vociferou um dos homens que me roubaram.

─ Fodas, seu ladrãozinho de meias–cuecas! – Gritou RATAN para seu agressor.

─ Cadê o Greg, Senhor Hobsbawn? Ele veio? Onde ele esta?

─ Calma, garoto! – ordenou meu pai lhe apontando uma arma na cabeça. – Espero que sua lealdade permaneça como o fez até agora.

─ Fica frio. Teu garoto é meu chegado.─ Qualé, RATAN! – Disse eu da porta. – Seus

chegados tão lá fora, pelados e assustados como pintos saindo do ovo.

Ri, não sei se de nervosismo ou de outra coisa. Cumprimentei RATAN nos moldes do morro e ele

voltou para o quarto, vestiu-se e seguiu-me para fora do

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hotel. Papai, meio sem paciência ordenou-nos que entrássemos nos carro para sairmos dali antes que a polícia local chegasse com os repórteres. Alguns curiosos apareciam na calçada, apesar da hora, uma cidade tranqüila como aquela, sempre era motivo de sair quando algo saia da rotina. Pessoas nas janelas, nos portões e na calçada para ver a movimentação daquela manhã ainda escura.

Os carros saíram cantando pneus e fomos para o aeroporto embarcamos-nos no bimotor com os homens pelados e algemados, foram jogados no compartimento destinado às cargas, amontoados reclamando da truculência e do frio que fazia ali.

Papai sentou-se ao lado do RATAN e iniciou uma conversa tímida com ele que ainda estava assustado, mais agora com a companhia inesperada do sargento Hobsbawn de quem ouvira falar inúmeras vezes.

─ O que aconteceu naquela maldito avião, ratão?─ Desculpe, senhor! Meu nome é RATAN...─ Não me interessa o seu nome rapaz – falou papai

rispidamente deixando RATAN na defensiva – O garoto que mataram, o Lucas, era como um filho pra mim e você sabe o que aconteceu naquela aeronave.

─ Sim senhor! Fomos traídos, senhor, eu nem tive tempo pra entender exatamente o que tava acontecendo, levantei as mãos e me joguei de joelhos a fim de ficar vivo, eles entenderam que eu estava no jogo deles e eu aproveitei a deixa.

─ Quemée o líder deles?─ É o Avelino, um loirinho que eles chamavam de

anjo.─ Greg! – A voz grave do meu pai conseguiu ser

mais grave do que o ronco dos motores, - você conhece esse Avelino?

─ Não senhor. – Respondi com certeza de nunca ter ouvido aquele nome.

─ Greg! O Avelino é um mercenário que vive viajando pros políticos. Ele gosta de se chamar de lobista,

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mas todo mundo sabe que ele é um bosta no senado, ninguém gosta muito dele a não ser pra trabalho sujos. – RATAN estava com a voz confiante, mas ao olhar para o meu pai, sentiu-se intimidado e baixou os olhos. Mas, papai tirou um maço de cigarros do bolso e ofereceu a RATAN, ele aceitou calado e esperou a sua vez de acender o cigarro, meu pai não ofereceu o seu ZIPPO e ignorou o cigarro apagado entre os dedos de RATAN, acendeu o próprio cigarro, deu uma longa tragada, antes de expelir toda a fumaça dos pulmões, deu outra grande tragada e apagou o cigarro no cinzeiro da poltrona, levantou-se, olhou pra mim e caminhou ate o fundo do avião, RATAN abriu o cinzeiro, procurou algum resto de brasa, tentou desajeitadamente acendê-lo, não conseguiu, olhou o cigarro apagado, coloco atrás da orelha, meu pai aproximou-se dele pelas costas, abriu o Zippo com o som característico de um isqueiro importado, RATAN assustou-se, olhando com olhos arregalados para meu pai que exibia um sorriso sarcástico, RATAN, meio lento, pegou o cigarro da orelha e, sem tirar os olhos do meu pai, aproximou-o da chama acendendo-o:

─ Obrigado! – Sem sentir que estava fumando.─ Eu que te agradeço. Você, de certa forma ajudou

muito. – Disse papai afastando-se, girando o Zippo para fechá-lo e colocá-lo no bolso da calça bege da PM.

─ Pai, se não fosse RATAN, seria bem mais difícil pegar os caras.

─ Eu os pegaria, meu filho! Antes de você dizer Colômbia.

─ Não duvido pai. Mas RATAN foi...─ O dinheiro está sob seus cuidados? Meu pai sabia que o dinheiro estava mesmo comigo,

queria mesmo era calar-me. Refestelei-me na poltrona e seguimos viajem sem falar muito mais. Pedi a RATAN que apagasse o cigarro por causa do pequeno espaço dentro do avião, ele apagou a brasa e colocou a guimba atrás da orelha, recostou-se na poltrona e virou-se para a janela.

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Paulo Siuves

─ ‘Cê viu a mina que peguei lá na roça? Gostosa não?

─ Tu não presta, meu irmão! Tu não presta mesmo...Papai pôs os homens do tal “Anjo” em três carros e

os levou para o batalhão, jogou-os pelados numa estribaria e mandou dar-lhes um banho de mangueira, água fria para “esfriar-lhes” os ânimos.

Havia um tempo nada o divertia e mesmo que ele tivesse feito uma promessa de não violência, ele precisava disso. Depois ele me falaria o que foi possível apurar do interrogatório deles, mas o que eu mais queria era livra-me daquele dinheiro.

Liguei pra Ramon na Bolívia:─ Ramon não está aqui. Acho que você está

encrencado...─ Como assim? Cadê seu chefe? – interpelei.─ Deve estar batendo à porta do seu irmão. Se você

tá com as verdinhas dele, vai pra lá agora.Parecia um pesadelo, Ramon tinha meios de

encontrar e capturar meu irmão. Esse era o problema de ter me envolvido com um cara inexperiente, apresado, que não sabia conversar, ele estava acuado por gente maior, a quem ele devia e os dólares que estavam comigo eram só um empréstimo, mas ninguém queria nem saber.

Eu tinha três problemas, Ramon e seus homens era o primeiro. Os rebelados de RATAN e a guerra com morro vizinho eram outro. Fazer minha mãe voltar ao Brasil com minhas irmãs e todas em segurança era o terceiro

Ignorei os problemas do senador Martins da Veiga. Não eram problemas meus era do governo. Coisa que sei, seriam sanados em dois tempos, isso se tivessem pessoas inteligentes interessadas com o bem–estar da nação no comando. Porém os dias que se seguiram mostraram o contrário.

─ Bom dia, senador! – Disse ao telefone.─ Alô! Bom dia Greg Hobsbawn. – Respondeu com

tom amistoso, demonstrando bom ânimo.

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─ Sua esposa deve aportar no Galeão nos próximos dias, agora tudo deve voltar à normalidade, certo?

─ Conseguiu devolver as verdinhas?─ Estão à caminho do dono. No governo há alguma

menção disso?─ Não. Já esqueceram, Esqueceram até do tal golpe

militar!─ O Brasil é mesmo um paraíso, senador! Aqui tudo

vai para o mar do esquecimento rapidamente, isto quando o assunto é governabilidade, não é verdade?

─ Com certeza, meu caro, foi bom poder ajudar.─ Ok. Qualquer coisa estou às ordens, falou?─ Falou. Bom dia, Greg!Eu precisava respirar um pouco. Voltar às ruas

despreocupado, e foi o que fiz. Liguei para meu pai, informei-lhe de Ramon e ele, como sempre consegue me surpreender, disse que já sabia do vôo de Ramon para o Brasil e das suas intenções, mandou que eu não me afastasse do celular e aguardar instruções. Chamei meus homens e fui jogar golfe num campo recém inaugurado, uns dos mantenedores do “Mães da Enxada” havia me convidado há algumas semanas e é preciso refazer os contatos. Passei num shoping, comprei roupas e tacos de golfe e fomos jogar. Nisso cometi um erro medíocre: Não dei prioridade à sede da ONG. – Minha casa – que fora invadido pelos moradores do morro de RATAN.

Saí do shoping, dirigindo meu carro, sentindo o vento nos cabelos crescidos, com braço na janela aberta, descansei e curti o passeio até o campo. Rimos de piadas maçantes, azaramos mulheres no trânsito, jogamos golfe e tomamos cervejas, fiz novos contatos em nome da ONG dos Hobsbawn, diverti-me até meu celular tocar:

─ Alô! Algum problema RATAN?─ Infelizmente, sim, brow! Tou com repórteres até no

teto, o que aconteceu enquanto estive fora, veio? Tão me taxando de líder comunitário, tem gente me pedindo cesta básica, dinheiro pra pagar contas de água, luz e gás, que porra é essa aqui, mano?

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Paulo Siuves

─ Cara, a mídia inverteu tudo entre nós. A situação é a seguinte. Você é um herói e eu um marginal de segunda categoria. Então você vai me fazer um favor, pode ser ou tá difícil? – Comecei lentamente a guardar os tacos de golfe e passar uma toalha na testa, na verdade os cabelos e barbas grandes estavam me incomodando.

─ Fala, irmão! Se eu puder te ajudar. Já é.─ As coisas no morro vão ficar complicadas pra você

por um tempo, então você vai comandar suas paradas lá do meu barraco...

─ ‘cê tá louco, fio? É eu por os pés lá e levar bala. Os caras do outro morro estão a fim de me apagar e você quer facilitar pra eles? To te entendendo não, aí!

─ Calma, RATAN! Parece que você não aprendeu nada com o sargento Hobsbawn, pô! – Parecia que eu tinha a solução para os meus problemas naquela linha telefônica, eu precisava de tempo para encontrar o Ramon e devolver-lhe a grana, para desocupar a minha casa e transferir o controle da ONG para o George. Parecia tudo tão complicado que só me restou uma opção: - recolher-me ao oráculo.

─ O Greg, você tá com um parafuso a menos, mas eu não. ‘cê tá ligado? Eu vou ver o que faço por aqui...

─ RATAN, me dá uma hora e eu te ligo, falou?─ Uma hora, véio. Depois...─ Valeu, irmão! Tchau.Passado quarenta e oito horas que tudo aconteceu,

desde o meu contato com Edgard, dando-me notícias de RATAN, veio uma notícia no mínimo estranha. Papai conseguiu quebrar o bando do Anjo, eram um bando de carniceiros mercenários, mas não eram profissionais o suficiente para manter sigilo dos seus contratantes. Medíocres, todos medíocres.

Meu pai ligou-me e eu pude ouvir o ranger da sua cadeira no escritório do batalhão, o som da tragada em outro cigarro, o silêncio de quem acabou de obter o ápice no gozo.

─ Filho, algo na história desse Avelino não bate.

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─ Como assim, pai? Seja claro.─ O Lucas assumiu a sua responsabilidade em levar

a grana pra Bolívia, não é isto?─ Sim senhor.─ Quem contratou o bando foi o Lucas ou você?─ O Lucas. Não sei onde ele conhecia esses lá.─ A história é a seguinte. Onde você está?Pensei em falar qualquer coisa, mas com meu pai é

sempre a verdade...─ Eu estava jogando golfe, estou indo pro

apartamento de George. Estou no trânsito.─ Muito bem! O Lucas deve ter encontrado

dificuldades em contratar pessoal pra voar pra Bolívia, uma operação perigosa, ainda mais quando se trata de evasão de divisas, certo?

─ Hum hum!─ Alguém, que eu ainda não sei quem, falou pra ele

desse mercenário, porém eu não entendi direito porquê eles iriam viajar em direção à Bolívia de carro. Dias de viagem chamando a atenção. Ou eles têm um plano secundário ou são extremamente burros. Eu aposto que tem uma mente brilhante perto de você, entende?

Meu sangue fugiu das veias, uma leve tonteira me fez querer assentar-me, já estava sentado. Tudo rodou, um filme em “Rewind” passou na minha frente, se papai estiver certo eu estou fudido...

─ Como assim, alguém tá me apunhalando?─ É a única resposta, vamos dar linha, deixar a

corda solta um tempo pra ver em que direção devemos seguir.

─ O que o senhor quer fazer?─ O rio corre sempre para o mar, o Avelino tal anjo,

nunca foi profissional e eu aposto que ele vai nos dar uma resposta. Ele vai nos levar até essa mente que pensa que é brilhante.

─ Pai, o Lucas tá morto! O RATAN provou sua lealdade, Os seqüestradores estão mortos e conhecemos os motivos deles. O que pode ter acontecido? Quem pode ser esse Shine Mint?

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Paulo Siuves

─ Deixa o anjo caído recobrar-se e eu tá dou a resposta. Até lá cuide da Ong de sua mãe. Pela manhã eu te ligo.

─ Tudo bem, até amanhã, papai.A benção! ─ Deus te abençoe. Até amanhã.

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ATAN retomou os trabalhos dele. Fez os contatos que precisava para colocar os “trabalhadores” em dia. Alguma cobrança, uma pequena

confraternização num bar na entrada do morro, Ali mesmo fez a contabilidade do tráfico e pôs todo o morro em ordem. Alguns fatores anunciaram que ele estava de volta ao comando, sem se descuidar, foi ao barraco dele, reviu a namorada e seguiu para minha casa.

RMandei instalar uma lista telefônica exclusiva para

ele, só ele podia fazer ou receber ligações nela. Nunca usar as linhas da OGN, foi só que lhe pedi. Coloquei quatro homens 24 horas dentro da minha casa que me passariam relatório de tempos em tempos. RATAN colocou outros “saldos” na segurança e os morros do Rio souberam que ele estava fortalecido e que não era uma boa idéia se meter com ele nesse período. Ele gostou tanto de mandar dali que cogitou a idéia de mora lá. Fez-se noticia corrente que não era mais a minha casa, sim a casa de RATAN o rei do Rio. Dez dias e já era impossível recomeçar os trabalhos na ONG naquele lugar. Mesmo porque eu estava em Jaguarê, cidade natal do “Mães da Enxada” no interior de Minas Gerais. A vizinhança não percebeu a mudança de operação de ONG para quartel do tráfico porque já era comum o movimento ali, um entra e sai constante, a não ser após as vinte horas quando encerro o meu expediente, o de RATAN continua noite adentro e há dias que se intensifica, a novidade para ele era o contato mais próximo com policias civis e militares corruptos querendo tirar proveito da nova posição do QG de RATAN. – Fora da favela é algo menos arriscado, mais privado. A banda pobre da polícia estava animada com o fato de que RATAN usava o nome do filho do sargento Hobsbawn, para assegurar-se de que ninguém o tocaria sem que ele soubesse antes.

Quando me dei conta da burrice que fiz, colocando o QG do tráficona minha casa, fiquei perturbado mesmo sabendo que era tarde demais.Agora é só uma questão de tempo para a mídia perceber e cair matando no meu encalço – Líder da ONG hospeda QG do tráfico carioca –

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Paulo Siuves

Só tinha uma coisa a ser feita: tirar RATAN da casa e vendê-la o mais rápido possível.

Mas isso teria de esperar até que os meus problemas com Ramon e com minha família estivessem sanados.

Avelino acorda de manhã num estábulo, com uma égua Mangalarga olhando para ele. Os olhos dela diziam:

─ INTRUSO, VÁ EMBORA! SENÃO MANDO TE PRENDER!!!

─ Calma aí, dona Égua, estou aqui contra a minha vontade! – Disse o “anjo negro”, acordando. Olhos vermelhos da noite mal dormida, o corpo todo dolorido, procura algum hematoma, não achou nenhum sequer. O pescoço estava ardendo, como a palma da mão e a sola dos pés. Tinha a impressão de ter uma costela quebrada, mas era só impressão, lembrou-se dos tapas em ambas as faces, sentiu ódio, lembrou-se do meu pai esbravejando, espancado-o, sorrindo um sorriso demoníaco, sentiu nojo. Lembrou-se do susto na invasão do hotel e do desconforto dentro do avião, depois dentro dum carro até chegar ali, sentiu medo. Procurou os comparsas, viu suas roupas molhadas, a calça jeans usada para chicoteá-lo, mas não viu ninguém, por uns segundos sentiu fome, depois não soube o que sentiu. Solidão...

─ Meu Deus, o que aconteceu com os outros? – Falou em voz baixa. E assustou tremendamente quando uma voz respondeu sua indagação:

─ Infelizmente não suportaram. Eram fracos. Você teve sorte, anjo maldito.

Era meu pai, com um charuto entres os dedos da mão esquerda e um chicote de cavalariço na direita batendo a ponta na perna e na bota que se podia usar como espelho. A farda impecável, o cheiro da colônia pós-barba misturava com o cheiro do estábulo e com a relva molhada pelo sereno o sol quente da manhã de verão dava um colorido especial à vegetação do quartel cuidadosamente tratado. O som de alguns soldados fazendo os exercícios matinais, o cheiro de café forte que chegava quando a brisa soprava mais forte, reacendendo a

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fome. Avelino vestiu a cueca molhada de água do banho gelado no entardecer do dia anterior e da urina que não conseguiu segurar quando começou a ser “quebrado”. Um examinava o outro...

─ Seus companheiros eram muito fracos e só balbuciava o seu nome antes de... Você sabe, não foram de muita estupidez.

─ O quê o senhor quer de mim? Já tá com a grana e me fez arrepender de tudo aquilo...

─ Explicações, rapaz! Quem, onde, porque, essas coisas, sua informação pode salvar sua vida.

─ Eu não tenho nada a dizer....Antes que Avelino acabasse de falar, meu pai

Chicoteou a égua que avançou sobre Avelino. Ele ficou inerte, como se nada tivesse acontecido, apenas fechou um pouco os olhos, mas ficou parado.

─ Você é corajoso. Gosto disso – Em pensamento – “Embora burro”!

─ Eu penso, Avelino, que você tem futuro, se for treinado nas técnicas corretas.

O sargento anda de um lado ao outro em passo lento sem tirar os olhos do algoz de Lucas. A fava da estribaria faz pequenos estalidos sob as botas dele.

─ Quero saber se você é tão inteligente quanto corajoso, senhor Anjo.

─ Eu não acredito em você, sargento! Meus amigos não estão mortos, você não vai conseguir me desestabilizar emocionalmente.

Os olhos de Avelino estavam já demonstrando transtorno, mas ele lutava corajosamente consigo mesmo para manter-se superior. Meu pai sabia de todas as lutas interiores dele, por isso deixou-o lutar.

─ Eu não sou um homem covarde, Avelino. Não! Eu poderia dizer que vou quebrar-lhe os joelhos e uma vértebra pelo menos, assim você estaria preso a uma cadeira de rodas pelo resto de sua vida. O que você acha?

─ Humpf! – Fez Anjo imaginando a dor.O sargento aproxima-se e se abaixa sobre um

calcanhar, ficando cara-a-cara com ele.

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Paulo Siuves

─ Eu poderia ir à Iguaba Grade onde moram seus filhos e sua mãe, buscá-los e... Você sabe! Quebrar você com a dor deles Melhorou assim?

─ Não se atreva... – com o chicote no queixo ele não completou a frase.

─ Talvez, se eu buscasse seu irmão, em Brasília, colocasse-o no pau-de-arara, você sabe o que é isso, Avelino?

Os olhos de Avelino expeliram faíscas contra meu pai, ele respirou ofegantemente desejando gritar injúrias, mas ele preferiu engolir secos todos os sapos que meu pai lhe oferece.

─ Eu prefiro, Avelino, ligar para alguns deputados federais e dar-lhes a sua posição para que cobrem de você os serviços que você não prestou, mas recebeu, lembra?

O Anjo caído resolveu avaliar a situação rapidamente, depois diz:

─ Você faria isso só para não estragar a unha, senhor?

O sargento levantou-se, lentamente olhou para fora da estrebaria e num só movimento desfere um soco na cara de Avelino que tomba com sangue no canto da boca. Depois vai em socorro dele, cinicamente, pedi-lhe desculpas

─ Desculpe-me, perdi a calma. Isto não se faz, afinal de contas você é meu hospede, certo?

Pega Avelino pelos braços, coloca-o sentado e se abaixa novamente. Puxa um longo trago no charuto, assopra no rosto do seu prisioneiro, levanta-se e segue em direção à saída.

Avelino então se desespera:─...José Martins da Veiga...Meu pai sentiu as palavras como se a égua lhe desse

coices com as duas patas nas costas.─ O que é que tem o senador?─ Foi ele que mandou a gente pegar a grana, ele me

deve dez mil dólares e me Daria cem mil se eu levasse as

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pastas para ele.Só que ele não me disse que tinha tanta grana naquela pastas.

─ Porque ele te deve dez mil dólares?─ Foi pra fazer um serviço pra ele....─ Claro, à toa ele não te daria dinheiro. Seja claro,

seu cretino.─ Vejo que a nossa conversa agora interessou ao

senhor, que tal se me arranjasse roupas limpas, secas e um café da manhã?

─ Que tal se eu pedir ao senador para dar um, pulinho aqui agora? Ele poderia trazer Ramon, o dono do dinheiro, hein? Que tal?

─ Ora, sargento, não sei qual é a relação que o senhor tem com ele, porque ele atenderia assim tão prontamente ao seu chamado?

─ Ele me deve, Mas eu não devo à você, nem explicações.

─ Meus amigos, onde estão? Te digo o que quiser se eles estiverem vivos.

─ Eu volto em alguns minutos.Avelino ouviu o cadeado se fechando, ficou com

raiva de si mesmo por ter falado tão rápido agora, mas ele não sabia se os outros estavam vivos ou mortos e isso lhe assombrava. As palavras do sargento lhe falando dos filhos, da mãe, do irmão caçula que vive em Brasília, lhe fizeram tremer mais do que a brisa fria daquele canto úmido onde estava. Agora só lhe restava esperar o retorno do sargento Hobsbawn.

A égua balançava o rabo e comia a fava, o sargento retorna, abre o cadeado e joga para o anjo uma calça de moletom, uma camisa de malha e um par de chinelos:

─ Vista-se!Avelino não espera a ordem repetir-se, tirou a cueca

molhada, vestiu-se com as roupas secas, Põe-se de pé e levantou os braços para um alongamento, mas tudo doía e ele foi compelido a baixá-los sob dores, calçou os chinelos e seguiu o sargento Hobsbawn para fora do estábulo, olhou em volta e viu os soldados se exercitando na academia, outros correndo na pista de futebol e outros

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fardados andando de um lado para o outro.Ele viu a todos, mas parece que ninguém o viu ali. Uma sombra atrás do sargento ou um fantasma que resolveu assombrar de dia inutilmente? O sargento tinha outros afazeres, mas no momento isso é tudo que ele queria fazer; divertir-se – sentir-se vivo, como nos bons tempos da ditadura militar, quebrando os queixos-duros da militância contra o governo.

Ninguém queria pôr-se no caminho daquele homem. Nenhum comandante, independente da patente, iria se importar com que tipo de serviço o sargento estava envolvido. O Anjo andava meio desajeitado atrás daquela personalidade, segui-o de perto com dificuldade, tudo doía, a caminhada ao menos serviu para esquentar o sangue congelado nas veias e isso o faz sentir-se melhor. Chegaram em um galpão onde uma sentinela guardava a porta. À aproximação do sargento, ele fez reverência e permitiu a entrada de ambos. Avelino observava tudo a seu redor, sondava cada canto, cada lugar como se pudesse escapar dali, mas ele sabia que estar atrás do sargento, sem algemas, sem escolta, é porque a fuga seria impossível, não conhecer as saídas, que certamente estavam bem vigiadas, antes de atravessar a rua ele seria alvejado por algumas dezenas de armas. Tentar obter informações, nem pensar. No Máximo o que conseguiria era outra sova.

O sargento seguiu num labirinto, passou por uma porta e o anjo pode ver através de uma janelinha, um refeitório amplo, vários homens conversando, poucos comendo ou tomando café, mas o ambiente para muito era amistoso, ele adoraria se juntar à mesa, tomar café e conversar sobre qualquer coisa. O sargento abriu-lhe uma porta, ele entrou e deparou-se com uma sala ampla com uma mesa aparafusada ao chão e duas cadeiras, mais nada nem quadros nem jarros de flores, nada além da mesa e das cadeiras,

Assim que Avelino entra a porta se fecha com estrondo a princípio ele pensou em voltar e bater na porta,

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depois resolveu aceitar a acomodação “VIP”, contornou a mesa e assentou-se de frente para a porta, levantou-se contornou a mesa novamente e assentou-se de costas para a porta. Conjeturou alguns pensamentos, alguns minutos depois, uma mulher morena, de cabelos negros como os olhos, cacheados abaixo dos ombros, nariz afilado e boca sensualmente carnuda, entrou com uma bandeja com um copo de café com leite, um pão com manteiga e alguns biscoitos, ele olhou o banquete, convidou a mulher para assentar-se, ela o ignorou completamente e saiu. Ele levou o café com leite à boca e queimou-se, soltou um palavrão e recomeçou a tomar o café com leite. Após a refeição ele debruçou-se sobre a mesa e tentou um cochilo, dormiu profundamente.

Enquanto isso o sargento ligou para o senador e o convidou para degustar um charuto que chegara de Havana para ele.

─ Olá, senador! Como estão as paragens de Brasília?

─ Tudo como Deus manda, meu sogro.─ Eu acabei de receber um presente da terra de

Fidel e gostaria de convidá-lo a degustá-lo comigo, senador!

─ Um blender 12 anos?─ Charutos, meu caro. Havanas selecionados folha a

folha.─ Será um prazer, sargento, vamos marcar para a

semana que vem?─ Na verdade eu tenho um assunto a tratar com o

senhor, a volta da minha filha para casa, sabe como é?─ Hã, sim. Compreendo a preocupação do senhor,

mas tem votação no senado e estou apresentando um projeto para apreciação, sobre as montarias do exército e das PM's. O senhor vai gostar, heim?

─ Vou gostar mesmo se você vier. Estou aguardando-o, não me decepcione, entendeu?

─ Sim, senhor, vou fazer o possível...Antes de completar a frase o telefone soava o tom de

que o sargento desligara. O meu pai nunca conseguiu

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distinguir bem o que era a vida dentro do quartel e fora dele, ele era militar o tempo todo, acho que sempre será assim. O senador entendeu o recado e que a presença dele é pra ontem no escritório do meu pai. Meu pai pegou um cigarro, acendeu, deu uma boa tragada, levantou-se da cadeira, andou até a janela e ficou pensando, como o senador teria coragem de mexer com isso? Porque ele precisava de tanta grana? Quem mais estava metido nessa história? Desde o comece da confusão que me atingiu a mais ou menos dois meses o Zé Martins tem sido amistoso, interessado, fizemos uma reunião no gabinete dele por acharmos um lugar seguro, como esse tal Avelino, o Anjo, o conheceu e o meteu nessa história?

Papai voltou para sua cadeira e refestelou-se nela, mas estava tão tenso que não conseguia ficar ali nem um minuto.

São quase nove e meia da manhã, estou na sede da ONG, em Minas, tentando trabalhar. Meia dúzia de mulheres me agarraram do lado de fora do escritório, cesta básica, colocação no mercado de trabalho, assistência jurídica e odontológica, sem contar as outras vinte e cinco que assistem a uma palestra sobre temas variados. Eu não tinha a menor chance de fugir dali, tentei ignorar meus problemas pessoais, olhei para o retrato da minha mãe na parede e pedi a benção, respirei fundo e me levantei para atender a recepção o telefone toca, volto correndo para atender pensando em meu pai:

─ Alô? – Atendo quase sem fôlego acreditando que era meu pai dando notícia do Avelino, mas não era.

─ Alô! Senhor Hobsbawn?─ Sim.─ Meu nome é Mônica Neves, trabalho na tv

Inconfidentes, sou repórter do programa sabatino e quero fazer uma reportagem sobre as ONG’s mineiras na verdade....

Ela falou um monte de coisa para as quais respondi “sim”, “hum, hum”, “Entendo”, e marcamos para a última quinta-feira do mês;

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─ Vou transferir para minha secretária ele vai te encaixar na agenda, ok?

─ Muito obrigada, senhor Hobsbawn! Até lá.─ Tchau, bom dia!Transferi a ligação e me levantei novamente,

alonguei-me e respirei fundo, o telefone toca novamente:─ Pronto!─ Greg? É o George. Legal aí?─ Oi, mano! Tudo legal, já soube das últimas?─ Que vocês resgataram a grana? Já soube.─ Você falou com Zé Martins?─ Ainda não, minha mãe ligou e pediu pra você ligar

pra ela.─ Tá legal, ouça, não fala nada com ninguém por

enquanto, papai tá tentando descobrir algumas coisas e tudo pode se perde se as informações começarem a reverberar....

─ To entendendo, vou ficar na moita.─ Que vocabulário e esse George?─ To ligado na fita com o RATAN e tou tentando me

alinhar, sacou? Ele não está trabalhando na sede do Rio?─ Não! Quer dizer, ele está lá. Mas a ONG não está,

está aqui, lá é só enrolação, nada de trabalho.─ Como assim? E as contas?─ Desativei a linha de lá e instalei outra. Pago as

contas com meu salário...─ Caixa dois? Eu te pego, heim!─ Deixa de besteira. Preciso desligar, papai vai me

ligar.─ Certo. Depois precisamos conversar direito.─ Sim senhor, senhor irmão mais velho.─ Deus te abençoe “meu filho”!─ Amém. Tchau, George?─ Tchau. Até mais Greg.Desliguei e me levantei meio irritado com a

conversa, antes de chegar à porta o telefone tocou; voltei sem correr, mas ainda ansioso:

─ Alô!─ Greg! Meu chapa!

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─ RATAN, não posso falar contigo agora, to esperando uma ligação muito importante assim que der eu te ligo, falou?

─ Falou, to na escuta....Eu estava a ponto de ligar para meu pai, mas se eu

ligasse... Sei lá! Estava muito apreensivo, mas era melhor esperar.

São nove e quarenta e cinco, saí da sala, olhei para as mulheres que estavam na recepção, alguma sorriram, outras não.

A sede da ONG fica no centro de Jaguarê, uma casa nova que mamãe construiu após o acidente. A princípio seria nossa casa. Uma casa com dois quartos e uma suíte, sala grande, um escritório ao lado da copa, virou arquivo morto, as palestras eram ministrada na garagem que foi modificada para esse propósito, nada de ambientes requintados, o contrario da sede do Rio que eu montei, a recepcionista chama-se Elaine, uma das primeiras mulheres atendida por minha mãe:

─ Elaine retenha todas as ligações, só me passe se for o sargento,certo?

─ Certo, Greg! ─ Pode mandar a primeira entrar. – Virei e voltei

para o escritório.─ Pode entrar você. – Ordenou Elaine à primeira da

espera.Com os trabalhos da “Mães da Enxada” eu me distraí

e deixei, meus problemas em segundo plano. Atendi as seis mulheres, as duas primeiras queriam cesta básica, a terceira já era bem conhecida de todos da ONG. Tinha problemas psicológicos e sete filhos, de quatro homens diferentes. Precisava de médico para seus os filhos, casos que a saúde publica poderia atender sem problema, mas ela acostumou-se com nossa ajuda. A quarta mulher precisava de ajuda para seu filho que se envolvera com drogas e ainda não estava em tratamento para se libertar. Estava com problemas com a polícia e com os comerciantes de Jaguarê, um caso peculiar.

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A quinta mulher queria se divorciar do ex-marido, mas esse não aceitava a separação, tínhamos que encaminhá-la à delegacia da mulher na capital porque ela sofria agressões por parte dele, um advogado da ONG cuidou do caso. A sexta mulher queria um tratamento odontológico completo, mas durante a conversa acabei identificando a necessidade de um acompanhamento psicológico, além de haver necessidade de planejamento familiar, ela estava esperando o quarto filho, o marido trabalhava numa fazenda com renda menor que um salário mínimo, então busquei uma recolocação para ele além de denunciar a fazenda ao ministério do trabalho.

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aí para almoçar às treze e dez, estava exausto e faminto, meu pai não havia ligado. Ao voltar para sede, liguei para ele.S

─ Alô, pai?─ Oi, meu filho! Tudo bem com você?─ Sim, tudo bem. E o Anjo do inferno? Abriu o

bico?─ Não. Deixei-o dormi mais. Mas seus amigos

abriram.─ O que disseram?─ O nosso senador está metido nisso.─ O Zé Martins? O que ele tem a ver com tudo isso?─ Precatórios, dividas na Europa e contratos com o

restaurante do senado.─ Há? Muita grana?─ Oitocentos mil dólares. Sabe a quem ele deve?─ Estou curioso....─ Muito bem. O Edgard Guzzo procurou o senador

para tentar arranjar a grana do seqüestro, obviamente ele não tinha, mas imaginou que eu poderia ajudar.Só que ele sabe que eu não brinco em serviço. Procurou chamar a sua atenção e não conseguiu, mas conseguiu chamar a atenção de Lucas, fez um plano cujo resultado daria uma certa notoriedade ao Lucas, ou coisa parecida, porém o menino era fiel a você.Qualquer coisa de bom era sempre pra você. Isto eu presumi, certo?

─ Sim, senhor!─ Então! O plano era trocar as malas por maços de

jornais velhos, só que com a doença da sua mãe, ele se atrasou e ficou meio enrolado. Acho que até pensou em se oferecer a levar a grana, mas isto seria muito óbvio. Encontrou-se com Lucas e apresentou o Avelino como sendo gente de sua inteira confiança. Então mandou matar o Lucas, como foi o ocorrido, deveriam levar as malas para Brasília sem mexer nelas, aí RATAN entrou na historia. Falou da soma e que tinha planos pra ficar com tudo, mas não se importava em levar menos. Abriram a malas e riram de canto a canto com tantas verdinhas

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ali. O senador começou a pressioná-los caso eles não levassem as bolsas para ele. Aliás, a sua viagem para a Europa, não foi exatamente para nos ajudar, foi pra acalma os ânimos do pessoal a quem ele deve. Deve ter levado algum adiantamento, sei lá, não me interessa. Então Avelino começou a viajar de carro pra Brasília porque não podia passar por um aeroporto sem chamar a atenção para os dólares.

─ O senhor já falou com o Zé Martins?─ Tudo a seu tempo, rapaz. Primeiro quero saber de

RATAN porque ele ligou para Edgard Guzzo e não pra você. Porque ele não nos contou nada sobre o senador.

─ Posso mandá-lo ao seu encontro...─ Deixa que eu faço do meu jeito. Agora outro

problema.─ Estou ouvindo! – Meu coração dispara sem nem

mesmo eu saber por que, só de meu pai falar de algum assunto como sendo problema já era motivo o suficiente pra me assustar.

─ RAMON está na sombra desde ontem.Tá tentando ficar invisível, porém a grana dele já chegou lá, o que ele está fazendo aqui?

─ Será que ele perdeu contato com a Bolívia? ─ Você me decepciona, rapaz! Claro que existe uma

segunda explicação e, pra ser honesto, tomara que tenha algo a ver com o senador, vou mandá-lo pro inferno sem pestanejar.

─ Se ele tivesse chegado na sede do Rio, Digão e os outros já teriam me informado. Lá está sob controle...

─ Se Ramon tivesse entrado em Minas eu saberia, ele não saiu do Rio de Janeiro. Em breve terei noticias dele. Bom, deixa-me trabalhar, afinal não existe somente Greg Hobsbawn no mundo, tenho outros deveres e já estão atrasados.

─ Tá certo , pai. A ONG está a todo vapor.─ Cuide-se, filho! ─ Sim senhor, a benção pai!─ Deus te abençoe.

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Ramon invisível para meu pai era novidade, nada que o interessa passa despercebido, ainda mais um baixinho Boliviano com sotaque carregado e com raiva...

Sexta-feira, treze e trinta. Meu pai liga para o gabinete do senador Martins da Veiga:

─ Gabinete do senador Martins da Veiga.─ Eu sou o sargento Héctor Hobsbawn. Quem está

falando?─ Sou assessor de gabinete Mario Silva. Em que

posso ser útil ao senhor? ─ Em nada quero falar com meu genro, o senador.─ Desculpe-me, senhor, mas o senador viajou para

participar de um seminário em Portugal e tem retorno previsto para quarta-feira à tarde, podendo desembarcar em Brasília no início da noite.

─ Viajou? – O sargento esmurrou a mesa com verdadeiro ódio. Fugindo do sogro o senador assumiu qualquer culpa. – Porque não fui informado?

─ Senhor, eu sou o assessor dele e fiz todos os contatos que se fizeram necessários...

─ Informe-o então que aguardo o retorno dele imediatamente, entendeu, rapaz?

─ Sim, senhor...─ Passar bem!Meu pai não acreditou que o senador tivesse sido

inexperiente a ponto de se meter numa confusão daquelas, ou será que era eu quem não acreditava? Penso que meu pai já esteve frente-a-frente com toda sorte de traidores, porém, nunca alguém de dentro da família vivera o bastante para desafiá-lo.

RATAN pagou pelo pecado do Zé Martins. Às vinte e uma horas, um carro do serviço especial da polícia militar – SERESP – PMRJ – chegou à sede improvisada de RATAN para fazê-lo acompanhar até onde meu pai estava.

─ Sujou, aí. Polícia na área. – Bradou um dos homens de RATAN.

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─ Calma aê, gente! Deve ser o pai do Greg. – Acalmou RATAN.

─ Digão, vê lá se é do bem! – falou outro dos homens de RATAN

Digão olhou para ele com seriedade, querendo fazê-lo lembrar que não trabalhava para o tráfico, muito menos para aquele mela botas, mas achou melhor ir conferir antes que o pânico se instalasse dentro da casa.

─ Temos ordens de conduzir RATAN até o BI.─ RATAN, tá em paz! É gente do sargento. – Disse

Digão.─ Tudo bem, vamos lá. Voltem ao trabalho.Os policias colocaram RATAN no compartimento de

presos, mas ele não reclamou, andar ao lado dos PM’s não era bom para sua reputação. Saíram cantando pneus, de sirene ligada. Dentro do carro, silêncio absoluto, exceto pelo rádio da polícia. Armas nas mãos e a toda velocidade, conduzindo RATAN para uma noite totalmente inesperada. Chegaram ao 40º BI, o sargento os esperava fardado como se o governador fosse passar a tropa em revista, RATAN o viu ainda de dentro do carro, sorriu e depois pensou em acená-lo, depois pensou uma repreensão à si mesmo:

─ Hei, RATAN, deixa disso, já pensou se os manos te vissem dando tchauzinho pro policial? Afinal o quê que eu to fazendo aqui?

O carro pára, os homens descem e abrem a tampa traseira, RATAN é bruscamente arrastado de lá e jogado ao chão aos pés do sargento, antes de ele dizer qualquer coisa, ele sente um cassetete dar-lhe nos rins, outro soldado ajoelha sobre as costas de RATAN e puxa-lhe o braço esquerdo, algema-o e puxa o direito fazendo-o estralar, algema também, outro homem se aproxima e o que estava sobre ele pega o seu braço direito e o outro homem pega seu braço esquerdo quase no mesmo instante, levantando-o como se fosse um menino. Um terceiro policial dá um murro especial em seu estômago e o sargento ordena:

─ Chega! Levem-no para a sala.

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Uma sala preparada para aquela noite. RATAN, sem entender nada é conduzido como um burro no cabresto pelo pátio do quartel, ao chagar na porta ele é empurrado contra a parede com violência, um soldado tira a chave do bolso, destranca a porta e ela se abre, rangendo como se nunca tivesse sido aberta.

RATAN já sabia que teria de entrar, mas não deixaram por menos. Um soldado puxou-o violentamente, ele sentiu dor no braço direito, mas não gemeu. Foi empurrado para uma cadeira de ferro, sua camisa gelou ao contato com o encosto da cadeira. O sargento apareceu na porta, como um gigante.

─ O quê que tá pegando, gente fina? O que é que eu fiz? Se for por causa da casa, o Greg tá ligado, é só o senhor bater um gancho pra ele...

─ Cale-se! – interrompeu o soldado que o algemou aproveitando para dar-lhe um belo tapa na cara.

─ Eu quero te fazer umas perguntinhas, Ratão ─ Pô, chefia! Podia ser pelo telefone não?─ Podia, mas eu precisava olhar nos seus olhos

para saber se você está mentindo ou não.De repente RATAN percebeu que toda a admiração

que ele sentia ou tentou sentir pelo pai do seu amigo havia desaparecido e dentro dele, só ódio. Um líquido verde, viscoso, com cheiro ardido e gosto doce, corria do coração de RATAN, percorria cada artéria, ao passar pele cérebro ele percebeu que era ódio, e que em algum lugar o medo foi filtrado.A covardia deixou de ser produzido pelo organismo, só existe o líquido verde chamado ÓDIO. O sargento sentiu aquele líquido adoçar a boca quando ligou para o gabinete do genro e descobriu sua fuga.

─ Há dois dias atrás, eu descobri quem roubou a grana do tal Ramon. – O sargento estava em pé em frente à RATAN, eles se olharam olho a olho – Talvez, durante o turismo com o Anjo você ouviu alguma coisa que tenha se esquecido de me contar.

RATAN ainda não entendia as atitudes do sargento, afinal ele mesmo o agradeceu dentro do avião.

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─ Olha, sargento. Vamos acabar logo com isso, valeu? O que o senhor quer saber? Sobre o Anjo eu já falei tudo.

─ Sobre quem contratou o bando. Diga-me o que sabe.

─ O Lucas contratou os quatros antes de me falar qualquer coisa. Não sei nada sobre como foi o contato, a negociação pro trabalho, nada.

─ Quando vocês estavam no ar em direção à Bolívia, o que aconteceu?

─ Eu fui ao fundo do avião fumar, mas antes de acender o cigarro, fiquei lá sentado, só cubano o ambiente, acho que comecei a cochila e ouvi dois deles conversando, o outro falou que tinha de ser na localização do mapa. Eu não sou mané, percebi no ato que estava rolando uma treita errada.

─ Porque você não falou pro Lucas. ─ Pois é! O Lucas tava numa conversa animada com

o Silviano Eu tinha certeza que o tempo era curto, aí eu sentei do lado do Avelino e esbocei um sorriso, ele me perguntou qualé que era a parada, eu falei que tinha um canal pra deixar nós dois feitos pro resto da vida. Aí ele falou que tava com a vida feita e levantou uma PT, pôs na nuca do Lucas e disparou.

─ Sem falar nada?─ Sem o Lucas nem perceber que ia morrer.─ E você?─ Gritei “que isso brou, que isso brou” ai ele virou

pro Silviano e disparou no peito dele, depois virou pra mim, eu gritei bem alto: “- To contigo mano! To contigo mano!” Aí ele perguntou de que eu tava falando, eu falei que sabia da grana, que tinha planejado levar tudo mas tava disposto a levar menos, eles perguntaram onde que tava,eu apontei para a mala. Eles se entreolharam e deram de ombros, um deles apontou pra mim e mandou eu abrir a mala.

─ E os pilotos?─ Eles já tavam com o berro na cabeça recebendo

ordens de desviar, teve um momento de tensão porque um

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deles arrebentou o rádio. O Avelino pagou o maior esporro porque se acontecesse qualquer coisa como eles iriam pedir ajuda?

─ Quando você abriu a mala? O que aconteceu?─ Aí eu fui até o corpo do Silviano, peguei as chaves

e abri a mala, falei pra eles que ia levar tudo, mas tava disposto a dividir com todos eles. O Avelino me perguntou quanto é que tinha ali, eu falei um milhão e duzentos mil, em moedas do tio Sam. Eles riram e apontaram a quadrada pra mim de novo, aí um deles falou pra me manter vivo caso fosse preciso apresentar algum refém, o Avelino pegou e me propôs uma troca, eu ajudava eles a trocar por moedas brasileiras, se tivesse alguma complicação com o Greg eu deveria resolver e eles me dariam uma merreca de vinte cinco mil dólares. Eu tentei negociar, mas eles tinham as armas apontadas pra minha cabeça, eu aceitei.

─ E depois de pousar?─ Eu desliguei meu celular. Quando eu fui pegar as

chaves da mala, eu peguei o celular do Silviano, aí depois um bundão ficou falando que ia melar, que eu iria entregá-los, que iria ligar pra alguém ou mandar mensagens, então o Avelino me pediu o celular, eu dei o do Silviano, ele não conferiu nada, só tirou a bateria e pisou no aparelho, acabou com celular no calcanhar. Aí pousamos em Minas, eles meteram fogo no avião com os dois pilotos amarrados nas cadeiras, pegaram um carro, que eles mesmos deixaram lá e fomos embora. Paramos num posto pra reabastecer, eu dei uma volta, liguei pro Greg e passei as novas, só que eles, mais tarde viram o celular e queriam me apagar eu falei que tinha roubado o aparelho na recepção do hotel, mas se eles não queriam acreditar, fodas. Para quê que eu ia precisar de celular? Eles encheram o saco e eu mandei a porra na parede. Virou caquinho.

─ Muito bem! Vamos ao que interessa, porque você no último contato, ligou para o senhor Edgard Guzzo e não pro Greg?

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─ Eu coloquei o nome do Greg na agenda do celular. Eu nunca decorei números de telefones, mas o do Edgard foi fácil porque era um número fixo, o mesmo prefixo da minha mãe, só lembrei dos últimos números, três, cinco, cinco, quatro. Que nem minha irmã pulando amarelinha. – RATAN estava mais confiante, o sargento andava de um lado para o outro, impaciente com o genro. Como não podia de forma alguma interromper a viajem do senador, o jeito era tentar esvaziar o tambor da ansiedade em outro rio.

─ O quê você ouviu sobre o senador Martins da Veiga?

─ Senador? Que senador?Um soldado se aproximou e disse:─ Vou refrescar a sua memória, desgraçado?Um outro tapa na cara fez seu ouvido zunir um certo

tempo.─ Eu não ouvi falar nada de nenhum senador,

sargento? – RATAN estava choramingando, então o sargento falou:

─ Quem contratou o Avelino foi um senador. Você ouviu alguma coisa sobre o contratante?

─ Ouvi, mas não falaram nenhuma vez sobre senador, só falaram sobre um tal sô Zé, que eles tinha que matar ou tinha que devolver a grana. Só que quando eles discutiam algum assunto mais sério, eles se afastavam de mim. Eu não consegui fazer nenhuma conexão com nome de ninguém que eu conheço. Eu saquei que eles tinham um plano e que não podiam envolver mais ninguém, era uma pessoa em Brasília, só que eu pensei que essa tal pessoa morasse em Brasília, e como Greg mora no Rio eu achei que eles estavam sendo pressionados por alguém com quem eles tivessem uma dívida antiga.

─ Esse é um problema sério, vocês pensam. Às vezes pensam até demais.

─ Senhor, o Greg sabe que eu estou aqui?─ Eu faço as perguntas, você apenas responde.RATAN presumiu que seu amigo não sabia que seu

pai estava o apertando. Sentiu muito ódio. Ódio do

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sargento, dos soldados que estavam ali e de todo o resto da polícia. Decidiu então não dar mais informações, assim que voltasse iria se vingar daquela humilhação, da sova sem motivo. Tudo o que ele falou, ele falaria em qualquer lugar, preferia que o sargento Hobsbawn o tivesse convidado para jantar, ou almoçar em algum restaurante. Os motivos do meu pai eram insuficientes para aquela ação, principalmente por estarem dentro de instalações da PM. – “onde o Greg está?” – Pensava ele. – “Se ele tiver alguma coisa com toda essa droga aqui, ele tá ferrado comigo...”.

─ Por quê você não abandonou o grupo assim que pode?

─ Sargento Hobsbawn, nada disso aqui era necessário. Fui fiel ao seu filho o tempo todo. Agora eu quero falar com Greg, seu filho. Eu estou preso?

─ Não, você não está, você não vai falar com Greg e vai me dizer tudo o que eu quiser saber.

─ Então capricha porque o senhor não vai ouvir nem mais uma palavra de mim.Eu estava disposto a cooperar, mas agora; fodas.

O sargento sorriu maquiavelicamente, os outros riram alto. Aquela noite seria longa para RATAN – o rei do Rio – estavam fabricando um verdadeiro inimigo da polícia.

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Meu celular tocou, Ramon:─ Muito bem, seu Greg. Estou informado que meu

dinheiro chegou com uma pequena acrescida, porém os estragos já estão feitos...

─ Senhor Ramon, eu estou profundamente envergonhado por todo o episódio dos últimos dias, mas agradecido pela sua colaboração. Creio que estamos quites.

─ Sinto muito seu Greg, mas não é bem assim...─ Como assim? O nosso trato foi cumprido.─ Ora , senhor Greg. Eu pensei que estava

negociando com homem. Desse jeito o senhor me deixa mais desapontado.

─ Não há nada a negociar. Você pediu armas e a droga, para me emprestar a grana, você as têm. Devolvi com juros pelo atraso. O que mais você quer? Creio que me esquecer.

─ Você me causou problemas. Tenho que te contar uma coisa, tudo na vida é questão de feeling, e eu não estou sentindo que o senhor quer colaborar pra que eu esqueça de tudo o que me causou! – Havia sarcasmo em sua voz.

─ Se lhe causei algum prejuízo, cem mil dólares pagam por eles. Muito obrigado e boa noite! –Tentei ser o mais resoluto possível, mas ele não queria retroceder facilmente.

─ Eu quero uma compensação pelo tempo em que fiquei afastado dos meus negócios. Eu perdi muita grana, o senhor sabia?

─ Eu sei quem é você, sei que a compensação está no seu quartel e que se você não voltar pra lá o mais rápido possível, terão que escolher outro chefe.

─ Você está me ameaçando?─ Não senhor, eu não sou homem de fazer ameaças.

Eu estou prometendo. Se você não deixar o Brasil esta noite vai ficar aqui para sempre sob sete palmos de terra.

─ Vejo que estamos com relações rompidas, senhor Hobsbawn.

─ Com certeza senhor Erguéras.

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Paulo Siuves

─ Eu vou embora. Considere a batalha terminada, mas a guerra é dos fortes.

─ Aliás, como é o seu relacionamento com o presidente Almodóvar? Creio que ele não tem seu endereço exato, estou correto?

─O senhor vai receber notícias minhas...Ele desligou o telefone. Eu liguei para meu irmão:─ Alô? – Disse ele com voz de quem estava no

melhor momento do sono.─ Oi George! Aonde você está?─ Na casa do papai, aliás, onde ele está?─ Já ligou para o quartel?─ Já. Ninguém atende lá. Ele não está lá.─ Tudo bem, eu o encontro. Não saia daí, ok?─ Eu estava dormindo e é o que pretendo continuar

fazendo!─ Certo! Bons sonhos, mano. Até amanhã.─ Tchau!Eu sabia que não tinha com o que me preocupar

quanto a meu pai, no entanto, onde ele estava até àquelas horas? Já era quase meia-noite e ele não costuma ficar incomunicável. O celular desligado, ninguém no escritório, ligar pra alguém àquelas horas era um pouco imprudente. Se Ramon o tivesse pegado, ele não hesitaria em dizer para me pressionar. Resolvi ligar para Beto e para Digão:

─ Beto, onde você está?─ Greg, eu tô na... Por quê?─ Não estou encontrando meu pai em lugar nenhum.

Vou precisa de você e do Digão. Onde ele está?─ Digão ficou na sua casa, Greg. Liga pra ele e fala

que eu vou passar lá para pegá-lo, então nos encontramos com Gil e vamos procurar o senhor Hobsbawn. O encontraremos onde ele estiver.

─ Certo Digão! Fique perto do celular, ok?─ E precisa falar?─ Valeu. Tchau!Liguei para Digão já arrependido de ficar em Minas.

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─ Acorda, mano veio. O dever te chama.─ O quê que tá acontecendo?─ Meu pai. Preciso encontrá-lo, Beto Boy vai pegar

você aí para encontrar meu pai. Se estiver tudo bem, ele nem precisa vê-los, basta me ligar e me informar, ok?

─ Seu pai está com RATAN, Greg.─ Com RATAN? Pra onde eles foram?─ Sei lá. Um carro da SERESP veio aqui e levou

RATAN, seu pai não estava no carro, mas com certeza o levaram para o quartel.

─ Então cheque a situação, estou com maus pressentimentos...

─ Ok. Daqui à uma hora eu te ligo. Tchau!Meu pai disse que queria conversar com RATAN aos

modos dele, será que ele queria quebrar RATAN pra obter alguma informação que eu já não tinha? Fiquei descrente que ele usaria a violência contra um dos meus amigos, se é que RATAN fosse um deles, só que ele já havia provado que seria leal a mim, não justificaria nada se meus receios se comprovassem, então fui tomar um banho pra tentar relaxar e dormir. Ramon precisava ser localizado e vigiado até sair do Brasil.

Eu senti muitas saudades de minha mãe e de minhas irmãs, ao amanhecer, elas deveriam saber que já está na hora de voltar pra casa.

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Paulo Siuves

m mês e dezoito dias se passaram desde a morte de Lucas. Minha mãe não deve ter desconfiado que havia algo errado e espero que nunca fique

sabendo. Acordei sem ter notícias do meu pai nem de RATAN, agora eram cinco sem me dar notícias. Beto Boy, Digão e Gil já deveriam ter dado notícias de meu pai, se ele estivesse no Rio ou não. E RATAN? Estava ou não com meu pai? Se estiver, o que ele disse de novidade? Porque meu pai não me liga pra dar as novas?! Será que Ramon Erguéras voltou pra Bolívia? Estar em Minas começou a me perturbar muito.

U

Peguei o telefone e liguei pra clínica onde minha mãe estava se tratando:

─ Alô! Eu quero falar com Geanne ou com Giovanna Hobsbawn.

─ Aguarde um momento, por favor!Meu inglês não era tão bom então tentei ser o mais

claro e rápido o possível, a mulher entendeu, mas fez piada com alguém perto dela, isso não deu pra entender.

─ Alô?─ Oi, Geanne! Tudo bem aí?─ Oi, Greg! Giovanna me contou o que está

acontecendo. Porque o George não está à par de tudo?─ Algumas coisas acontecem muito rápido, maninha.

Não dá pra ficar passando cada detalhe da situação. E mamãe, como está?

─ Ela está ótima e dando o maior trabalho querendo voltar pra casa. Eu já perdi duas semanas de aula, quando vamos voltar?

─ Por mim, hoje mesmo, mas papai vai conversar com o médico dela para passar instruções e dar alta a ela. Amanhã vocês devem voltar, tá bem?

─ Posso fazer as malas então?─ Eu disse que é com papai...─ Que droga, você arruma as suas confusões e põe

todo mundo no exílio, o que você tem na cabeça, titica?─ Preocupações, preocupo-me com o bem-estar de

vocês, afinal são as únicas mulheres que tenho.

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─ Então vai caça outra pra você aporrinha...─ Mamãe está aí perto? Dá pra passar pra ela?─ Dá. O George liga todo dia e você some, né?

Mamãe tá sentida com você. Espere um pouco...Ouço ela colocar o telefone no balcão e aguardo, eu

fico apreensivo toda vez que tenho que esperar no telefone parece que vai acontecer algo e eu vou ficar só escutando sem poder fazer nada, quilômetros de distância me separam da minha família. Eu me sinto exilado.

─ Mamãe tá ao telefone com Zé Martins. Parece que ele tá em Portugal e que vai demorar lá uns dias. Até o presidente bonitão tá lá com ele...

─ Então é ele que está com o presidente, questão de hierarquia, Geanne. Não te ensinaram isso na escola?

─ Você quer falar com Giovanna? Ela tá lá no quarto com mamãe, mas pode vir falar com vocês.

─ Não. Eu ligo daqui a uns minutos, vou ligar pro papai.

─ Então tá! Pede ele pra quando ele ligar, mandar me chamar, viu? Delinqüente juvenil.

─ Se você não retirar esse xingamento eu não falo nada pra ele.

─ Tá bom, meu irmãozinho querido. Fala pra ele, tá?─ Então diga que me ama.─ Sai fora, greg...─ Anda. Diga que me ama e que está morrendo de

saudades de mim.─ Eu tenho namorado e ele e ciumento!─ Não tem problema, eu não sou ciumento. Tenho

que dividir a Giovanna com o Zé Martins, não é? Porque não dividir você com aquele retardado?

─ Ele vai ser um juiz e vai te pôr na cadeia por difamação e danos morais, isso se ele não te matar algemado em defesa da honra...

─ E você vai casar com o assassino do homem que você mais amou em toda a sua vida?

─ O homem que mais amei em toda a minha vida, queridinho, é o papai.

─ Tá certo! O segundo homem que você mais amou.

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Paulo Siuves

─ É o George...─ O terceiro?─ O quarto ou quinto pode ser você.─ Então vá pro quinto dos infernos com sua lista,

pede para o George dar o seu recado pro papai, tá ok?─ Ficou com ciúmes, né? Liga não bobo. Você é um

delinqüente, mas eu te amo assim mesmo.─ Também te amo, mesmo você sendo uma pirralha,

chata e sardenta...─ Mamãe que falar com você agora, tchau,

delinqüente...─ Tchau, pentelha...─ Alô? Gregório, tudo bem com você, meu filho?─ A benção mãe. Tudo bem?─ Deus te abençoe. Agora está ficando ruim. Quanto

tempo esses médicos vão me segurar aqui?─ Mamãe, se eles estão a segurando é porque a

senhora precisa de tratamento VIP...─ Mas já estou boa. Quero voltar pra minha casa,

voltar pro meu trabalho.─ Tá todo mundo perguntado quando a senhora

voltará, eu estou em Mimas cuidado de tudo do jeito que a senhora me ensinou.

─ Que bom, o George me disse que está tudo bem. Porque você não tem ligado?

─ Trabalho, mamãe! Essas meninas estão me dando muito trabalho, a Elaine está quase estafada...

─ Fala pra ela que eu vou mandá-la passar uns dias aqui no estrangeiro, ela vai adorar. Tem cada médico aqui, lindos...

─ Mamãe, comporta-se. A senhora e uma dama...─ Filho, estou viva. Preciso de carinho, atenção...─ E nós não temos dado carinho e atenção o

suficiente à senhora, não?─ Não é desse carinho, meu filho!─ Volte pro papai, mamãe. Ele também tá sozinho.─ Ele tem a corporação, meu filho, ela dá tudo o que

eu nunca pude dar.

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─ Ele vai ligar hoje pra acerta as contas, averiguar os passaportes, quem sabe a senhora não se entende com ele?

─ Meu filho, quanto anos você tem?─ Vinte e cinco.─ São vinte anos de separação. Vinte de celibato.

Acho que seu pai não está a vinte anos sozinho. ─ Mamãe, ele não se casou com ninguém, só pode

ser porque ele esperava reatar com a senhora.─ Ouça, não é esse o assunto que deveríamos tratar,

mesmo porque seu pai nunca foi fiel à mim e sim à corporação...

─ Mamãe,...─ Ouça, meu filho. Arrume a casa, verifique se eu

vou gostar de voltar e ver o estado em que a ONG se encontra, entendeu?

─ Tá bom, mãe! Está tudo no seu devido lugar. Agora se cuide, senão eu pego a Geanne e a Giovanne de porrada.

─ Que isso? Que palavreado é esse? Onde estão os modos pra falar com sua mãe.

─ Desculpe-me, mãe. Estou morrendo de saudades.─ E eu de você, querido! Vai me busca no Rio?─ Claro! Já falei com o senhor Ramiro pra verificar

a manutenção do Lear Jet dele, só pra busca a senhora.─ como assim? Ele trocou de avião?─ Já tava na hora, né? Aquela sucata estava pedindo

arrego há muito tempo.─ Está, bem, meu filho. Até amanhã!─ Até amanhã, mamãe! A benção.─ Que Deus o abençoe, Juízo, hein?─ Pode deixar, nada de ficar olhando esses homens

daí não, viu.─ Espero voltar casada com um desses gringos.─ Mamãe!!─ Brincadeira, agora tchau.─ Beijos, mamãe!─ Beijos, meu filho.

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Paulo Siuves

Sinto-me mal mentindo assim para minha mãe, mas isso era algo que ela jamais iria saber. Dinheiro de guerrilha, mortes, roubos, ameaças, tudo isso é história que só acontece no cinema, nada disso faz parte da vida da mamãe, e deveria continuar sendo assim. Ainda preciso falar com ela da morte de Lucas, éramos a única família que ele tinha. Tanta coisa aconteceu que nem deu pra fazer um funeral digno pra ele. Mas assim que localizarem o corpo dele e de Silviano, vou cumprir o papel de irmão que ele esperava de mim.

Tomei um bom banho matinal, fui tomar café da manhã no escritório, como mamãe disse, tudo tem de estar na mais perfeita ordem. Elaine trouxe-me um desjejum que comi mais com os olhos, depois liguei no celular do Beto:

─ Alô! Greg. Desculpe não ter te ligado, seu pai deu ordens claras pra você ligar pra ele. Faça isso agora.

─ Algum problema? Vocês o encontraram ontem mesmo?

─ Liga pra ele agora, mano.─ E RATAN? Está com meu pai?─ Greg, liga pro seu pai agora!─ O quê que está acontecendo, Beto? Você trabalha

pra mim ou pro meu pai?─ Se eu trabalhasse para o seu já teria desligado o

telefone na tua cara, mano, mas, por favor, liga pro teu velho, agora, vai...

Senti que algo estava muito errado. Eles deveriam ter me ligado no máximo até a uma da manhã, não ligaram. Quando eu ligo não podem falar comigo? O que meu pai fez?

─ Ok, Ok. Não precisa chorar...Desliguei e liguei para o escritório de meu pai, ele

atende:─ Alô?─ Alô, pai, a benção!

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─ Deus te abençoe. Porque você mandou seus meninos atrás de mim?George sabia que eu ia passar a noite aqui.

─ Ele não me disse isso, além do mais o Ramon me ligou pra encher o saco, eu tinha que me assegurar...

─ ...Que alguém pôs as mãos em mim? Você me decepciona rapaz.

─ Pai, desculpa, mas o seguro morreu de velho! – Meu pai estava nervoso, eu sabia que não era por causa das buscas por ele, então o que era?

─ Gregório, o Anjo está certo, o filho da puta do senador nos traiu e tentou te passar a perna, agora tá escondido na Europa, cagando nas botas.

─ O senhor está com RATAN?─ RATAN não foi de muita ajuda, tive que apertá-lo

um pouco você sabe como esses meliantes têm queixo duro.

─ O senhor tentou surrar o RATAN? – Fiquei estupefato com o que ouvi.

─ Mandei buscá-lo pra acareação. Botei o Anjo na frente dele e eles choraram como crianças. Falaram o que eu queria ouvir. Toda a verdade.

─ Pai, pelo amor de Deus, o senhor pegou um amigo meu e o botou no pau-de-arara?

─ Foi preciso e, além do mais, um traficantezinho de merda é o que você considera como amigo?

─ Não é amigo, pai, é um elo da minha corrente, ele é fiel e acha que tem a gente nas mãos...

─ Pois é bom parar de achar. Eu quero o senador aqui, entendeu? Eu pego um avião e vou lá no inferno buscar aquele desgraçado.

─ Pai, antes de fazer qualquer coisa, busque a mamãe e as meninas, converse com a Giovanna pra ela não ser pega de surpresa. – Pela primeira vez, senti que meu oráculo precisava de mim, pela primeira vez, a situação estava invertida. Meu pai estava possesso pelo ódio de saber que a ganância do meu cunhado político entrara pela porta da nossa família. Roubar da minha

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Paulo Siuves

família foi o maior erro do Zé Martins – senador Martins da Veiga.

─ Você está certo. Vou ligar pra clínica agora e acerto tudo pra amanhã. Amanhã elas virão embora.

─ Certo, papai, vou acabar os serviços aqui e vou pro Rio à noite. Posso ir pra casa do senhor? A minha ainda está com RATAN!

─ Pode vir, George vai gosta de companhia para xadrez.

─ Ok, até a noite.─ Até...Desliguei o telefone sem saber em que pensar

primeiro, em RATAN na unidade da PM, no senador, em mamãe, ou em Ramon. Decidi pensar na ONG, nos trabalhos que aguardavam o início do expediente. Eu tenho uma reunião com o governador de Minas, o governo está patrocinando a construção do sitio da ONG na Internet, em troca eu deveria aparecer em um comercial sobre as ações do governo naquela região do estado, aproveitando o momento, eu queria ver os empresários que ainda não conheço, contatos, captação de recursos para ONG e exposição para um retorno ao trabalho após quase vinte e oito dias afastado.

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ATAN acordou cedo, ainda no quartel, de um salto, ficou em pé, sentiu dores, mas o ódio o estava anestesiando. Chamou por meu pai, um

soldado apareceu e o mandou calar a boca:R

─ Chama o porra–loca do sargento.─ ‘cê é insolente, quer voltar pro pau-de-arara?─ “Pia” na minha área e tu vai ver o que é pau -de-

arara...O soldado arrepiou-se ao imaginar-se patrulhando as

ruas e encontrar RATAN na favela. Suas armas, nem o apoia dos outros da guarnição no carro valeriam alguma coisa. Os olhos de RATAN cuspiam fogo e um líquido verde do ódio escorria-lhe pela face. O soldado pegou o telefone e informou ao meu pai que o “convidado” despertou, meu pai foi ter com RATAN, mas antes ligou para Beto ir buscá-lo.

─ Bom dia, RATAN!─ Posso ir embora agora?─ Liguei para o Beto vir buscá-lo, seu café da manhã

está chegando.─ Não se incomode, minhas pernas estão inteiras...─ Não seja rancoroso, rapaz. Sua ajuda foi preciosa.─ Vê se dá um tempo, abra a porta e me esqueça!─ Já falei, Beto virá buscá-lo. Aguarde aqui. ─ Quero falar com Greg.─ Quando chegar em casa. – Meu pai virou-se sem

dar chance a RATAN de falar qualquer outra coisa e saiu. RATAN sentou-se na cama e esperou. Recusou o café com leite e biscoitos, ouviu o Anjo gritar numa sala mais distante:

─ E aí, o ratão? Que tal pedir pro seu chegado aí pra você passar o dia aqui, hein? Sua traíra desgraçada.

─ Fica na tua ai, véio. Lá fora o mundo é pequeno, sacou?

─ Quero ver até onde vai tua coragem, filho d’uma égua...

O dia passou lentamente. RATAN recebeu seus pertences, dali mesmo deu as ordens pro morro funcionar temporariamente sem sua presença. O soldado anotou

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Paulo Siuves

tudo sem que ele soubesse. Beto chegou depois do almoço e RATAN saiu sem dizer uma só palavra.

Ao chegar em casa, tratou de limpar tudo. Mandei Beto e Digão deixar que ele levasse o que quisesse. RATAN levou alguns móveis, inclusive os aparelhos telefônicos, deixou a casa por volta de nove horas da noite, depois se instalou no morro, ele me ligou:

─ Aí, cumpade. Teu velho me deu a maior dura, eu tou todo quebrado.

Falei-lhe a verdade, mas percebi que as coisas não voltariam a ser como antes.

─ RATAN, eu não sabia dessa operação, meu pai agiu à minha revelia, cara, tu acha que se eu soubesse iria concordar com isso?

─ Liga não, veio! Só que aqui os home não sobe mais, ‘cê tá ligado?

─ Espero que entre nós ainda possa haver cooperação.

─ Leve a mau não, mas não vai dar mais não. Teu velho acabou comigo e com a gente, melhor tu não me procurar mais não.

─ Mas se eu precisar de você, veio? ‘cê tá ligado que se precisar de mim é a qualquer hora, né?

─ To ligado só que com teu pai não dou mais trela, quero distância dele e de tudo que é polícia.

─ Compreendo. Tu agora é o Rei, meu irmão.─ Graças a tu, já é. Vai na fé, veio!─ Até, grande...─ Até...Fiquei imaginando meu pai morto pelas mãos de

RATAN, isso era imperdoável, ele que não se atravesse.Meu pai foi à sala do Anjo maldito e conversou com

ele, em pé na frente do Anjo, ele percebeu que Avelino estava completamente quebrado, em suas mãos:

─ Você, Avelino, não deu a menor chance a Lucas, foi o carrasco mais cruel que já conheci. Sem conhecê-lo, sem se importar se ele tinha família, filhos, mãe ou pai. O matou a sangue frio.

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─ Ordens são ordens, chefe. Sou pago pra cumpri ordens.

─ Seus homens estão vindo pra cá e vão passar a noite com você. O que quero saber é o seguinte: você pode trabalhar para mim, ou ir para polícia civil responder pela morte de Lucas e do Silviano, quando começarem a puxar a tua lista tudo o que você fez virá à luz da verdade.

─ Se eu resolver trabalhar para o senhor...─ Comigo apaga tudo da lista da civil e da federal,

você vai trabalhar somente para mim. Vai receber treinamento e todas as regalias que o cargo pode te dar.

─ E meus amigos?─ São seus amigos?─ Trabalham comigo.─ Sinto muito deles eu não preciso. São fracos e

incompetentes, eles vão pagar pelo que devem.Avelino olhava fixamente para meu pai, sem saber

que tipo de serviço se tratava, que tipo de treinamento iria receber e até onde a palavra do sargento Hobsbawn era confiável, pediu um tempo para analisar a proposta. O Anjo é conhecido por todos no alto escalão do poder, talvez, ser preso seria melhor que se submeter a meu pai. Há peixe muito grande que faria qualquer coisa para que Avelino não abrisse a boca, talvez algumas ligações o indicasse o caminho a seguir, que decisão tomar. Um dos homens que trabalhava com ele era seu primo, o laço de parentesco estava pulsando em suas veias, ele sabia que não poderia ajudar o primo. Aceitar a proposta do sargento seria negar os laços familiares, recusar seria estar à mercê da sorte. Casado, pai de um casal de crianças, tinha que analisar bem a situação. Os senadores e ministros poderiam mandar matá-lo para silenciá-lo, muita sujeira iria ficar para sempre encoberta. No entanto, se aceitar a proposta também fosse aceitar a distância dos filhos e esposas? Quem sabe morrer defendendo o sargento? Uma decisão difícil de tomar. Os amigos estavam chegando, e se ele tomasse conselhos com os comparsas? Bom, pelo menos ele teria a chance de ajudar

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Paulo Siuves

a primo a se livrar da cadeia, mas o sargento estava certo, são fracos, se vendem e se corrompem facilmente. Com certeza iriam aceitar a proposta sem pensar duas vezes. Melhor não falar nada, por enquanto...

A porta se abre e os três comparsas aparecem, curvados pelas dores, se cumprimentam e conversam sobre a situação. O Anjo, líder, não fala nada da proposta do sargento Hobsbawn, apenas descansa, olha para o primo lembra-se da família, dos filhos, da esposa e se confunde a cada hora mais.

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eu pai ligou para minhas irmãs comunicando que iriam voltar para casa. Elas aproveitaram a última tarde de folga no Canadá para irem às

compras. Giovanna descobre que seu cartão estava com limite estourado, algo que não havia acontecido ainda, recorre ao cartão de Geanne. Ela então decide ligar para o esposo:

M─ Você não precisa ficar preocupada, querida, eu

não estou no Brasil, é normal que eu tenha perdido as datas para pagar as contas!

─ Mas você tem gente trabalhando pra você, eles cuidam dessas coisas também. – Giovanna não entende como as dívidas deixaram de serem pagas no prazo.

─ Eu vou ligar pro meu gabinete e mandar que coloquem tudo em dia, está bem? Quando você chegar vai estar tudo em ordem. – Ele estava a enganando, na verdade, até o pagamento do seu secretário particular estava atrasado. Ele não tinha dinheiro nem para as compras doméstica. O Zé Martins estava completamente afundado em dívidas de toda natureza, até a verba do seu gabinete em Brasília estava comprometida. Minha mãe estava completamente ignorante da situação do senador. Mas meu pai resolveu conversar com ela como eu havia sugerido, quando ela voltar para casa poderia encontrar a situação numa decadência nunca assistida antes.

Chego à fazenda do senhor Ramiro e encontro o piloto a postos, vamos para o Rio. Desembarco no aeroporto ás vinte e duas horas e dezessete minutos. Convenço o piloto a ir para a casa de meu pai comigo, onde George nos aguarda com um jantar maravilhoso.

Conversamos um pouco, falamos sobre a nossa infância naquele apartamento, dos jantares, George falou sobre a universidade de Harvard, nos Estados Unidos, fomos dormir bem tarde após alguns drinks. Ao acordar, já estava na hora do almoço. Meu pai passou outra noite no quartel, liguei para ele:

─ Alô?─ Alô, pai! A benção.─ Deus o abençoe, Gregório. Como passou a noite?

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Paulo Siuves

─ Tranqüilo. O George, o piloto e eu conversamos até tarde nem sei se já se levantaram.

─ Ótimo.─ Estou aguardando o senhor para almoçarmos.

Pedi a empregada para fazer o seu prato predileto, chega de comida militar né, pai?

─ Isto é muito bom. Vou já pra casa. Suas irmãs ligaram?

─ Não senhor. Vou ligar agora pra saber a que horas elas devem chegar. Noticias do senador?

─ Ele não retorna as minhas ligações. Falei a Giovanna para não dizer a ele que ela está vindo embora. Assim ele atende à ligação dela e eu o pego.

─ Onde ele está agora?─ Na Espanha, com o comitê presidencial.─ O senhor tem notícias de Ramon?─ Sim. Ele já desembarcou na Bolívia. Não deixou

ninguém aqui. Lá está resolvido.─ Espero. Então aguardo o senhor para o almoço.─ Em uma hora estarei aí. Tchau!─ Até...Levantei-me tomei um banho e fui para a rede da

varanda, liguei para o Canadá e minha mãe já deixou a clínica, então fiquei esperando que minhas irmãs ligassem. George aparece na varanda:

─ Oh, vida boa! Que tal uma partida de xadrez?─ Você não é páreo para mim, brother. Quer jogar

damas?─ Vamos lá...George ajeitou o tabuleiro na mesa de centro da sala,

colocou um musica Grounge no estilo americano e me gritou como nos tempos em que éramos crianças e ele queria me assustar,

─ Ooh, Greeeeguiiii!!!!!─ Oooiii! – Respondi com o coração em sobressalto,

como quando criança. Mesmo muito cedo, eu aprendi a reconhecer o tom ameaçador na voz do meu irmão, quando ele queria fazer com que eu ficasse com muito

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medo, ora contando estória de fantasmas e monstros imaginários, ora se escondendo para aparecer com um berro e me ver com os cabelos arrepiados. Mais tarde disputando comigo algo que não podia perder, na adolescência, eu tinha pavor de perder para o George, e o tom que ele usou me fez entender que eu não tinha medo de encará-lo e disputar o que quer que fosse, era somente sinal de alerta, o meu consciente avisando “─ Fique esperto, seu irmão vai te aprontar mais uma...” e eu tentava antever o que aconteceria, George me chamava agora para disputar uma partida de jogo de damas, mesmo assim fiquei sobressaltado.

─ Já arrumei o tabuleeeiiro! – Avisou-me.─ Já? Legal, vamos conferir essa parada. – Disse eu

assumindo uma postura de o melhor jogador do mundo, o vencedor invicto no último século.

O piloto apareceu na sala, tomou lugar no sofá e assistiu a primeira partida. – George venceu – contra o piloto George perdeu, eu entrei contra o piloto e venci, olhei inquisitivamente para George que aceitou o desafio em silêncio, apenas um riso altamente zombeteiro no rosto.

─ Eu venci! – Gritei, como criança.─ Eu venci! – fiquei em pé e dancei como os índios

primitivos – venci, venci, venci!George, inconformado, refazia o jogo para tentar, em

vão, descobrir onde trapaceei, porém eu não trapaceei, dessa vez não, por isso a vitória sobre meu genial irmão tinha um gosto tão espetacular, um sentido lógico tão formidável, eu venci um jogo que joguei limpo, contra meu irmão. No jogo de xadrez que decidiria o futuro da ONG, eu trapaceei no sexto movimento – Só no sexto – isso me garantiu a vitória e o meu sustento, minha independência financeira.

Papai chega e encontra aquela algazarra que aprontei, olha, ri, coloca uma mão na barriga e dá uma gargalhada;

─ Parece que estou vendo duas crianças brincando, George, aprenda a ser derrotado numa batalha, prepare-se para vencer a guerra, meu filho! – meu pai tentou

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instruir ao George, mas ele estava encabulado por demais para ouvir os argumentos de papai. A empregada avisa que o almoço vai ser servido em dez minutos saio da sala dançando e zombando de George.

─ Venci! Eu venci o George! Eu venci! Venci!...Fomos almoçar e o assunto não poderia ser outro.─ O senhor já sabe o que fazer ou falar com Zé

Martins, papai? – Perguntou o George.─ Eu ainda não acredito que ele fez isso com Lucas,

é como se eles nunca tivessem se conhecido! – Disse eu.─ Greg, meu caro – interveio meu irmão – As

pessoas andam matando por qualquer vintém, imagine um milhão e duzentos mil dólares, é um prêmio de loteria...

─ Por causa do Zé Martins eu perdi mais oitenta mil dólares. – disse eu, injuriado.

─ Você pegou empréstimo? Com quem? – indagou George.

─ Contatos, brother, tudo é questão de feeling, saber a quem recorrer na hora certa. – Falei com orgulho próprio.

─ Espero que dessa vez não dê problemas. – George estava com razão de preocupa-ser, afinal foram os meses mais turvos de nossas vidas.

O telefone toca:─ Alô?─ Alô, Greg? – É minha irmã ao telefone.─ Oi, Geanne, sou eu sim. Onde vocês estão agora?─ Em São Paulo, nessa maldita escala. O que você tá

fazendo ai? Você deveria estar em Minas!?─ Vim buscar mamãe, quando vocês chegaram

estarei esperando com o avião do senhor Ramiro.─ Que bom, estou louca pra chegar em casa. Papai

está aí?─ Esta sim. Vou chamá-lo para você.Deixei papai falando com Geanne e voltei para a

mesa, George e o piloto estavam falando de aviões novamente, eu mergulhei em meus pensamentos, ainda tinha coisas pendentes...

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s coisas pareciam estar normais, minha mãe de volta à frente da ONG, RATAN no comando do morro, Ramon distante e sem dar notícias, tudo

parecia estar nos eixos. Parecia. Três dias após mamãe estar no comando da ONG eu refiz todos os contatos com os mantenedores do trabalho, algumas partidas de futebol de salão e de vôlei me restabeleceram o condicionamento físico. Coloquei a casa no Rio à venda e procurei outro lugar para morar e instalar a sede do “Mães da Enxada” em outro bairro. Me instalei na zona norte do Rio de Janeiro.

A

George voltou para Harvard, Geanne acertara com papai as custas das despensas para instalar um escritório de advocacia no Rio e outro em Minas, perto da sede da ONG, para ficar próximo da mamãe. Mas ainda tinha que acalmar papai quando o assunto era o senador Martins da Veiga, seu marido corrupto. Ele começou a dar desculpas para o desaparecimento de casa e do gabinete.

Na semana seguinte eu cheguei em Minas para participar de um coquetel de lançamento do sítio da ONG, com presença do governador de Minas, do secretario da Beneficência e previdência do estado de Minas Gerais – BEPREM –, dos empresários locais e, claro, do senador Martins da Veiga, nomeado representante do governo federal para as festividades da ONG que mais ganhou prêmios no Brasil. Meu cunhado chegou a desmarcar a presença na lista de convidados, liguei para a repórter Mônica Neves que fizera um excelente trabalho sobre o desenvolvimento social das ONG’s mineiras, e foi noticiado em todo o país que o governo federal se negara a participar de “uma festinha caipira no interior de Minas” mesmo se tratando de um projeto premiado na Europa por dar assistência a adolescentes e jovens que se tornaram mães perdendo a perspectiva de uma vida melhor. Meu pai ligou para o presidente da República e expôs de um modo bem particular, o desastre que causaria se o senador confirmasse a ausência dele no evento, o presidente propôs enviar o ministro da previdência social, meu pai se mostrou constrangido pela troca de nomes e o presidente

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ligou para o senador que imediatamente ligou para minha mãe confirmando-se como convidado representante do governo federal e ligou também para a repórter Mônica Neves afim de deixá-la acuada em referir o seu nome em qualquer reportagem no futuro.

Na noite do coquetel, mandei Beto, Digão e Gil Bomba colarem no meu cunhado não deixando que ele se ausentasse do local em momento algum. Mamãe notou o desconforto do genro, Geanne me procurou preocupada:

─ Greg, mamãe está perguntando a todo momento o porquê do desconforto visível do Martins. Eu não sei o que dizer!

─ Eu vou conversar com mamãe...─ Faça isso. Papai já chegou, porque ele não entrou

ainda?─ Isso eu não sei, Giovanna está com ele?─ Não. Ela não desgruda do namorado, acho que ela

é insegura porque ele é um Juiz, tem mil mulheres que concordam que é um excelente candidato a marido, ciúmes.

─ Tá certo. Vou falar com mamãe, depois vou buscar papai lá fora.

─ Ta. Vou ficar mais perto do Martins, afinal ainda somos casados, infelizmente...

Atravessei a sala e antes de alcançar mamãe, a repórter me parou.

─ Olá, senhor Hobsbawn! – Ela estava linda, num tubinho preto tomara-que-caia, um colar com um pingente brilhante, um penteado muito elegante e saltos altos que a colocaram na altura dos meus olhos.

─ Olá, srta Neves! – estou completamente assombrado com a diferença de visual daquela mulher, só a vi antes trabalhando vestida com casaquinhos e blazers’s nada com tanta sensualidade.

─ Bela recepção vocês tem aqui. – Disse ela.─ Obrigado, mas minha mãe é quem merece os

cumprimentos pelo sucesso desse coquetel.

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─ Duvido que não tenha nem um toque de Gregório Hobsbawn na organização do evento. – Disse ela desviando o olhar.

─ Nada. Minha irmã Giovanna cuidou do bufê e da ornamentação. O pessoal do escritório ajudou minha mãe no restante. Eu cheguei do Rio e encontrei tudo pronto.

─ Como anda a sede no Rio de Janeiro?─ Estou tentando fazer o melhor, o Rio é muito

diferente daqui, as necessidades são outras...─ Entendo. Se fosse em Belo Horizonte já seria

diferente, uma cidade com conflitos sociais tão berrantes quanto o Rio de janeiro deve ser fascinante, no ponto de vista de um sociólogo, é claro!

─ Claro. Você conhece o Rio senhorita Neves?─ Sou carioca, senhor Hobsbawn.─ Ora, por favor, me chame de Greg, se você se

sentir à vontade, é claro!─ Obrigada, me chame de Mônica, sim?─ O que você está tomando, Mônica?─ Suco de laranja. Com vodca e gelo.─ Aceita um drink? Podemos conversa na varanda.─ Aceito.Peguei duas taças e a seguí caminhando pra a

varanda. Seu corpo cheio de curvas me deixou tonto antes de provar o primeiro drink.

─ Senhor Hobsbawn...─ Greg, por favor. Você me deixa constrangido.─ Desculpe-me, não foi por mal.─ Desculpa aceita. Diga!─ Eu preciso falar com meu fotógrafo. Encontro-me

com o senhor, digo, você lá em dois minutos.Segui-a com os olhos enquanto ela se distanciava e se

perdia na multidão. Afrouxei um pouco o nó da gravata e tomei os dois drink’s de uma vez. Vi minha mãe e me lembrei dos meus compromissos, olhei de volta e vi o senador conversando com meus homens, Giovanna e o Juiz Quemelck conversando com o governador, tudo conforme o planejado.

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─ Bela festa, heim, mamãe? – Disse eu me aproximando por trás dela.

─ Estou ainda nervosa, meu filho.─ Não há motivos, mamãe. Elaine está se saindo

muito bem.─ Ela é uma ótima moça.─ A família reunida, só falta George aqui...─ Por falar em família – começou mamãe

aproveitando a deixa – percebe como Zé Martins está desconfortável?

─ Deve ser a gravata, não combina com a camisa dele.

─ Meu filho, ele está mais que elegante. Parece ser outra coisa.

─ O que o deixaria desconfortável, mamãe?─ Não sei, ele não se afastou um momento sequer

dos meninos tem tanta gente com quem ele poderia conversar...

─ Não liga pra isso não, mãe. Geanne está bem, não há com o que se preocupar. Vá se divertir, eu vou busca papai.

─ Ele já chegou? – disse ela cumprimentando a primeira dama do estado num aceno.

─ Sim, acabou de chegar. Eu vou buscá-lo, tá bem?─ Faça isso, meu filho. A cerimônia vai começar.─ Não me demoro.Dirigi-me para a entrada e vi o carro do meu pai

estacionado na rua, desci as escadas do salão de recepção e fui me encontrar com ele, o carro deu partida, arrancou e eu fiquei olhando, parado, enquanto ele se afastava. Meu pai chegou por trás de mim e pôs a mão em meu ombro, olhei para ele e senti um alívio tremendo:

─ Oi, Gregório, como está lá dentro? – Disse ele com a voz grave que lhe é característica.

─ O senhor me deu um tremendo susto...─ O que houve? – Disse ele enfiando a mão no bolso

do terno cinza, apanhou um porta cigarros e o Zippo.─ O carro partiu assim que eu ia me aproximando...

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─ Só isso? Você me decepciona.Papai acendeu o cigarro e girou o Zippo para fechá-lo

e o colocou no bolso do terno. Ficou parado olhando as estrelas com uma mão no bolso da calça e a outra segurando o cigarro na altura do rosto.

─ Geanne lhe disse que o senador penhorou a casa e perdeu o carro?

─ Não! – Disse eu com tom de real estupefação – ele está tão quebrado assim?

─ Pessoalmente falido. Perdendo aos poucos o patrimônio de sua irmã.

─ Ele está envolvido com drogas ou algo parecido?─ Não. O negocio dele e outro. Dificilmente seria

apanhado se não fosse burro o suficiente para meter a mão na grana dos outros.

─ Puta que pariu... – fiquei assombrado com o relato de meu pai, enquanto isso o coquetel transcorria, Elaine veio chamar-me para o inicio da cerimônia.

─ Vem, pai, o Fernando Quemelck está lá dentro também, vou apresentá-lo ao secretario da Beneficência.

Papai deu uma segunda tragada como se fosse a última de sua vida, jogou o cigarro no chão e pisou com elegância.

─ Tenta conversar com mamãe, ela está ansiosa por vê-lo.

─ Não há o que conversarmos, Gregório.─ Ah, pai. Seja o marido dela hoje pelo menos.─ Pare de criancice. Todos sabem que não somos

mais marido e mulher. Só você insiste nisso.─ Vocês vão voltar, papai, eu sinto. Eu sei que...─ O senador está sendo vigiado? – Papai sabia que

sim, ele mesmo colocou dois homens a paisano no encalço de Zé Martins. Esse comentário era pra me calar. Não respondi. Subimos as escadas e todos olharam quando entramos. Alguns vieram cumprimentá-lo, outros o saudaram com as taças, o olhar de admiração e respeito por ele é geral. Elaine me chama para ficar perto da minha mãe e a cerimônia de entrega do SITE começa. com a palavra o governador, depois o secretario ressalta a

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necessidade de ações voluntárias como a da minha mãe, depois o técnico fala da linguagem em que o site foi montado, termos técnicos que eu não entendi nada. Enfim me chamam, eu rasgo todas as sedas do mundo por minha mãe e a convido para falar, Geanne conduz a cadeira de rodas dela para o palco e ela fala algum tempo, agradece a todos pela participação no evento, cita alguns nomes como o do senador Martins de Veiga, o Juiz Fernando Botelho Quemelke, a primeira-dama do estado, de alguns empresários importantes para a ONG, e algumas outras pessoas. A festa continuava.

No final do coquetel, o senador se despede de mamãe e tenta sair sem ser notado, os meus homens se afastam dele e ele sai. O carro de papai está estacionado na porta e o Zé Martins é literalmente seqüestrado. Saio na companhia de papai e não percebo que Mônica me olha a distância. O manobrista traz o carro e nos dirigimos para a fazenda do senhor Ramiro. O senador está no celeiro acompanhado por cinco homens de papai.

─ Olá, senador! – Disse papai.─ O que significa isso, seu Héctor? – Disse ele

fitando meu pai com assombro.─ Você que tem de começar a se explicar, não acha?Minha vontade é de dar-lhe uma surra, por Lucas, por

Silviano, pelos dólares de Ramon e por todos os problemas que ele causou.

─ Tudo tem explicação lógica... – Disse ele com as mãos espalmadas na frente do corpo como se tivesse pedindo para mantermos distância.

─ A morte do meu melhor amigo também tem explicação lógica, seu filho de uma puta? – Falei avançando para cima dele.

─ De que vocês estão falando? – Tentando fingir inocência.

─ Receio que não sabia de nada sobre as mortes, nada sobre, um milhão e duzentos mil dólares, nada sobre um cara chamado Avelino, certo senador? – Disse meu pai sem paciência, acendendo outro cigarro.

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─ Que mortes? Que dólares? Que está acontecendo aqui?

─ Eu vou quebra a tua cara, seu... – Disse eu sendo interrompido por meu pai.

─ Greg, do meu jeito ou do seu?─ Esse canalha merece levar porrada até morrer, e

aqui mesmo, agora.─ Então tá. Vai fundo, acaba com tudo agora

mesmo, mas não conte com minha ajuda, entendeu?Meu pai continua calmo, fumando com uma mão no

bolso do paletó. Encaro o Zé Martins com tanto ódio que ele se afasta uns dois passos para trás.

─ Tá bom, pai.─ Ótimo. O avião está nos aguardando. Vamos para

o Rio agora mesmo. Você volta para casa de sua mãe, Gregório, e continua agindo normalmente, entendeu?

─ Sim, senhor. Amanhã à tarde eu vou pro Rio.─ Vamos rapazes, o tempo urge. – Disse meu pai. Os

homens pegam o senador pelo braço e o encaminham para a aeronave. O piloto já está a postos e me despeço dele e de meu pai, espero a decolagem, pego o meu carro e volto para o salão de festas.

─ Mamãe, ele já foi embora, mas deixou um beijo pra você.

─ Gregório, você mente muito mal! – Disse mamãe descobrindo que meu pai sequer tocou no nome dela.

─ Elaine, você viu aquela repórter?─ Qual repórter, senhor Hobsbawn?─ A da tv, se não me falha a memória, ela se chama,

ah, Mônica Esteves.─ Mônica Neves, Greg. – Disse Giovanna se

aproximando.─ Isto. Mônica Neves, vocês a viram?─ Ela foi embora com a equipe de tv. – Disse Elaine.─ É, irmão. Ela estava linda. É solteira...─ Deixe de tolices, Giovanna. Temos que cuidar

constantemente da imagem da ONG, né. Mamãe?─ Correto. Quero ir embora, Gregório!

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─ Porque a senhora não me chama de Greg como todo mundo, heim, mãe?

─ Eu te batizei sob a alcunha de Gregório, foi uma cerimônia de batismo maravilhosa na igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Gostaria que você tivesse ficado satisfeito...

─ Ora, mamãe, podia ter escolhido Gregory, internacional, como George...

─ George foi idéia do seu pai, pra mim teria sido Jorge, como todo bom Brasileiro.

─ Tudo bem, mamãe. Vamos embora.─ Onde está Giovanna e Zé Martins? – Interpelou

mamãe procurando em volta.─ O Zé já foi embora! – Disse Geanne olhando para

mim inquisitivamente. ─ O senador aproveitou a carona de papai, mamãe,

Giovanna está por ai. – Emendei.Empurrei a cadeira de mamãe e a coloquei no carro,

fomos para casa.

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No dia seguinte, sábado, liguei para Elaine:─ Bom dia, Elaine?─ Bom dia, senhor Hobsbawn.─ Eu preciso que você consiga o telefone da repórter

que mencionei ontem, lembra-se?─ Sim senhor. Eu tenho anotado na agenda do

escritório, mas só devo ir lá na segunda.─ Eu preciso disso hoje, agora de preferência. ─ Sim senhor. Pode me dar alguns minutos.─ Elaine, me desculpa. Sei que hoje não é dia de

trabalho por isso, pode ser à tarde, quando você tiver um tempo, mas tem que ser hoje.

─ Sim, senhor. Eu tenho que entregar o salão, e aproveito para passar no escritório, eu ligo para o senhor de lá mesmo.

─ Muito obrigado, Elaine, você é ótima.─ Por nada, senhor. Bom dia!─ Bom dia.Eu não consigo me perdoar por não ter voltado a falar

com Mônica, nem sequer me despedi dela, preciso tentar me redimir o quanto antes.

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avião decolou na fazenda do senhor Ramiro à meia-noite e quinze, dentro dele o senador ficou colado, meu pai falando com um dos seus

homens:O

─ Esse homem que você vê já teve toda a minha admiração, hoje ele me causa problemas em proporções gigantescas. Acredita que ele foi capaz de mandar matar uma pessoa com quem conviveu por anos? Um rapaz a quem eu tinha como filho, um menino de ouro? Por causa de dinheiro. Ele traiu meu filho, enganou minha filha e a toda a minha família, se meteu numa confusão dos diabos. Sabe quem é ele? O senador Martins da Veiga. Meu filho financiou a campanha de candidatura dele. Sabe o que é pior nessa sujeira toda? Ele é meu genro! Casado com minha filha mais velha. Ele detonou com poderio militar, todo o patrimônio dos dois, casa, carros, tudo. Porque? É um ambicioso miserável. Contratou um Zé borra-botas pra dar fim no meu filho, ele se salvou porque a mãe ficou doente. Não é isso mesmo, senador?

O senador permaneceu imóvel. Cabeça baixa, mãos cruzadas entre os joelhos, imóvel.

─ Você vai me explica tudo, senador. Depois vou botar uma bala no meio da sua testa e te jogar no rio onde você mandou jogar o Lucas e o Silviano. Até hoje eu procuro os corpos pra dar-lhes um enterro, você não deu nem chance ao Lucas de saber que iria morrer, mas eu vou te dar a chance.

Meu pai se levanta e senta-se de frente para o Zé Martins. Observa-o por alguns segundos e diz:

─ Um tiro na nuca, sem dó nem piedade. Sem nem imaginar que iria morrer. Mas eu não, – Saca a pistola e coloca na testa do senador. ─ Eu vou olhar nos seus olhos e te dar um tiro na testa. Você vai saber que está indo pro inferno e por que está indo. – Guarda a pistola – porque, Zé Martins? Você viu de perto a confusão que você arrumou. Por sua culpa eu passei mais de um mês sem trabalhar, sem dormir direito, sem comer direito. Sua mulher sua cunhada e sogra tiveram que sair do país.

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Quase apanharam o George e se tivesse o apanhado, sabe Deus onde ele estaria agora? Me responde, Zé Martins, você tem medo de morrer? – O senador apenas olha para meu pai – você pensa em Deus? Você pensa em quê? Nos seus pais?

Meu pai para de falar, o senador abaixa a cabeça e meu pai o empurra violentamente contra o encosto da poltrona:

─ Você vai falar, seu desgraçado, vai falar tudo o que eu quero, senão vai morrer de tanto apanhar, ouviu?

O senador deixa escapulir uma lágrima do olho, uma lágrima somente e meu pai o esbofeteia:

─ Quer chorar? – um tapa com grande efeito na cara – Então chora, filho d’uma égua! – sem controle algum meu pai lhe dá mais três tapas e fecha o punho para dar-lhe um soco, mas para no ar, com a mão esquerda o segurando pela gravata.

─ Há tempo para tudo, pra gritar, pra bater e pra matar. Vamos fazer do meu jeito. Tudo no meu tempo, senador.

Meu pai volta para o seu assento inicial, arruma os cabelos desgrenhados pela fúria, acende um cigarro, dá uma longa tragada e o apaga no cinzeiro da poltrona.

─ No meu tempo...O senador permanece calado, imóvel, chorando

imóvel, pressentindo que não há como escapar de meu pai.A aeronave desliza pelo céu e o único som é o do

motor. Algum momento depois, aterrisa em solo carioca. Os homens de papai pegam o senador e o colocam no compartimento traseiro reservado para meliantes no carro da PM.

─ Levem-no. Coloquem-no isolado, pelado ás moscas. O dia vai ser longo.

─ Sim senhor. Bom descanso, sargento Hobsbawn! – Disse o homem com quem meu pai falava no avião. Eles entram no carro, ligam a sirene e partem em disparada.

Meu pai vai para casa, entra no chuveiro e dá socos no ar imaginando a cena dentro do avião, o dia por vir, o senador Martins da Veiga. Sai do banho, toma um uísque

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e vai pra cama. Perscruta o próprio pensamento à procura de um método para aplicar no interrogatório do genro, levanta-se da cama e vai pra sala nú. Pega a garrafa de uísque, toma dose a dose até pegar no sono.

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os reunimos para o almoço um pouco tarde, mamãe nota a ausência de Lucas e pergunta por ele:N

─ Onde está o Lucas, Gregório? Não o vejo desde que voltei.

Suspiro profundamente sentindo saudade do meu amigo.

─ Aconteceu um acidente de avião, mamãe. Não dissemos nada a senhora por causa do seu estado de saúde, desculpe-nos.

─ Como assim um acidente? O que houve? – Pergunta ela, parece que ela sente que vai receber uma má noticia e fica pálida.

─ Lucas morreu no inicio do mês passados. Eu sinto muito a falta dele, Silviano também não sobreviveu.

Mamãe fica com os olhos perdidos no tempo e no espaço, pálida e sem reação.

─ Onde foi? – Pergunta ela depois de um tempo. Geanne e Giovanna entreolham-se, olham para mim esperando minha justificativa por não ter falado nada à minha mãe.

─ Mamãe, estes dias tem sido duros pra mim, pra todos nós. Não há nada o que fazer, Lucas não tinha parentes, como à senhora sabe. O corpo ainda está na selva...

─ Como você consegue comer? Como consegue festejar como ontem à noite? Como você consegue ser tão, tão, frio??

Mamãe chora, Giovanna se levanta e a consola. Abaixo a cabeça e choro, pela primeira vez, a morte de meu melhor amigo. Me dou conta que tudo foi mais importante que chorar por meu amigo, celebra sua vida e nossa amizade. Um mês vinte e nove dias se passaram, nada fiz por ele, a não ser querer vingar a sua morte, mas isso mamãe não deve saber.

─ Mamãe, foi tanta coisa junta que não podia ser diferente. A sua viagem por problemas de saúde. A guerra do tráfico no Rio que culminou na invasão da minha casa, a morte dele veio junto com um monte de coisas... – O almoço acabou antes mesmo de começar. Giovanna

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segurou minha mão e me pediu para ter calma, minha mãe olho-me, seus olhos estavam vermelhas, suas faces também, eu desviei o olhar para o prato à minha frente e o empurrei completamente sem apetite.

─ Espero que Deus tenha compaixão de mim e faça seu coração mudar, meu filho, ninguém pode ter um coração tão duro assim.

─ Eu sinto muito, mamãe! – Foi o que consegui dizer, aliviado por ela não pedir mais detalhes.

─ Seu pai está a par de tudo, não é? – Indagou-me.─ Sim, está sim.─ Ele mandou resgatar os corpos para serem

enterrados como cristão? – Não respondi com um nó na garganta.

─ Sim, mamãe, – Respondeu Giovanna – A finalidade de George ter vindo ao Brasil foi justamente tomar todas as providencias por Greg. Mamãe, meu irmão está abalado até hoje, George tomou conta dele lá no Rio.

Mamãe ficou parada um tempo, depois fez sinal para que eu me aproximasse, ela me acompanha com os olhos enquanto eu me levanto lentamente e me arrasto até a sua cadeira, ela segura minha mão e me puxa fazendo-me assentar no colo e me abraça. Eu a abraço e sinto como se meu peito fosse explodir. Choro aos soluços.

─ Tudo bem, filho! – Ela passa a mão pelos meus cabelos – já passou, vamos continuar nossas vidas, encomendarei uma missa em memória de Lucas e de Silviano.

Um turbilhão de coisas formou-se em minha mente, Lucas, Silviano, Ramon, RATAN, tudo por culpa do meu cunhado e isso alimentou meu ódio por ele.

A campainha toca, Elaine entra e encontra essa cena;─ Tudo bem? Dona Eloísa?Geanne responde por ela e por todos nos:─ Sim, Elaine. Agora ela sabe da morte do Lucas.

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─ Eu sinto muito, dona Eloísa! – Disse Elaine comovidamente. – Ele era um rapaz maravilhoso, um garoto de ouro. Sua alegria vai nos fazer muita falta.

Me levanto do colo de mamãe, pego um copo com água e bebo, Elaine tira o cartão de apresentação da Mônica de dentro da agenda e me entrega, eu pego o cartão, leio e saio da sala de jantar, enquanto saio, vejo Elaine abaixar-se para abraçar minha mãe, sua mini-saia quase deixa aparecer sua calcinha, mas não me interessa. Vou para o quarto, me deito, lembro-me do telefone tocando quando Lucas me avisa do seqüestro do senhor D’ vita, suspiro profundamente tentando evitar outra crise de choro, quase recomeço a chorar, mas consigo evitar. Giovanna chega à porta, bate e pergunta:

─ Posso entrar? Você tá legal, Greg?─ To. Tá tudo bem, entra! – Limpo o rosto com as

costas das mãos e me assento na cama.─ Papai te falou o que Martins fez comigo?─ Falou. Ele me paga, Giovanna! Isso não vai ficar

assim.─ Eu estou me sentindo assim...Sei lá... Sabe! O

Martins, cara... Tô surtada até hoje!─ Ele quase acabou conosco, Nana, Ramon quase

pegou o George, cara, como você pode casar-se com esse tipo?

─ Ele não era assim, Greg. Tudo foi mudando e nenhum de nós percebeu, é que nem um terremoto, acontece e a gente só pode ver os estragos que ele provocou, não dá pra prever que uma pessoa... O Martins era meigo, legal, atencioso. Foi só ele entrar pra política que ele virou um criminoso sem qualquer escrúpulo.

─ Nana, a política não forma criminosos...─ Eu sei, mas...─ Ele se envolveu com políticos corruptos e se

deixou corromper, ai a vontade de se dar bem falou mais alto.

─ mas tudo aconteceu depois do senado entrar na vida dele!

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Paulo Siuves

─ Nana, preste atenção. Você quer salvar seu casamento?

─ Greg, estou com asco daquele filho da mãe.─ Você entende que papai tá com ódio dele?Ela assentiu com a cabeça e se sentou na minha

cama.─ Eu quero ver aquele desgraçado caindo de um

avião no mesmo lugar que Lucas foi jogado.─ Você quer matá-lo? Greg, existe justiça......─ A justiça do senado, de Brasília, é lerda e

totalmente viciada. Ele consegue provar na boa que está sendo alvo de uma perseguição partidária, ele armou tudo com frieza.

─ Armou nada, Greg. O que ele fez merece atestado de burrice.

─ Ou! Presta atenção! Acorda, né. Parece que chegou na terra hoje.

─ Hum, fala, senhor sabichão!─ Ele não tá sozinho, nana. Ele tá ligado a uma rede

de corrupção. Talvez tem gente dos três poderes com ele, eu duvido que ele seja o mentor desse esquema. Honestamente isso não vai parar.

─ Você sabe o que ele andou aprontado? – perguntou ela curiosa pelo assunto.

─ Ainda não, são apenas conjecturas. Mas papai vai quebrar o Zé Martins até não sobra nem uma pedra sobre pedra. Imagino que ele tenha envolvido papai nessa sujeira total?

─ Envolvido papai?─ Não, olha só. Se ele tiver usado o nome de papai

pra se beneficiar da influência que o velho tem no Brasil? O sargento Hobsbawn é um homem muito influente em todos os estados do Brasil. Se papai fosse um policial corrupto, ele teria tudo o que quisesse, e o Zé Martins sabe disso. Suponhamos que ele vinha fazendo valer o fato de ser genro desse homem influente que é o nosso pai para conseguir os seus intentos? Suponhamos que o

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senador vinculasse o papai a algumas das suas falcatruas?

A medida em que eu falava, Giovanna fazia expressões de assombros e descrenças, um cenário de inescrupuloso fim formou-se em seu quociente e ela perturbou-se muito.

─ Greg, se suas suposições estivessem corretas, o que papai faria?

─ Papai tem uma maneira muito peculiar de lidar com as coisas, eu chamo isso de *M.O. do Hoby, é o Modus Operandi do Sargento Hobsbawn, entendeu? Porém, papai tem um Q.I. muito alto e a gente não consegui acompanhar o raciocínio dele, mas depois você percebe como tudo se encaixa perfeitamente. É por isso que você tem que falar com ele abertamente de tudo e sobre tudo o que for fazer.

─ Ele vai matar o Martins? – Giovanna tremeu ao pensar na possibilidade disso acontecer, embora eu mesmo quisesse matá-lo.

─ Maninha, tenta não pensar nisso, tá bom?─ Greg! ─ Ela ficou de pé aos berros – Ele é meu

marido e, embora seja um canalha ordinário, ainda estamos casados!

─ Espero que continuem, assim você vai ganhar uma boa grana do seguro de vida dos parlamentares e uma pensão vitalícia das boas...

─ Você não tem mesmo... – Ele voltou atrás no que ia dizer.

─ Giovanna, não conta pra mamãe o que houve realmente com o Lucas e com o Silviano, por enquanto não, tá?

─ Eu sei, né? Não quero que ela sofra por causa das suas encrencas, seu delinqüente.

Ela se levanta, chuta minha perna e se aproxima para me abraçar, um abraço reconfortante. Giovanna sai do quarto e eu me deito novamente, pego o cartão de Mônica e fico olhando como se pudesse vê-la, como estava linda ontem...

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Paulo Siuves

eu pai estava dormindo sob o efeito do álcool. As horas passam e o dia amanheceu. No quartel da PM. Estavam Avelino e seus três homens e

agora o senador sob os cuidados do meu pai. Mas meu pai não estava lá, não naquela manhã de domingo e por isso o Tenente-coronel manda por o senador na rua e liga para o meu pai, que está entregue ao sono, o telefone toca insistentemente até que ele acorda; meio desnorteado, meu pai levantou-se e atendeu ao telefone:

M

─ Sargento? Aqui é do quartel. O comandante quer falar com o senhor.

─ Tudo bem, passa! – Meu pai nem imagina do que se trava.

─ Hobsbawn?─ Bom dia, senhor!─ O que está acontecendo com a sua inteligência?

Manter uns bostas aqui é uma coisa, mas colocar um senador em cárcere privado? Isso é nitroglicerina, se o presidente souber ele exonera um batalhão inteiro, inclusive a mim.

─ Senhor, o senador em questão é meu genro. Estou apenas o protegendo.

─ De quê, em nome de Deus, você o protege?─ Ele se meteu num rolo e não tem como sair disso

vivo.─ Deveria ter falado com a corregedoria. Algum

problema pessoal?─ Sim senhor, minha filha pode estar no olho do

furacão.─ Eu o coloquei na rua, Hobsbawn. Você deveria ter

falado comigo o que está acontecendo!De repente meu pai despertou da sonolência, quase

soltou a língua num xingamento sem precedentes. Isso requer medidas drásticas, mas o seu interlocutor é um oficial, xingar significa prisão, situação em que ele nunca se imaginou.

─ Senhor, meu genro está metido em crimes como, corrupção passiva e ativa, evasão de divisas, lavagem de

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dinheiro, isso pra começar. Ele perdeu a casa, os carros, quase me mete no rolo, estou cuidando pra não vê-lo perder a vida.

─ Isso não é problema nosso, Hobsbawn. Você precisa conversar com ele sobre outros meios de sair desses problemas, mas a corporação não pode de forma alguma ser envolvida.

─ Preciso de autorização para deixá-lo aí mais um dia, somente um dia.

─ Vou consultar o secretário de justiça...─ Não, senhor! Não será preciso.─ Hobsbawn, há algum outro problema que eu

deveria ser informado?─ Senhor, preciso reconduzir o senador Martins da

Veiga ao quartel. Posso falar-lhe mais tarde, senhor?─ O quanto antes. Estou aguardando.─ Obrigado, senhor!─ Pode ligar na minha casa, se for preciso.─ Sim, senhor! Eu ligarei, senhor.─ Boa tarde, Hobsbawn.─ Boa tarde, senhor.Ao desligar o telefone, meu pai esbravejou por todos

os demônios. O senador pode estar longe, à caminho de Brasília e de lá, só Deus sabe pra onde. Com ódio, meu pai veste-se à paisana e vai para o quartel. Apresenta-se ao comandante, expõe todos os atos do senador e explica que está preocupado com a integridade física do senador e da esposa sua filha. O comandante coloca três homens à disposição de meu pai e eles saem no encalço de Zé Martins. Em vão, vasculham a cidade, ligam para o gabinete em Brasília e ninguém atende. o celular do senador estava desligado. Minha casa estava fechada. Para onde ele poderia ter ido? Seus pais não moram mais na cidade mudaram-se para um sítio no interior do estado do Rio, se tiver escondido lá, eles não o entregarão. Suicídio? Improvável. Ele não cometeria suicídio. Onde está o senador?

Caçado no senado, no Brasil, na Europa e agora pelo sogro, ele está acuado, escondido. Seus assessores sabiam

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onde ele estava, mas agem como se estranhasse o desaparecimento dele. Meu pai começou a investigar quem está por trás de tudo, se essa mente criminosa o está ajudando a se esconder, mas mexer nesse vespeiro sem despertar a atenção é mais difícil que ele imaginou. Reclamar na polícia federal o desaparecimento do próprio genro está fora de questão. Isso faria com que ele tivesse a chance de botar a boca no trombone e nossos problemas continuariam. O senador deveria ter alguma reserva financeira para se esconder por um tempo, porém a ausência no senado por muito tempo despertaria a atenção dos seus “nobres colegas”. O tempo estava o favor do meu pai, ele teria de aparecer: por bem, ou por mal. Afinal existe um débito de oitocentos mil dólares batendo a sua porta. A morte o encontrará, ou por meu pai, ou pelos cobradores internacionais, isso é uma questão de tempo.

A semana começa agitada na ONG, as “Mães da Enxada” ganham destaque nos principais jornais do país, colunistas de norte a sul pegam o gancho do site para elogiarem a organização da minha mãe, a caixa postal eletrônica amanhece entupida de mensagens de congratulações até de fora do país. Na sede de Minas Gerais os trabalhos continuam normalmente, meninas de quatorze anos em diante (às vezes menos, bem menos) grávidas ou com bebês nos braços, buscam ajuda e orientação de nossos conselheiros voluntários. Mais casamentos a serem celebrados, ações de divórcio e pedidos de pensão alimentícia a darem entradas, documentos variados homologados pela justiça, cestas básicas distribuídas, empregos encaminhados, denúncias de todos os tipos imagináveis – escravização, pedofilia, agressões físicas contra mulheres, maus tratos a crianças e idosos, abandono de incapazes – tudo isso e mais um pouco, batem à porta da “Mães da Enxada”. Amanhecemos na segunda-feira com dois mundos distintos sobre a mesa de Elaine e de minha mãe – o mundo que ajuda e o mundo que recebe ajuda – o primeiro informatizado, com maneiras sofisticadas de expressar,

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outro segundo a margem da sociedade na periferia da humanidade.

Observei tudo isso e me lembrei do sentimento que me fez mudar para o Rio de Janeiro, a sociologia estava do mesmo jeito que sempre esteve, carentes de homens que se disponham a abrir mão de parte de sua vida para doar aos semelhantes desfavorecidos, aos pobres. Minha mãe deparou-se com tudo isso e comoveu-se profundamente, fundou a ONG “Mães da Enxada” e eu um hobbin wood moderno, embarquei no bonde da história para me dar bem. Mas tudo em mim estava mudando, afastado de RATAN pelas conseqüências dos últimos fatos e da política por causa do Zé Martins, entendi que as más influências são um perigo em qualquer momento da vida. Quero rever meus princípios e reorganizar minhas prioridades. Voltar ao sonho de ser sociólogo, honrar os sonhos de minha mãe, começar de novo todos os projetos para mim e para a ONG.

Olhei para o relógio da parede são nove e quinze, olhei para o telefone e peguei o cartão da repórter – ligar ou não ligar – puxo o aparelho ponho a mão sobre ele, como se eu tivesse pedindo para ele tocar, ele toca.

─ Alô? – Atendo pedindo a Deus que seja ela.─ Alô, Greg! – Não é Mônica Neves.─ Sim, em que posso lhe ser útil? – Como se zombar

fosse algo que estivesse disponível naquele momento.─ Eu sou Tuca, do morro, sacou?─ Do RATAN. To ligado!─ Aí, meu irmão. O RATAN mandou eu te colocar na

fita, ele me mandou pra Bolívia no inicio da semana passada pra manja o tal Ramon, ‘cê tá ligado?

─ Só! – Respondi interessado.─ Saca só! O Ramon teve uns encontros aqui com

uns colombianos e, véio, os caras tão doidão porque o atraso da grana furou umas paradas de pasta de coca, eu não pude ouvir a conversa toda senão eles me flagrava, ‘cê tá ligado?

─ Humhum, e aí?

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─ Por causa disso eles tiveram um prejú doido, agora ou Ramon cobra vacilo de quem atrasou a grana ou eles cobram vacilo dele.

─ Saquei. Eles querem a cabeça de quem tava com a grana.

─ É, mais ou menos isso. Aí véio, o Ramon deve ir pro Rio de Janeiro com uns caras aí pra cobrar vacilo de qualquer hum! O RATAN mandou eu te colocar na fita pra tu ficar de butuca no Boliviano, ‘cê tá ligado? Como ele mesmo não quis te ligar mandou eu te ligar.

─ Quando é que o Ramon vem pro Brasil?─ Aí, irmãozinho, eu não sou pombo-correio não, ‘cê

tá ligado? Eu posso estar a premio aqui de uma hora pra outra, ‘cê tá ligado? – Isso cheirou pagamento.

─ Tô sabendo. Quanto que tu quer pra me por na fita?

─ Sei lá, veio. Coisa de irmão, tá sabeno. Eu tô na Bolívia longe dos parentes, tô tendo gastos....

Quanto vale a informação desse mercenário idiota? È melhor eu tentar ser generoso – bem generoso!

─ Quinhentos mangos, paga?─ Quinhentinho?─ Isso. Tá bom? ─ ‘Cê tá falando de dólar, né? – O cretino aprendeu

rápido o valor da moeda americana, isso não é vender, isso é roubar, mas eu preciso da informação.

─ Dólar. Quinhentos dólares pagam?─ Tá feito. Aí, manda lá pro RATAN. Eu vou saber a

data e a hora e te toco a parada toda, valeu?─ Só. Aí, Tuca, fala pro RATAN... – O doido me

deixou falando sozinho. E agora? Ligo para o meu pai? Ligo para o RATAN? RATAN não quer negociar comigo ele deixou isso bem claro da última vez em que nos falamos. Melhor ligar para meu pai. Puxo o telefone novamente e ele toca; atendo:

─ Alô, senhor Hobsbawn!─ Sim, senhorita Neves?

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─ Isto. Quero parabenizas-los pelo sitio. Está um show.

─ Obrigado. Eu quero me desculpar com você por tê-la deixado esperando o drinque, sábado foi uma correria.

─ Não há com que se desculpar.─ Eu preciso conversar com você, é sobre assessoria

de imprensa, estamos, digo, estou é... Sabe, perdido nesse meio...

─ Ora, será um prazer trabalhar com vocês.─ Podemos almoçar? Tratamos disso... É, como

dizer, eu tenho umas idéias, sabe?─ Podemos almoçar sim, que tal onze e meia?─ Está marcado, te apanho na emissora?─ Então tá. Onze e meia, na emissora.─ Tá legal.─ Então, até logo. – Despeço-me com o coração à

boca.─ Até logo!Desligo o telefone e nem me lembro mais da

conversa com o Tuca, muito menos de Ramon. Adianto o meu serviço e vou para casa, tomo um banho, visto uma roupa, um esporte fino, imaginando que ela está no trabalho, vestida socialmente como pede a TV. Decido ir de social também, mas sem a gravata. Olho-me no espelho e decido colocar a gravata. Acho que não combinou com a camisa e troco por uma camisa bege e uma gravata vermelha sob um terno marrom. Fico com a impressão de que fico dez vezes pior. O dia esta claro, um céu sem nuvens, decido pôr um terno cinza, mas e se ela estiver de cinza? Troco por um blazer azul, camisa azul celeste e gravata amarela com detalhes azul marinho, Não fico bom, então fecho os olhos e tiro a primeiro terno que eu tocar do guarda-roupas, me visto saio do quarto, dou de cara com minha mãe:

─ Aonde você vai tão elegante assim? ─ Tratar de negócios, mamãe.─ Na hora do almoço? Eu pensei que fosse ficar!

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─ Algumas vezes, o melhor negocio é feito com o estômago cheio, tratar bem é uma boa estratégia, não acha?

─ Boa sorte, meu filho. Mulher não gosta de ficar esperando.

─ Qual é, mamãe! Não é um encontro romântico, são apenas negócios...

─ Que seja, mas essa roupa não é para se encontrar com um homem, estou enganada?

─ Você nunca se engana, mamãe. Um beijo.─ Juízo, Gregório.─ Deixa comigo...Saí rodopiando depois de beijar minha mãe.Chego na porta da minha casa e falo comigo mesmo. “- Greg, você é um homem, comporte-se como

adulto?” E saio. Pego o carro e vou para a porta da emissora, chego na hora em que ela sai com algumas amigas e o câmera-man dela. Ela me vê e se despede da sua turma, se aproxima. Saio do carro, a comprimento formalmente e abro a porta para ela. Vamos para um restaurante na saída da Jaguarê, um lugar tranqüilo, um ambiente familiar, com mesas reservadas:

─ O que você quer beber, Mônica?─ Um refrigerante, por favor!─ Dois refrigerantes, por favor!Começo a conversar, o almoço nos é servido,

tomamos uma cerveja e fico olhando o rosto dela, falando da tv, do telejornalismo, seus olhos grandes e negros, um corte de cabelo channel emoldurando o rosto, a boca pequena e convidativa, eu não consigo esconder meu encanto por ela.

─ Você me falou sobre assessoria de imprensa, Greg! O que você pensou, exatamente?

─ Bom, a ONG tá crescendo, ontem e hoje saímos na coluna social de alguns dos principais jornais do país e não há ninguém à altura para nos conduzir nesse meio, as reportagens sobre nós, se é que tem jeito, falam sob a

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influencia do carisma do repórter com a “Mães da Enxada”, entende o que quero dizer?

─ entendo, você quer direcionar as colunatas para um principio lógico de acordo com a ideologia da organização da sua mãe certo?

─ Exatamente. Cada um fala o que quer sem que isso seja de algum proveito. Eu acho que está bom porque até agora só falaram bem, mas deve ter um jeito de que isso melhore o posicionamento da ONG no cenário social, principalmente quando se fala em doações, afinal somos filantrópicos.

─ Tá certo, eu vou fazer um estudo do projeto e apresento a você e a sua mãe, quem sabe sirva de ajuda pra você?

─ Com certeza vai ajudar muito.─ Bom, Greg. Tenho que voltar ao trabalho.─ Eu te levo de volta, se não tiver problemas!─ Claro que não há problemas.Saímos do restaurante e fomos conversando sobre o

projeto de assessoria de imprensa da ONG, mas o que eu queria realmente era falar de nós dois.

Após deixá-la na porta da emissora eu peguei o celular e liguei para meu pai, comecei a refazer a conversa com o tal tuca para repetir palavra a palavra com o meu Oráculo e decidir o que fazer.

─ Alô, pai! Tenho mais uma novidade pro senhor.─ Boa tarde, meu filho. Tudo bem com você? Deus o

abençoe, não é mesmo?─ Desculpe-me pai. A Benção!─ Deus te abençoe. Qual é a novidade que o fez ficar

tão mal educado?─ o Ramon está vindo pro Rio pra “cobrar vacilo”

de quem tava com o dinheiro dele, porque os Chefes dele estão cobrando sei lá o quê...

─ Quem te informou?─ O RATAN colocou um dos homens dele na Bolívia

perto do Ramon, um tal de Tuca. Esse Tuca me ligou a mando de RATAN e me pôs a par de tudo.

─ Quando o Ramon chega?

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─ Ainda não sei mas vou ficar sabendo antes dele chegar.

─ Trate de se informar e me repasse o quanto antes pra saber o que faço, enquanto isso estou na captura d o senador aqui, se a sorte estiver comigo o pego hoje no mais tardar amanhã de manhã.

─ Onde ele está?─ Ele tá pensando que está escondido de Deus, mas

a casa vai cair. Meu filho, eu sou um cão farejador!─ Eu sei, meu pai. Eu sei!O Zé Martins não tinha noção do que é estar de frente

com a ira do meu pai. As coisas no avião não foram nem perto disso.

Liguei o carro e voltei pra casa, às vezes eu me lembrava de Mônica, às vezes de RATAN e do Tuca, às vezes de mamãe e da ONG, cada coisa que passava na minha cabeça me fazia agradecer a Deus por meu pai, sem ele... Sei lá. Melhor nem pensar.

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s trabalhos no Rio de Janeiro se tornaram enfastiantes para mim, Giovanna decidiu separar-se do marido e eu propus a ela se mudar para o

Rio e assumir a sede dali. Ela aceitou e se mudou para o Rio, porque a casa de Brasília não era mais do senador, ele continua desaparecido, escondido de todos. Fui passar o fim-de-semana com mamãe. Na verdade eu queria ver Mônica. Passar mais tempo ao lado dela, e fiz isso. Mamãe estava confiante no envolvimento entre Mônica e eu, achava-a uma moça direita e decente. Nem minha mãe nem meu pai nunca disseram uma palavra sequer sobre meus relacionamentos, no entanto dessa vez eu sentia que, pelo menos minha mãe estava com os olhos postos em mim e eu deixei que ela se envolvesse. Senti o cheiro de café fresco vindo da copa e fui até lá, aproveitei para falar com mamãe sobre isso:

O

─ Mamãe, o que a senhora acha da Mônica?─ A repórter, filho? Ela me parece ser uma boa

moça e seu trabalho é descente não vejo nada que desabone a conduta dela e, sinceramente, acho-a uma mulher interessante. Se for o que você quer saber!

─ Estou pensando em chamá-la para jantar, sair nesta sexta-feira à noite, devo fazer isso?

─ Claro. Leve-a num restaurante elegante e dê-lhe flores, no entanto vá com calma até ter certeza de que ela não é uma mulher complicada.

─ Mamãe, mudando de assunto. O Zé Martins está fugindo da Giovanna, a senhora sabe disso, não é mesmo?

─ Sei sim, ela e eu conversamos a respeito disso. Ele está se nivelando por baixo em Brasília e Giovanna não quer mais manter esse casamento que, segundo ela, tornou-se um casamento de fachada. Encontros esporádicos e sem contatos íntimos. Ela está decidida mesmo pelo divorcio.

─ Mamãe, ele fez coisas das quais a senhora não faz a menor idéia e papai está tentando apurar os fatos. Não acho justo a senhora ser a última saber ou saber por

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terceiros o que está acontecendo com o Zé Martins e com Giovanna...

─ Seja mais claro Gregório, você está me assustando. Seu pai está apurando...

─ Não há com que se preocupar mamãe, são coisas de política e eu só achei melhor prevenir a senhora porque as coisas podem mudar por alguns momentos e ...

─ Eu quero detalhes, Gregório. Seja franco ou vou...─ Mamãe, papai está tomando conta da situação,

não tem com que a senhora ficar preocupada.Mamãe e eu ficamos nos interrompendo por mais

algumas frases, fiquei pensando se eu fiz bem em falar para ela, mas, de qualquer forma era melhor ela saber de algumas coisas que não dá pra deixá-la sem saber de tudo.

─ Mamãe, deixa as coisas acontecerem. Tudo acontece ao seu tempo mesmo, não há o que se possa fazer para evitar que coisas ruins aconteçam a pessoas boas como Giovanna, então vamos esperar pra saber no eu vai dar!

─ Vocês crescem e redobram o trabalho que dão. Ditado verdadeiro é o que diz “filho criado trabalho dobrado”!

─ Eu preciso ligar pra Mônica. Com licença mamãe!?

Sai da copa e fui pra varanda com o celular na mão pronto pra ligar.

Liguei para ela e combinamos de sair na sexta à noite. Fomos à um restaurante.

─ Você está linda! – Disse eu olhando fixamente nos olhos dela.

─ Obrigada. – Limitou-se a responder, quando olhou o bouquet de rosas seu sorriso torna-se luminoso, transcendental. – São lindas.

─ Desculpe-me, mas eu estou apaixonado por você, Mônica!

Nesse momento parece que tudo ao nosso redor deixou de existir. Os sons de pessoas, talheres, de tudo, transformou-se numa melodia celestial, os sinos interiores

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que detectam e soam quando o amor está no ar, badalaram como loucos, me aproximo dela e envolvo-a com um braço em torno da cintura e com a mão direita atrás da cabeça, por entre os cabelos perfumados, ela deixa-se ser conduzida a um beijo como quem se deixa ser conduzida num tango por exímio dançarino. Meu coração bate como a bateria de uma escola de samba no apogeu da passarela e a cortejo como o mestre-sala corteja a porta-bandeira, de mãos dadas, vamos para a mesa e no momento em que o mestre-sala reverencia a bandeira que exibe o santo padrinho da escola, eu a convido a sentar-se, me assento ao seu lado e tudo se torna um conto de fadas, onde o príncipe nunca erra:

─ Eu quis esse beijo na noite do coquetel mais que tudo nesse mundo, Mônica, mas tudo estava num compasso tão rápido que, foi impossível permanecer lá...

─ Tá tudo bem, Greg. Você já corrigiu o deslize e se redimiu...

─ Eu tenho uma notícia boa pra você!─ O que é? Não faça suspense, por favor!─ Estou passando a sede do Rio para minha irmã e

devo me mudar pra cá em breve.─ Que ótimo. Vamos ficar juntos por mais tempo.

Quando você vai mudar?─ Em breve. Não tenho uma data ainda, mas será

muito em breve.─ Isto soou muito bom, eu posso ajudar em alguma

coisa?─ Creio que não, depende só dela, mas Giovanna

está muito interessada, para manter-se ocupada. Aconteceu tanta coisa na vida dela que ela quer mesmo é esquecer.

Nosso jantar foi a melhor coisa que me aconteceu em muito e muito tempo, não me sentia feliz há tempos. Ela me contou que morava sozinha. Os pais ainda moravam no Rio com uma irmã mais nova, adorava música e plantas, cultivava um jardim na casa onde morava de aluguel. Curtia animais, aprendeu a montar a cavalo e marcamos de ir à fazenda do senhor Ramiro para

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cavalgarmos no domingo. Terminamos o jantar, tomamos vinho e conversamos por muito mesmo. Ela riu muito e me achou engraçado, um homem precisa saber fazer uma mulher se divertir e ela garantiu-me que não se divertia assim há meses. Levei-a para casa e conversamos por telefone quase a noite toda. Passeamos pela cidade no sábado à tarde e eu me desconectei do resto do mundo. Liguei para o senhor Ramiro afim de que ele nos preparasse dois bons cavalos e ele preparou mais que isso, nos deixou à vontade na casa dele para tomarmos banho de piscina e cavalgar o quanto quiséssemos.

O domingo amanheceu com um sol espetacular. Busquei Mônica em casa e fomos andar a cavalo cedo. Por volta das onze horas, o tempo começou a mudar e uma chuva repentina caiu nos pegando desprevenidos, voltamos para o casarão do senhor Ramiro completamente encharcados. Como não tínhamos previsto essa mudança de tempo, decidimos ir embora. Levei-a para casa e ela ofereceu-me um chá:

─ Vamos entrar. Vou preparar algo quente para nós.─ Obrigado, Mônica, mas preciso trocar de roupas...─ Vamos, eu coloco pra secar, se você não se

importar de usar minhas roupas. É só o tempo das suas secarem, se você chegar em casa molhado assim, a dona Eloísa vai brigar conosco.

Aceitei. A casa dela tem uma sofisticação simples e funcional, como mora sozinha, tudo está nos lugares e parece estar assim o tempo todo. Até seu cachorro de língua roxa é comportado. Fui ao banheiro me trocar e preferi usar um roupão de banho, a chuva voltou a cair e nós dois nos assentamos na sala, olhei a discoteca dela e encontrei muita coisa boa, bastante variada, ouvimos alguns enquanto ela contava a história deles. Nos abraçamos e beijamos. Meu corpo tremia como vara verde ao vento, sua pele alva e os cabelos molhados me provocam o tempo todo, sentia um fogo ardendo dentro de mim e ao mesmo tempo tremia. Tirei sua camisa de malha, vejo seus seios intumescidos e ela se deixa ser

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tocada, nos beijamos e a tomo nos braços conduzindo-a ao quarto, coloco-a lentamente na cama entre beijos e carícias. O temporal lá fora parece dilúvio, os relâmpagos cortam o céu precedendo trovoadas fortíssimas, mas dentro do quarto há uma paz infinita. Nos amamos como se fosse o último dia do planeta, como se aquela chuva fosse acabar com o mundo. Ela pousa a cabeça em meu peito e adormece extasiada, em seguida eu também adormeço agradecendo aos céus por aquele momento divino.

Acordo com meu celular tocando:─ Alô? – É meu pai esbravejando.─ Gregório, apanhei o safado. Venha para o Rio

mais rápido possível.─ Sim senhor, papai.Mônica pode ouvir a voz dele e me olha assustada.─ Algum problema grave? – Pergunta ela.─ Não, só umas diferenças que vamos tirar a limpo.

Eu volto o quanto antes, tá bem?─ Greg, terça-feira eu vou ao Rio por causa do

congresso de prefeitos, o prefeito vai levar uma pequena comitiva e eu vou fazer a cobertura jornalística...

─ Tudo bem, vai ser ótimo ter a sua companhia. Eu vou mandar uma mensagem para o seu celular com o endereço de onde eu vou estar, ok?

─ Hum, hum! Te amo. Tome cuidado. – Disse ela enquanto me levanto e visto-me.

Fui para a casa de minha mãe. Tomei um banho, peguei a mochila e joguei no banco de trás do carro e saí para apanhar Beto Boy e Gil, Digão já estava no Rio.

─ Vamos, Beto. Não temos a noite toda... ─ Grito no portão apressando-o. Ele aparece com a mochila:

─ Vamos nessa, camarada. O Gil vai esperar no portão!

Dirijo até a casa dele, saio da direção e Gil pega indo para a estrada. Dentro do carro o meu celular toca, olho o nome que aparece – RATAN – fico pensando o que pode estar acontecendo enquanto atendo:

─ Diga, meu irmão, o quê que tá pegando?

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Paulo Siuves

─ Eu mandei o Tuca te ligar pra te pôr na fita e ele tá te cobrando, né?

─ Justo, não é? As informações dele são preciosas.─ Tá, mas, não precisa pagar nada não, é coisa

nossa, não é? Então ele tá querendo levar a boa...─ RATAN, informação é dinheiro, cara. Eu faço

questão de rolar uma grana pra ele.─ Legal, mas fica por sua conta. Se tu quiser dar

uma gorjeta pra ele, não é como um pagamento, meu irmão!

─ Tá valendo, tá valendo. Alguma novidade dele?─ Só. Ramon tá vindo e já deve tá piando por aqui. O

Tuca tá chegando, aí eu te ligo, valeu?─ Valeu, irmão. Tu é meu truta, tá sabendo, né?─ Tu fica na boa que eu te ligo.─ Valeu!Essa é a pior hora pra reencontrar Ramon, os

problemas se amontoam de uma hora pra outra, mas, o quê fazer? O jeito é encará-los a medida que surgem.

Fazemos o resto da viagem e chegamos à casa do meu pai. Ele está na sala com o Zé Martins algemado e três homens de sua confiança mais Digão com armas na cintura. Olho para o Senador e não falo nada vou até meu pai, ele me chama ao escritório para conversarmos. Digão, Gil e Beto se cumprimentam e ficam conversando, as notícias de Ramon chegam pelo meu celular:

─ Alô, Greg? É o Tuca.─ Fala, Tuca. Tudo na paz? – Respondo.─ O Ramon foi para um hotel no bairro São Jorge,

deve passar a noite descansando, amanhã vai dar um role adivinha onde?

─ Na minha casa? – Tento adivinhar.─ No teu antigo endereço. Ele tá um pouco

desinformado, mas não sei o quanto.─ Deixa ele bater cabeça, assim eu ganho tempo pra

resolver outra parada aqui.

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─ RATAN já tá na cola dele, já que Ramon quer cobrar vacilo de qualquer um, é melhor apagar ele logo, saca?

─ Isto é verdade, fala pro RATAN que tou no apoio.─ Só. Até mais!Acompanhamos o senador num quarto, meus homens

e os três PM’s dividiram o turno na vigilância e fomos nos deitar.

Como ainda eu não tinha dormido, apaguei.Por volta de onze horas, meu pai mandou buscar o

anjo e soltar os outros três. Aquilo tudo era extra-oficial desde o inicio então não tínhamos como apresentar denuncias contra quem quer que fosse. Avelino decidiu-se por trabalhar com meu pai, por segurança e medo de morrer pelas mãos dos seus contratantes no governo. Quando acordei ouvi risadas na sala, fiquei deitado um tempo lembrando-me de Mônica. Peguei o meu celular e mandei uma mensagem com o endereço de papai para que ela fosse para lá no dia seguinte. Depois de um tempo eu me levantei e fui me juntar aos outros na sala. Os cinco rapazes exibem suas pistolas, contam detalhes de algumas operações em que houve troca de tiros e mostram até algumas cicatrizes. Apenas ouvia os relatos. Peguei o celular e mandei outra mensagem pra Mônica se hospedar em um hotel e me avisar, sob desculpa de que a casa estava em reformas e eu não sabia. Avelino chegou, eu não pensei duas vezes antes de me levantar e dar-lhe um murro certeiro no nariz.

─ Isso é para você nunca mais se meter comigo, seu...

─ Pare Gregório! – Estronda a voz do meu pai pela sala. – Ele agora está conosco.

─ Como assim? Esse desgraçado matou o Lucas.─ Gregório, você vai entender depois, mas por hora

basta saber que ele agora trabalha para mim.Fico parado com os olhos arregalados sobre meu pai,

não entendi absolutamente nada, mas se meu pai disser que o presidente dos Estados Unidos trabalha para ele, é

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porque é uma coisa séria. Olho para o Avelino com desejo de matá-lo, mas apenas me afasto.

─ É melhor irmos a uma farmácia antes de descermos com o senador. – Disse meu pai apenas olhando para o anjo.

O anjo levanta-se meio tonto, coloca a mão no nariz e levanta a cabeça para diminuir o sangramento. Meu pai volta para o quarto e momentos depois reaparece fardado.

─ Espere-nos aqui. Ninguém sai, entenderam?─ Sim senhor sargento? – Responde um dos homens

dele assumindo a porta.

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amon sai do hotel e vai até o meu antigo endereço e se depara com a casa em reformas, vazia. Faz algumas pergunta aos homens que estão

trabalhando na casa e volta para o carro furioso sabendo da venda da casa. RATAN recebe a informação da aproximação de Ramon do morro, sobe até a entrada da favela e aguarda um tempo, mas Ramon sabe que entrar na favela do RATAN era o mesmo que RATAN invadir o seu QG na Bolívia, ele não vai para o morro, decide ir até a casa de meu pai. RATAN tenta ligar no meu celular para me avisar, mas desiste na primeira vez em que ouve o sinal de ocupado e decide ir pessoalmente ao meu encontro, desce o morro em companhia de seus “seguranças” e segue para a casa do meu pai que ainda não sabe da presença de Ramon e de sua diligencia para a casa dele. Nem eu sabia desse passeio turístico do traficante boliviano em terras tupiniquins. RATAN queria um pouco de ação, encarar o Ramon de frente e trocar tiros. Violência gratuita e farta. Somente a guerra dos morros pra ele não era o suficiente.

R

Meu pai liga no celular do sentinela dá algumas ordens e depois me liga.

─ Gregório. ─ Sim, pai! Pode falar.─ Eu vou chegar no prédio em três minutos. Desça

com o senador até o estacionamento, meus rapazes já sabem o que fazer.

─ Sim, senhor! – Desligo o telefone – Hei galera, vamos para o aeroporto dar uma volta com o senador. Prestem muita atenção: ninguém saca arma. Ninguém faz nada sem orientação. Qualquer coisa, meu pai deve ser informado imediatamente, ok? Estão prontos?

─ Prontos! – Respondem em coro, cada um pega sua arma e jaqueta. O homem que ficou de guarda vai ao quarto e volta conduzindo o Zé Martins sem as algemas:

─ Ele não deve ficar algemado? – Pergunta Gil, o PM responde prontamente:

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─ Não é uma operação da polícia. Ele não pode ser visto algemado. Alguém pode querer enfiar o bedelho, aí já era.

─ Tô ligado! – Responde Gil bomba, estufando o peito.

Todos saem do apartamento e eu tranco a porta. Primeiro entram no elevador os três homens de papai e descem. Depois meus homens e eu descemos. Ao chegar na garagem, encontro uma situação inusitada.

Ramon discute com RATAN e Avelino, o Zé Martins fala muito também se eximindo de culpas. Eu chego falando alto também:

─ O que está acontecendo aqui?─ Ramon apareceu aqui e diz que está sozinho, mas

nenhum burro vem aqui berrar sozinho no ouvido do seu pai. – Disse Avelino já conhecendo o dono dos dólares que causou toda confusão.

─ O quê que você quer, Ramon? Tua grana já tá contigo mais duzentos mil como compensação...

─ A perda foi grande, garoto. Tu me deve mais algum, uns quatrocentos pra começar. – Disse Ramon.

─ Te deve porra nenhuma, já cumpri com minha palavra. Se tu quiser, leva aquele cara ali! – Disse RATAN apontando para o Zé Martins.

─ Você tá querendo empurrar sua irresponsabilidade. Pra cima de mim não, seu merda! – O Zé Martins parece confiante, mas não o suficiente.

Meu pai resolve falar, com voz de trovão ele manda que todos se calem, em vão, ninguém o ouve, ele saca sua arma e dá um tiro no chão.

Todos se deitaram, e sacaram as armas, alguém dispara outro tiro, eu me escondo atrás de um carro e ouço disparos vindos de todas as direções:

─ Cessar fogo! Cessar fogo! – Gritam os PM’s. Os disparos cessaram. Levantei-me e vi o senador armado. Gil e Ramon se levantaram apontando em todas as direções, meu pai apareceu atrás de mim uns dez metros e ordenou que o Zé Martins colocasse a arma no chão:

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─ Solta a arma, Zé Martins. Vai ficar tudo bem!─ Bem o caralho, você é cobra. Eu solto e morro né?

Não é assim meu sogro?─ Cadê o RATAN? – Perguntou o Boliviano.RATAN foi alvejado no ombro e gritou:─ Estou aqui. Fui ferido. Chamem socorro!Ouvi a voz dele vindo de trás de Zé Martins e fui

correndo em direção de RATAN. O senador se assustou e atirou em mim, me acertando na barriga.

Meu pai gritou:─ Gregório!─ Pai! – Respondi sentindo a barriga queimar e me

ajoelhei.Beto e Gil Bomba apontaram para Ramon e para o Zé

Martins, Ramon dispara contra eles e meu pai apontou para o Zé Martins;

─ Gregório, você vai ficar bem! – Disse ele vindo em minha direção com cautela. – Ninguém se mexe.

Novo cessar fogo. Fiquei deitado com as mãos na barriga, olhei em volta e vi Ramon caindo, morrendo. Minha voz sumiu de medo, senti o sangue esfriando na minha jaqueta, os homens de Ramon entraram e o vêem morto, falaram entre si com sotaque carregado de medo e saíram correndo, fugindo de serem mortos também.

─ RATAN! – Tentei gritar, meu pai chegou perto de mim e falou:

─ Não fale, filho. Apenas fique comigo!─ Tá tudo bem, pai. Onde estão os meninos?─ Gil, Beto e Digão estão bem. RATAN foi ferido,

mas vai ficar bom.─ Cadê o Zé?Meu pai olha para ele com todo o ódio que existe e

ele agora tem certeza que vai morrer:─ Héctor, eu sinto muito. Eu não quis...─ Cale a boca, desgraçado! – Gritou meu pai.─ Héctor, eu não queria atirar, não no Greg!─ Eu já mandei calar a boca.

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Os homens de meu pai apontaram para o Zé Martins as suas armas e mandam-no colocar a arma no chão, meu pai se levantou e mandou o Zé desarmar-se:

─ Ponha a arma no chão lentamente, Zé!─ Héctor, por favor! Veja bem, eu me assustei,...─ Coloca a droga da arma no chão! – Disse meu pai

entre os dentes, com o líquido verde escorrendo no canto da boca, o ódio faísca nos seus olhos, o senador olha em volta, dá um passo para traz, transpira e molha o rosto e a camisa começa a colar no peito dele. Com os olhos arregalados, tremendo, totalmente emudecido, ele começa a levantar a arma na direção do meu pai. Sem pensar duas vezes, meu pai dispara um double tape no peito do Zé Martins, ele voa para trás com o impulso dos projéteis no peito e cai. O sangue aparece em sua boca, ele se debate e começa a morrer, seu corpo treme, sua respiração ofegante começa a ficar difícil.

─ Pai! – chamo por meu pai que olha para o Zé Martins ainda apontando a arma na direção dele.

Beto levanta as mãos, olhando na direção de meu pai e vai até Zé Martins. Coloca a mão na jugular dele e decreta:

─ Ele morreu, sargento.Um PM se aproxima do meu pai:─ Me dá sua arma, sargento. Vamos limpar a área.Meu pai deixa a arma com ele e volta-se para mim:─ Acabou, meu filho! Nada de Ramon, nem de Zé

Martins. Acabou!Ouço ao longe o som das sirenes, minha visão fica

confusa e meu corpo todo fica gelado. Desfaleço.

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iovanna desistiu da administração da sede no Rio de janeiro. Enquanto eu me recupero no hospital ela encerra as atividades das “Mães da Enxada” e

começa a trabalhar via Internet. Vende a casa e doa os moveis para outra entidade não governamental.

GAcordo numa onda de branco das luzes e muitos

bip’s do maquinário hospitalar, Mônica esteve ao meu lado durante toda à noite e segura minha mão:

─ Bom dia, amor! – Disse ela com um sorriso no rosto.

─ Onde está meu pai? – percebi que minha voz estava fraca.

─ Está no corredor com um amigo. Ele já vem.─ E RATAN está bem?─ O moço que foi ferido no ombro? Ah, ele foi

embora no mesmo dia.─ Como assim?─ Como assim o quê? Ele está bem, foi medicado e

liberado antes de ontem mesmo.─ Estou aqui há dois dias?─ Três pra ser sincera...─ E minha mãe? Já sabe o que houve?─ Sim. Quer dizer, mais ou menos. Ela sabe o que

todo mundo sabe; que você e seu cunhado foram atacados no estacionamento do prédio onde seu pai mora por assaltantes e ele não resistiu aos ferimentos.

─ Latrocínio. Quem eram os assaltantes?─ Ainda não sabem, o circuito interno não estava

gravando devido a uma falha no sistema, mas já foi corrigido.

Meu pai entra no apartamento e me saúda com um sorriso largo:

─ Até que enfim, heim, campeão?!─ Pai, tudo bem?─ Como tudo tem que estar, bem!─ Mônica me falou do latrocínio.─ Meus rapazes cuidaram de tudo, Gregório.─ E RATAN, como explicaram ele ali?

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─ Coincidência, assim como o Boliviano que visitava o Brasil.

─ Então...─ Tudo termina bem quando acaba bem! Sua mãe

pediu para ligar assim que você acordasse. Eu vou ligar e você fala com ela, está certo?

─ Sim senhor!─ Deixe-me ir. – Disse Mônica – O congresso

termina hoje e eu ainda tenho muito que fazer. Mais tarde eu volto.

Ela me dá um beijo e pega o casaco e a bolsa, chega a porta e manda um outro beijo para mim enquanto pego o telefone para falar com minha mãe, aceno para ela e ouço a voz de minha mãe ao telefone. Meu pai fica parado ao lado do leito com os braços cruzados e sorrindo.

No dia seguinte recebo alta, vou para o apartamento de papai. Beto, Gil e Digão estão à minha espera. Arrumamos nossas bagagens e vamos para o aeroporto. Papai não deixa que eu volte de carro pra casa. Ao desembarcar em Minas sinto que minha vida mudou...

Quando eu chego em Minas acompanhado por Mônica, por meu pai e por Giovanna, sinto que muita coisa mudou. O Greg Hobsbawn cresceu e deveria deixar a vida de fora da lei no Rio de Janeiro. Desembarco do avião na fazenda do senhor Ramiro e minha mãe me recepciona com lágrimas nos olhos:

─ Gregório, seja bem vindo, meu filho!─ Obrigado mamãe!─ Héctor, obrigado por trazer meu filho para mim!Meu pai sorri e se aproxima da cadeira de rodas da

minha mãe:─ Eu estou muito orgulhoso do filho que você criou,

ele é um homem e graças a você. Nosso filho é muito especial, todos eles. Você é uma mulher muito feliz Eloísa. Os quatro são o que são graças exclusivamente a você! – Ele passa a mão em seus cabelos e se abaixa, toma as mãos dela e olha-a nos olhos. Ela sorri para ele amigavelmente e disse:

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─ São os filhos que Deus nos deu. Há neles tanto de mim quanto de você.

Ele a abraça e se levanta, despede-se de Geanne e de Giovanna com um abraço e um beijo. Aproxima-se de mim e diz:

─ Juízo, garoto! Essas mulheres estão sob seu cuidado. – Olha para Mônica – Cuide bem dele! Por favor!

─ Pode deixar senhor Héctor, eu cuidarei!Ele passa a mão sobre meu ombro, George me apóia

do lado esquerdo e caminhamos em direção a aeronave. Ele me faz lembrar da nossa conversa outra vez quando eu tinha cinco anos:

─ Filho, você é o melhor, ninguém pode te tocar. Eu estou muito orgulhoso de você.

Nos abraçamos e eu o empurro devagar por causa da minha barriga que ainda doe. Ele beija minha testa e segue para o avião em companhia de George. Abraço-me à Mônica e meus olhos não deixam que eu veja meu pai acenando na escotilha do avião, ele parte. Alguma coisa me dá a certeza que sua carreira militar encerrou, isso me encheu de esperança de que ele volte para nós e reate o casamento com minha mãe.

Sem nem mesmo imaginar como os anjos exercem a função de cupido começo a engendrar um meio de reaproximá-los. Ter meu pai e minha mãe juntos sob o mesmo teto desde muito tempo era meu maior sonho, o sonho de toda a minha vida. Sentar à mesa do almoço e do jantar e agradecer a Deus pela família reunida seria meu maior prêmio. Papai começa a freqüentar a nossa casa em Jaguarê e conversamos muito sobre George nos Estados Unidos e sobre Giovanna no Rio de Janeiro, seria a hora de estarmos todos reunidos em casa e fazer nossos pais felizes.

Liguei para George:─ George, o seu trabalho aí é mais importante do

que mamãe e papai aqui?─ Claro que não, mas tenho minha vida aqui e minha

profissão não posso largar tudo e começar uma carreira

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do nada aí no Brasil. Estou tentando fazer um MBA para só depois transferir meu escritório para o Rio ou São Paulo.

─ Mas porque não Belo Horizonte? Aqui você poderia passar os fins-de-semana conosco e não precisaria enfrentar horas de vôo!

─ Mano, eu vou pensar nisso. Acho que você tem um pouco de razão. Se acontecer qualquer coisa por ai e eu estiver longe como foi no seu caso, posso me arrepender da distancia.

─ Então, o que está esperando?─ Greg, eu preciso do meu MBA...─ Papai precisa de você...─ Pára, Greg. Essa pressão pode me desviar dos

meus planos. Não vou te prometer nada, mas vou pensar no que disse, ok?

─ Tá certo, meu irmão, vou me controlar.─ Alem do mais e você e Mônica?─ o que tem?─ Não estão pensando em constituir uma família?

Casar e coisa e tal?─ Tudo tem seu tempo e esse tempo não é o do *MO

de Hoby!─ Aliás, Geanne já marcou a data do casamento

dela?─ Depois de Giovanna ninguém mais tocou no

assunto de casamento aqui. Eu mesmo falo com Mônica quando estamos a sós. Não acho que deva ser um assinto a se tratar com a família inteira.

─ Esse é seu problema. Tudo é particular até estourar num problema gigantesco, né?

─ Nada disso. Aprendi com meus erros...Conversamos por algum tempo. Quando meu celular

toca e no visor aparece o número de Mônica. Desligo o telefone e atendo ao celular. Nesse três meses muita coisa mudou e o sonho de sociologia que antes estava pautado em me dar bem financeiramente e depois em ajudar os outros tomou novo sentido. Não que eu não fosse precisar

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mais dos contatos que criei nos meios da sociedade dita “diferenciada”, mas não queria mais passar por todo aquele sufoco e perder outros amigos por colocá-los em companhia que, sinceramente, não tinha nada a ver com a ONG.

Enfim, acho que a moral da história é que ser “intocável” não é ser fora da lei, não preciso estar em companhia dos traficantes para ter acesso aos necessitados, não preciso estar entre ladrões para ter minhas economias a salvo, não preciso estar longe dos meus pais para ficar de bem com o mundo. Tudo tem um tempo e um jeito de fazer honestamente o que é preciso, se não encontrar esse jeito, tento pelo menos não fazer disso um ato constante. Num país como o meu Brasil tudo pode estar viciado e cheio de manias, mas a verdadeira mudança começa dentro de mim, dentro de cada um, dentro dos corações. Eu comecei a pensar em Mônica e nos filhos que poderíamos ter, se eles não podem ter orgulho de mim como tenho de meu pai, que tenham do melhor jeito orgulho de dizer “meu pai é o máximo, Greg Hobsbawn é o cara mais esperto do mundo”.

Passei na porta da emissora onde Mônica trabalha e fomos para a Praça de Jaguarê tomar sorvete e namorar. O sol já se estava pondo, os últimos raios de luz do dia parecem imprimir em meu rosto a profunda dor de tristeza por não ter mais alguns dos meus amigos ali. E sobre toda a paisagem da cidade estende-se agora um lençol de sombra recobrindo os corpos dos mortos daquela maldita operação. Dentre eles, desaparecidos na floresta Amazônica, deve estar, em qualquer parte, os corpos de Lucas e de Silviano que, com suas carnes em decomposição, irão permanecer na minha alma e na minha lembrança. Adeus Lucas – o matador de cavalos.

A noite estava quente como as típicas noites de verão, algumas crianças ainda estavam brincando de brincadeiras de criança nas rua e os adolescentes estavam se transformando em adultos e deixando as coisas de crianças para trás. Começavam a beijar na boca e descobrir o peso do trabalho e da responsabilidade. A

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“MÃES DA ENXADA” estava encontrando um terreno fértil de produção social e não tinha tempo a perder, no dia seguinte eu estaria trabalhando a todo vapor.

Papai viajou para Brasília com Giovanna para que ela recebesse as homenagens por seu marido e pelos serviços prestados ao Brasil. Como senador ele tinha essa regalia de ser festejado como nobre Brasileiro. Pelos métodos de papai ninguém ficou sabendo dos problemas financeiros do Zé Martins e das suas trapalhadas pra conseguir pagar os compromissos dele, escusos e reprováveis, nem mesmo as pessoas a quem ele devia se manifestaram em público. Havia muito que se perder. Papai sentiu-se mal e ficou no hotel. Giovanna ligou para George informando-o que papai não se sentira bem e que estava preocupada com ele. George por sua vez me ligou e pediu para que eu fosse para Brasília ter com eles e, se fosse preciso, acompanhar meu pai ao médico.

A corregedoria da PMRJ convidou meu pai para prestar esclarecimentos sobre alguns fatos ocorridos e esclarecer fatos que ainda estavam sob investigações no caso da morte de RATAN, de Ramon e do senador Marins da Veiga. Tudo colocado em ordem meu pai foi dispensado de maiores detalhes. Naquele dia ele estava muito nervoso com tantas perguntas e exagerou dos cigarros e, à noite, da bebida procurando dormir e esquecer de tudo aquilo. Naquela noite, perto de três horas da manhã, ele acordou com uma forte dor no peito, foi tudo muito rápido, como se um míssil tivesse sido lançado contra peito dele, os braços ficaram pesados, o tórax e ombros, os dentes, uns formigamentos intensos no lado esquerdo, tudo parecia espetacular e muito diferente de tudo o que já sentira ate aquele dia. De súbito ele se assentou na cama e com um urro de dor, se contorceu sem poder fazer muita coisa, com sofrimento ele pegou o celular e discou o número do seu médico, mas não foi capaz de dizer palavra alguma quando o doutor atendeu. A dor se intensificava e tudo parecia ficar mais escuro. A vida lhe passara num flash back sem omissão dos fatos

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mais congruentes da sua vida, da sua carreira. Em pensamento chamou pelo nome de minha mãe e de todos os santos em que tinha fé. Poucas vezes na vida sentira medo, talvez nunca em sua vida adulta sentira medo, mas dessa vez era diferente, essa dor e solidão, essa escuridão e fantasia de morte que o assombrou magnificamente lhe trouxe o medo, e nada como o ódio o desprezo por essa senhora que não respeita nem ricos nem pobres, ralés ou poderosos, brancos e negros, se assemelhava a esse momento, essa dona de alcunha morte chegou e o encontrou sozinho e despreparado metendo medo e nada mais. Quando o doutor chegou e tocou a campainha do seu apartamento e não obteve resposta ele sabia que algo havia acontecido com meu pai e era preciso abrir a força à porta e descobrir o que aconteceu. Meu pai sofreu um Infarto e, sem socorro presto, veio a falecer.

George, antes de voltar a Harvard, me desafia:─ Quer tentar a sorte e me vencer no xadrez, Greg?─ Eu aprendi bastante, George, você viu. Na ultima

vez eu não trapaceei e vou jogar limpo com você, vou ganhar na moral, tem certeza que quer jogar?

─ Ora, foi sorte de principiante.George prepara o tabuleiro no quintal. A tarde está

agradavelmente bela, o cheiro do ar puro, o canto dos pássaros, o céu sem nuvens, Giovanna prepara um café no fogão de lenha que me faz lembrar de papai.

─ Do jeito que o sargento iria gostar...George olha para mim e sorri.─ Vamos lá! Sem o temporizador, certo?─ Certíssimo. – Respondo ao me assentar no

tamborete.─ Hei, sua namorada é divertidíssima...─ Além de bela... – Analiso a jogada que ele estreou.─ Quando vão casar?─ Em quatro meses, quando você voltar em definitivo

para cá. – Respondo.─ Isso é bom, não quero interromper meu trabalho

de novo.

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─ E você volta casado? Alguém quer vir para o terceiro mundo?

─ Não. Volto sozinho. Já escolheram o nome do bebê?

─ Se for homem vai se chamar Héctor.─ Héctor Martinez Hobsbawn Neto?─ Não. Héctor de Almeida Neves Hobsbawn. Quatro

nomes pra ser doutor.─ Então você quer mudar tudo na sua vida de fora

da lei, Greg!─ O delinqüente juvenil morreu no Rio, como disse

Giovanna. – Risos de ambos.─ Isso é bom. Vai continuar os trabalhos junto com

mamãe aqui mesmo?─ Vou continuar aqui mesmo. Mônica assumiu a

direção do jornalismo da emissora na região e tem grandes planos. ─ Vejo o rei dele desprotegido e movo o meu peão, meu rei está na melhor posição – xeque.

─ Vá com calma, o jogo tá começando. – Ele se move e faz uma prise en passant.

Ouço a voz de papai dizendo “Do meu jeito, rapaz, no meu tempo”. Começo a analisar o jogo com o *MO de Hoby.

─ Então tá,“do meu jeito!” – George percebe o meu olhar e reconhece a fala.

─ O que você acha do convite que fizeram a Giovanna. Ela vai se dar bem em Brasília?

─ Acho que sim, ela só precisa de tempo, o resto ela tem e mamãe conversa muito com ela. Acho que Brasília é quem terá de se consertar com ela no senado.

─ Quem diria; Giovanna senadora!─ Geanne também resolveu levar a ONG a sério. O

Fernando está apoiando ela.─ O Fernando é bastante competente no que faz,

você não acha? – Observa George quanto ao Magistrado Quemelck.

─ É sim. A magistratura não subiu à cabeça dele. Você está demorando muito a jogar.

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─ Pressão não vale...─ Não é pressão, seu jogo já tá pronto...─ Hei, brother, take easy, I’m thing in my game!─ Então pensa, mas joga também…─ Você viu o senhor Ramiro no enterro do papai?─ Ele estava bastante comovido!─ Ele está é de olho na mamãe! – Observa George.─ Ou, respeite a memória do papai, né! Ele nem bem

esfriou e você já tá querendo...─ Greg, você não entende que ela tem que viver?Fico calado, mamãe é bonita e está cheia de saúde.

Alem do mais, está sozinha a tanto tempo. Eu duvido que ela se queira algo com o senhor Ramiro.George continua falando das qualidades dele:

─ Ele é um senhor sofisticado, é viúvo também. Quem sabe se eles conversarem.

─ Mamãe não é assim!─ Assim como, ela é interessante, inteligente e

precisa de carinho. Até você vai casar!George tem razão. Ela mesma me disse isso algum

tempo atrás. Vejo o carro de Mônica chegando, Geanne e mamãe estão com ela. Elas trazem Pães e bolos para o café da tarde. George e eu vamos tirá-la do carro:

─ Mamãe, o que a senhora acha do senhor Ramiro? – Pergunta George para me provocar.

─ Ele é um verdadeiro gentleman, como poucos dessa cidade. Ele virá jantar conosco essa noite.

─ Papai deve estar se virando de decepção. – Respondo.

─ “Você me decepciona meu rapaz!” – Fazendo voz grave.

─ Amor, deixe sua mãe continuar a vida dela...─ Vejo que todos já aderiram a idéia, até você, né?─ Quem está ganhando o jogo? – Pergunta mamãe

para mudar o assunto.─ Até agora o George, mas vou virar agora.─ Ah, vai. Vai muito. O jogo já está definido e a

batalha já está ganha. – Disse George antecipando-se.

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Nos dirigimos para a sala e Elaine leva as compras para a cozinha, cumprimenta Giovanna e ficam conversando lá. George e eu voltamos ao tabuleiro no quintal. Mônica me abraça por trás e me beija o pescoço:

─ Você quer tirar a minha concentração, meu amor?─ Se você perder esse jogo eu desisto do casamento.

– Ironiza ela.─ Então case-se comigo! – Disse George movendo

uma torre.─ Ainda não sabichão! – Tomo a torre que ele

moveu. – Se não tomar mais cuidado você morre ao fio da minha espada!

─ Mamãe tá chamando, vamos tomar café! –Anuncia Geanne da janela.

Interrompemos o jogo e vamos para a copa. Elaine se desculpa por não poder ficar e abraça mamãe. Ao se abaixar para beijá-la a mini-saia quase deixa sua calcinha a mostra, aceno com a cabeça para George e no segundo seguinte Mônica me belisca com toda força. Nos reunimos à mesa, damos graças e rimos de qualquer coisa.

Os dias passam lentamente e hoje somos a maior ONG em prêmios da América Latina e uma das mais premiadas do mundo.

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