A Lenta e Difícil Construção do Brasil · Terra de Vera Cruz, que mais tarde se transformará,...

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28 n° 11 - mai 2001 LATITUDES N ão deixarei de surpreen- der alguns leitores se afir- mar que a revelação da Terra de Vera Cruz, que mais tarde se transformará, não sem protestos, no Brasil dos nossos dias, começou com a expedição de Cristóvão Colombo, que conseguira capitais junto dos investidores e da corte espanhois para levar a cabo a tare- fa de encontrar terras que permiti- riam alcançar o Oriente das espe- ciarias pela via ocidental. Podemos compreender melhor o sentido da minha afirmação se considerarmos a biografia profissional de Cristóvão Colombo, que se treinara em Portugal, junto dos marinheiros e dos técnicos portugueses. O seu projecto não foi bem acolhido pelo rei D. João II, o que obrigou Cristovão Colombo, justamente convencido da sua realizabilidade, a procurar patrocínios estrangeiros. Tanto a corte como alguns capita- listas espanhóis deram a Colombo os meios que pedira para levar a cabo o seu projecto. Na viagem de regresso, Cristóvão Colombo foi obrigado, para se abri- gar de uma tempestade, a refugiar- se no Tejo, primeiro em Cascais, para se mudar algum tempo depois para Belém. O rei, refugiado então em Vilar do Paraíso, pediu a Colombo que o fosse visitar, o que o almirante não podia deixar de fazer. Todavia, o encontro não decorreu da maneira pacífica que se podia esperar, pois Cristóvão Colombo, nitidamente enfurecido interpelou o rei, querendo conhe- cer as razões que o tinham levado a rejeitar esse projecto, cujos bons resultados estavam à vista. O tom de Colombo foi tal, que os mem- bros da comitiva do rei lhe pedi- ram autorização para o matar. Como é evidente, o rei recusou a autorização que lhe era pedida. Encontramos a descrição desta recepção em João de Barros, Década primeira da Ásia, mas as suas informações não são confir- madas pelo diário de Cristóvão Colombo, que se refere de facto a esta visita, descrita como um aci- dente formal, tendo Colombo vol- tado à corte portuguesa sem queixas nem ressentimentos. Acredito mais nos pormenores de João de Barros, considerando que Colombo não era homem para se colocar em posição de inferioridade. Mas João de Barros acrescenta dois pormenores que interessa registar: o primeiro diz respeito aos nativos que o acompanham e surpreendem D. João II, pois se trata de homens de pele escura, mas não tão preta como a dos naturais da Guiné. E, confirmando a diferença, não têm cabelo revolto, sugerindo mais uma identidade com os asiáticos, que o rei não conhece. O segundo pormenor também interessa o futuro das relações marí- timas dos portugueses com esta região: Colombo fala abundante e liricamente das riquezas que encon- trara ou de que obtivera informa- ções, mas não pode mostrar nem ouro, nem pedras preciosas, nem especiarias. O Cipango que ele pensava ter alcançado não revela as riquezas que se podiam esperar e que a corte portuguesa associava a novas terras. Não podemos esquecer a perturbação de D. João II perante estes novos homens que, sobretudo, revelam a falta de conhecimento da própria estrutura física das populações orientais que se verificava em Lisboa. Mas, por outro lado, nada do que era mostra- do ou contado por Colombo, era de molde a provocar uma re-orien- tação das tarefas marítimas progra- madas em Lisboa. Convem lembrar também que na expedição de 1487-1488, Bartolomeu Dias não só dobrara o Cabo da Boa Esperança, penetran- do enfim no Índico, confirmando que este oceano não era um “mar fechado”, como se acreditara duran- te muito tempo. Mas sobretudo, esta expedição não se limitara a definir as condições da ligação entre o Atlântico e o Índico, pois abria o caminho marítimo para a Índia. Ora a verdade é que esta expedição não encontrou continui- dade, se bem que a corte tivesse ordenado que se abatessem as árvores necessárias à construção das embarcações para uma nova expedição. Quais as razões que atrasaram esta expedição ? Estamos face a um vazio relativo no que se refere aos conhecimentos específi- cos de D. João II, a quem cabiam as decisões finais, e que já tinham obrigado Cristóvão Colombo a pro- curar apoio e capitais na capital espanhola. Esta situação não autoriza os historiadores a multiplicar as hipó- teses fantasistas que permitem orga- nizar expedições sob o comando de diferentes marinheiros que teriam alcançado o que viria a ser a América, antes da viagem de Pedro Álvares Cabral. Pelo contrá- rio, tudo contribui para indicar uma paragem, que permitiu a assinatura do Tratado de Tordesillas em 1494. Não podemos deixar de pôr em evi- dência a relação existente entre o regresso da primeira expedição de Colombo e a assinatura do Tratado, que deve então ser encarado como um instrumento diplomático desti- nado a proteger os interesses por- tugueses. As diferentes reuniões destinadas a comemorar a assinatu- ra do Tratado não eliminaram nem as fantasias nem as incertezas. Não pode contudo restar a mínima dúvi- da: tratou-se para a Corte portugue- sa de uma operação central, mais virada para o futuro do que consi- derando o passado. Pois não é visível que o ritmo das grandes expedições só recome- ça depois da assinatura deste ins- A Lenta e Difícil Construção do Brasil Alfredo Margarido

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N ão deixarei de surpreen-der alguns leitores se afir-mar que a revelação da

Terra de Vera Cruz, que mais tardese transformará, não sem protestos,no Brasil dos nossos dias, começoucom a expedição de CristóvãoColombo, que conseguira capitaisjunto dos investidores e da corteespanhois para levar a cabo a tare-fa de encontrar terras que permiti-riam alcançar o Oriente das espe-ciarias pela via ocidental. Podemoscompreender melhor o sentido daminha afirmação se considerarmosa biografia profissional de CristóvãoColombo, que se treinara emPortugal, junto dos marinheiros edos técnicos portugueses. O seuprojecto não foi bem acolhido pelorei D. João II, o que obrigouCristovão Colombo, justamenteconvencido da sua realizabilidade,a procurar patrocínios estrangeiros.Tanto a corte como alguns capita-listas espanhóis deram a Colomboos meios que pedira para levar acabo o seu projecto.

Na viagem de regresso, CristóvãoColombo foi obrigado, para se abri-gar de uma tempestade, a refugiar-se no Tejo, primeiro em Cascais,para se mudar algum tempo depoispara Belém. O rei, refugiado entãoem Vilar do Paraíso, pediu aColombo que o fosse visitar, o queo almirante não podia deixar defazer. Todavia, o encontro nãodecorreu da maneira pacífica quese podia esperar, pois CristóvãoColombo, nitidamente enfurecidointerpelou o rei, querendo conhe-cer as razões que o tinham levadoa rejeitar esse projecto, cujos bonsresultados estavam à vista. O tomde Colombo foi tal, que os mem-bros da comitiva do rei lhe pedi-ram autorização para o matar.Como é evidente, o rei recusou aautorização que lhe era pedida.

Encontramos a descrição destarecepção em João de Barros,

Década primeira da Ásia, mas assuas informações não são confir-madas pelo diário de CristóvãoColombo, que se refere de facto aesta visita, descrita como um aci-dente formal, tendo Colombo vol-tado à corte portuguesa sem queixasnem ressentimentos. Acredito maisnos pormenores de João de Barros,considerando que Colombo não erahomem para se colocar em posiçãode inferioridade. Mas João deBarros acrescenta dois pormenoresque interessa registar: o primeirodiz respeito aos nativos que oacompanham e surpreendem D.João II, pois se trata de homens depele escura, mas não tão pretacomo a dos naturais da Guiné. E,confirmando a diferença, não têmcabelo revolto, sugerindo mais umaidentidade com os asiáticos, que orei não conhece.

O segundo pormenor tambéminteressa o futuro das relações marí-timas dos portugueses com estaregião: Colombo fala abundante eliricamente das riquezas que encon-trara ou de que obtivera informa-ções, mas não pode mostrar nemouro, nem pedras preciosas, nemespeciarias. O Cipango que elepensava ter alcançado não revelaas riquezas que se podiam esperare que a corte portuguesa associavaa novas terras. Não podemosesquecer a perturbação de D. JoãoII perante estes novos homens que,sobretudo, revelam a falta deconhecimento da própria estruturafísica das populações orientais quese verificava em Lisboa. Mas, poroutro lado, nada do que era mostra-do ou contado por Colombo, erade molde a provocar uma re-orien-tação das tarefas marítimas progra-madas em Lisboa.

Convem lembrar também quena expedição de 1487-1488,Bartolomeu Dias não só dobrara oCabo da Boa Esperança, penetran-do enfim no Índico, confirmando

que este oceano não era um “marfechado”, como se acreditara duran-te muito tempo. Mas sobretudo,esta expedição não se limitara adefinir as condições da ligaçãoentre o Atlântico e o Índico, poisabria o caminho marítimo para aÍndia. Ora a verdade é que estaexpedição não encontrou continui-dade, se bem que a corte tivesseordenado que se abatessem asárvores necessárias à construçãodas embarcações para uma novaexpedição. Quais as razões queatrasaram esta expedição ? Estamosface a um vazio relativo no que serefere aos conhecimentos específi-cos de D. João II, a quem cabiamas decisões finais, e que já tinhamobrigado Cristóvão Colombo a pro-curar apoio e capitais na capitalespanhola.

Esta situação não autoriza oshistoriadores a multiplicar as hipó-teses fantasistas que permitem orga-nizar expedições sob o comandode diferentes marinheiros queteriam alcançado o que viria a sera América, antes da viagem dePedro Álvares Cabral. Pelo contrá-rio, tudo contribui para indicar umaparagem, que permitiu a assinaturado Tratado de Tordesillas em 1494.Não podemos deixar de pôr em evi-dência a relação existente entre oregresso da primeira expedição deColombo e a assinatura do Tratado,que deve então ser encarado comoum instrumento diplomático desti-nado a proteger os interesses por-tugueses. As diferentes reuniõesdestinadas a comemorar a assinatu-ra do Tratado não eliminaram nemas fantasias nem as incertezas. Nãopode contudo restar a mínima dúvi-da: tratou-se para a Corte portugue-sa de uma operação central, maisvirada para o futuro do que consi-derando o passado.

Pois não é visível que o ritmodas grandes expedições só recome-ça depois da assinatura deste ins-

A Lenta e Difícil Construção do Brasil

Alfredo Margarido

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trumento diplomático, sancionadopor Roma? Se as expedições maríti-mas portuguesas tinham sido sus-pensas após o regresso deBartolomeu Dias, não seria certa-mente para dar lugar a expediçõessecretas, que não teriam deixado omínimo traço, nem nos lugaresacaso visitados ou “descobertos”,nem nos arquivos, nem na tradiçãooral. Se bem que seja difícil recusaro peso do “sigilismo” inventado porJaime Cortesão, não podemos ilu-minar um passo da história multi-plicando os “talvez”, os “certamente”,os “sem dúvida”, etc., que macu-lam tantos textos contemporâneosportugueses. A paragem permite aexpedição de Colombo, a qual porsua vez apressa a realização da reu-nião de Tordesillas. Esta permitepor sua vez, que seja retomada aexpedição que acabará por ficarsob o comando de Vasco da Gama.

Com efeito, só em 1497 parte deBelém a armada organizada para,utilizando as informações recolhi-das por Bartolomeu Dias, descobriro em parte já descoberto caminhomarítimo para a Índia. Embora nãopossamos nem devamos esquecerque se Vasco da Gama revela, nestaviagem, um talento náutico ampla-mente reconhecido pelo almiranteGago Coutinho, a segunda parte daviagem, quer dizer aquela que serealiza no Oceano Índico, faz-sesob a direcção dos pilotos afro-árabes ou indianos. A importânciadesta operação associa o simbólicoao pragmático: os portugueses nãosão os únicos marinheiros capazesde levar a cabo as operações com-plexas dos descobrimentos e entreas populações consideradas infe-riores regista-se a presença de téc-nicos dispondo dos melhoresconhecimentos náuticos exigíveis.O caminho marítimo para a Índianão foi descoberto por Vasco daGama, pois era ele corrente noOceano Índico.

Como não ver o que é eviden-te? No calendário das expediçõesportuguesas, as operações do Índi-co deviam preceder quaisqueroutras, às quais serviam de intro-dução. Vasco da Gama está deregresso a Lisboa em 1498: dois cur-tos anos depois Pedro Álvares

Cabral alcançava enfim a terra deVera Cruz, considerada neste pri-meiro contacto como sendo maisuma ilha instalada no Atlântico,onde os portugueses e os estran-geiros seus associados já tinhamencontrado algumas outras. Nãoparece que valha muito a pena gas-tar argumentos e tinta com o carác-ter “ocasional” desta “descoberta”,pois é evidente que a expedição domarinheiro português estava, comoacontecia com as outras embarca-ções, preparada para o “acaso”.Todos os “descobridores” embarca-vam para o incerto, devendoregressar com o certo e provado.

O quadro geral das operaçõeslevadas a cabo pelos capitãespeninsulares sublinham a existên-cia de calendários, o mais impor-tante dos quais pertence de manei-ra evidente aos portugueses. Talnão impede que se registe, na ope-ração levada a cabo por PedroÁlvares Cabral, um sinal que mare-ce esclarecimento: depois de terdesembarcado nesta “ilha”, ÁlvaresCabral continua a sua missão,deixando contudo, como única pre-sença portuguesa, dois lançadosque tinham sido extraídos dascadeias para cumprirem eventual-mente esta missão. Não se trata dosprimeiros lançados utilizados pelos

portugueses, mas se tivesse havidoo projecto de alcançar um territórioespecífico na zona do que virá aser a América, poder-se-ia esperaroutra forma de presença. O descré-dito dos homens, não pode deixarde arrastar consigo a desvaloriza-ção do território. Este não estavaprevisto no calendário português!

Nos dias de hoje verifica-se porparte de uma fracção da historio-grafia portuguesa uma evidentepreguiça, como se pode verificarno facto de se aceitar que a Terrade Vera Cruz foi alcançada a 22 deAbril de 1500, esquecendo que onosso calendário mudou e que,como de resto se verificava naminha infância, o território foi“achado” a 3 de Maio de 1500. Massobretudo quer considerar-se que arelação dos portugueses com aspopulações índias decorreu sempreno quadro da descrição feita porPero Vaz de Caminha. Convem, emprimeiro lugar, lembrar que a belaprosa de Vaz de Caminha é inspira-da pelos documentos provindos deColombo, como já mostrei em tem-pos, como também o fez o Prof.Manuel Viegas Guerreiro. Não sóse pode verificar a existência decircuitos inter-textuais, mas pode-mos sobretudo dar conta do factode a carta de Vaz de Caminha não

Ama de Leite - Lithographie extraite de “Lembrança do Brasil”, Ludwig and Briggs

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ter conhecido os apógrafos que lheteriam permitido circular como eracorrente na sociedade portuguesade então.

A desaparição deste documentodeve ser entendida à luz das modi-ficações registadas no juizo consa-grado pelos europeus às popula-ções autóctones. Fechado na gavetaonde foi “descoberto” no séculoXVIII, o documento de Vaz deCaminha só começou a funcionarjá no século XIX e mais particular-mente neste século. A razão é evi-dente: Colombo fora obrigado aconstatar, surpreendido, que osÍndios pacíficos da sua primeiraexpedição tinham mudado decarácter. Estamos perante a duplarevelação dos caribes e do caniba-lismo. Respeitando o mesmo esque-ma identificador, Voz de Caminhasó se dá conta dos aspectos quecaracterizam os selvagens, a nudez,reforçada aqui pela depilação, aausência de violência, a aceitaçãopelo menos passiva dos rituais reli-giosos do cristianismo.

Esta visão dos homens é acom-panhada por uma exaltação danatureza que, todavia, mantém atotalidade do seu mistério, na medi-

da em que os portugueses não sãocapazes de identificar nenhuma dasárvores, tal como não dispõem deinformações que lhes permitamidentificar os produtos consumidos.Ou seja, se os marinheiros portu-gueses oferecem comidas e bebi-das aos autóctones, recorrendo aopalato como um instrumento capazde permitir a identificação doOutro, já a expedição abandonadaa Terra de Vera Cruz sem dispor deconhecimentos capazes de permitiridentificação, conhecimento e utili-zação. Mas não podemos esquecero avesso desta situação : tal querdizer que o sistema, tanto da natu-reza como dos homens, não ofere-ce grandes analogias com os siste-mas já conhecidos, europeu eafricano.

Tal como já se verificara no casoda visita de Cristovão Colombo aD. João II, o elemento negativo daprópria estrutura física dos homensé fornecido pelos africanos : osfuturos americanos não podem serconfunfidos com os africanos, devi-do à cor da pele, ao facto de nãoserem circuncisos, tal como nãopossuem o famoso cabelo revolto,a “lã” que serve a Gil Vicente para

identificar nas suas peças os africa-nos. A tal acresce o facto de serem,homens e mulheres, depilados, oque reforça a sua diferença em rela-ção aos africanos, por uma razãoteológica evocada por GomesEanes de Zurara: a selvajaria dosafricanos seria dada a ver pelanudez, pois Deus pusera pêlosnaquelas partes do corpo que sedeviam tapar. Não o fazendo, osafricanos infrigiam o código reli-gioso ocidental, o que já se nãoverificava no caso dos futurosíndios, que extraíam esses marca-dores.

Por outro lado, e deve registar-se esse elemento sobremaneirasignificativo, as populações daTerra de Vera Cruz não dispõem demercadorias capazes de alimentaro sistema de trocas que caracteriza-va, então como hoje, o sistema por-tuguês. Ou seja, as populações daTerra de Vera Cruz, exactamentecomo se registara no caso deCristovão Colombo, não dispunhamde um sistema de trocas amplo egeneralizado que permitisse insta-lar, como se fizera em África, autên-ticas regras comerciais graças àsquais se poderiam oferecer e pedirprodutos. No caso de CristóvãoColombo, verifica-se que o almi-rante se vira na obrigação moral deimpedir as trocas entre os marin-heiros espanhóis e os caribes, poisestes davam, em troca de ninharias,produtos de valor. Esta troca desi-gual incomodou tanto o almirante,pela sua evidente amoralidade, quesó encontrou a proibição comosolução suficientemente equâni-me.

Retenhamos o terceiro elemen-to perturbador: se os autóctones daTerra de Vera Cruz dispõem decasas onde vivem, se produzemalguns instrumentos de madeira, seutilizam as redes, tanto para a pescacomo para dormir ou assegurar ostransportes, não parece que a suaactividade produtora seja consi-derável. Não podemos esquecerque as expedições marítimas eramcaras e esperava-se que se revelas-sem rendíveis: excluídos os papa-gaios que voam por todos o ladose são considerados mercadoriavaliosa, o território parece só poder

Castigos - Lithographie

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fornecer o pau brasil. Se os autóc-tones não trabalham, como instau-rar um sistema que possa revelar-se suficientemente rendível paracompensar o pesado investimentoque representava uma expediçãoformada por tantas embarcações epelo apetite de tantos homens? Talé outra das pesadas realidades aque deve fazer face o sistema por-tuguês.

Como ficar surpreendido comesta situação? O esforço portuguêsestava virado para o Índico e apenínsula do Hindustão, que nãosó prometia as especiarias e asriquezas, mas dava um alimentoespiritual considerável: o combatecontra os turcos, isto é contra osdiabólicos agentes e representantesde Mafoma. As religiões dos futu-ros brasileiros são por assim dizerinexistentes, dado que assentavamsobretudo na veneração dos espíri-tos dos antepassados. Nestas condi-ções, não se registava nem a exis-tência de textos teológicos, talcomo não se podiam identificar osteólogos, nem os lugares especial-mente consagrados à prática dosactos religiosos. Regista-se, nesteaspecto, uma forte divergênciaentre as populações andinas oumexicanas, onde se verifica a exis-tência de estruturas religiosas deve-ras complexas. Embora a respostapeninsular seja idêntica: destruir osmonumentos, sacrificar os teólogosou as autoridades religiosas, iniciara tarefa dos catequistas, que deviamassumir a responsabilidade de liqui-dar as formas religiosas autóctones,substituídas pelo cristianismoimposto pelos missionários.

Face a esta situação, os portu-gueses renunciam a explorar ouocupar esta terra de Vera Cruz, cujoestatuto se manteve ambíguo atémuito tarde, procurando os portu-gueses manter-lhe a classificaçãode “ilha”. Esta operação procurautilizar a experiência já adquiridanos três arquipélagos do OceanoAtlântico onde se registara a insta-lação ou a criação de populaçõesinéditas, organizando do mesmopasso a produção agrícola destina-da essencialmente à exportação. OBrasil estaria por isso destinado aser uma das ilhas portuguesas do

Atlântico, situação que teria comocorolário a eliminação de todo equalquer problema fronteiriço. Sójá muito tarde, como se pode veri-ficar consultando a cartografia quesobreviveu, o Brasil será enfim ple-namente integrado na América doSul, com os seus vizinhos incómo-dos, quer geridos pelos espanhóis,quer geridos pelos outros europeus,quer, sobretudo, administradospelos jesuítas.

1- Do falso “bom selvagem” ao“autêntico” antropófago

Teima-se, nestes dias de come-moração, em definir as relações dosportugueses com os Índios brasilei-ros, através da óptica da carta dePero Vaz de Caminha. Já verificá-mos que o documento não criou asua própria descendência: trata-sede um documento único que des-creve não a realidade dos Índios,mas a ilusão dos portugueses, toda-via dispostos a reconhecer nessesÍndios de bons corpos os descen-dentes de homens ainda dignos doParaíso. A ocultação deste docu-mento põe contudo em evidênciaque cedo se desfez esta ilusão,recusando os Índios pôr-se ao ser-viço dos europeus que, contudo,não concebem a sua instalação noterritório sem dispor de um núme-ro elevado de escravos, que osÍndios deviam fornecer.

Todavia a visão do Outro ame-ricano altera-se também sob oimpacto da leitura espanhola, queoscila entre dois polos extremos :no primeiro denunciam-se as práti-cas da antropofagia ritual, enquan-to no segundo se põe em causa aprópria alma dos Índios. Registe-sea disjunção entre os portugueses eos espanhóis, pois os primeiros nãose interrogam a respeito da almados Índios, que constitui, sobretu-do sob o impulso de Fray Bartoloméde Las Casas, um dos elementosmais abertamente polémicos naorganização das relações com aAmérica e os americanos. Para osportugueses, o Índios são essen-cialmente fornecedores de força detrabalho, esbarrando contudo contraas práticas ancestrais das civiliza-

ções silvícolas da América do Sul.O documento que mais fará, naEuropa, para difundir as práticasantropofágicas dos Índios brasilei-ros é evidentemente o relato deHans Staden, que pode contar coma contribuição de um gravador queexecutou as xilogravuras que tor-nam ainda mais cruel a situação doshomens capturados, engordados econdenados a ser abatidos paradepois ser assados - prefiro dizerchurrascados - e consumidos comprazer evidente pelos seus congé-neres.

É todavia Hans Staden que trazpara a cena literária da Europa umadas situações mais reveladores dadensidade dos conflitos entre osportugueses e os Índios, neste casoos Tupinambás. Tendo sido captu-rado, Hans Staden é imediatamentecondenado não por ser europeu,mas sim por falar português. Comose compreende, Staden procuramostrar que a sua língua, o alemão,não pode ser confundida com oportuguês, mas, não sendo capazde falar francês, os Índios decidemque deve ser contabilizado comoportuguês. A associação dos Índioscom os grupos franceses instaladosna Baia de Guanabara promove ofrancês a língua aprovada pelosÍndios, ao passo que o portuguêsprovoca a captura e a engorda dequantos falam esta língua. Suponhoser, na história da língua, uma das

Irmão de Bom Jesus - Lithographie

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situações mais dramáticas, quefelizmente não se alargou à totali-dade dos Índios do Brasil nascente.

De resto, conta-nos aindaStaden, não se pode contar com asolidariedade dos europeus pois,tendo os Índios capturado umautêntico francês, este não só o nãoajuda, mas acaba por dizer aosÍndios : “matem-no e comam-no,porque este celerado é um autênti-co português, vosso e meu inimi-go”. A teimosia de Staden nãoconvence inteiramente os Índios,mas verifica-se que o alemão éruivo, o que o separa, do ponto devista dos Índios, dos portugueses.Tal como os europeus inventariamas caraterísticas somáticas dosÍndios, assim estes, replicando aosistema, procuram proceder aoinventário dos elementos que per-mitem a identificação dos europeus,oportunamente divididos em ami-gos e inimigos. A língua portugue-sa sendo falada por homens more-nos de cabelo escuro, não pode serconfundida com a língua faladapelos homens de cabelo aberta-mente ruivo.

A descrição das cerimónias exi-gidas pela antropofagia ritual bana-lizaram-se na Europa, pois elas per-mitiam incluir os índios brasileirosno quadro amplo da selvajaria,autorizando esta, por sua vez, oseuropeus a impor a dura disciplinada escravatura para assegurar a sal-vação eterna destes pecadores. Ofacto de os prisioneiros seremconfiados a uma mulher, que vivee dorme com eles, chegando algu-mas vezes a engravidar, reforça osentimento de repulsa, pois se pre-fere executar e comer um prisio-neiro ternamente engordado pelaÍndia que lhe fora destinada. Vezque outra, a Índia apaixonava-sepelo seu prisioneiro, e essa situa-ção dramática só podia ser resolvi-da pela fuga, mesmo se esta nãoestava isenta de riscos. Como nãopodia deixar de ser, estas situações,mesmo não sendo correntes, sópodiam reforçar a animosidadecontra os Índios, que deviam pas-sar pela via da escravatura parapoder merecer uma existênciaquase normal, dada a violência quesempre caracterizou as relações

entre os proprietários brancos e osservidores e sobretudo os escravosíndios.

A política portuguesa da ocupa-ção, não podia deixar de provocara destruição dos Índios e das suasinstalações. Sabemos que a Corteportuguesa se desinteressou daorganização do Brasil até 1530. Sóa nomeação de Martim Afonso deSousa conseguiu pôr termo a umasituação de abandono, que se expli-ca em função das condições emque o território, que continuava aser a “ilha”, fora “achado” ou “des-coberto”. Não havia lugar para eleno quadro dos projectos portu-gueses. Todavia, a partir do momen-to em que a estrutura política por-tuguesa se instala no Brasil,arrastando consigo as experiênciasrelacionadas com as plantas que sepoderiam uilizar na organização donovo território, tornou-se necessá-rio encontrar as soluções indis-pensáveis. Podemos resumir asituação salientando que, a partirde 1530, se aposta de maneira indu-bitável na rendibilidade do novoterritório colonial. Passa-se dos lan-çados de 1500, aos governadoresgerais recrutados entre a nobreza edesignados pela Corte.

Podemos dar-nos conta das téc-nicas e dos resultados da coloniza-ção, recorrendo ao texto clássicode Pêro de Magalhães Gândavoque, em 1573, fornece uma descri-ção das povoações criadas pelosportugueses: “junto dela (s) haviamuitos Índios quando os Portuguesescomeçaram de as povoar, masporque os mesmos Índios se levan-tavam contra eles e faziam-lhesmuitas traições, os governadores ecapitães da terra destruiram-nospouco a pouco e mataram muitosdeles: outros fugiram para o sertão,e assim ficou a terra desocupadade gentio ao longo das povoações.Algumas aldeias destes Índios fica-ram todavia ao redor delas, que sãode paz e amigos dos portuguesesque habitam estas capitanias”(Capítulo III da História daProvíncia de Santa Cruz ). Numoutro texto, referindo-se aosAymorés, que hoje conhecemoscomo sendo os Botocudos, salientao mesmo Gândavo que teria sido

conveniente destruí-los, mas que,tendo-se refugiado profundamenteno mato, os Aymorés tinham esca-pado à sanha destruidora dos por-tugueses.

Deve ainda acrescentar-se quenem tudo o que se refere à práticada antropofagia pode ser atribuidoaos Índios brasileiros. Numa cartade Pedro Borges, dirigida a D. JoãoIII, de Porto Seguro, apareceminformações deveras singulares: “Euaqui nesta capitania e na dos Ilhéus,passei por algumas coisas do tempopassado por me dizer o governa-dor que assim o havia V. A. porbem, e porém, por os que trouxe-ram muitos homens e mulheres emum navio do Reino, haverá seis ousete anos, e meninos, e os lança-ram em terra nos pitiguares e oscomeram todos os gentios e elesvieram vender as roupas e fazendadestes à Baía, não pude dissimular,porque foi um grande caso e desu-mano; tenho preso o mestre e sen-horio do navio, que é natural doAlgarve e um marinheiro, os quaisprendi com grande trabalho nosIlhéus (...)”. A carta está datada de7 de Fevereiro de 1550, e confirmaoutros documentos portuguesesque se referem às práticas da antro-pofagia (a que já me referi emoutros lugares, mas convem consi-derar a importância dos relatos daHistória Trágico-Marítima, assimcomo a Peregrinação de FernãoMendes Pinto, onde essas referên-cias são ditas sem rebuço e semcondenação moral). Mas isso quertambém dizer que os portuguesesgerem a antropofagia ritual dosÍndios brasileiros em função dosseus interesses, alimentando ouacirrando tais práticas, que lhes per-mitem desembaraçar-se dos colo-nos incómodos ou indesejados.Razão suficiente para que a antro-pofagia ritual brasileira seja encara-da a partir desta manipulação leva-da a cabo pelos portugueses e,provávelmente, pelos europeus emgeral.

Porque se são, em alguns casos,os próprios portugueses que susci-tam os actos de antropofagia, pode-mos também dar-nos conta de umasituação que ainda não foi suficien-temente analisada : são os portu-

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gueses que procedem à transferên-cia das populações Índias, demaneira a aproveitar as conflituali-dades potenciais, provocando a suainter-destruição. Já verificámos queo projecto português da coloniza-ção pretende ocupar as terras úteis,o que se não pode fazer senão atra-vés da expulsão dos Índios. Ouseja, a expansão portuguesa corres-ponde à simples e constante liqui-dação das populações Índias. No“Regimento de Tomé de Sousa”(datado de 17 de Dezembro de1548), dão-se indicações minucio-sas, revelando que alguns burocra-tas da Corte se mantinham ao cor-rente das situações internasbrasileiras: “porque sou informadoque a linhagem dos tupiniquinsdestas capitanias são inimigos dosda Baía e desejam de serem pre-sentes no tempo que lhe houverdesde fazer guerra para ajudarem nelae povoarem alguma parte da terrada dita Baía e que para isso estãoprestes, escrevo também aos ditoscapitães que vos enviem algumagente da dita linhagem, e assimmesmo lhes escrevereis e lhe man-dareis dizer que vos façam saberde como a terra está e da gente,armas e munições que têm e seestão em paz ou em guerra e se têmnecessidade de alguma ajuda vossa;e aos cristãos e gentios que dasditas capitanias vierem, fazeis bemagasalhar, e os favorecereis demaneira que folguem de vos aju-dar, enquanto tiverdes deles neces-sidade, e porém os gentios se aga-salharão em parte onde não possamfazer o que não devem, porque nãoé razão que vos fieis deles tantoque se possa disso seguir algummor recado; e tanto que os puderdesescusar, os despedireis (...)”.

Os índios são bons e úteisenquanto se mostrarem empenha-dos em destruir o outros índiosmas, acabada a tarefa, o melhor épô-los a distância, criando assim acintura profilática capaz de colocaros europeus ao abrigo da violên-cia. Não faltam nos documentosque têm sido identificados nosarquivos, provas numerosas daduplicidade europeia, que nãopode deixar de aumentar à medidaque se verificam os dois factos prin-

cipais que dominam a história dasrelações humanas do Brasil : o iní-cio da colonização sistemática por-tuguesa e a importação de escra-vos africanos. Regista-se umprofunda alteração no território,embora possamos já pôr em evi-dência o que me parece o factoprincipal da transformação das rela-ções entre os índios brasileiros eos portugueses : desaparecida ailusão do quase “bom selvagem”,revela-se a figura hedionda doantropófago, o qual só poderáremir-se através do trabalho ou daescravatura. Desaparece, nestecontexto, toda e qualquer forma derelação pacífica entre os índios eos portugueses. Recorre-se, sempreque possível, às conflitualidadesexistentes entre as diferentes “li-nhagens” dos índios, para acirrar aviolência e a inevitabilidade doscombates. Os portugueses esperamque as informações atinentes aosconflitos entre os índios possamfornecer uma plataforma capaz depermitir reduzir de maneira sensí-vel o número de índios. Todos osdocumentos salientam a importân-cia desta situação, que permite oalargamento do território ocupadopelos europeus, sem a mancha deum único índio.

2- O paradoxo brasileiro

A situação pode ser interpreta-da da única maneira possível: acolonização portuguesa não podetratar os índios como iguais, masapenas como inferiores. O projectoexpansionista português exige queterras e território sejam ocupados,explorados e integrados no espaçonacional português. As “nações”índias só existem ou só são consen-tidas enquanto aceitam as regrasimpostas não só pelas autoridadesportuguesas, mas por qualquercolono. O princípio da inferiorida-de absoluta dos índios implica estainferiorização das suas sociedadeso que é acompanhado pelo princí-pio de que os Índios são os escra-vos “naturais” dos portugueses. Nomesmo texto já citado de Pêro deMagalhães Gândavo (trata-se aquido capit. IV) põe-se em evidência

a situação das relações entre colo-nos portugueses e autóctonesíndios: “ e a primeira coisa que pre-tendem adquirir (os colonos) sãoescravos para nelas (nas terras) lhesfazerem suas fazendas: e se umapessoa chega na terra a alcançardois pares, ou meia dúzia deles(ainda que outra coisa não tenhade seu), logo tem remédio parapoder honradamente sustentar suafamília, porque um lhe pesca, eoutro lhe caça, os outros lhe culti-vam e granjeiam suas roças, e destamaneira não fazem os homens des-pesa em mantimentos com seusescravos, nem com suas pessoas.Pois daqui se pode inferir quantomais serão acrescentadas as fazen-das daqueles que tiverem duzen-tos, trezentos escravos, como hámuitos moradores na terrra que nãotêm menos desta quantia e daí paracima”.

A colonização portuguesa nãopode, nesta primeira fase, ser com-preendida se não pusermos em evi-dência que não há colono portu-guês que não lute por conseguirestes escravos, que vão da simples“parelha” até às centenas dehomens e mulheres que não só seauto-alimentam, como produzem acomida dos colonos, sendo osexcedentes destinados ao mercado.Esta economia caracterizada pelaescravatura generalizada não podiadeixar de ser marcada pela violên-cia, não hesitando as “nações”índias em refugiar-se no mato, adistâncias capazes de as preservardo contacto maléfico com os por-tugueses.

Estamos perante a primeira fasedo que entendemos designar comosendo o “paradoxo português”, poiso próprio Brasil teria sido manifes-tamente impossível sem a partici-pação constante das populaçõesíndias. Todavia, a contribuição dosÍndios vai mais longe, já que asprincipais plantas alimentares ti-nham sido por eles comesticadas :os portugueses descobrem muitocedo a existência da mandioca,assim como as suas várias utiliza-ções. Uma parte dos comentadoresda carta de Caminha quiserem iden-tificar numa referência ao sistemaalimentar índio graças à presença

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da mandioca. Já foi amplamentedemonstrado tratar-se de uma lei-tura apressada, pois se tratava defacto do cára. A lição que podemosextrair desta situação é a maissimples que se pode desejar : sema domesticação das plantas a queprocederam as “nações” índias, acolonização portuguesa estavacondenada a estiolar-se. Mas tantoo conhecimento das plantas, dosananazes aos cajus, como o dos ani-mais, depende inteiramente doconhecimento acumulado pelosíndios.

A mandioca faz parte integranteda paisagem e da culinária brasilei-ras. Transferida aos continentes afri-cano e asiático, a planta modificounão só os eco-sistemas, mas alte-rou as preparações culinárias e opróprio palato. Mas o mesmo severifica com muitas outras plantas,incluindo os feijões que fizeram da“feijoada brasileira” uma prepara-ção de amplo cunho nacional, queserve para afirmar os laços exis-tentes entre os nacionais brasilei-ros. Não quer isto dizer que os bra-sileiros não receberam em contra-partida plantas oriundas de outrasregiões do mundo, entre as quaisse conta a banana, que substitui aespécie autóctone da pacova. E nãofaltam textos para salientar o factode estas bananas, que ainda sãoapresentadas nos textos do séculoXVI como parentes do figo, seramoriginárias de S. Tomé, confirman-do a maneira como o próprio per-curso da colonização portuguesaassocia a escravatura a novas for-mas de exploração da natureza.

Os portugueses, tal como osdemais europeus, como salienta otexto de Jean de Léry, consagradoà descrição do quotidiano dos fran-ceses instalados na baía deGuanabara sob a direcção deVillegaignon, não são capazes deviver sem o trabalho dos índios.Simultâneamente, verifica-se queos europeus se revelam absoluta-mente incapazes de dar aos índiosoutro estatuto que não seja o deescravos. Esta situação era intolera-da pelos índios, que se revoltavam-como dizem os textos portugueses-procurando recuperar a sua auto-nomia. Por esta razão, os portu-

gueses, e os europeus em geral, tru-cidam-nos, seja em combates direc-tos, seja, como já lembrámos, recor-rendo a manipulações que levamas “nações” índias a inter-destruir-se. Não estamos hoje em condiçõesde saber ao certo qual era o núme-ro de índios existentes no Brasilquando chegaram os portugueses:alguns milhões, em todo o caso.Restam alguns milhares. Não háíndios na baía de Guanabara a nãoser em bronze, em alguns monu-mentos públicos.

Todavia os brasileiros conti-nuam a cultivar e a preparar a man-dioca domesticada pelos índios,assim como os ananazes e os cajus.Tal como continuam a utilizar asredes que os índios emprestaramaos portugueses. E até ensinaramàs brasileiras a importância religio-sa e estética da depilação. Qual abrasileira que ousará apresentar-seem qualquer praia brasileira compêlos nas pernas? Esta indianizaçãoda sociedade brasileira também sefez sentir no plano religioso, comoprovam as lojas de umbanda queencontramos mesmo em metró-poles tão complexas e tão multira-ciais como S. Paulo. O paradoxoestá contudo anichado nesta situa-ção: os europeus, do qual descen-de uma fracção significativa dosbrasileiros, souberam pilhar osvalores índios, ao mesmo tempoque procuraram, tendo-o parcial-mente conseguido, destruir a popu-lação índia, hoje condenada a umasituação residual.

3- A africanização

Quando os colonizadores euro-peus e mais particularmente osespanhóis, se deram conta da parcacapacidade de trabalho dos índios,foram obrigados a fazer contas. Otrabalho dos índios não era sufi-cientemente rendível. Esta situaçãoera contudo agravada por um ele-mento complementar, embora assi-nalado por quase todos os cronis-tas portugueses : os índios ou seopunham à dominação portuguesa,obrigando as forças portuguesas atrucidá-los, ou abandonavam assuas terras para se infiltrar no mato,

rejeitando qualquer contacto ouacordo com os portugueses. Estasituação foi compensada, até certoponto, pelas “entradas” dos portu-gueses no mato, de onde regressa-vam com enormes filas (natural-mente indianas) de prisioneiros.Diz-se que uma delas chegou aalcançar uma légua. Mesmo que seregiste algum exagero na mediçãopor parte do cronista, nem por issoa situação deixa de revelar a suaconflitualidade.

Se bem que a literatura respei-tante à escravatura africana afirmede maneira peremptória ter cabidoaos portugueses a responsabilidadede ter agravado as práticas africa-nas da escravatura, o que os terialevado a inventar o tráfico negrei-ro, convem ser mais modesto,mesmo no que se refere ao horrí-vel. A ideia de substituir os traba-lhadores índios, livres ou escravos,pelos escravos africanos foi enun-ciada por Fray Bartolomé de LasCasas. O facto de este religioso,cuja origem cristã-nova ele procu-rou sempre dissimular, aparecer nosdias de hoje como o defensor dosíndios americanos, não podesepará-los da maneira como pre-tendeu resolver o problema daforça de trabalho de que necessita-vam os “encomenderos” para asse-gurar não só a valorização das suasaldeias, mas para obter os rendi-mentos que lhe permitiriam enri-quecer. Las Casas propõe que sesubstituam os índios, frágeis epouco produtivos, pela robustezprodutiva dos africanos. Abria-seassim a porta para uma tripla revo-lução: a americana, do norte ao sul,que aumenta constantemente onúmero de escravos importados,até à segunda metade do séculoXIX, a africana, que não dispõe dosmeios para resistir à solicitação doseuropeus e depois dos americanose, enfim, a europeia, que forneceos capitais que modificam demaneira definitiva a distribuiçãodas forças e dos interesses noAtlântico, uma vez que são asnações que utilizam este oceanoque agravam constantemente onúmero de escravos importados.

Mas deve reter-se uma razãocomplementar para reforçar a

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importação dos escravos africanos,tal como ela é avançada por Pêrode Magalhães Gândavo : contrária-mente aos índios que se refugiamno mato, os escravos africanos nãotêm onde se acoitar, estando porisso submetidos ao jugo dos euro-peus, e não podendo contar com oapoio dos índios. Diga-se desde jáque Gândavo se mostrou bom ana-lista, mas mau profeta, uma vez queos africanos transferiram para omato americano as suas técnicas deinstalação, criando os quilombos eos mocambos que lhes permitiramfurtar-se à disciplina da escravatu-ra, para africanizar um mato queaté então fora o lugar quase exclu-sivo dos índios. A africanização doBrasil processa-se a um ritmo ace-lerado a partir das experiências fei-tas na Baía, sob as ordens deMartim Afonso de Sousa, para apre-ciar as qualidades de adaptaçãodas plantas industriais conhecidase utilizadas pelos portugueses.Deste singular “concurso”, saiuvencedora a cana de açucar, quefoi amplamente difundida pelosportugueses, decisão que obrigouao aumento significativo do núme-ro de escravos importados. Se oaçucar substitui, no plano dasexportações, o pau-brasil, este, quefora sobretudo extraído pelosíndios, desaparece práticamentedas exportações e pode até dizer-se que desaparece também das flo-restas brasileiras.

A africanização não pode deixarde arrastar consigo a desindianiza-ção da sociedade brasileira. Osíndios de pele mais acobreada sãopouco a pouco substituidos porpopulações de pele negra. Ascondições existenciais não repelema produção de mestiços -mulatos emamelucos- mas estes não desem-penham nos primeiros anos brasi-leiros nenhum papel decisivo,sendo integrados pelos europeusno quadro amplo dos escravos oudos trabalhadores quase forçados.A tolerância revelada pelo governoportuguês em relação aos mulatosdo arquipélago de S. Tomé ePríncipe tardou a chegar ao Brasil,onde se regista o contínuo reforçoda violência dos colonos portu-gueses. Mas se os africanos nãopodem furtar-se à indianização,pois só ela permite a plena utiliza-ção dos recursos oferecidos pelanatureza brasileira, não podemosnem devemos esquecer que, porsua vez, os africanos modificam asrelações internas da colónia.Registemos os números fornecidospor Jorge Couto, nos finais dos anos500, mesmo se esta estatística estánítidamente falseada por se referirapenas à “população aculturada”, oque tem como consequência elimi-nar, uma vez mais, os índios da suapropria sociedade. Em 1585 regis-tava-se já a existência de 13 000africanos, ou seja nada menos de24 % dessa “população aculturada”.

Nos finais de 500 os africanos járepresentavam 42 % dessa popula-ção, sendo 30 % os portugueses e28 % os índios. O crescimento dastarefas impostas pela cultura dacana e a produção de açucar, queimpunha por sua vez a organiza-ção de uma produção agrícolacapaz de sustentar patrões e traba-lhadores, conhecera um aumentofulminante quando, em MinasGerais, surgiu o ouro tão ardente-mente procurado por gerações egerações de colonos.

Podemos tirar destes valoresestatísticos, embora reconheçamosserem grosseiros, algumas con-clusões, que salientam a constan-te desindianização do territórioapetecido pelos portugueses epelos europeus, que encontra umaespécie de compensação na africa-nização. Os números de que dis-pomos, e que virão certamente aser afinados pela investigaçãosobretudo brasileira, não permitema menor dúvida. Se, no que se refe-re à natureza, as regras provemessencialmente dos índios, já noque se refere ao trabalho e ao quo-tidiano, o Brasil que os europeuspensam estar em via de construir,revela os seus traços constantemen-te africanos. Embora haja quecontar com a importância da pre-sença dos jesuítas, que procuramisolar os índios dos contactos comos portugueses e os europeus emgeral, tal como os afastam dos

Carro d’Alfandega - Lithographie

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contactos com os africanos.Reforçando o isolamento dosíndios, os jesuítas, recorrendo aoguarani - mas sem repelir o tupi -criam a “língua geral”, que lhes per-mite afastar os índios da línguaportuguesa. Podemos compreenderque esta situação não podia deixarde criar conflitos, na medida emque a defesa dos índios, ou dealguns deles, pelos jesuítas, se cho-cava com os interesses específicosdos colonos, pelas razões já tãoprecisamente aduzidas por Pêro deMagalhães Gândavo.

É fácil de compreender que osjesuítas não cumprem as tarefas quehabitualmente incumbem aos mis-sionários que devem agir no senti-do de separar as populações domi-nadas tanto dos seus sistemasreligiosos como das suas línguas :os homens só podem ser comple-tamente dominados quando acei-tam pôr em causa as suas religiões,ao mesmo tempo que se transfe-rem para outra zona linguística quenão é já a sua língua materna. Osjesuítas não contribuem para aindianização da sociedade brasilei-ra, mas impedem ou dificultam autilização sistemática da mão deobra autóctone. Ao mesmo tempo,os missionários não se opõem aotráfico negreiro e à escravatura afri-cana, prometendo o Padre AntónioVieira, aos escravos africanos,pacientes uma fracção do paraísoceleste. Não seria difícil denunciar,através de António Vieira, os objec-tivos dos jesuítas, mas essa tarefapoderá ainda esperar. O mais signi-ficativo reside no choque entre osdiferentes projectos, os quais assen-tam todas nas condições de domi-nação das populações autóctonesou importadas. O angelismo india-nista não pode dissimular as condi-ções em que os índios eram afasta-dos de fracções amplas das suaspráticas, sem contudo ganhar aces-so às novas condições existenciaisimpostas pela colonização. Osjesuítas, agentes de uma variávelda colonização europeia, não ser-viam os índios, procurando essen-cialmente dispor dos meios paracriar uma espédie de “civilizaçãojesuítico-índia”, naturalmente desti-nada a fracassar.

4- Quando começam os brasileiros?

Face a esta lenta evolução dopovoamento, cabe perguntar emque momento estes grupos dão ori-gem aos “brasileiros”, entendidoscomo uma “nação” que supera osparticularismos dos grupos que par-ticipam nas tarefas do povoamentoe da nova organização territorial. Apassagem da colónia à nação nãopode deixar de implicar uma duplatarefa: unificação da língua, daspráticas religiosas e do aparelhopolítico, que por sua vez permite acriação de uma “consciência nacio-nal”. Esta depende da memórianacional, que transcende as memó-rias individuais graças aos aconte-cimentos que implicam a colectivi-dade e foram retidos para formar agrelha simbólica que permite ver,compreender e explicar o mundo apartir de uma visão autênticamentebrasileira.

Não podemos deixar de saberque a simples criação do nome“Brasil”, deu lugar a polémicas, poisesta designação apareceu a muitoscomo simplesmente materialista,rejeitando as que tinham sido dadaspela expedição de Pedro ÁlvaresCabral e pertenciam ao vocabulárioreligioso português. Continuamoscontudo a esbarrar contra uma dasevidências da própria evolução bra-sileira que não pode deixar de pro-vocar uma certa perplexidade :quem foram os primeiros brasilei-ros e como poderemos defini-los ?É evidente que os índios não sãobrasileiros, inclusivamente porquesó mais tarde, na esteira das desi-gnações portuguesas, acabarão porse metamorfosear em moradoresdo Brasil, o seu território, agorabatizado pelos europeus. Uma dastarefas da colonização reside nanomeação dos territórios: os nomesdados pelos índios formam hoje umresíduo arqueológico, interessantedecerto, mas despojado de qual-quer importância interventiva. Osafricanos também não eram brasi-leiros e tentaram, uma grande partedeles, manter-se fiéis aos valoresdas suas “nações”, de resto reco-nhecidas pelos colonizadores epelos negreiros. Contrariamente

também ao que se pensa corrente-mente, os portugueses nunca conta-ram entre as populações empenha-das em abandonar o seu país parase instalar alhures. Já no séculoXVII, como relatam os textos, osportugueses queriam sobretudo, etodos, regressar ao ponto de parti-da, cheios de experiências e, sepossível, enriquecidos.

Deve dizer-se que tal tem sidosempre o mecanismo da coloniza-ção primeiro e depois da emigra-ção portugueses. A famosa fórmulados nossos dias europeus, “para oano regresso”, que tanto marcou asrelações dos portugueses emigra-dos na Europa com o seu país ecom eles próprios, já podia ter sidoutilizada durante a colonização.Esta ligação umbilical com a aldeiaou a região de origem -o que, natu-ralmente, inclui a família- não podiacriar brasileiros. É por essa razãoque só vemos aparecer brasileirosjá no século XVII, em função doaumento, mesmo se lento, dascidades. A ocupação portuguesa doterritório brasileiro foi organizadade maneira a ocupar o campo, massem permitir a criação de concen-trações urbanas, das quais descon-fia o poder político. Não podemospor isso admirar-nos ao verificarque as duas operações que corres-pondem à tomada de consciênciada condição de brasileiro, tanto nosentido cultural como no sentidopolítico, se verificam em cidades. Aprimeira aparece claramenteexpressa na poesia de Gregório deMatos Guerra, que, infelizmente, sóconseguiu chegar parcialmente àtipografia no século XIX, devido àmaneira como as autoridades por-tuguesas geriram o acesso dosmoradores do Brasil à tipografia. Asegunda refere-se naturalmente àconspiração da Inconfidência, quepodemos e devemos considerarcomo o primeiro grande movimen-to de americanização do Brasil, atéentão ou demasiado português ouexcessivamente africano. Descendentede portugueses, Gregório de MatosGuerra licenciou-se em direito emCoimbra, tendo exercido a magis-tratura durante anos em Lisboa. Foiobrigado a regressar à Bahia, porrazões que ainda não foram com-

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pletamente esclarecidas, se bemque se registe a existência de algu-mas boas biografias do poeta bahia-no. A poesia bastante desbocadade Gregório de Matos não lhe eli-mina nem as qualidades inventivas,nem a força da intervenção na vidaquotidiana da sua cidade. De resto,a sua veemência satírica foi tal queo governador o mandou deportarpara Angola, primeiro para Benguelae depois para Luanda, de onde aca-bou por regressar, sendo todaviaimpedido de continuar a produzira sua poesia satírica, que tantoincomodou o aparelho político quegovernava a cidade.

A poesia de Gregório de Matosfala de dentro para fora, em nomedas condições de nascimento e darelação com os próprios portu-gueses. Para Gregório de Matos, osreinois caracterizavam-se sobretu-do pela rusticidade e pela falta deconhecimentos, o que os não impe-dia, contudo, de conhecer ascen-ções verticais muito rendosas, oque autoriza o poeta a denunciar ocarácter submisso dos brasileiros,que consentem que tais colonos,que tais iletrados, possam acumu-lar riquezas, por meio das quaisexercem uma influência deletériasobre as estruturas sociais do Brasil.Ou seja, não bastava então nascerno Brasil para ser brasileiro. Nestafase do nascimento e fixação daconsciência nacional brasileira, oque faz o brasileiro é a sua oposi-ção decidida aos portugueses. Emque medida esta estratégia daconstrução desta consciência podearrastar consigo índios e africanos?Ou, nesta fase ainda duramentedeterminada pela fortíssima pre-sença do colonizador, não se prevêa criação de uma “frente única”contra o colonizador? É muitovoluntáriamente que recorro a umanacronismo político para procurarpôr em evidência a situação criadapelas fases anteriores da constru-ção do Brasil, até ao momento emque não só emergem os “brasilei-ros”, mas se definem os parâmetrosda necessidade da nação. Descendentesde portugueses, os brasileiros estãoobrigados a separar-se de pais e deavós, tal como não podem deixarde repelir a gesta simbólica que une

e autoriza a existência dos portu-gueses. Darei a esta força o nomede “necessidade da nação” na medi-da em que esta fórmula permite darconta das condições que separamos neo-brasileiros da sua própriaorigem, incluindo a família.

O facto de os cargos do apare-lho de Estado serem preenchidospor representantes da nobreza por-tuguesa não pode deixar de contri-buir para a ruptura, à medida quese desenvolvem os valores afectosàs burguesias, é certo que aindaencaradas por Gregório de Matosnão com condescendência, massobretudo com um humor tão ácidoque consegue destabilizar o pró-prio aparelho político que nãopode fazer menos do que remetê-lo para a costa de África. O para-doxo desta situação reside no factode Angola estar em via de integrarno seu próprio projecto, alguns dosvalores que caracterizavam já a vidabrasileira. Gregório de Matos Guerranão perdeu em Angola a violênciautilizada na denúncia dos reinois,os quais ao servir Portugal nãopodiam deixar de desservir o Brasil.O nacionalismo ainda infantil deGregório de Matos, partilhadocomo não podia deixar de ser peloseu grupo social, ou até por umaparte significativa da sua cidade,teria de amadurecer com o tempo,isto é, com a organização de pro-jectos nacionais brasileiros que nãofossem destinados a enriquecer ocomércio luso. Gregório de Matos,exprimindo o sentimento geral dosseus concidadãos, denuncia amaneira como os interesses portu-gueses ordenham a vaca económi-ca brasileira. Não podemos deixarcontudo de pôr em evidência quea concepção deveras rígida da hie-rarquia social impedia Gregório deMatos e quantos partilhavam osseus sentimentos, de dispor de umapossibilidade de organizar um“braço armado”, que permitissepassar do desabafo poético à acçãorevolucionária, conceito que tam-bém reconheço anacrónico nestasituação.

Creio que o elemento mais incó-modo, sendo também aquele queimpede a elaboração de uma autên-tica consciência nacional, reside na

aceitação das regras portuguesas,que colocam os índios fora dasociedade normal dos homens,assim como reduz os africanos àcondição de escravos. Não é difícilverificar que a independência dopaís seria insuficiente no caso deela ser apenas a expressão dogrupo minoritário, mesmo sendoaquele que, no quadro dos valoresque geriam as sociedades já capita-listas, representava a substância daburguesia nacional. A timidez daspropostas políticas não correspon-de à veemência da denúncia leva-da a cabo pelo poeta e pela poe-sia. A qual, como já salientei, sópode circular por via dos apógra-fos, face à maneira como as autori-dades portuguesas geriram semprea relação do Brasil com a tipogra-fia.

5- O fim da “língua geral”, o começo da brazileirização

do português

Grégorio de Matos Guerra -como de resto outros poetas baia-nos seus contemporâneos aindamal ou nada estudados - denunciaa presença dos portugueses, pondodeste modo em evidênca a existên-cia de um corte profundo entre osque se sentem brasileiros e pensamem brasileiro, e os que, reinois, seconsideram apenas colonos portu-gueses, sem nenhuma tarefa especí-fica a cumprir no que se refere àcriação da consciência nacional bra-sileira. Se a língua de Gregório deMatos retem, na trama poética, asconquistas vocabulares ou sintáxi-cas dos locutores já brasileiros - epor isso inçada de indianismos ede africanismos - , o Brasil estáameaçado então pela política segui-da pelos jesuítas, a quem não inter-essa defender os índios, mas simutilizá-los numa tentativa paraencontrar uma forma de gestãoque, sem os devolver à sua indiani-dade, os mantenha à margem doseuropeus, tanto espanhois comoportugueses. O esforço a fazerpelos brasileiros não podia deixarde incluir a necessidade de pôrtermo a uma situação linguística esocial que, de facto, impedia a uni-

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ficação linguística, quer dizer polí-tica, do Brasil.

Deve-se ao Marquês de Pombala liquidação da língua geral, proi-bida em 1757, medida que precedeo dispositivo legal que torna obri-gatória a língua portuguesa, que,por sua vez antecede -ou anuncia-a expulsão dos jesuítas. Não pare-ce excessivo afirmar que o Brasilde hoje deve ao Marquês dePombal as suas fronteiras, pois alíngua portuguesa agiu como umcimento interno, assegurando a uni-ficação dos homens, obrigando osafricanos a abandonar as suas lín-guas maternas, tal como de restoiria acontecer, embora muito maislentamente com os índios. Nempodia ser de outra maneira, poisque as tentativas dos jesuítas impe-diam que o Brasil adquirisse demaneira definitiva a maioridade lin-guística, reduzindo ou liquidandoos grupos ou até as regiões onde oportuguês fora deliberadamenteimpedido de alcançar a extensãoque podia prever-se e que envol-veria todos os membros da comu-nidade que, pela via da língua, seia tornando cada vez mais conscien-te da sua condição brasileira. Jámostrei em outro lugar que a lín-gua brasileira de Gregório de MatosGuerra se caracterizava entre o maispelo recurso a uma série de termos,indianismos e africanismos, quepermitiam construir uma visãosexual dos brasileiros voluntária-mente separada dos vocábulos por-tugueses. Como se o corpo brasi-

leiro devesse necessáriamente desi-gnar de maneira autónoma os par-ticularismos sexuais.

Graças às medidas adoptadaspelo Marquês de Pombal procura-va superar-se a fragmentação lin-guística dos índios e dos africanos,sem contudo aceitar a criação delínguas particulares, destinadasmais a criar um isolamento socialreforçado ou confortado pela lín-gua, e apostando de maneira deci-dida no carácter universalisante dalíngua portuguesa como já defen-dia, no século XVI, João de Barros.É nestas condições que a línguaportuguesa desempenha um papelfalsamente colonialista, pois é gra-ças a ela que se organiza a unifica-ção do Brasil, não só territorial massobretudo social. A língua brasilei-ra da Bahia que Gregório de MatosGuerra trouxera para o espaçoliterário, age como um cimento cul-tural, obrigando os reinois a sub-meter-se às suas regras: falar ounão falar brasileiro, tal é a questãoprincipal, cujo interesse profundose manteve até aos dias de hoje.Como se, de facto, a adopção dalíngua portuguesa multiplicassenão os portugueses, mas sim os bra-sileiros .

A crescente urbanização brasi-leira exigia o recurso a uma línguaunida, permitindo a construção dasrelações entre o litoral e o interior,entre o norte e o sul. As decisõesdo Marquês de Pombal não podemdeixar de pôr em evidência aimpossibilidade em que se encon-

tra o colonizador de compreenderque as armas culturais que nãopode deixar de fornecer, serãointeiramente recuperadas pelo colo-nizado. A dificuldade reside nofacto de os já brasileiros e muitosdos futuros brasileiros, serem nãosó de origem portuguesa, mas man-terem-se fiéis a valores portugueses,até ao momento em que “viram”brasileiros. Esta metamorfose, fun-damental para o destino do Brasil e,fatalmente, também para Portugal,encontra um reforço nas decisõesdo Marquês de Pombal. A liquida-ção da língua geral acompanha adissolução das “reduções”, onde osjesuítas não só concentravam osíndios mas procuravam organizarsenão um império, em todo o casouma sociedade excepcional, ondeos índios estariam concentradossem relações com o resto doshomens e do mundo. Comportamentoabsurdo, que o Marquês censurouem nome da colonização, mas tam-bém em função dos interessesdesses colonos que, pouco a pouco,se iam separando dos valores por-tugueses, para se assumir cada vezmais brasileiros.

É já em condições infinitamentemais brasileiras que os conspira-dores de Minas Gerais, serão leva-dos a organizar o futuro nacional,à luz de uma nova consciêncianacional brasileira. Sabendo-se que,nas condições de dominação colo-nial existentes na segunda metadedo século XVIII, a “nação” só podiaser pensada nas cidades, onde seconcentravam homens e mulheresque ou já tinham nascido no Brasil,considerando-se por isso mais bra-sileiros do que portugueses, assimcomo antigos portugueses que,integrados de maneira apaixonadana vida e nas estruturas sociais doBrasil, não se podiam pensar senãocomo brasileiros. É a generalizaçãodo termo que obriga os própriosbrasileiros a dar-se conta das condi-ções particulares que presidem àorganização política, económica esocial. Mas já então, e a partir deGregório de Matos Guerra, sedenuncia o enriquecimento rápidoe abusivo dos colonos reinois. Estadisjunção ainda não esgotou as suaspotencialidades, pois não é dificil

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Page 12: A Lenta e Difícil Construção do Brasil · Terra de Vera Cruz, que mais tarde se transformará, não sem protestos, no Brasil dos nossos dias, começou com a expedição de Cristóvão

39n° 11 - mai 2001LLAATTIITTUUDDEESS

delimitar, na epiderme dos brasilei-ros, zona de fricção face aos com-portamentos portugueses, o queexplica que nenhum portuguêspossa, no Brasil de hoje, manter asua língua, sendo socialmente obri-gado a injectar no seu portuguêsos pozinhos brasileiros que a tor-nam compreensível. O ouvido bra-sileiro rejeita o sotaque português,como já criara a sua língua a partirdo século XVI (embora os filólogosafirmem que a língua brasileira semantem fiel ao português faladono século XVI, o que é evidente-mente ilusório: os brasileiros falama língua que criaram para assegu-rar a sua autonomia linguística, pri-meiro passo para assegurar ainevitável autonomia, política).

Se a língua portuguesa fora tãoprofundamente identificada com osportugueses que pode ser utilizadacomo um marcador suficiente paralevar os índios desafectos a cap-turá-los, engordá-los, sacrificá-los ecomê-los não devendo nós esque-cer que esta operação ainda encon-trou eco no Manifesto antropofági-co de Oswald de Andrade queconsiderava a captura e o sacrifíciodo bispo Sardinha, como sendo oprimeiro autêntico momento dabrasileirização do território e dasociedade), não podemos deixarde fazer da língua um elementofundamental na organização dasociedade que de colónia se trans-forma pouco a pouco em nação. Alíngua portuguesa afirma nestascondições as suas grandes quali-dades glotofágicas, tal como permi-te a solidificação do processo urba-no, que encontra a sua amplaconfirmação nos actos políticos decarácter nacionalista.

Podemos reconhecer que osegundo grande momento quecontribui de maneira decisiva paraconfirmar a emergência da “nação”brasileira -e distingo aqui a “nação”,como forma última da “consciêncianacional”, do “Estado” que depen-de sempre da própria estrutura da“nação”- é necessáriamente aconspiração política. Se bem quese registem formas ténues de acti-vidade conspirativa política ante-riores, devemos reter sobretudo aInconfidência mineira que não só

nos surge como uma organizaçãoespecíficamente brasileira, masassocia a esta outra qualidade :trata-se de uma operação radical-mente americana. A data provocaalguns automatismos, e já levoumais de um a integrar a “conspira-ção” no quadro dos valores revolu-cionários franceses. Convem sermais rigoroso, na medida em queesta organização brasileira recebe oseu influxo teórico dos norte-ame-ricanos que tinham já conseguidolibertar-se dos ferros da coloniza-ção. A França serviu apenas delugar de contacto entre os delega-dos brasileiros e o representantenorte-americano, Thomas Jefferson.

O carácter claramente burguêsdesta operação foi involuntáriamen-te reconhecido pelo aparelho polí-tico-judiciário português que pren-deu e maltratou os inconfidentes,tendo condenado alguns à morte,mas tendo apenas executado oalferes Joaquim José da Silva Xavier,que a crueldade portuguesa desi-gna por uma alcunha, o Tira-Dentes, destinada a aviltar o conspi-rador mineiro. A identidade dopatriota brasileiro é substituida pelaalcunha que lhe fora dada na suaregião natal, pelo facto de ser umhomem que tinha habilidade paratratar dos dentes dos seus conterrâ-neos, num momento em que amedicina ainda não chegara aoscampos brasileiros. Do ponto devista simbólico, são evidentes as inten-ções do poderpolítico portu-guês: executar oconspirador quenão pertencia anenhum dos gru-pos sociais maisimportantes danascente bur-guesia brasileira.

O que maisinteressa pôr emevidência noquadro destareflexão, resideno facto de osconspiradoresque procuramorganizar não asimples “rebe-lião” que consta

dos autos, mas sim a autêntica revo-lução que devia pôr termo ao perío-do da colonização, é o facto de setratar de uma operação em que oquadro americano, autoriza anecessidade da independência totaldos brasileiros. Como não podiadeixar de ser a “inconfidência” nãoencara a conservação da soluçãomonárquica, sendo, como é, umprojecto republicano. Mas já entãoo cimento linguístico funcionavade maneira plena, tendo-se atéregistado no Brasil uma situaçãosingular, que se caracteriza pelaausência de crioulos, mesmo se nosúltimos anos Carlos Vogt procuraidentificar as línguas “particulares”ou “secretas” que se encontram emcertos cafundós no estado de S.Paulo. Não é questão que possa-mos analisar neste quadro, pois oque mais importa é registar a emer-gência da burguesia, cujo projectorepublicano irriga a conspiração de1789, e que levará à proclamaçãoda independência, a 7 de Setembrode 1822, ou seja apenas trinta e trêsanos apos a “Inconfidência”. Oimpério constitui por isso um espa-ço intermédio, pois estava já ins-crita nos projectos da burguesiabrasileira, a inevitabilidade daRepública �

Barão de S. João, Julho de 2000.

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