A Lentidão e o Colapso - Deleuze e Fitzgerald

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1 A LENTIDÃO E O COLAPSO COMO MODOS DE VIDA: RESSONÂNCIAS ENTRE UM ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO E UM ROMANCE DE MANUEL PUIG Bruno Vasconcelos de Almeida Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais [email protected] Júlio deixou o consultório onde semanalmente fazia suas sessões de grupo. Desceu pelo elevador, cumprimentou o pessoal da portaria e atravessou a rua. No percurso, retirou do bolso a chave de seu carro e antes de completá-lo foi colhido violentamente por um motociclista em alta velocidade. Branco na mente, ferimento no rosto e no coro cabeludo, corpo no chão, sangue. Ele foi lançado contra seu próprio veículo, estacionado transversalmente. Levado para o hospital constatou-se fratura da perna, corte na cabeça, nariz quebrado. A cena superou as conseqüências. Durante algum tempo, Júlio teve seu cotidiano alterado em função da condição clínica, especialmente do gesso na perna. Dono de academia e professor de educação física, o acidente transtornou seu cotidiano. Dirigia-se ao trabalho andando de muletas e não deixou de freqüentar seu grupo terapêutico. A forma física, os exercícios, os cuidados corporais, seu universo de ocupações e preocupações foi modificado pelo acidente que lhe impunha uma lentidão, um ritmo desconhecido, uma outra relação com o tempo. No desdobramento do problema da perna, ele passou por duas cirurgias que atrasaram sua recuperação. Por duas vezes estive no hospital. Alguns atendimentos aconteceram em suas lentas caminhadas pelo centro da cidade. Ao final de um período de quase dez meses escuto de Júlio a seguinte frase: que estranho vejo a vida com mais calma neste período de fisioterapia, mas ela ficou mais rápida, parece que estou indo mais depressa. Tem um gosto diferente, tudo é mais lento e mais veloz. Para uma pessoa envolvida cotidianamente com práticas de cuidados corporais e exercícios de boa forma, o acidente proporcionou uma suspensão de sua rotina. No início, seus relatos pareciam exasperados, com o tempo a angústia e a ânsia cederam. Chegou a dizer em determinada ocasião que não gostaria de deixar as duas novas pernas, permanecer de muletas, andar lentamente pela rua. A sensação híbrida de velocidade e lentidão que toma corpo em alguns relatos contemporâneos parece estar associada a uma suspensão dos ritmos da vida, a uma pausa aleatória que propicia a criação de movimentos diferenciados e sensações novas. Vale notar que até mesmo suas falas e gestos pareciam mais lentos no período em que se utilizou das quatro pernas. Júlio passou da percepção de prejuízo com o acidente a uma espécie de auto-satisfação ou contentamento com a novidade de seus ritmos e percursos. Mudanças significativas nos processos vitais de uma pessoa podem originar-se de meros detalhes cotidianos e de aspectos indeléveis da existência. De outro modo, graves acontecimentos ou experiências trágicas – o termo trágico é aqui utilizado no sentido comum – podem favorecer mudanças significativas, rearranjos nos modos de vida, transformações nas paisagens subjetivas.

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Artigo crítico sobre o paradoxo do tempo em Fitzgerald e a filosofia de G. Deleuze

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    A LENTIDO E O COLAPSO COMO MODOS DE VIDA: RESSONNCIAS ENTRE UM ACOMPANHAMENTO TERAPUTICO E UM ROMANCE DE

    MANUEL PUIG

    Bruno Vasconcelos de Almeida Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    [email protected]

    Jlio deixou o consultrio onde semanalmente fazia suas sesses de grupo. Desceu pelo elevador, cumprimentou o pessoal da portaria e atravessou a rua. No percurso, retirou do bolso a chave de seu carro e antes de complet-lo foi colhido violentamente por um motociclista em alta velocidade. Branco na mente, ferimento no rosto e no coro cabeludo, corpo no cho, sangue. Ele foi lanado contra seu prprio veculo, estacionado transversalmente. Levado para o hospital constatou-se fratura da perna, corte na cabea, nariz quebrado. A cena superou as conseqncias. Durante algum tempo, Jlio teve seu cotidiano alterado em funo da condio clnica, especialmente do gesso na perna. Dono de academia e professor de educao fsica, o acidente transtornou seu cotidiano. Dirigia-se ao trabalho andando de muletas e no deixou de freqentar seu grupo teraputico. A forma fsica, os exerccios, os cuidados corporais, seu universo de ocupaes e preocupaes foi modificado pelo acidente que lhe impunha uma lentido, um ritmo desconhecido, uma outra relao com o tempo. No desdobramento do problema da perna, ele passou por duas cirurgias que atrasaram sua recuperao. Por duas vezes estive no hospital. Alguns atendimentos aconteceram em suas lentas caminhadas pelo centro da cidade. Ao final de um perodo de quase dez meses escuto de Jlio a seguinte frase: que estranho vejo a vida com mais calma neste perodo de fisioterapia, mas ela ficou mais rpida, parece que estou indo mais depressa. Tem um gosto diferente, tudo mais lento e mais veloz. Para uma pessoa envolvida cotidianamente com prticas de cuidados corporais e exerccios de boa forma, o acidente proporcionou uma suspenso de sua rotina. No incio, seus relatos pareciam exasperados, com o tempo a angstia e a nsia cederam. Chegou a dizer em determinada ocasio que no gostaria de deixar as duas novas pernas, permanecer de muletas, andar lentamente pela rua. A sensao hbrida de velocidade e lentido que toma corpo em alguns relatos contemporneos parece estar associada a uma suspenso dos ritmos da vida, a uma pausa aleatria que propicia a criao de movimentos diferenciados e sensaes novas. Vale notar que at mesmo suas falas e gestos pareciam mais lentos no perodo em que se utilizou das quatro pernas. Jlio passou da percepo de prejuzo com o acidente a uma espcie de auto-satisfao ou contentamento com a novidade de seus ritmos e percursos.

    Mudanas significativas nos processos vitais de uma pessoa podem originar-se de meros detalhes cotidianos e de aspectos indelveis da existncia. De outro modo, graves acontecimentos ou experincias trgicas o termo trgico aqui utilizado no sentido comum podem favorecer mudanas significativas, rearranjos nos modos de vida, transformaes nas paisagens subjetivas.

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    O Colapso o nome de um conto do escritor americano Francis Scott Fitzgerald que retrata uma crise sofrida pelo autor por volta de seus quarenta anos: crise de vida, crise de escrita, crise de sentimento, crise de projeto. [...] na verdadeira noite escura da alma, sempre so trs horas da madrugada, dia aps dia (FITZGERALD, 2007, p.78). Uma rpida consulta ao dicionrio e encontramos para o verbete colapso a significao de diminuio da atividade nervosa ou prostrao repentina. J o colapso, pensado no contexto dos modos de existncia, amplia seus sentidos para queda, cada, ruptura, desaparecimento, suspenso, mutao. No pensamento de Deleuze, o colapso aproxima-se dos conceitos de desterritorializao e linhas de fuga. O encontro de um homem de idade adoentado, exilado poltico argentino, com um professor de histria norte americano, desempregado e praticante de cooper, e ento no ofcio de cuidador, o mote do romance Maldio Eterna a Quem Ler Estas Pginas, de Manuel Puig. Duas pessoas, duas culturas diferentes, duas geraes, dois modos de existncia. O romance construdo sob forma de dilogos com diversas tonalidades afetivas. Lentamente a conversa passa da aproximao ao distanciamento, do interesse ao desinteresse, do amor ao dio, e vice-versa. No horizonte da narrativa, a relao entre dois mundos e a impossibilidade da comunicao. O senhor Ramirez e Larry, nomes dos personagens, passeiam por praas, casas, bibliotecas, hospitais. Conversam sobre seus pases, histria, literatura, vida, trabalho, mulheres. Puig constri uma narrativa muito semelhante de um acompanhamento teraputico. O enredo poderia ser o de um acompanhamento qualquer: a cidade de Nova York, os deslocamentos, a conversa como uma espcie de arte do encontro, o intenso sofrimento e as sensaes que perpassam os dilogos. O leitor no tem escapatria, ser amaldioado. Maldio do encontro e da trama que envolve os personagens, maldio das ausncias e de vidas que se inviabilizam, mas, sobretudo maldio da literatura.

    Gilles Deleuze apreciava a obra de Fitzgerald. Trs Novelas ou O Que Se Passou? (DELEUZE, 1996, pp. 63-81) e a Vigsima Segunda Srie: Porcelana e Vulco, (IDEM, 1974, pp. 157-165), atestam os efeitos dessa leitura que tambm funciona como fissura. Toda vida , obviamente, um processo de demolio, citao extrada de The Crack Up, ressoa na obra do autor a partir de uma literatura que problematiza aquilo que se passou no encontro entre a esquizofrnica e o alcolatra. Deleuze chama a ateno para o obviamente, para a fissura, para as relaes entre a superfcie e a profundidade. A idia de um processo de demolio bastante estranha. A fissura teria uma profundidade demarcatria entre interior e exterior, entre dentro e fora. A fissura rasga a superfcie sem deixar marcas e a cicatriz o encontro com a morte. Vale a pergunta: ento h processualidades no colapso? A frase de Fitzgerald faz a ligao entre processo e vida, e confere palavra vida o atributo do colapso. Toda vida demolio perderia o sentido. Toda vida , obviamente, um processo de demolio: destruio, queda, cada, desaparecimento. Certa vez, Jlio fez o seguinte relato: ele bebe sem parar, destri todas as relaes no seu entorno, perdeu o emprego, a mulher o largou, dinheiro, tinha bastante antes, e agora pede esmolas, mendiga, cai em toda parte. Quando toca o telefone, j sei,

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    pedem para ir busc-lo. Numa noite dessas, aps deix-lo semi-inconsciente em seu quarto, uma espelunca que ele divide com outro bbado, tive vontade de mat-lo... Comecei a apertar seu pescoo... Imaginei que ficaria livre... Teria outra vida a partir de ento. Algo me deteve, o temor do crime, o medo da priso, a polcia, a famlia, no sei o qu... Talvez uma pontazinha de solidariedade com aquele filho da puta. Mesmo assim sa de l com muita raiva. A suspenso do gesto na pontazinha de solidariedade. O colapso e a fissura danam a linha de um invlucro imperfeito que ata duas pessoas em um n de raiva e dio. Querer o acontecimento e sua efetuao, querer o processo e a vida, ou como diz Deleuze, se querer querer o acontecimento, como no haveramos de querer tambm sua plena efetuao em uma mistura corporal e sob esta vontade trgica que preside a todas as ingestes? (DELEUZE, 1974, p. 160). Suportar as intensidades do encontro e suspender a esganadura. A mo apertando o pescoo do embriagado e, de sbito, a suspenso, trgica, estranha, cheia de dio. Como nos antigos duelos com armas de fogo com apenas uma bala, o inimigo atirou e errou, voc agora pode mat-lo, mas no dispara. Resignao forosa e processual, a vida insiste numa espcie de clemncia libertadora. A lentido como potncia deriva das processualidades. A lentido como resistncia ou o jogo de Espinosa com as velocidades e as lentides. Como salvar-se, salvando a superfcie e toda a organizao de superfcie, inclusive a linguagem e a vida? Como atingir esta poltica, esta guerrilha completa? (IDEM, p. 161). A vida como colapso, apreendida nas lentides, nos processos, no intensivo, faz reverberar mais vida, ou uma poltica de resistncia que permite a respirao. Poltica do corpo que respira e que ainda insiste. Se Jlio tivesse insistido com a esganadura, ele se aproximaria de uma estatstica, de um cdigo. Ao contrrio, na suspenso, as lentides detiveram suas mos.

    A idia de processo est no corao da ontologia de Deleuze. No combate aos transcendentalismos e s essncias, o autor trabalha com o conceito de processos de individuao a individuao no supe diferenao alguma, mas provoca-a (DELEUZE, 1988, p. 394). Uma sucesso de conceitos favorece a compreenso do que est em jogo nos processos de individuao: desejo, o prprio desejo processo; intensivo, que remete a um campo de variaes, modulaes e ressonncias; virtual, que no se ope ao real e sim ao atual, e multiplicidade. Os processos so produzidos por cortes, fissuras, variaes a partir do novo, mas tambm por aspectos regulares e recorrentes. De acordo com DeLanda (2008, pp.66-67), do ponto de vista da individuao, as diferenas intensivas conduzem os processos. Alm disto, as intensidades so caracterizadas por pontos crticos em que um material espontnea e abruptamente muda em estrutura. As diferenas intensivas tm por propsito definir processos de individuao, processos de composio. A capacidade de afetar e ser afetado, as singularidades, as hecceidades, constituem a estrutura abstrata de processos intensivos, vale lembrar, estrutura abstrata imanente. Desejo, processo, intensidades, ressonncias, matrias da clnica e da literatura. Nunca um processo acabado, diferena em si mesma. Processos de composio sobre um plano de imanncia. Clnica e literatura sem fim algum, processo que refaz permanentemente as dinmicas espao temporais.

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    Whitehead (1985, p.214; 1956 p.292) afirma que existem duas espcies de processos: o processo macroscpico e o processo microscpico. O primeiro a transio da atualidade lograda (attained actuality) atualidade em vias de realizao (actuality in attainment); j o processo microscpico a converso de condies meramente reais em atualidade determinada (determinate actuality). O primeiro processo efetua a transio do atual ao meramente real, o segundo efetua a passagem do real ao atual. Dito de outra forma existe dois tipos de fluncia: um tipo prprio constituio da existncia particular denominado por Whitehead de concrescncia; o outro uma fluncia em direo concluso do processo, ao acabamento da existncia particular, indicando o aparecimento de elementos originais na constituio de outras existncias particulares provocadas pelas repeties do processo. Este segundo tipo, Whitehead o denominou transio. Sherburne (1984, p.238) sustenta que os dois tipos de fluncia fazem parte de um nico processo, e no dois, e que se trata de duas perspectivas do mesmo processo, dois diferentes contextos. Em Whitehead o conceito de processo est atrelado ao conceito de criatividade, ou melhor, ao princpio de criatividade. No chamado esquema categorial (categorias do ltimo, categorias de existncia, categorias de explicao e obrigaes categoriais) a categoria do ltimo composta pelas noes de criatividade, muitos (many) e um (one). Este no se refere ao nmero um e sim ao artigo, designa a singularidade de uma entidade. O termo many traz consigo a noo de diversidade disjuntiva, elemento do conceito de ser. A partir dessa tripartio da categoria do ltimo, podemos caracterizar processo como movimento criador e impulso criativo do muitos para o um, produzindo nova entidade, que por sua vez compe um novo muitos, produzindo tambm nova entidade. De acordo com Sherburne (1984, p.238), a alterao rtmica entre muitos e um processo. O processo de Whitehead o processo da metafsica, processo comandado pelos princpios ontolgico, de novidade e de inquietude. Na primeira das categorias de explicao, Whitehead afirma que o mundo atual um processo e que o processo o devir de entidades atuais. Na segunda, no devir de uma entidade atual, a unidade potencial de vrias entidades adquire a unidade real da entidade atual nica, de modo que a entidade atual a concrescncia real de vrios potenciais (possveis). Com o devir de uma entidade atual, evoluem todas as demais categorias de existncia, exceo dos objetos eternos. [...] prprio da natureza de um ser que seja um potencial para todo devir. Este o princpio da relatividade1. (WHITEHEAD, 1985, p.22). Na oitava categoria de explicao, Whitehead diz que uma entidade atual requer duas descries: uma que seja analtica da potencialidade para a objetificao (objectification) no devir de outras entidades atuais e outra que seja analtica do processo que constitui seu prprio devir. E logo a seguir, essa passagem fantstica, a de um como, como uma entidade atual devm constitui o que essa entidade atual . Que o como uma entidade atual devm, constitui o que essa entidade atual , de sorte que as duas descries de uma entidade atual no so

    1 [...] it belongs to the nature of a being that it is a potential for every becoming. This is the

    principle of relativity. (WHITEHEAD, 1985, p. 22).

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    independentes. Seu ser est constitudo por seu devir. Este o princpio de processo2 (WHITEHEAD, 1985, p. 23) (Traduo nossa).

    O conceito de processo utilizado por Deleuze e Guattari em algumas pginas de O Anti-dipo. Na crtica de dipo, Deleuze e Guattari afirmam que a neurose que explica dipo. Os autores faro equivaler psicose o prprio processo ou a interrupo do processo. Passamos de uma perspectiva metafsica a uma perspectiva analtica. A idia de processo em Deleuze e Guattari est associada ao desejo.

    A esquizofrenia como processo a produo desejante, mas tal como ela no fim, como limite da produo social determinada nas condies do capitalismo. nossa doena, ns, homens modernos. Fim da histria no tem outro sentido. Nela se renem os dois sentidos de processo, como movimento da produo social que vai at o fim de sua desterritorializao, e como movimento da produo metafsica que leva e reproduz o desejo em uma nova Terra. (DELEUZE E GUATTARI, 1976, p.169).

    O primeiro sentido de processo, como movimento da produo social que vai at o fim de sua desterritorializao, no nos estranho se levarmos em conta os dois campos problemticos deste texto: clnica e literatura. O processo conduz a desterritorializao ao mesmo tempo em que conduzido pelas foras ora clnicas ora literrias. Longe de qualquer essencialismo clnico ou literrio, o que est em jogo o modo constituinte, o fazer operatrio daquilo que se passa na clnica e na literatura. Quanto ao segundo sentido, movimento da produo metafsica que leva e reproduz o desejo em uma nova terra, quo estranho nos parece esta assertiva, e ao mesmo tempo to prxima do conceito de processo em Whitehead. Os homens de desejo da clnica e da literatura, Van Gogh, Artaud, Bispo do Rosrio, Corpo-Santo, para ficar apenas em alguns mais conhecidos, ou muitos pacientes, pessoas que de uma maneira ou de outra foram por ns acompanhados, e os autores de que gostamos vrios deles fora dos cnones oficiais, conduzem e so conduzidos a uma nova terra. Desejo migrante, nmade, no desejo, processo. Processo lento e veloz, clnica lenta e veloz, literatura lenta e veloz. Deleuze e Guattari fazem o elogio da idia de processo em Jaspers e Laing. Mas o que Jaspers chama de processo? Em sua Psicopatologia Geral, o autor denominar ciclos de evoluo tpicos ou modos de evoluo de determinadas doenas, as fases constituintes de seu esquema explicativo: fase, broto, processo e desenvolvimento. De um lado, a doena aguda reversvel (fase) e a doena aguda irreversvel (broto). De outro, o processo como uma interrupo da continuidade compreensvel um corte, um rasgo, uma lmina, um furo considerando a distino entre processo orgnico e processo psquico; e o desenvolvimento a conexo da totalidade da vida psquica ao longo do tempo. O processo orgnico sinaliza a destruio corporal que afeta o rendimento do indivduo. O processo psquico, com incio gradual ou sbito, tem carter persistente e na maioria das vezes irreversvel. Ao tempo de minha vida

    2 That how an actual entity becomes constitutes what that actual entity is; so that the two descriptions

    of an actual entity are not independent. Its being is constituted by its becoming. This is the principle of process (WHITEHEAD, 1985, p. 23).

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    profissional em que trabalhei em hospital psiquitrico, causava-me incmodo a distino espacial e clnica que separava a moradia dos crnicos das enfermarias de agudos. Estava implcita a possibilidade de retorno da loucura naqueles acometidos por crise aguda. A irreversibilidade ficava do lado dos chamados pacientes crnicos ou de longa permanncia. Deleuze faz referncia a esta idia de Jaspers e ainda de Laing. Na loucura h duas coisas: furo e desabamento. [...] h um furo, um rasgo, como uma luz repentina, um muro que atravessado; e h, em seguida, uma dimenso muito diferente, que poderamos chamar um desabamento (DELEUZE, 2006, p.303). O furo e o desabamento so dois momentos diferentes, e se o furo coincide algumas vezes com momentos de produo intensiva, o risco do desabamento, que podemos chamar de esquizofrenia ou de colapso, real e temerrio. A idia de colapso, se a tomamos de emprstimo a Fitzgerald e a Deleuze porque uma bela idia e vem ao encontro de uma condio contempornea (clnica) e a uma maneira de pensar contempornea (pensamento), pois permite pontuar a interrupo do processo sem desqualificar os ritmos e processualidades dele constante. A estria contada por Vittorio Marchetti e comentada por Deleuze e Guattari (IDEM, 2006b, p.304) paradigmtica das relaes entre o processo e o colapso. Reproduzo-a na ntegra, pois ela muito engraada:

    Num hospital psiquitrico, os internos, desafiando o veto do diretor da clnica, tm o hbito de jogar cartas no quarto de um doente que h anos est num estado de profunda catatonia: um objeto. Nenhuma palavra, nenhum gesto, nenhum movimento. Um dia, enquanto os internos jogavam, o doente, que tinha sido voltado em direo janela pelo enfermeiro, fala inesperadamente: Olha l o diretor!. Ele recai em seu silncio e morre alguns anos mais tarde sem jamais ter voltado a falar. Eis ento sua mensagem para o mundo: Olha l o diretor!. (Entrevista com Vittorio Marchetti, Tempi Moderni, n 12, 1972. In: DELEUZE, 2006, p.304).

    H certo fascnio nessas histrias de um nico gesto, um nico movimento, uma processualidade quebrada por um raio, um claro repentino, e tudo. Vale lembrar o caso da paciente atendida em um hospital nos anos noventa, vinte e dois dias de mutismo absoluto, quando de repente um movimento em direo enfermaria, o pedido prontamente atendido de um cigarro, os olhares cruzados por entre o fogo aceso (VASCONCELOS DE ALMEIDA, 2005, p.32-33). No dia seguinte o atendimento no espao de uma sala. Mas o que teria se passado entre tarde do dia anterior e a manh seguinte do atendimento? Ou o que se passou antes, na produo daquele olhar? Ela voltou para a cama aps fumar seu cigarro. Teria tomado banho, se alimentou, falou com alguma outra interna? Permaneceu em silncio, incomunicvel? A idia de processo parece acompanhar os movimentos vitais, cobrir as realidades intensivas atravs de seus aspectos descritivos. A loucura no necessariamente um desmoronamento (breakdown); ela pode ser tambm uma abertura (breakthrough) (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p.170). Em Deleuze e Guattari, a idia de processo est ligada psicose, melhor, subjetividade esquiza, no edpica. Em O Anti-dipo, clnica, arte e literatura se ligam por fluxos que

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    alimentam a mquina desejante, que fazem escorrer o desejo. Mquina artstica, mquina analtica e mquina revolucionria, dizem os autores, fogos locais pacientemente acesos para uma exploso generalizada (DELEUZE E GUATTARI, 1976, p.176). Um pargrafo de Deleuze e Guattari refere-se literatura anglo-americana. Trata-se de um comentrio centrado nos processos de territorializao e desterritorializao na obra de diversos escritores. Nele tambm se encontra a pertena da idia de processo ao corpo sem rgos:

    Estranha literatura anglo-americana: de Thomas Hardy, de Lawrence a Lowry, de Miller a Ginsberg e Kerouac, homens sabem partir, embaralhar os cdigos, fazer passar fluxos, atravessar o deserto do corpo sem rgos. Eles atravessam um limite, quebram um muro, a barra capitalista. E certamente acontece no conseguirem o acabamento do processo, eles no cessam de no consegui-lo. Refecha-se o impasse neurtico o papai-mame da edipianizao, a Amrica, o retorno ao pas natal ou ento a perverso das territorialidades exticas, e depois a droga, o lcool ou, pior ainda, um velho sonho fascista. Nunca o delrio oscilou melhor de um de seus plos ao outro. Mas, atravs dos impasses e dos tringulos, um fluxo esquizofrnico escorre, irresistvel, esperma, rio, esgoto, blenorragia ou fluxo de palavras que no se deixam codificar, libido demasiado fluida e demasiado viscosa: uma violncia sintaxe, uma destruio concertada do significante, no sentido erigido como fluxo, polivocidade que volta a freqentar todas as relaes. [...] isso o estilo, ou melhor, a ausncia de estilo, a assintaxe, a agramaticalidade: momento em que a linguagem no se define mais pelo que diz, ainda menos pelo que a torna significante, mas por aquilo que a faz escorrer, fluir e explodir o desejo. Porque a literatura exatamente como a esquizofrenia: um processo e no uma meta, uma produo e no uma expresso. (DELEUZE E GUATTARI, 1976, pp.171-172).

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    Referncias:

    CIORAN, Emil. Exerccios de Admirao: Ensaios e Perfis. Traduo Jos Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. DELANDA, Manuel. A Filosofia Como Cincia Intensiva. In: Carel, Havi e Gamez, David (et col.). Filosofia Contempornea em Ao. Traduo Fernando Jos R. da Rocha. Porto Alegre: Artmed, 2008. DELEUZE, Gilles. A Ilha Deserta: E Outros Textos. Edio preparada por David Lapoujade; organizao da edio brasileira e reviso tcnica Luiz B. L. Orlandi. So Paulo: Iluminuras, 2006. _______________ Lgica do Sentido. Traduo Luiz R. S. Fortes. So Paulo: Perspectiva, 1974. (Estudos, 35). DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. O Anti-dipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Traduo Georges Lamazire. Rio de Janeiro: Imago, 1976. _______________ Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 3. Traduo Aurlio Guerra Neto, Ana Lcia de Oliveira, Lcia Cludia Leo e Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. (Coleo TRANS). FITZGERALD, Francis Scott. Crack-up. Traduo Rosaura Eichenberg. Porto Alegre: L&PM, 2007. PUIG, Manuel. Maldio Eterna a Quem Ler estas Pginas. Traduo Luiz Otvio Barreto Leite. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. SHERBURNE, Donald. A Key to Whiteheads Process and Reality. Chicago: The University of Chicago, 1984. WHITEHEAD, Alfred North. Process and Reality (Gifford Lectures). New York: The Free Press, 1985.