A Liberdade

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Nome: Professor: Tadeu Cruz Comp. Curricular: Filosofia

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Turno: Vespertino

minha alma, no aspires vida imortal, mas esgota o campo do possvel. Pndaro Nunca h determinismo e nunca h escolha, nunca sou coisa e nunca sou conscincia nua. Merleau-Ponty

A LIBERDADE

IntroduoQuando nos referimos ao conceito de liberdade, podemos faz-lo a partir de diversas perspectivas. No sentido mais comum, uma pessoa livre aquela que pensa e age por si prpria, no constrangida a fazer o que no deseja nem escrava ou prisioneira. Mas podemos considerar liberdade em outros sentidos mais amplos, por exemplo, no mbito da poltica, da economia, das leis, da sociedade, espaos especficos em que os indivduos se relacionam entre si no exerccio do poder, dos negcios, do direito, no convvio pessoal. Embora esses campos tenham suas caractersticas prprias, em todos eles perpassa a ideia de liberdade tica, que diz respeito ao sujeito moral, capaz de decidir com autonomia em relao a si mesmo e aos outros. [...]

1. Destino e determinismoAs Moiras, divindades da mitologia grega, so trs irm que dirigem o movimento das esferas celestes, a harmonia do mundo e a sorte dos mortais. Elas presidem o destino (moira, em grego) e dividem entre si as diversas funes: Cloto (aquela que fia) tece os fios dos destinos humanos; Lquesis (que significa "sorte"), pe o fio no fuso; tropos (ou seja, "inflexvel"), corta impiedosamente o fio que mede a vida de cada mortal. Nesse mito est implcita a ideia de que a ao humana dependa dos desgnios divinos. Os relatos de Homero e Hesodo revelam como os heris at se orgulham de ser escolhidos por certos deuses, que os fazem seus protegidos, defendendo-os da ao malvola de outros deuses. Vejamos agora o que diz o psiclogo norte-americano John B. Watson, terico do behaviorismo: "Deem-me doze crianas sadias, de boa constituio, e a liberdade de poder cri-las minha maneira. Tenho a certeza de que, se escolher uma delas ao acaso, e puder educ-la, convenientemente, poderei transform-la em qualquer tipo de especialista que eu queira mdico, advogado, artista, grande comerciante, e at mesmo em mendigo e ladro , independente de seus talentos, propenses, tendncias, aptides, vocaes e da raa de seus ascendentes".1 Prosseguindo nesse ideal de controle do comportamento, Burrhus F. Skinner (1904-1990), outro psiclogo experimental, ocupa-se sobretudo com a formao de condicionamentos em animais e seres humanos. Por questo de metodologia de trabalho descarta a anlise das intenes e motivaes consideradas inacessveis pelos behavioristas , para se deter na anlise dos comportamentos que podem ser observados apenas na sua exterioridade.

Alm das obras cientficas, Skinner escreveu o romance Walden II, uma utopia em que todos os atos humanos seriam cientificamente planejados e controlados. Nesse mundo as pessoas so felizes, orientadas por tcnicos e cientistas que cuidam para que todos queiram fazer precisamente o que melhor para si mesmo e para a comunidade. Nos dilogos travados entre o personagem que representa um dos idealizadores do sistema e os visitantes, as indagaes sobre determinismo e liberdade so criticadas como pseudoquestes de origem lingustica. Examinemos esses exemplos dados. O mito grego das Moiras perde-se no tempo da histria da Grcia Antiga. Homero talvez tenha vivido no sculo IX a.C. e sabe-se que ele apenas recolheu as histrias transmitidas desde longo tempo pela tradio oral. Podemos dizer que muito desse mito ainda permanece entre as pessoas que admitem ser impotentes diante da fora do destino, da fatalidade. J Watson e Skinner so nossos contemporneos e representam importante corrente terica na psicologia experimental, o behaviorismo. O que distingue essas duas posies to distantes no tempo que a primeira mtica e a segunda, cientfica. O que as aproxima que, para ambas, o ser humano no livre, porque segundo o mito encontra-se submetido ao destino inexorvel, e no discurso cientfico ele est sujeito ao determinismo.

2. O que determinismo?Segundo o determinismo cientfico, tudo que existe tem uma causa. O mundo explicado pelo princpio do determinismo o mundo da necessidade, e no o da liberdade. Necessrio significa tudo aquilo que tem de ser e no pode deixar de ser. Nesse sentido, necessidade o oposto de contingncia, que significa o que pode ser de um jeito ou de outro. Exemplificando: se aqueo uma barra de ferro, ela se dilata; a dilatao necessria, no sentido de que um efeito inevitvel, que no pode deixar de ocorrer. No entanto, contingente que neste momento eu esteja usando roupa vermelha ou amarela. Ora, se a cincia no partisse do pressuposto do determinismo, seria impossvel estabelecer qualquer lei. A fsica, a qumica, a biologia se constituem como cincias ao longo dos trs ltimos sculos na medida em que procuram descobrir as relaes constantes e necessrias entre os fenmenos. No haveria conhecimento cientfico se tudo fosse contingente, isto , pudesse acontecer ora de uma forma, ora de outra. No sculo XVIII, o astrnomo e fsico Laplace resumiu assim esse determinismo: "Um calculador divino, que conhecesse a velocidade e aposio de cada partcula do Universo num dado momento, poderia predizer todo o curso futuro dos acontecimentos na infinidade do tempo". No demorou para que o determinismo, conceito bsico para a explicao nas cincias da natureza, tambm passasse a ser usado na busca de compreenso dos fenmenos humanos. Dessa forma, no sculo XVIII, os filsofos materialistas franceses DHolbach e La Metrrie explicam os atos humanos como simples elos de uma cadeia casual universal. No sculo XIX, o positivismo comteano considera a escolha livre uma mera iluso. O filsofo Taine (1828-1893), um dos discpulos de Comte, tornou-se conhecido sobretudo pelas leis da sociologia, segundo as quais toda vida humana social se explicaria por trs fatores:

ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Filosofando: introduo filosofia. 3. ed. revista So Paulo: Moderna, 2003. p. 316-324.. 1 Apud HEIDBREDER, Edna. Psicologia do sculo XX. 3. ed. So Paulo: Mestre Jou, 1975. p. 218.

a raa, a grande fora biolgica dos caracteres hereditrios determinantes do comportamento do indivduo; o meio, que submete o indivduo aos fatores geogrficos (como o clima, por exemplo), bem como ao ambiente sociocultural e s ocupaes cotidianas da vida; o momento, pelo qual o indivduo fruto da poca em que vive e se subordina a determinada maneira de pensar caracterstica do seu tempo. Partindo do pressuposto do determinismo, Taine considera que o ato humano no livre, mas causado por esses fatores, dos quais no pode escapar. Encontramos essa viso determinista na clssica teoria de Lombroso, jurista que pretendia, pela anlise das caractersticas fsicas dos indivduos, identificar o criminoso "nato". Tambm a literatura foi influenciada pelo determinismo positivista: a esttica naturalista oferece inmeros exemplos da explicao do comportamento humano como decorrente de fatores determinantes, sem possibilidade alguma de transcendncia. mile Zola, romancista francs do sculo XIX, afirmou: "O romance experimental uma consequncia da evoluo cientfica do sculo; cabe-lhe continuar e completar a fisiologia...; ele substitui o estudo do homem abstrato, do homem metafsico, pelo estudo do homem natural, submetido s leis fsico-qumicas e determinado pelas influncias do meio". No Brasil, enquadram-se na linha naturalista os romances de Alusio Azevedo O mulato, O cortio e Casa de penso.

3. A liberdade incondicional e o livre-arbtrioContrapondo-se s concepes deterministas, outros enfatizam a liberdade humana absoluta, teoria pela qual temos a escolha de agir de uma forma ou de outra, independentemente das foras que o constrangem. Segundo essa perspectiva, ser livre decidir e agir como se quer, sem determinao causal, seja exterior (ambiente em que se vive), seja interior (desejos, motivaes psicolgicas, carter). Mesmo admitindo que tais foras existam, o ato livre pertenceria a uma esfera independente em que se perfaz a liberdade humana. Ser livre , portanto, ser incausado. Trata-se de uma antiga concepo, que remonta a Aristteles, quando define o ato voluntrio como princpio de si mesmo, de modo que tanto a virtude como o vcio dependem da vontade do indivduo. Na tica a Nicmano, ele diz: onde estamos em condies de dizer no, podemos tambm dizer sim. De forma que, se cumprir uma boa ao depende de ns, depender tambm de ns no cumprir uma ao m. Devemos, no entanto, fazer uma ressalva quando abordamos a questo da liberdade na Antiguidade. Segundo Hannah Arendt, naquele perodo a ideia de liberdade ainda estava restrita ao campo poltico e no dizia respeito ao mbito d vida privada. Diz ele que Aristteles, ao se referir vida boa, trata da vida do cidado que, no precisando se ocupar com os atos dirios de sobrevivncia funo de mulheres e escravos , pode dedicar-se atuao livre d plis. De fato, na Grcia Antiga, apenas no mbito da plis e portanto da poltica fala-se em liberdade, compartilhada entre os iguais. Ao contrrio, a famlia o espao da necessidade, mergulhada na preocupao com a sua preservao. Alm disso, na vida privada s h desiguais, porque o chefe de famlia (no por acaso chamado despots em grego), exerce um poder inquestionado sobre mulheres, crianas e escra2

vos. S que o chefe de famlia tem a possibilidade de se liberar das necessidades da vida e, em companhia de outros homens, inserir-se no espao pblico por palavras e aes. ainda Hannah Arendt quem diz: sempre que o mundo artificial no se torna palco para a ao e discurso como ocorre em comunidades governadas despoticamente que os [os homens] banem para a estreiteza dos lares, impedindo assim o ascenso de uma esfera pblica a liberdade no possui realidade concreta. Sem um mbito pblico politicamente segurado, falta liberdade o espao concreto onde aparecer.2 A noo de liberdade, como liberdade interior, relacionada ao prprio eu, e no mais vinculada apenas ao espao pblico, s aparece como discusso terica com os telogos cristos. Santo Agostinho (354-430) um dos primeiros a usar o conceito de livre-arbtrio, como faculdade da razo e da vontade por meio da qual escolhido o bem, mediante o auxlio da graa, e o mal, pela ausncia dela. Essa noo fermentou inmeros debates durante toda a Idade Mdia e nos sculos XVI e XVII, sobretudo no que se refere, para alguns, incompatibilidade entre a onipotncia e oniscincia divina e o livre-arbtrio. Ou seja, como admitir a liberdade humano se Deus tudo pode e tudo sabe, e, portanto, j conhece o destino de cada um? Santo Toms de Aquino (1227-1274) compartilha da aceitao do livre-arbtrio, como causa do prprio movimento por que o indivduo determina a si mesmo a agir. Isso porque o ser humano age segundo o juzo, essa fora cognitiva pela qual pode escolher entre direes opostas. No sculo XVII, o telogo francs Bossuet, na obra Tratado sobre o livre-arbtrio, diz o seguinte: "Por mais que eu procure em mim a razo que me determina, mais sinto que eu no tenho nenhuma outra seno apenas a minha vontade: sinto a claramente minha liberdade, que consiste unicamente em tal escolha. E isto que me faz compreender que sou feito imagem de Deus". Deixando o campo da discusso teolgica, o filsofo racionalista Descartes tambm se ocupa com a questo do livrearbtrio. Em uma das mximas de sua moral provisria, defende que o ser humano deva sempre procurar dominar a si mesmo, desejando apenas o que pode fazer. Mesmo que as paixes possam ser boas em si, cabe razo averiguar como as utilizamos, a fim de domin-las, j que a fora das paixes est em iludir a alma com razes enganosas e inadequadas. Portanto, o intelecto tem prioridade sobre as paixes, na medida em que o melhor conhecimento delas condio para que possamos control-las.

4. A liberdade em EspinosaAt aqui, separamos de um lado os que negam a liberdade, por considerarem que o ser humano est submetido a determinismos, e de outro aqueles que veem no querer um ato livre da vontade, orientada pela razo. No entanto, nem sempre as interpretaes so to simples, porque mesmo entre os pensadores citados persistem nuanas difceis de conciliar. A seguir vamos examinar outras concepes que deslocam o questionamento ao propor que no interessa saber se somos livres ou determinados, mas, sim, em que

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ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 1978. p.195.

medida, a partir dos determinismos e por meio deles , que podemos exercer a liberdade. O filsofo holands Espinosa, que viveu no sculo XVII, desenvolve uma teoria original, considerada por muitos deterministas e, portanto, negadora da liberdade. No entanto, as consequncias que de fato extrai da sua teoria seguem, no sentido inverso, em direo a uma concepo inovadora da elao corpo-alma e a uma tica da alegria e da liberdade. Espinosa parte de uma concepo segundo a qual Deus no um ser transcendente como tradicionalmente descrito, mas uma substncia que constitui o Universo inteiro e no se separa daquilo que produziu, ou seja, causa imanente dos seus modos, entre os quais est o ser humano. Da a conhecida expresso de Espinosa Deus sive Natura: Deus ou Natureza. Todos os seres, em decorrncia dessa ligao com os atributos divinos, tm uma potencia natural de autoconservao, que Espinosa chama de conatus. Essa uma fora vital, afirmativa, que se expressa no corpo com apetite e na alma, como desejo. A intensidade do conatus depende da qualidade de nossos apetites e desejos, que podem aumentar nossa capacidade de existir e pensar, e da maneira com nos relacionamos com as foras externas, que podem nos subjugar, diminuindo nossa fora interna e nos tornando alienados e passivos. Para melhor entender essa mudana de direo, Espinosa distingue as paixes alegres e as paixes tristes e completa que o desejo que nasce da alegria mais forte do que o desejo que nasce da tristeza. Os desejos nascidos da alegria (amor, amizade, generosidade, benevolncia, gratido etc.) so mais fortes porque aumentam nossa capacidade de agir e de conhecer, permitem o desenvolvimento humano, facilitam o encontro das pessoas. J os desejos nascidos da tristeza (inveja, dio, medo, orgulho, cime, vingana etc.) so mais fracos por impedirem o crescimento, corromperem as relaes e se orientarem para as forma de explorao e destruio. Segundo essa concepo original, Espinosa no hierarquiza corpo e alma: a razo no superior aos afetos, nem cabe a ela control-los. Os apetites e desejos jamais sero dominados por uma ideia ou uma vontade, mas apenas por outros afetos mais fortes: a alma nada pode contra uma paixo triste, na medida em que somente uma paixo mais forte poder afastar uma paixo mais fraca. Como se v, Espinosa no nega a causalidade interna (o determinismo), antes a considera adequada para que o ser atinja sua essncia. Mais que isso, no culpabiliza as paixes como foras perigosas a serem submetidas e controladas pela pretensa fora superior da razo e da vontade, como at ento sempre se aceitou na tradio. Segundo Marilena Chaui, para Espinosa isto a liberdade: reconhecer-se como causa eficiente interna dos apetites e imagens, dos desejos e ideias, afastando a miragem ilusria das causas finais externas. [...] na servido, os humanos so contrrios a si mesmos e contrrios uns aos outros, cada qual cobiando como o maior de todos os bens a posse de um outro humano. [...] Em contrapartida, na ao e na liberdade, os humanos se descobrem como concordantes e, sobretudo, que sua fora para existir e agir aumenta quando existem e agem em comum, de sorte que o bem supremo da vida afetiva e intelectual livre justamente o que buscava o jovem Espinosa quando, na abertura do Tratado da correo do3

intelecto, escreveu: um bem verdadeiro capaz de comunicarse a todos.3

5. Conscincia e liberdadeContemporaneamente, h aqueles a que j nos referimos no inicio do captulo, que negam a possibilidade da liberdade, e afirmam que o determinismo no abrange apenas os fenmenos da natureza, mas tambm as aes humanas. Nesse caso, os motivos da ao so considerados causas eficientes que atuam de acordo com uma trama causal rigorosa. Continuam, no entanto, as tentativas de superar a oposio determinismo-liberdade, para investigar em que medida o ser humano determinado e livre. Algumas das respostas se encaixam em uma perspectiva racionalista, que privilegia a conscincia como capacidade intelectual do conhecimento. Segundo essa perspectiva, no h como negar que o ser humano sofre determinaes, situado que est em um tempo e espao e sendo herdeiro de uma certa cultura. No entanto, tambm um ser consciente, capaz de conhecer esses determinismos. Ora, esse conhecimento permitir, a partir da conscincia das causas (e no revelia delas), construir um projeto de ao. Portanto, a liberdade se torna verdadeira quando acarreta um poder de transformao sobre a natureza do mundo e sobre a prpria natureza humana. assim que o filsofo francs Alain, pseudnimo de Emile-Auguste Chartier (1868-1951), explica como um hbil marinheiro manobra um veleiro e, fazendo ziguezagues, pode seguir para onde quiser: O oceano no quer mal nem bem. A onda segue o vento e a lua, e se estendemos uma vela ao vento, este a impele segundo o ngulo. O homem orienta sua vela, apoia-se no leme e avana contra o vento pela prpria fora do vento. A conscincia do determinismo do vento se transforma, nesse caso, em outra causa, capaz de alterar a ordem das coisas. Com isso, no se rompe o nexo causal, mas introduzse uma outra causa a conscincia do determinismo que transforma o sujeito em ser atuante, e no um simples efeito passivo das causas que agem sobre ele: o veleiro no segue apenas para onde sopra o vento, mas para onde o marinheiro deseja ir. Vejamos o exemplo da ao do vrus da tuberculose no corpo humano: pela ordem natural da ao das causas, a morte inevitvel. Pelo menos era assim no sculo XIX, e a despeito da aura romntica que envolvia os jovens poetas tuberculosos, a doena era implacvel. Quando o mdico Robert Koch descobre o nexo causal da doena, pela ao do bacilo, o conhecimento das causas possibilita a ao efetiva: remdios, alimentao, repouso, clima apropriado etc., eis que o fantasma da doena letal deixa de assombrar as pessoas. O filsofo francs Emmanuel Mounier diz: "Enquanto se desconheceram as leis da aerodinmica, os homens sonhavam voar; quando o seu sonho se inseriu num feixe de necessidades, voaram". Descobrir o feixe de necessidades conhecer as leis da aerodinmica, ou seja, saber o que faz voar um corpo mais pesado do que o ar. No h mgica: h conhecimento dos determinismos. O sonho se concretiza no trabalho do indivduo como ser consciente e prtico.

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CHAUI, Marilena. Espinosa, uma filosofia da liberdade. So Paulo: Moderna. 1995. p. 72. (Coleo Logos).

6. A fenomenologia: a liberdade situadaNo sculo XX diversos filsofos da corrente fenomenolgica abordaram a questo da liberdade na tentativa de superar a antinomia determinismo-liberdade. Para eles, a discusso sobre liberdade no se faz no plano terico, segundo um conceito de liberdade abstrata, nem conforme uma concepo racionalista que privilegie apenas o trabalho da conscincia, mas sim a partir da liberdade do sujeito encarnado, situado e com ser de relaes. Na linguagem da fenomenologia, traduzimos esses dois polos determinismo-liberdade como sendo a facticidade (ou imanncia) e a transcendncia humanas. Esses polos so antitticos, ou seja, contraditrios, mas esto indissoluvelmente ligados. A facticidade a dimenso de "coisa" que todo ser humano tem, o conjunto das suas determinaes. Segundo a facticidade encontramo-nos no mundo com um corpo, com determinadas caractersticas psicolgicas, como pertencentes a uma famlia, a um grupo social, situados em um tempo e espao que em um primeiro momento no escolhemos. No entanto, no estamos no mundo como as coisas esto. A transcendncia a ao pela qual o ser humano executa o movimento de ir alm dessas determinaes, no para neglas, mas para lhes dar um sentido. a dimenso da liberdade. Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), um dos mais importantes filsofos da corrente fenomenolgica, relaciona a questo da liberdade compreenso do corpo, entendido como condio de nossa experincia no mundo. Para ele, no tenho um corpo, mas sou meu corpo, ou seja, meu corpo no um objeto no mundo, mas aquilo pelo qual o mundo existe para mim. Por isso, no se deve dizer que nosso corpo est no espao, nem tampouco de eu ele est no tempo. Ele habita o espao e o tempo. Merleau-Ponty desfaz a ideia tradicional de que de um lado existe o mundo dos objetos, do corpo, da pura facticidade e, de outro, o mundo da conscincia e da subjetividade, de transcendncia. O que ele pretende melhor compreender as relaes entre a conscincia e a natureza, entre o interior e o exterior. Essas relaes so de ambiguidade e imbricamento. Vamos dar um exemplo. Uma mdica conversa com uma decoradora sobre o projeto de reforma do hall de entrada do seu apartamento; ao ser indagada sobre os materiais usados na entrada do prdio, a mdica diz que no se lembra, resposta que causa espanto profissional, uma vez que aquele espao de uso frequente de sua cliente. A mdica, ento, retruca: De fato, mas se no reparei na pedra usada no piso, percebi muito bem que o porteiro tem peso e altura abaixo do padro e que seu rosto macilento est indicando algum distrbio de sade. Esse exemplo mostra como a realidade externa no aparece da mesma forma percepo das pessoas, mas se d a partir da vivncia de cada um; no surge por meio de uma conscincia explcita, mas por um modo de existir e de dar sentido ao mundo. Em que medida, porm, essas questes se relacionam com a liberdade, entendida como um plano de ao de transformao da realidade vivida? Na sua obra, Fenomenologia da percepo, Merleau-Ponty d o exemplo de um operrio que toma conscincia da explorao a que est submetida sua classe e se engaja na revoluo. Essa conscincia no brota a partir de um esforo intelectual de conhecimento, nem de uma escolha racional que resulta do exame de um leque de possibilidades de ao. Antes4

disso, h todo um processo de vivncia em que o indivduo enfrenta as dificuldades de sobrevivncia, o medo do desemprego, os sonhos abortados, mas que podem aparecer para ele como uma fatalidade a que no tem meios de se opor. Como ento ser feita a passagem?, pergunta MerleauPonty. Ao observar a maneira como outros, semelhantes a ele, reagem diante dos fatos, pelas reivindicaes, pelas greves, por eventuais conquistas. Percebe ento concretamente o sincronismo entre sua vida e a vida dos operrios e a comunidade de seus destinos. [...] O espao social comea a se polarizar, v-se surgir uma regio dos explorados. [...] A classe se realiza, e dizemos que uma situao revolucionria quando a conexo que existe objetivamente entre as partes do proletariado [...] enfim vivida na percepo de um obstculo comum existncia de todos.4 Antes de surgir como conscincia explcita, antes de explodir em palavras e de se referir a fins objetivos, o movimento amadurece na coexistncia com os outros. A crtica feita s interpretaes tradicionais est, portanto, no fato de que elas desconsideram o projeto existencial. A liberdade s se realiza se somos capazes de assumir nossa situao natural e social. [...] ***************

Questes de compreenso 1. Faa um fichamento sobre a concepo de determinismo. 2. Faa um fichamento sobre a concepo de liberdade incondicional e livre-arbtrio. Questes de interpretao e problematizao 3. Explique por que, segundo Espinosa, determinismo e liberdade no so ideias opostas. 4. Por que Espinosa tem uma concepo de paixo que se distancia da tradicional? 5. O filsofo francs Gusdorf conta que um grande pintor fez o retrato de um fregus, para quem o preo exigido por algumas horas de trabalho era muito alto. Ao que o artista respondeu: Algumas horas, mas toda a minha vida. Fazendo um paralelo entre o quadro do artista (feito em poucas horas), explique por que tambm o ato livre no supe apenas o momento em que foi realizado. 6. Qual a importncia dos determinismos para a cincia? Dissertao 7. A partir do conceito de liberdade, interprete o ditado talmdico5: Se eu no for por mim mesmo, quem ser por mim? Se eu for apenas por mim, que serei eu? Se no agora quando?

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MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepo. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 596. 5 O Talmud uma obra do judasmo que rene comentrios sobre a lei mosaica.