A Liberdade - Marilena Chauí.doc

27
A liberdade A liberdade como problema a torneira seca (mas pior: a falta de sede; a luz apagada (mas pior: o gosto do escuro; a porta fechada (mas pior: a chave por dentro). Este poema de José Paulo Paes nos fala, de forma extremamente concentrada e precisa, do núcleo da liberdade e de sua ausência. O poeta lança um contraponto entre uma situação externa experimentada como um dado ou como um fato (a torneira seca, a luz apagada, a porta fechada) e a inércia resignada no interior do sujeito (a falta de sede, o gosto do escuro, a chave por dentro). O contraponto é feito pela expressão "mas pior". Que significa ela? Que diante da adversidade, renunciamos a enfrentá-Ia, fazemo-nos cúmplices dela e é isso o pior. Pior é a renúncia à liberdade. Secura, escuridão e prisão deixam de estar fora de nós, para se tomarem nós mesmos, com nossa falta de sede, nosso gosto do escuro e nossa falta de vontade de girar a chave. Um outro poema também oferece o contraponto entre nós e o mundo: Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Neste poema, Carlos Drummond de Andrade, como José Paulo

Transcript of A Liberdade - Marilena Chauí.doc

A liberdade

A liberdade

A liberdade como problema

a torneira seca (mas pior: a falta de sede; a luz apagada (mas pior: o gosto do escuro;

a porta fechada (mas pior: a chave por dentro).

Este poema de Jos Paulo Paes nos fala, de forma extremamente concentrada e precisa, do ncleo da liberdade e de sua ausncia. O poeta lana um contraponto entre uma situao externa experimentada como um dado ou como um fato (a torneira seca, a luz apagada, a porta fechada) e a inrcia resignada no interior do sujeito (a falta de sede, o gosto do escuro, a chave por dentro). O contraponto feito pela expresso "mas pior". Que significa ela? Que diante da adversidade, renunciamos a enfrent-Ia, fazemo-nos cmplices dela e isso o pior. Pior a renncia liberdade. Secura, escurido e priso deixam de estar fora de ns, para se tomarem ns mesmos, com nossa falta de sede, nosso gosto do escuro e nossa falta de vontade de girar a chave.

Um outro poema tambm oferece o contraponto entre ns e o mundo: Mundo mundo vasto mundo,se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, no seria uma soluo.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto meu corao.

Neste poema, Carlos Drummond de Andrade, como Jos Paulo Paes, confronta-nos com a realidade exterior: o "vasto mundo" do qual somos uma pequena parcela e no qual estamos mergulhados. Todavia, os dois poemas diferem, pois em vez da inrcia resignada, estamos agora diante da afirmao de que nosso ser mais vasto do que o mundo: pelo nosso corao - sentimentos e imaginao - somos maiores do que o mundo, criamos outros mundos possveis, inventamos outra realidade. Abrimos a torneira, acendemos a luz e giramos a chave.

Embora diferentes, os dois poemas apontam para o grande tema da tica, desde que esta se tornou questo filosfica: O que est e o que no est no poder? At onde se estende o poder de nossa vontade, de nosso desejo, de nossa conscincia? Em outras palavras: At onde alcana o poder de nossa liberdade? Podemos mais do que o mundo ou este pode mais do que nossa liberdade? O que est inteiramente em nosso poder e o que depende inteiramente de causas e foras exteriores que agem sobre ns? Por que o pior a falta de sede e no a torneira seca, o gosto do escuro e no a luz apagada, a chave imobilizada e no a porta fechada? O que depende do "vasto mundo" e o que depende de nosso "mais vasto corao"?

Essa mesma interrogao, embora no explicitada nesses termos, encontra-se presente no que escreveu o poeta Vicente de Carvalho em "Velho tema":

S a leve esperana, em toda a vida, Disfara a pena de viver, mais nada, Nem mais a existncia, resumida,

Que uma grande esperana malograda.

o eterno sonho da alma desterrada, Sonho que a traz ansiosa e embevecida, uma hora feliz, sempre adiada

E que no chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos, rvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos

Existe, sim: mas ns no a alcanamos,

Porque est sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde ns estamos.

O poeta contrasta a "esperana malograda" de felicidade e a felicidade que "existe, sim", mas que no alcanamos porque "nunca a pomos onde ns estamos", embora esteja "sempre apenas onde a pomos". Nossa alma fica desterrada no sonho, exilada do real, porque incapaz de reconhecer que a felicidade no uma rvore distante, situada em algum lugar inlocalizvel do vasto mundo, mas est em ns, em nossa "leve esperana", em nosso mais vasto corao, dependendo apenas de ns mesmos, "porque est sempre apenas onde a pomos".

Porta fechada, vasto mundo, rvore milagrosa: a felicidade parece depender inteiramente do que se encontra fora de ns.

Chave por dentro, corao mais vasto, estar sempre apenas onde a pomos: a felicidade parece depender inteiramente de ns.

Seja de modo pessimista (como em Jos Paulo Paes e Vicente de Carvalho), seja de modo otimista (como em Carlos Drummond), os trs poetas nos colocam diante da liberdade como problema. Filosoficamente, este se apresenta sob a forma de dois pares de opostos:

1. o par necessidade-liberdade;

2. o par contingncia-liberdade.

Torneira seca, luz apagada, porta fechada: a realidade feita de situaes adversas e opressoras, contra as quais nada podemos, pois so necessrias. Vasto mundo: se a realidade natural e cultural possui leis causais necessrias e normas-regras obrigatrias, se tanto as leis naturais e culturais no dependem de ns, se sermos seres naturais e culturais no dependem de ns, se somos seres naturais e culturais cuja conscincia e vontade so determinadas por aquelas leis (da Natureza) e normas-regras (da Cultura), como ento falar em liberdade humana? A necessidade que rege as leis naturais e as normas-regras culturais no seria mais vasta, maior e mais poderosa do que nossa liberdade? O que poderia estar em nosso poder?

rvore milagrosa: se a felicidade e o bem so milagres, ento so puro acaso, pura contingncia e no resta seno o jogo interminvel entre a "leve esperana" e a "grande esperana malograda". Se o mundo um tecido de acasos felizes e infelizes, como esperar que sejamos sujeitos livres, se tudo o que acontece imprevisvel, fruto da boa e da m sorte, de acontecimentos sem causa e sem explicao? Como sermos sujeitos responsveis num mundo feito de acidentes e de total indeterminao? Se tudo contingncia, onde colocar a liberdade?

O par necessidade-liberdade tambm pode ser formulado em termos religiosos, como fatalidade-liberdade, e em termos cientficos, como determinismo-liberdade.

Necessidade o termo empregado para referir-se ao todo da realidade, existente em si e por si, que age sem ns e nos insere em sua rede de causas e efeitos, condies e conseqncias.

Fatalidade o termo usado quando pensamos em foras transcendentes superiores s nossas e que nos governam, quer o queiramos ou no.

Determinismo o termo empregado, a partir do sculo XIX, para referir-se realidade conhecida e controlada pela cincia e, no caso da tica, particularmente ao ser humano como objeto das cincias naturais (qumica e biologia) e das cincias humanas (sociologia e psicologia), portanto, como completamente determinado pelas leis e causas que condicionam seus pensamentos, sentimentos e aes, tornando a liberdade ilusria.

O par contingncia-liberdade tambm pode ser formulado pela oposio acaso-liberdade. Contingncia ou acaso significam que a realidade imprevisvel e mutvel, impossibilitando deliberao e deciso racionais, definidora" da liberdade. Num mundo em que tudo acontece por acidente, somos como um frgil barquinho perdido num mar tempestuoso, levado em todas 15 direes, ao sabor das vagas e dos ventos.

Necessidade, fatalidade, determinismo significam que no h lugar para a liberdade, porque o curso das coisas e de nossas vidas j est fixado, sem que nele possamos intervir. Contingncia e acaso significam que no h lugar para a liberdade, porque no h curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual pudssemos intervir.

Tomemos um exemplo da necessidade oposta liberdade.

No escolhi nascer numa determinada poca, num determinado pas, numa determinada famlia, com um corpo determinado. As condies de meu nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas aes, meus desejos, meus sentimentos, minhas intenes, minhas condutas resultam dessas condies, nada restando a mim seno obedec-Ias. Como dizer que sou livre e responsvel?

Se, por exemplo, nasci negra, mulher, numa faIlll1ia pobre, numa sociedade racista, machista e classista, que me discrimina racial, sexual e socialmente, que me impede o acesso escola e a um trabalho bem remunerado, que me probe a entrada em certos lugares, que me interdita amar quem no for da mesma "raa" e classe social, como dizer que sou livre para viver, sentir, pensar e agir de uma maneira que no escolhi, mas foi-me imposta?

Tomemos, agora, um exemplo da contingncia oposta liberdade.

Quando minha me estava grvida de mim, houve um acidente sanitrio, provocando uma epidemia. Minha me adoeceu. Nasci com problemas de viso. Foi por acaso que a gravidez de minha me coincidiu com o acaso da epidemia: por acaso, ela adoeceu; por acaso, nasci com distrbios visuais. Tendo tais distrbios, preciso de cuidados mdicos especiais. No entanto, na poca em que nasci, o governo de meu pas instituiu um plano econmico de reduo de empregos e dizer que sou livre para viver, sentir, pensar e agir de uma maneira que no escolhi, mas foi-me imposta?

Tomemos, agora, um exemplo da contingncia oposta liberdade.

Quando minha me estava grvida de mim, houve um acidente sanitrio, provocando uma epidemia. Minha me adoeceu. Nasci com problemas de viso. Foi por acaso que a gravidez de minha me coincidiu com o acaso da epidemia: por acaso, ela adoeceu; por acaso, nasci com distrbios visuais. Tendo tais distrbios, preciso de cuidados mdicos especiais. No entanto, na poca em que nasci, o governo de meu pas instituiu um plano econmico de reduo de empregos e privatizao do servio pblico de sade. Meu pai e minha me ficaram desempregados e no podiam contar com o servio de sade para meu tratamento. Tivesse eu nascido em outra ocasio, talvez pudesse ter sido curada de meus problemas visuais.

Quis o acaso que eu nascesse numa poca funesta. Tal como sou, h coisas que no posso fazer. Sou, porm, bem dotada para msica e poderia receber uma educao musical. Porm, houve a deciso do governo municipal de minha cidade de demolir o conservatrio musical pblico. No posso pagar um conservatrio particular e ficarei sem a educao musical, porque, por acaso, moro numa cidade que deixar de ter um servio pblico de educao artstica. Morasse eu em outra cidade ou fosse outro o governo municipal, isso no aconteceria comigo. Como, ento, dizer que sou livre para decidir e escolher, se vivo num mundo onde tudo acontece por acaso?

Diante da necessidade e da contingncia, como afirmar que "mais vasto meu corao"? - ou que a felicidade "est sempre onde a pomos"? Examinemos mais de perto os dois exemplos mencionados.

No primeiro exemplo - negra, mulher, pobre, numa sociedade racista, machista, classista - parece que nada posso fazer. A p estar no poder de minha liberdade? Terei que gostar do escuro e permanecer com a porta fechada? Se a tica afirmar que a discriminao tnica, sexual e de classe imoral (isto , violenta), se eu tiver conscincia disso, nada farei? Serei impotente para lutar livremente contra tal situao? Mantendo-me resignada, conformada, passiva e omissa no estarei fazendo da necessidade uma desculpa, um libi para no agir?

No segundo exemplo - epidemia, desemprego, fim dos servios pblicos de sade e educao artstica - tambm parece que nada posso fazer. Ser verdade? No estarei transformando os acasos de meu nascimento e das condies polticas em desculpa e libi para por acidente, somos como um frgil barquinho perdido num mar tempestuoso, levado em todas as direes, ao sabor das vagas e dos ventos.

Necessidade, fatalidade, determinismo significam que no h lugar para a liberdade, porque o curso das coisas e de nossas vidas j est fixado, sem que nele possamos intervir. Contingncia e acaso significam que no h lugar para a liberdade, porque no h curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual pudssemos intervir.

Tomemos um exemplo da necessidade oposta liberdade.

No escolhi nascer numa determinada poca, num determinado pas, numa determinada famlia, com um corpo determinado. As condies de meu nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas aes, meus desejos, meus sentimentos, minhas intenes, minhas condutas resultam dessas condies, nada restando a mim seno obedec-Ias. Como dizer que sou livre e responsvel?

Se, por exemplo, nasci negra, mulher, numa famlia pobre, numa sociedade racista, machista e classista, que me discrimina racial, sexual e socialmente, que me impede o acesso escola e a um trabalho bem remunerado, que me probe a entrada em certos lugares, que me interdita amar quem no for da mesma "raa" e classe social, como dizer que sou livre para viver, sentir, pensar e agir de uma maneira que no escolhi, mas foi-me imposta?

Tomemos, agora, um exemplo da contingncia oposta liberdade.

Quando minha me estava grvida de mim, houve um acidente sanitrio, provocando uma epidemia. Minha me adoeceu. Nasci com problemas de viso. Foi por acaso que a gravidez de minha me coincidiu com o acaso da epidemia: por acaso, ela adoeceu; por acaso, nasci com distrbios visuais. Tendo tais distrbios, preciso de cuidados mdicos especiais. No entanto, na poca em que nasci, o governo de meu pas instituiu um plano econmico de reduo de empregos e privatizao do servio pblico de sade. Meu pai e minha me ficaram desempregados e no podiam contar com o servio de sade para meu tratamento. Tivesse eu nascido em outra ocasio, talvez pudesse ter sido curada de meus problemas visuais.

Quis o acaso que eu nascesse numa poca funesta. Tal como sou, h coisas que no posso fazer. Sou, porm, bem dotada para msica e poderia receber uma educao musical. Porm, houve a deciso do governo municipal de minha cidade de demolir o conservatrio musical pblico. No posso pagar um conservatrio particular e ficarei sem a educao musical, porque, por acaso, moro numa cidade que deixar de ter um servio pblico de educao artstica. Morasse eu em outra cidade ou fosse outro o governo municipal, isso no aconteceria comigo. Como, ento, dizer que sou livre para decidir e escolher, se vivo num mundo onde tudo acontece por acaso?

Diante da necessidade e da contingncia, como afirmar que "mais vasto meu corao"? - ou que a felicidade "est sempre onde a pomos"? Examinemos mais de perto os dois exemplos mencionados.

No primeiro exemplo - negra, mulher, pobre, numa sociedade racista, machista, classista - parece que nada posso fazer. A porta est fechada e a luz apagada. Porm, nada estar no poder de minha liberdade? Terei que gostar do escuro e permanecer com a porta fechada? Se a tica afirmar que a discriminao tnica, sexual e de classe imoral (isto , violenta), se eu tiver conscincia disso, nada farei? Serei impotente para lutar livremente contra tal situao? Mantendo-me resignada, conformada, passiva e omissa no estarei fazendo da necessidade uma desculpa, um libi para no agir?

No segundo exemplo - epidemia, desemprego, fim dos servios pblicos de sade e educao artstica - tambm parece que nada posso fazer. Ser verdade? No estarei transformando os acasos de meu nascimento e das condies polticas em desculpa e libi para minha resignao? Falarei em "destino" e "m sorte" para explicar o fechamento de todos os possveis para mim? Renunciarei vastido do meu corao, aceitando que a felicidade sempre ser posta onde no estou?

Nos dois casos, podemos indagar se, afinal, para ns resta somente "a pena de viver, mais nada" ou se, como escreveu o filsofo Sartre, o que importa no saber o que fizeram de ns e sim o que fazemos com o que quiseram fazer conosco.Trs grandes concepes filosficas da liberdade

Na histria das idias ocidentais, necessidade e contingncia foram representadas por figuras mticas. A primeira, pelas trs Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto , o destino inelutvel de cada um de ns, do nascimento morte. Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a ltima o cortava, simbolizando nossa morte. A contingncia (ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volvel e caprichosa, que trazia nas mos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou boa sorte) casse (infortnio ou m sorte) e quem estivesse embaixo fosse elevado. Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa ou m, contra o qual nada se poderia fazer, como na msica de Chico Buarque: "Eis que chega a roda-viva, levando a saudade pra l".

As teorias ticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingncia, definindo o campo da liberdade possvel.

A primeira grande teoria filosfica da liberdade exposta por Aristteles em sua obra tica a Nicmaco e, com variantes, permanece atravs dos sculos, chegando at o sculo XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepo, a liberdade se ope ao que condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingncia).

Diz Aristteles que livre aquele que tem em si mesmo o princpio para agir ou no agir, isto , aquele que causa interna de sua ao ou da deciso de no agir. A liberdade concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. pensada, tambm, como ausncia de constrangimentos externos e internos, isto , como uma capacidade que no encontra obstculos para se realizar, nem forada por coisa alguma para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que d a si mesmo os motivos e os fins de sua ao, sem ser constrangido ou forado por nada e por ningum.

Assim, na concepo aristotlica, a liberdade o princpio para escolher entre alternativas possveis, realizando-se como deciso e ato voluntrio. Contrariamente ao necessrio ou necessidade, sob a qual o agente sofre a ao de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira, no ato voluntrio livre o agente causa de si, isto , causa integral de sua ao. Sem dvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre determinada pela razo ou pela inteligncia e, nesse caso, seria preciso admitir que no causa de si ou incondicionada, mas que causada pelo raciocnio ou pelo pensamento.

No entanto, como disseram os filsofos posteriores a Aristteles, a inteligncia inclina a vontade numa certa direo, mas no a obriga nem a constrange, tanto assim que podemos agir na direo contrria indicada pela inteligncia ou razo. por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou no os conselhos da conscincia. A liberdade ser tica quando o exerccio da vontade estiver em harmonia com a direo apontada pela razo.

Sartre levou essa concepo ao ponto limite.

Para ele, a liberdade a escolha incondicional que o prprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de foras externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento uma deciso livre, pois outros homens, nas mesmas circunstncias, no se curvaram nem se resignaram.

Em outras palavras, conformar-se ou resignar-se uma deciso livre, tanto quanto no se resignar nem se conformar, lutando contra as circunstncias. Quando dizemos estar fatigados, a fadiga uma deciso nossa. Quando dizemos estar enfraquecidos, a fraqueza uma deciso nossa. Quando dizemos no ter o que fazer, o abandono uma deciso nossa. Ceder tanto quanto no ceder uma deciso nossa.

Por isso, Sartre afirma que estamos condenados liberdade. ela que define a humanidade dos humanos, sem escapatria. essa idia que encontramos no poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o "vasto mundo". ela tambm que se encontra no poema de Vicente de Carvalho, quando nos diz que a felicidade "est sempre apenas onde a pomos" e "nunca a pomos onde ns estamos". Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder a felicidade.

/ A segunda concepo da liberdade foi, inicialmente, desenvolvida por uma escola de Filosofia do perodo helenstico, o estoicismo, ressurgindo no sculo XVII com o filsofo Espinosa e, no sculo XIX, com Hegel e Marx. Eles conservam a idia aristotlica de que a liberdade a autodeterminao ou ser causa de si. Conservam tambm a idia de que livre aquele que age sem ser forado nem constrangido por nada ou por ningum e, portanto, age movido espontaneamente por uma fora interna prpria. No entanto, diferentemente de Aristteles e de Sartre, no colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivduos so partes.

O todo ou a totalidade, pode ser a Natureza - como para os esticos e Espinosa -, ou a Cultura - como para Hegel - ou, enfim, uma formao histrico-social - como para Marx. Em qualquer dos casos, a totalidade que age ou atua segundo seus prprios princpios, dando a si mesma suas leis, suas regras, suas normas. Essa totalidade livre em si mesma porque nada a fora ou a obriga do exterior, e por sua liberdade instaura leis e normas necessrias para suas partes (os indivduos). Em outras palavras, a liberdade, agora, no um poder individual incondicionado para escolher - a Natureza no escolhe, a Cultura no escolhe, uma formao social no escolhe -, mas o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que e fazendo necessariamente o que faz.

Como podemos observar, essa concepo no mantm a oposio entre liberdade e necessidade, mas afirma que a necessidade (as leis da Natureza, as normas e regras da Cultura, as leis da Histria) a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta. Em outras palavras, a totalidade livre porque se pe a si mesma na existncia e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e necessria porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela e faz. Liberdade no escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, a totalidade. O que , ento, a liberdade humana?

So duas as respostas a essa questo:

1. a primeira afirma que o todo racional e que suas partes tambm o so, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade;

2. a segunda afirma que as partes so de mesma essncia que o todo e, portanto, so racionais e livres como ele, dotadas de fora interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as condies estabelecidas pelo todo, conhecer suas causas e o modo como determinam nossas aes, e, por outro lado, graas a tal conhecimento, no ser um joguete das condies e causas que atuam sobre ns, mas agir sobre elas tambm. No somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graas ao conhecimento que possumos das circunstncias em que vamos agir.

Alm da concepo de tipo aristotlicosartreano e da concepo de tipo esticohegeliano, existe ainda uma terceira concepo que procura unir elementos das duas anteriores. Afirma, como a segunda, que no somos um poder incondicional de escolha de quaisquer possveis, mas que nossas escolhas so condicionadas pelas circunstncias naturais, psquicas, culturais e histricas em que vivemos, isto , pela totalidade natural e histrica em que estamos situados. Afirma, como a primeira, que a liberdade um ato de deciso e escolha entre vrios possveis. Todavia, no se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma coisa, distino feita por Espinosa e Hobbes, no sculo XVII, e retomada, no sculo XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa quando temos o poder para faz-la.

Essa terceira concepo da liberdade introduz a noo de possibilidade objetiva. O possvel no apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por ns, mas tambm e sobretudo alguma coisa inscrita no corao da necessidade, indicando que o curso de uma situao pode ser mudado por ns, em certas direes e sob certas condies. A liberdade a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas aes que mudam o curso das coisas, dando lhe outra direo ou outro sentido.

Na verdade, a no ser aqueles filsofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade, em quaisquer circunstncias (como o fizeram, por razes diferentes, Kant e Sartre), os demais, nas trs concepes apresentadas, sempre levaram em conta a tenso entre nossa liberdade e as condies - naturais, culturais, psquicas que nos determinam. As discusses sobre as paixes, os interesses, as circunstncias histrico-sociais, as condies naturais sempre estiveram presentes na tica e por isso uma idia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implcita nas teorias sobre a liberdade.

Surgida na Grcia, durante o sculo VI a.C., a Fortuna, como as demais figuras mticas, influenciou a cultura romana e a arte romanas. Em Roma, cada imperador tinha a sua prpria Fortuna.Liberdade e possibilidade objetiva

O possvel no o provvel. Este o previsvel, isto , algo que podemos calcular e antever, porque uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que analisamos. O possvel, porm, aquilo criado pela nossa prpria ao. o que vem existncia graas ao nosso agir. No entanto, no surge como "rvore milagrosa" e sim como aquilo que as circunstncias abriram para nossa ao. A liberdade a conscincia simultnea das circunstncias existentes e das aes que, suscitadas por tais circunstncias, nos permitem ultrapass-las.

Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condies e circunstncias que no foram escolhidas e nem determinadas por ns e em cujo interior nos movemos. No entanto, esse campo temporal: teve um passado, tem um presente e ter um futuro, cujos vetares ou direes j podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo, poderamos assumir duas atitudes: ou a iluso de que somos livres para mud-la em qualquer direo que desejarmos, ou a resignao de que nada podemos fazer.

Deixado a si mesmo, o campo do presente seguir um curso que no depende de ns e seremos submetidos passivamente a ele - a torneira permanecer seca ou vazar, inundando a casa, a luz permanecer apagada ou haver um curto-circuito, incendiando a casa, a porta permanecer fechada ou ser arrombada, deixando a casa ser invadida. A liberdade, porm, no se encontra na iluso do "posso tudo", nem no conformismo do "nada posso". Encontra-se na disposio para interpretar e decifrar os vetares do campo presente como possibilidades objetivas, isto , como abertura de novas direes e de novos sentidos a partir do que est dado.

Nada melhor do que um outro poema de Carlos Drummond para expressar essa idia. Trata-se de um poema no qual o poeta reconhece que seu corao no mais vasto do que o mundo, como ele imaginara:

MUNDO GRANDE

No, meu corao no maior que o mundo. muito menor.

Nele no cabem nem as minhas dores. Por isto gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqento os jornais, me exponho

cruamente nas livrarias:

preciso de todos.

Sim, meu corao muito pequeno.

S agora vejo que nele no cabem os homens. Os homens esto c fora, esto na rua.

A rua enorme. Maior, muito maior do que eu

esperava.

Mas tambm a rua no cabe todos os homens. A rua menor que o mundo.

O mundo grande.

Tu sabes como grande o mundo. Conheces os navios que levam petrleo e

[livros, carne e algodo.

Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como difcil sofrer tudo isso,

[amontoar tudo isso num s peito de homem ... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece. Escuta a gua nos vidros,

to calma. No anuncia nada. Entretanto escorre nas mos,

to calma! vai inundando tudo ... Renascero as cidades submersas? Os homens submersos - voltaro? Meu corao no sabe.

Estpido, ridculo e frgil meu corao. S agora descubro

como triste ignorar certas coisas. (Na solido de indivduo desaprendi a linguagem

com que os homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,

as sonatas, os poemas, as confisses patticas. Nunca escutei voz de gente.

Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei

pases imaginrios, fceis de habitar,

ilhas sem problemas, no obstante exaustivas

[e convocando ao suicdio.

Meus amigos foram s ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notcia

de que o mundo, o grande mundo est [crescendo todos os dias,

entre o fogo e o amor.

Ento, meu corao tambm pode crescer. Entre o amor e o fogo,

entre a vida e o fogo,

meu corao cresce dez metros e explode. vida futura! ns te criaremos.

Que nos diz o poeta?

Que no na solido de uma vontade individual ("mais vasto meu corao", como o poeta escrevera antes) que podemos enfrentar livremente o "mundo grande", mas na companhia dos outros que nos trazem a notcia de que o mundo cresce todo dia, isto , transforma-se incessantemente "entre fogo e amor", entre lutas, guerras, conflitos e busca de paz, entendimento e justia. Somos livres no contra o mundo, mas no mundo "meu corao cresce" (meu poder de querer e de fazer aumenta) -, mudando-o na companhia dos outros, aprendendo, "a linguagem com que os homens se comunicam", isto , suas dores, seus sofrimentos, suas batalhas e suas esperanas. Somente tendo contato com o mundo, conhecendo seus limites e suas aberturas para os possveis que nossa liberdade poder exclamar: " vida futura, ns te criaremos" .

essa mesma concepo da liberdade como possibilidade objetiva inscrita no mundo que encontramos no filsofo Merleau-Ponty, quando escreve:

Nascer , simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o mundo. Sob o primeiro aspecto, o mundo j est constitudo e somos solicitados por ele. Sob o segundo aspecto, o mundo no est inteiramente constitudo e estamos abertos a uma infinidade de possveis. Existimos, porm, sob os dois aspectos ao mesmo tempo. No h, pois. necessidade absoluta nem escolha absoluta, jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura conscincia ... A situao vem em socorro da deciso e, no intercmbio entre a situao e aquele que a assume, impossvel delimitar a "parte que cabe situao" e a "parte que cabe liberdade".

Tortura-se um homem para faz-lo falar. Se ele recusa dar nomes e endereos que lhe querem arranca/; no por sua deciso solitria e sem apoios no mundo. que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda engajado numa luta comum; ou porque, desde h meses ou anos, tem enfrentado esta provocao em pensamento e nela apostara toda sua vida; ou, enfim, porque ele quer provar, ultrapassando-a, o que ele sempre pensou e disse sobre a liberdade.

Tais motivaes no anulam a liberdade, mas lhe do ancoradouro no ser. Ele no uma conscincia nua que resiste dor, mas o prisioneiro com seus companheiros, ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive, ou, enfim, a conscincia orgulhosamente solitria que , ainda, um modo de estar com os outros ... Escolhemos nosso mundo e nosso mundo nos escolhe...

Concretamente tomada, a liberdade sempre o encontro de nosso interior com o exterior, degradando-se, sem nunca tornar-se nula, medida que diminui a tolerncia dos dados corporais e institucionais de nossa vida. H um campo de liberdade e uma "liberdade condicionada ", porque tenho possibilidades prximas e distantes ...

A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de situaes dadas e possibilidades abertas. Minha liberdade pode desviar minha vida do sentido espontneo que teria, mas o faz deslizando sobre este sentido, esposando o inicialmente para depois afastar-se dele, e no por uma criao absoluta...

Sou uma estrutura psicolgica e histrica. Recebi uma maneira de existir, um estilo de existncia. Todas as minhas aes e meus pensamentos esto em relao com essa estrutura. No entanto, sou livre, no apesar disto ou aqum dessas motivaes, mas por meio delas, so elas que me fazem comunicar com minha vida, com o mundo e com minha liberdade.

A liberdade a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade, transformando a situao de fato numa realidade nova, criada por nossa ao. Essa fora transformadora, que torna real o que era somente possvel e que se achava apenas latente como possibilidade, o que faz surgir uma obra de arte, uma obra de pensamento, uma ao herica, um movimento anti-racista, uma luta contra a discriminao sexual ou de classe social, uma resistncia tirania e a vitria contra ela.

O possvel no pura contingncia ou acaso. O necessrio no fatalidade bruta. O possvel o que se encontra aberto no corao do necessrio e que nossa liberdade agarra para fazer-se liberdade. Nosso desejo e nossa vontade no so incondicionados, mas os condicionamentos no so obstculos liberdade e sim o meio pelo qual ela pode exercer-se.

Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais - justia, igualdade, veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito felicidade - e, no entanto, impede a concretizao deles porque est organizada e estruturada de modo a impedi-Ios, o reconhecimento da contradio entre o ideal e a realidade o primeiro momento da liberdade e da vida tica como recusa da violncia. O segundo momento a busca das brechas pelas quais possa passar o possvel, isto , uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa prope no ideal.

Esse segundo momento indaga se um possvel existe e se temos o poder para torn-Io real, isto , se temos como passar da "pena de viver" e da "rvore milagrosa" a uma felicidade que, enfim, esteja onde ns estamos. O terceiro momento o da nossa deciso de agir e da escolha dos meios para a ao. O ltimo momento da liberdade a realizao da ao para transformar um possvel num real, uma possibilidade numa realidade.

Eis por que o poeta Jos Paulo Paes introduz o "mas o pior" em seu poema. De fato, a torneira est seca, mas o pior no ter sede, isto , no agir para que a gua possa correr pela torneira. De fato, a luz est apagada, mas o pior gostar do escuro, isto , no agir para que a a luz possa acender-se. De fato, a porta est trancada, mas o pior saber que a chave est do lado de dentro e nada fazer para gir-la. O mundo j est constitudo, escreve Merleau-Ponty - a torneira est seca, a luz apagada e a porta fechada. Porm, o mundo, prossegue o filsofo, no est completamente constitudo, no est pronto e acabado, mas, como escreve Carlos Drummond, "o grande mundo est crescendo todo dia" pelo fogo e amor dos seres humanos e o pior seria renunciar a ele por estarmos nele.

Vida e morte

Vida e morte no so, para ns humanos, simples acontecimentos biolgicos. Como disse um filsofo, as coisas aparecem e desaparecem, os animais comeam e acabam, somente o ser humano vive e morre, isto , existe. Vida e morte so acontecimentos simblicos, so significaes, possuem sentido e fazem sentido.

Viver e morrer so a descoberta da finitude humana, de nossa temporalidade e de nossa identidade: uma vida minha e minha, a morte. Esta, e somente ela, completa o que somos, dizendo o que fomos. Por isso, os filsofos esticos propunham que somente aps a morte, quando terminam as vicissitudes da vida, podemos afirmar que algum foi feliz ou infeliz. Enquanto vivos, somos tempo e mudana, estamos sendo. Os filsofos existencialistas disseram: a existncia precede a essncia, significando com isso que nossa essncia a sntese final do todo de nossa existncia. "Quem no souber morrer bem ter vivido mal", afirmou Sneca.

Num de seus ensaios, Que filosofar aprender a morrer, Montaigne escreve:

Qualquer que seja a durao de nossa vida, ela completa. Sua utilidade no reside na quantidade de durao e sim no emprego que lhe dais. H quem viveu muito e no viveu.

Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vs, e no do nmero de anos, terdes vivido bastante.

E conclui: Meditar sobre a morte meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morre/; desaprendeu de servir; nenhum mal atingir quem na existncia compreendeu que a privao da vida no um mal; saber morrer nos exime de toda sujeio e coao.

Morrer um ato solitrio. Morre-se s: a essncia da morte a solido. O morto parte sozinho; os vivos ficam sozinhos ao perd-lo. Resta saudade e recordao.

Viver estar com os outros. Vive-se com outrem: a essncia da vida a intercorporeidade e a intersubjetividade. Os vivos esto entrelaados: estamos com os outros e eles esto conosco, somos para os outros e eles so para ns. No ensaio O filsofo e sua sombra, Merleau-Ponty nos diz:

De "morre-se s" para "vive-se s" a conseqncia no exata, pois se apenas a dor e a morte forem invocadas para definir a subjetividade, ento, para ela, a vida com outros e no mundo sero impossveis ... Estamos verdadeiramente ss apenas quando no o sabemos. Essa ignorncia a solido ... A solido de onde emergimos para a vida intersubjetiva apenas a nvoa de uma vida annima e a barreira que nos separa dos outros impalpvel.

A tica o mundo das relaes intersubjetivas, isto , entre o eu e o outro como sujeitos e pessoas, portanto, como seres conscientes, livres e responsveis. Nenhuma experincia evidencia tanto a dimenso essencialmente intersubjetiva da vida e da vida tica quanto a do dilogo. Ouamos ainda uma vez Merleau-Ponty:

Na experincia do dilogo, constitui-se entre mim e o outro um terreno comum, meu pensamento e o dele formam um s tecido, minhas falas e as dele so invocadas pela interlocuo, inserem-se numa operao comum da qual nenhum de ns o criador. H um entre-dois, eu e o outro somos colaboradores, numa reciprocidade perfeita, coexistimos no mesmo mundo. No dilogo, fico liberado de mim mesmo, os pensamentos de outrem so dele mesmo, no sou eu quem os formo, embora eu os aprenda to logo nasam e mesmo me antecipe a eles, assim como as objees de outrem arrancam de mim pensamentos que eu no sabia possuir, de tal modo que, se lhe empresto pensamentos, em troca ele me faz pensar. Somente depois, quando fico sozinho e me recordo do dilogo, fazendo deste um episdio de minha vida privada solitria, quando outrem tornou-se apenas uma ausncia, que posso, talvez, senti-Ia como uma ameaa, pois desapareceu a reciprocidade que nos relacionava na concordncia e na discordncia.

Porque a vida intersubjetividade corporal e psquica, e porque a vida tica reciprocidade entre sujeitos, tantos filsofos deram amizade o lugar de virtude proeminente, expresso do mais alto ideal de justia. Num ensaio, Discurso da servido voluntria, procurando compreender por que os homens renunciam liberdade e voluntariamente servem aos tiranos, La Botie contraps a amizade servido voluntria, escrevendo:

Certamente, o tirano nunca ama e nem amado. A amizade nome sagrado, coisa santa: s pode existir entre gente de bem, nasce da mtua estima e se conserva no tanto por meio de beneficias, mas pela vida boa e pelos costumes bons. O que torna um amigo seguro de outro a sua integridade. Como garantias, tem seu bom natural, sua fidelidade, sua constncia. No pode haver amizade onde h crueldade e injustia. Entre os maus, quando se juntam, h uma conspirao, no sociedade. No se apiam mutuamente, mas temem-se mutuamente. No so amigos, so cmplices. Assim tambm Espinosa afirma que o ser humano mais livre na companhia dos outros do que na solido e que "somente os seres humanos livres so gratos e reconhecidos uns aos outros", porque os sujeitos livres so aqueles que "nunca agem com fraude, mas sempre de boa-f".

Se perguntarmos quais so, afinal, os valores, os motivos, os fins e os comportamentos ticos, responderemos dizendo que so aqueles nos quais buscamos eliminar a violncia na relao com o outro, ao mesmo tempo que procuramos manter a fidelidade a ns mesmos. tico no desaprender "a linguagem com que os homens se comunicam" e deixar "o corao crescer" para sermos mais ns mesmos quanto mais formos capazes de reciprocidade e solidariedade.

A tica se move no campo das paixes, dos desejos, das aes e dos princpios, possuindo uma dimenso valorativa e normativa. Por um lado, valores e normas so exteriores e anteriores a ns, definidos pela Cultura e pela sociedade onde vivemos; mas, por outro lado, somos sujeitos ticos e, portanto, capazes tanto de interiorizar valores e normas existentes, quanto de criar novos valores e normas.

Minha liberdade, escreve um filsofo, o poder fundamental que tenho de ser o sujeito de todas as minhas experincias. Por atos de liberdade, interpretamos nossa situao - valores, normas, princpios - e dessa interpretao nasce em ns a aceitao ou a recusa, a interiorizao ou a transgresso, a continuao ou a criao. A ao mais alta da vida livre, disse Nietszche, nosso poder para avaliar os valores.

O filsofo grego Epicuro escreveu: "O essencial para nossa felicidade nossa condio ntima e dela somos senhores". Ser senhor de si isto , autnomo - e ser capaz de philia - isto , de reciprocidade, de relao intersubjetiva como coexistncia e no-violncia - o ncleo da vida tica. Como disse Epicuro, "a justia no existe por si prpria, mas encontra-se sempre nas relaes recprocas, em qualquer tempo e lugar em que exista entre os humanos o pacto de no causar nem sofrer dano".

parecia fatalidade, transformando a