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A LINGUAGEM CORPORAL: UM ESTUDO ETOLÓGICO SOBRE O CORPO NO RASCUNHO FLAVIA KAROLINA CAMPOS (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO - UFMT). Resumo O foco central desta investigação tem como preocupação um estudo das linguagens corporais, especialmente aquelas que têm no comportamento humano desse corpo “pós–moderno”, que segundo Le Breton está sempre no rascunho. Utiliza–se de uma metodologia que privilegia a imagem de movimentos gestuais e de posturas dos sujeitos observados que fazem com que a comunicação seja mais afetiva. Essa paisagem corporal institui uma estética que parece inaugurar uma comunicação entre “tribos” que deixam as marcas pelas diferentes mensagens que a corporeidade apresenta. Essas marcas nos mostram que há uma comunicação não– verbal que fala o tempo todo. Seja no ato extravagante de vestir, na expressão de rostos pintados, furados escarificados, na insatisfação esférica do corpo, no desconforto auditivo devido a poluição sonora, na fadiga renitente de imagens visuais, no isolamento individual em meio à multidão de pessoas que superlotam os espaços... Essa corporeidade vai “gritando”, se ajeitando do jeito que pode. A ciber cultura nos obriga a ser e estar em um novo espaço e em um novo tempo que implica uma mudança conceptual da cultura. Apesar de algumas pessoas apresentarem diferenças visíveis quanto à situação financeira, no modo de ir e vir, no modo de ser, vestir, falar, ler, se divertir e ocupar esses lugares, eles se assemelham em sua etologia. Somos todos parecidos nesses espaços para produzir uma acomodação necessária no trato de pertencer a um determinado grupo social. Palavras-chave: Linguagem corporal, Comportamento etológico, Cultura. Introdução "Pensar o corpo é uma outra maneira de pensar o mundo e o vínculo social: qualquer confusão introduzida na configuração do corpo é uma confusão introduzida na coerência do mundo". (Le Breton) Para compreender melhor o comportamento e suas atribuições referentes ao corpo, nesses tempos "pós-modernos", observamos o seu abandono. Temos deixado o corpo em standby, quando damos-lhe um adeus. Marcel Mauss (2008, p. 420) nos diz que em toda sociedade, de hábito, as pessoas sabem o que devem saber ou aprender e aquilo que devem fazer nas condições que dizem respeito ao corpo. Naturalmente a vida social não é isenta de estupidez e anormalidades. Essa estupidez de que fala Mauss pode ser notada nas falas e na própria expressão de ser de cada indivíduo. Porém a pós-modernidade contribui para libertar os indivíduos dos constrangimentos sociais próprios das sociedades tradicionais estáticas, onde não existe inovação e contribui para que nas sociedades pós- modernas os indivíduos encontrem cada vez maior expressão na sua individualidade o que contribui para uma crescente democratização das sociedades.

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A LINGUAGEM CORPORAL: UM ESTUDO ETOLÓGICO SOBRE O CORPO NO RASCUNHO FLAVIA KAROLINA CAMPOS (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO - UFMT). Resumo O foco central desta investigação tem como preocupação um estudo das linguagens corporais, especialmente aquelas que têm no comportamento humano desse corpo “pós–moderno”, que segundo Le Breton está sempre no rascunho. Utiliza–se de uma metodologia que privilegia a imagem de movimentos gestuais e de posturas dos sujeitos observados que fazem com que a comunicação seja mais afetiva. Essa paisagem corporal institui uma estética que parece inaugurar uma comunicação entre “tribos” que deixam as marcas pelas diferentes mensagens que a corporeidade apresenta. Essas marcas nos mostram que há uma comunicação não–verbal que fala o tempo todo. Seja no ato extravagante de vestir, na expressão de rostos pintados, furados escarificados, na insatisfação esférica do corpo, no desconforto auditivo devido a poluição sonora, na fadiga renitente de imagens visuais, no isolamento individual em meio à multidão de pessoas que superlotam os espaços... Essa corporeidade vai “gritando”, se ajeitando do jeito que pode. A ciber cultura nos obriga a ser e estar em um novo espaço e em um novo tempo que implica uma mudança conceptual da cultura. Apesar de algumas pessoas apresentarem diferenças visíveis quanto à situação financeira, no modo de ir e vir, no modo de ser, vestir, falar, ler, se divertir e ocupar esses lugares, eles se assemelham em sua etologia. Somos todos parecidos nesses espaços para produzir uma acomodação necessária no trato de pertencer a um determinado grupo social. Palavras-chave: Linguagem corporal, Comportamento etológico, Cultura.

Introdução

"Pensar o corpo é uma outra maneira de pensar o mundo e o vínculo social: qualquer confusão introduzida na configuração do corpo é uma confusão introduzida na coerência do mundo". (Le Breton)

Para compreender melhor o comportamento e suas atribuições referentes ao corpo, nesses tempos "pós-modernos", observamos o seu abandono. Temos deixado o corpo em standby, quando damos-lhe um adeus. Marcel Mauss (2008, p. 420) nos diz que em toda sociedade, de hábito, as pessoas sabem o que devem saber ou aprender e aquilo que devem fazer nas condições que dizem respeito ao corpo.

Naturalmente a vida social não é isenta de estupidez e anormalidades. Essa estupidez de que fala Mauss pode ser notada nas falas e na própria expressão de ser de cada indivíduo. Porém a pós-modernidade contribui para libertar os indivíduos dos constrangimentos sociais próprios das sociedades tradicionais estáticas, onde não existe inovação e contribui para que nas sociedades pós-modernas os indivíduos encontrem cada vez maior expressão na sua individualidade o que contribui para uma crescente democratização das sociedades.

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O comportamento social faz parte da constituição da espécie humana, é uma característica básica do ser humano. Essa socialidade conforme entende Michel Maffesoli (1998, p. 48) se remete a um sentimento de comunidade que é marcada, predominantemente pelo corpo coletivo sobre o individual do ser humano que acontece pela via da comunicação e das linguagens, num processo de espaço partilhado. Essa partilha possibilita aos indivíduos a possibilidade de ser e de existir, nesta socialidade que sugere um comportamento orgânico, ou seja, o processo de surgimento de interações sociais em comunidades de maneira que condiciona o surgimento de laços sociais. Diferentes formações culturais emergem na medida em que surgem novos processos de comunicação mediados por novos meios, acumulado em todos os ciclos culturais.

Parece que não existe mais um "corpo feliz", se é que sempre existiu, e sim um corpo atarefado, fatigado, fustigado, deprimido. Se não temos saúde, apelamos aos medicamentos, suplementos e moderadores de apetites. A busca do corpo perfeito nos faz apelar para técnicas de relaxamento, a medicamentos para dormir, a dietas alimentares para emagrecer, para engordar, entre outros. Não paramos para pensar em nosso corpo. Para Le Breton (2003, p. 34) "há um ódio social que se converte em um ódio do corpo", preocupamo-nos somente com a estética: o silicone, o botox, as plásticas, a lipoaspiração constituem a sua melhor ocupação. Estamos sempre anexados a uma prótese, num mundo que celebra essas mudanças, fazendo perder a forma corporal. Estamos mais obesos, infelizes, hipertensos e não pensamos no corpo coletivo, mas no corpo individual. Assim cada "eu" vai se arrastando como pode.

O antropólogo Ashley Montagu (1988, p. 19) assinala que "em virtude de nossa progressiva sofisticação e falta de envolvimento recíproco passamos [...] a excluir de nossa experiência o universo da comunicação não-verbal, para o nosso acentuado empobrecimento". Para esse autor há na "ocidentalização do corpo" (grifo nosso), uma ausência de toque. Essa falta de pele a que ele se refere pode ser vista em nossos dias dentro de apertados elevadores, em condomínios das grandes cidades, em filas de bancos, em salas de consultórios, em casas de show. Abarrotados de pessoas esses espaços ditam uma corporeidade e afinam uma "técnica corporal" para ser caro a expressão cunhada por Mauss, que elimina qualquer possibilidade de toque, qualquer experiência de pele. Essa etologia coincide com o título da obra "sociedade individualizada" de Zygmunt Bauman (2009) que pode nos ajudar a interpretar melhor essa conduta. Os mass media têm sido o porta-voz dessa nova mentalidade. Será que o mundo não tem mais saída? O que podemos fazer? É possível inverter essa situação? Toda produção tem uma linha de tempo e a produção dos tempos pós-modernos é orientada pela tecnologia, que para Le Breton (2003, p. 31) "o próprio sujeito é o mestre-de-obras que decide a orientação de sua existência". Com isso passamos a usar da ciência, porque sentimos mais confortáveis. Temos muito em comum com o século passado, porém olhares e fazeres diferentes. Alguns valores mudaram, como os tabus corporais que eram orientados por princípios míticos (ciclo menstrual, reprodução, uso de cosméticos...) outros permaneceram (respeito aos mais velhos, crença na ciência, esperança no futuro...), mas o mais gritante tem a ver com o modus operandi de nosso cotidiano.

A relação do homem consigo mesmo e com o mundo vem mudando, a revolução sexual, o body-art, a crítica do esporte são parte desse novo imaginário do corpo na sociedade onde temos, por exemplo, o homossexualismo o lesbianismo e grupos simpatizantes, tantas "tribos" entre outros. Para Le Breton, o "transexualismo" seria uma marca corporal, pois "a marca corporal traduz a necessidade de completar, por iniciativa pessoal, um corpo que não chega a incorporar/encarnar a identidade pessoal" (2003, p. 40). O Corpo é fabricado, rascunhado. Porque os corpos são feitos, inventados, por tudo que se diz do indivíduo, sobre o indivíduo,

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para o indivíduo, ao indivíduo. É certo que o ser humano sempre modificou seu corpo de alguma forma nas mais diferentes sociedades, e que essas modificações são como signos da eterna tensão entre cultura e natureza.

No filme "2001, Uma Odisséia no Espaço", de Stanley Kubrick (1968), os movimentos dos Homo sapiens, que mostram a disputa pela territorialidade e a afirmação do bando, se deslocam para a descoberta da ferramenta, a partir de um fêmur de uma carcaça de zebra, pela via da linguagem não-verbal. Nesse momento, parece que quer nos dizer Kubrick que nos tornamos homo-sapiens-faber-demens, porque passamos a desenvolver novas técnicas corporais como andar, falar, sentar, copular, vestir, comer, agrupar-se, caminhar, correr, enfim adquirir novos padrões de comportamento que perduram no em nosso processo de humanização.

Essas rubricas humanas nos põem de pé frente a uma questão paradoxal: o sentar que é um ato de perduração pode ter na invenção do utensílio cadeira duas condutas de sentidos e significados opostos - a mesma cadeira que nos acomoda também nos desestrutura, causando-nos um problema de postura (a escoliose nos bancos escolares). Como símbolo de poder, quando, ao sentarmos nela, ficamos investidos de um determinado papel social: rei ou imperador, juiz, professor ou presidente de uma empresa. Portanto, também nos dá poder. A cópula que nos diviniza por assim realizar o mistério da reprodução, também nos desgraça se nos contaminarmos com doenças sexualmente transmissíveis. Isto é, o mesmo ato que pode revelar uma nova vida, pode também nos levar à morte. O alimento nos dignifica, traduz a nossa face de um deus criador, mantém a nossa existência em equilíbrio, mas também pode nos tornar obesos, hipertensos, diabéticos. A caminhada e a corrida que nos proporcionam um bem-estar (wellness), para ficar em paz com o modismo do termo, se feitas de forma errada sem calçados e vestimentas apropriados em lugares e horários não favoráveis, nos causam problemas em nossa estrutura: luxações, tendinites, torções, desidratação entre outros. Algumas dessas "técnicas" só são solicitadas raramente no cotidiano, através de atividades físicas para a manutenção da saúde.

Para o pensador Le Breton (2003, p. 21.), o corpo torna-se objeto de preocupação, "a humanidade urbanizada torna-se uma humanidade sentada" Algumas pessoas programam caminhadas para manter sua forma física, outros preferem andar de automóveis, e tem aqueles que ficam o dia todo sentado à frente da TV, ditando que os computadores e videogames são objetos que estimulam o desligamento do convívio social e até mesmo de sua própria existência, o que, para Le Breton, acarreta em implicações num corpo não mais como o centro irradiante da existência, mas como um elemento negligenciável da presença.

O corpo é visto como uma massa de modelar, socialmente modulável, uma vez vivido conforme o estilo de vida de cada "indivíduo individualizado", como diz Bauman. Mudando o corpo tende-se a mudar a sua vida e assim, submetido a um design de cirurgias plásticas, marcas corporais, transexualismo, próteses sofisticadíssimas... traz uma idéia de liberdade arbitrado pelo modificar-se indiscriminadamente. Com esse leiaute "insólito", na solitude de cada corpo, os indivíduos vão agora encontrar outros corpos (grifo nosso) igualmente solitários e voltam, segundo Bauman (2009) "para casa com a confiança renovada em sua própria solidão".

É notável que cada época estabelece um modelo de corpo, levando em consideração os valores, as crenças, os mitos e as exigências ditados pelos interesses sócio-culturais de cada sociedade. As pessoas não se contentam com o corpo que se tem, querem complementá-lo, modificá-lo, conforme suas idéias.

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Afinal essa nova era trouxe a permissão de liberdade. Essa é uma das primeiras suspeitas do corpo: a vontade de modificar-se ao olhar sobre si mesmo e ao olhar do outro para se sentir indivíduo, dono de sua própria identidade.

A cirurgia estética opera no imaginário e tende a uma relação homem/mundo, e assim passa-se a ter presença e uma identidade ostentada. Corpo "máquina perfeita" mais que corpo e que concepção de corpo, estamos buscando ao longo de nossa história. À reflexão, no entanto, sobre as transformações que ocorreram ao longo do século XX, percebemos mudanças na forma como vivemos e pensamos nosso corpo. A própria antropologia vem apresentando modificações significativas com importante repercussão sobre os conceitos de corpo, cultura e natureza, que se completam para melhor descrição do que vem a ser corpo.

A dedicação ao cuidado do corpo exacerbou-se, mormente nos aspectos meramente físicos, tornando-o um outdoor que antecede a própria comunicação verbal do indivíduo. O corpo comunica mais do que o próprio indivíduo e é por meio do corpo que se dá a percepção de mundo exterior.

Para Le Breton (2003, p. 87): "O homem tem uma deficiência visível, desperta a fantasia da fragmentação do corpo que habita muitos pesadelos". Essa deficiência visível a que se refere o autor é suscitada pelos mass media e realiza suas fantasias mais íntimas, nunca antes pensadas ou vividas, ou até mesmo uma relação com seu próprio corpo, o desejo de bem-estar consigo mesmo.

O corpo tem seu significado dentro de um contexto social: saúde, força, identidade, estética, qualidade de vida e beleza são as suas melhores "narrativas". Neil Postman (2002, p. 14) adota o termo "narrativa", quando se refere à educação, sinonimizando-o a um deus, não para dar sentido ao mundo e nem para descrevê-lo cientificamente, mas para organizar a vida em torno dele. A medida dessa organização não está na verdade e nem na falsidade, mas na garantia de dar às pessoas um sentimento de identidade pessoal, um sentimento de vida comunitária, uma base de conduta moral. Talvez esteja aí a explicação das renitentes idas dos indivíduos à agora para encontrar outros indivíduos.

É dentro desse contexto que o corpo passa a ser cultuado, muitas vezes exige sacrifícios, submetendo-se a um ritual de pathos (sofrimento) para se ter uma inserção social. A imagem corporal tem representado a aceitação ou não do indivíduo em todas as esferas: social, cultural, política e econômica.

O espaço cibernético afasta o indivíduo do tempo e do espaço, o corpo se apaga restando assim apenas a comunicação, mas sem o corpo, sem o rosto, a mente se libera do corpo, de seus limites e dá força aos pensamentos. A única forma de toque de pele são as mãos que podem tocar o teclado e a única imagem é a tela do computador, o corpo é transportado do mundo físico para um mundo metafísico, um mundo simbólico, onde deficientes e doentes se movem, magros e obesos se transformam, negros e brancos se misturam em suas cores, crianças e adultos se confundem, os mais velhos se tornam jovens, tornando um momento de igualdade, pondo o corpo entre parênteses, e se entrega a essa vida virtual, com emoções, paixões, medos que reproduzem os valores da sua existência. Mas o mundo fictício é um mundo sem carne, nos dá proteção e nos tira do mundo real: talvez esteja aí a procura de viver "o mito do indivíduo perfeito".

O corpo é pensado como simples suporte da pessoa, as peças podem ser substituídas, tanto por motivos terapêuticos como por conveniência pessoal. O indivíduo é visto através de uma lente cultural. Há uma idealização da imagem corporal como padrão que deverá ser seguido.

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Segundo Le Breton (2003, p. 23), "alguns biólogos até sonham em eliminar a mulher de toda a gestação graças à incubadora artificial." Com isso poderá o homem engravidar como já mencionam, com a possibilidade de implantar embriões em sua parede abdominal e gestar, processo que seria assistido por médicos, dando à luz por meio de obstetrícia cesariana. É sabido que todos nós somos embriões vencedores que "deram certo"; a única diferença é que não fomos congelados. Os pesquisadores e médicos consideram possível essa realização. Existem hoje muitos homens preocupados com sua identidade desejada de mulher. Seria uma igualdade dos sexos a qual nós já vemos hoje no mundo virtual?

A medicina intervém para dominar a vida e controlar os dados genéticos; acaba com o medo da AIDS, das doenças sexualmente transmissíveis e até mesmo com o cansaço. No espaço cibernético pode-se até ficar livre das doenças, mas não se está livre do cansaço do corpo, da mente, da fome, do sono, das doenças ou da deficiência.

Le Breton arremata descrevendo que "o corpo é escaneado, purificado, gerado, remanejado, renaturado, artificializado, recodificado geneticamente decomposto e reconstruído ou eliminado, estigmatizado em nome do "espírito" ou do "gene ruim". (2003, p. 26). O corpo é hoje um desafio importante e fundamental para a nossa sociedade pós-moderna. Estamos carregados de marcantes símbolos culturais que terminam por diferenciar, agrupar, classificar e ordenar os sujeitos e seus corpos. Todo nosso agir, falar, sentir, andar e pensar representa o modus vivendi de uma vida diferente de um determinado grupo social.

As tatuagens e os piercings são marcas corporais que implicam numa vontade de atrair o olhar, de fabricar uma estética da presença do hic et nunc. São instaladas em diversos pontos das orelhas, da boca, do nariz, da língua, nos mamilos, no umbigo, nos órgãos genitais (masculino e feminino) para aumentar o prazer na relação sexual, sobrancelhas. Essas partes do corpo ficam privilegiadas por aqueles que usam. A tatuagem é um sinal visível na pele feita por uma injeção de uma matéria colorida na derme. Ela é diferente da maquiagem feminina que é direcionada ao rosto, é definitiva e é tanto para homem quanto para mulher, e pode ser feita no corpo, ombro, braço, peito, pernas, costas, mas raramente no rosto.

Encontramos muito essas marcas corporais nas "tribos urbanas", por exemplo, entre os Punks: jovens que se vestem de maneira chocante, usam cabelos coloridos e enfeites de metal e protestam contra tudo que é convencional, rebelde. Para a cultura cyberpunk não existe limites para a liberdade de informação de dados, entre outros, hard rock, Techno, grunge, bikers, gays... que vêm se propagando ao entorno da "sociedade oficial" (grifo nosso), fazendo multiplicar os espaços (estúdios) de tatuagem e piercing. Simbólico, desenhado ou acoplado sobre a pele, é um sinal de identidade. Segundo Le Breton (2003, p. 15): "O corpo é normalmente colocado como um alter ego consagrado ao rancor dos cientistas" Corpo esse que encarna à maneira de um objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, perdendo o seu valor. O corpo nada mais é que um rascunho a ser corrigido, uma imagem no foto shop a ser arrumado.

Le Breton nos diz que um dicionário moderno de idéias feitas escreveria hoje no verbete corpo: "uma máquina maravilhosa". Nós não aludimos a máquina ao corpo e sim o corpo à máquina. Se o corpo não estiver ligado à máquina nada mais ele é. Esse "corpo máquina" para os médicos envelhece, perde a sua forma, adquire lesões, doenças e a morte que o corpo sofre pela sua perfeição, a dor (pathos), o prazer, as emoções são perdidas, morrem mesmo antes de nascer, passa a ser simbólico social. Já a máquina é sempre fixa, nada vai alterar, mas ela não morre,

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porque sua morte é simbólica, vai para oficina, passa um antivírus, troca-se seu chip, substitui seu software ou é substituída por outra.

A humanidade não se encontra isolada, está sempre em contato com outros sítios de relacionamentos: chat, msn, Orkut, octop... e satisfaz aqueles que buscam uma interação cotidiana. Para Le Breton (2003, p. 221), interpretando Descartes, "abandonar a densidade do corpo seria abandonar a carne do mundo, perder o sabor das coisas" e ainda afirma que o homem está enraizado em seu corpo para o melhor e para o pior. Enraizado significa que estamos agregados aos nossos valores, à nossa cultura.

Le Breton fala sobre a atualidade, chamando a atenção em nossa cibercultura e como nos tornamos maquinizados, e tudo isso é uma aprendizagem, seja ela tradicional ou atual. Sua análise se estrutura de fora para dentro, começa na pele para chegar aos genes ou, mais além, à abstração de um corpo inexistente, um sujeito que se desvincula do corpo material no mundo da cibercultura.

Vemos as criações de andróides que foram feitas por engenheiros homens, e não por mulheres; isso nos faz levar a um pensamento que o homem teria ódio ao corpo, à sexualidade e aos sentimentos. Podemos ver essas criações nos filmes, desenhos e podemos citar alguns deles: Robocop, Exterminador do Futuro, o 5º Elemento, Matrix, Power Ranger's, Zi o Andróide.

Le Breton propõe que pensemos o próprio homem contemporâneo como um cyborg. Foi implantada nos andróides uma memória fictícia que lhes dá a ilusão de ter tido uma infância, pais, uma história de vida. O filme "O Homem Bicentenário" é um outro exemplo: o seu corpo tomado de sentimentos revela o segredo de sua existência. Le Breton nos faz uma pergunta "sou um homem ou uma máquina?

A tecnologia tem alimentado a totalidade da relação com o mundo do homem, da psicofarmacologia aos meios de comunicação, das próteses às técnicas da vida cotidiana. Para Freud (op. cit., p. 206), a teoria da evolução que inscreve o homem na continuidade do animal e a revelação do inconsciente remetem o sujeito a uma ignorância das razões superiores de seus atos. Não falamos mais do homem sem a máquina, é um paradigma incontornável para pensar o mundo contemporâneo.

Considerações Finais

O corpo é o epicêntrico de tudo, o corpo é simbólico: queremos descobrir e interpretar a nossa existência passamos a construir coisas, evoluímos cientificamente, fazemos filhos, queremos dar qualidade a nossa existência, a vida se materializa no corpo.

A professora-pesquisadora uspiana Maria do Rosário Silveira Porto (2009), em conferência no Seminário Temático no Instituto de Educação da UFMT, citando Gaston Bachelard disse que "o mundo não é dado conscientemente, mas resulta da mediação simbólica estabelecida entre o homem e o mundo" mudei um pouco para ficar mais claro. Temos os cinco sentidos para que aconteça essa relação homem/mundo, olfato, paladar, visão, tato e audição que são os quais utilizamos para nossa sobrevivência e estamos no mundo com o corpo. As coisas se não naturalizam: é o olhar direcionado pela nossa cultura que nos obriga a ver este

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mundo, a representá-lo com as rubricas de nossa existência, ou seja, do Homo sapiens-ludens-faber-dêmens, que somos.

Assim, pensamos na metáfora "Adeus ao corpo" como uma tentativa de nos mostrar o que está por vir: mostra uma visão do presente e anuncia um futuro transitando entre o real e o simbólico. Seria um aviso para observarmos mais os movimentos tecnológicos, sociais, culturais e refletir sobre a forma de viver, de se comportar e pensar? Os fatores econômicos, culturais, sociais entre outros têm um papel decisivo no comportamento de ser de cada grupo. Se a Etologia está certa em seu aforismo, não é de se desperdiçar a sua deixa: os homens como animais, antes de serem culturais, são mais naturais do que possamos imaginar.

ReferênciaS

BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2009.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus, 2003.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1987.

MONTAGU, Ashley. Tocar o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988.

PORTO, Maria do Rosário Silveira. Corpo, Casa e Cosmos: os ritmos da vida. (conferência) proferida no Seminário Temático "Símbolo, Imagem e Educação" no PPGE/Instituto de Educação da UFMT. Cuiabá, 2009.

POSTMAN, Neil. O Fim da educação, redefinindo o valor da escola. Rio de Janeiro: Editora Graphia, 2002.

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Introdução “Pensar o corpo é uma outra maneira de pensar o mundo e o vínculo social: qualquer confusão introduzida na configuração do corpo é uma confusão introduzida na coerência do mundo”. (Le Breton)

Para compreender melhor o comportamento e suas atribuições referentes ao

corpo, nesses tempos “pós-modernos”, observamos o seu abandono. Temos deixado o

corpo em standby, quando damos-lhe um adeus. Marcel Mauss (2008, p. 420) nos diz

que em toda sociedade, de hábito, as pessoas sabem o que devem saber ou aprender e

aquilo que devem fazer nas condições que dizem respeito ao corpo.

Naturalmente a vida social não é isenta de estupidez e anormalidades. Essa

estupidez de que fala Mauss pode ser notada nas falas e na própria expressão de ser de

cada indivíduo. Porém a pós-modernidade contribui para libertar os indivíduos dos

constrangimentos sociais próprios das sociedades tradicionais estáticas, onde não existe

inovação e contribui para que nas sociedades pós-modernas os indivíduos encontrem

cada vez maior expressão na sua individualidade o que contribui para uma crescente

democratização das sociedades.

O comportamento social faz parte da constituição da espécie humana, é uma

característica básica do ser humano. Essa socialidade conforme entende Michel

Maffesoli (1998, p. 48) se remete a um sentimento de comunidade que é marcada,

predominantemente pelo corpo coletivo sobre o individual do ser humano que acontece

pela via da comunicação e das linguagens, num processo de espaço partilhado. Essa

partilha possibilita aos indivíduos a possibilidade de ser e de existir, nesta socialidade

que sugere um comportamento orgânico, ou seja, o processo de surgimento de

interações sociais em comunidades de maneira que condiciona o surgimento de laços

sociais. Diferentes formações culturais emergem na medida em que surgem novos

processos de comunicação mediados por novos meios, acumulado em todos os ciclos

culturais.

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Parece que não existe mais um “corpo feliz”, se é que sempre existiu, e sim um

corpo atarefado, fatigado, fustigado, deprimido. Se não temos saúde, apelamos aos

medicamentos, suplementos e moderadores de apetites. A busca do corpo perfeito nos

faz apelar para técnicas de relaxamento, a medicamentos para dormir, a dietas

alimentares para emagrecer, para engordar, entre outros. Não paramos para pensar em

nosso corpo. Para Le Breton (2003, p. 34) “há um ódio social que se converte em um

ódio do corpo”, preocupamo-nos somente com a estética: o silicone, o botox, as

plásticas, a lipoaspiração constituem a sua melhor ocupação. Estamos sempre anexados

a uma prótese, num mundo que celebra essas mudanças, fazendo perder a forma

corporal. Estamos mais obesos, infelizes, hipertensos e não pensamos no corpo coletivo,

mas no corpo individual. Assim cada “eu” vai se arrastando como pode.

O antropólogo Ashley Montagu (1988, p. 19) assinala que “em virtude de nossa

progressiva sofisticação e falta de envolvimento recíproco passamos [...] a excluir de

nossa experiência o universo da comunicação não-verbal, para o nosso acentuado

empobrecimento”. Para esse autor há na “ocidentalização do corpo” (grifo nosso), uma

ausência de toque. Essa falta de pele a que ele se refere pode ser vista em nossos dias

dentro de apertados elevadores, em condomínios das grandes cidades, em filas de

bancos, em salas de consultórios, em casas de show. Abarrotados de pessoas esses

espaços ditam uma corporeidade e afinam uma “técnica corporal” para ser caro a

expressão cunhada por Mauss, que elimina qualquer possibilidade de toque, qualquer

experiência de pele. Essa etologia coincide com o título da obra “sociedade

individualizada” de Zygmunt Bauman (2009) que pode nos ajudar a interpretar melhor

essa conduta. Os mass media têm sido o porta-voz dessa nova mentalidade. Será que o

mundo não tem mais saída? O que podemos fazer? É possível inverter essa situação?

Toda produção tem uma linha de tempo e a produção dos tempos pós-modernos é

orientada pela tecnologia, que para Le Breton (2003, p. 31) “o próprio sujeito é o

mestre-de-obras que decide a orientação de sua existência”. Com isso passamos a usar

da ciência, porque sentimos mais confortáveis. Temos muito em comum com o século

passado, porém olhares e fazeres diferentes. Alguns valores mudaram, como os tabus

corporais que eram orientados por princípios míticos (ciclo menstrual, reprodução, uso

de cosméticos...) outros permaneceram (respeito aos mais velhos, crença na ciência,

esperança no futuro...), mas o mais gritante tem a ver com o modus operandi de nosso

cotidiano.

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A relação do homem consigo mesmo e com o mundo vem mudando, a revolução

sexual, o body-art, a crítica do esporte são parte desse novo imaginário do corpo na

sociedade onde temos, por exemplo, o homossexualismo o lesbianismo e grupos

simpatizantes, tantas “tribos” entre outros. Para Le Breton, o “transexualismo” seria

uma marca corporal, pois “a marca corporal traduz a necessidade de completar, por

iniciativa pessoal, um corpo que não chega a incorporar/encarnar a identidade pessoal”

(2003, p. 40). O Corpo é fabricado, rascunhado. Porque os corpos são feitos,

inventados, por tudo que se diz do indivíduo, sobre o indivíduo, para o indivíduo, ao

indivíduo. É certo que o ser humano sempre modificou seu corpo de alguma forma nas

mais diferentes sociedades, e que essas modificações são como signos da eterna tensão

entre cultura e natureza.

No filme “2001, Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick (1968), os

movimentos dos Homo sapiens, que mostram a disputa pela territorialidade e a

afirmação do bando, se deslocam para a descoberta da ferramenta, a partir de um fêmur

de uma carcaça de zebra, pela via da linguagem não-verbal. Nesse momento, parece que

quer nos dizer Kubrick que nos tornamos homo-sapiens-faber-demens, porque

passamos a desenvolver novas técnicas corporais como andar, falar, sentar, copular,

vestir, comer, agrupar-se, caminhar, correr, enfim adquirir novos padrões de

comportamento que perduram no em nosso processo de humanização.

Essas rubricas humanas nos põem de pé frente a uma questão paradoxal: o sentar

que é um ato de perduração pode ter na invenção do utensílio cadeira duas condutas de

sentidos e significados opostos ― a mesma cadeira que nos acomoda também nos

desestrutura, causando-nos um problema de postura (a escoliose nos bancos escolares).

Como símbolo de poder, quando, ao sentarmos nela, ficamos investidos de um

determinado papel social: rei ou imperador, juiz, professor ou presidente de uma

empresa. Portanto, também nos dá poder. A cópula que nos diviniza por assim realizar o

mistério da reprodução, também nos desgraça se nos contaminarmos com doenças

sexualmente transmissíveis. Isto é, o mesmo ato que pode revelar uma nova vida, pode

também nos levar à morte. O alimento nos dignifica, traduz a nossa face de um deus

criador, mantém a nossa existência em equilíbrio, mas também pode nos tornar obesos,

hipertensos, diabéticos. A caminhada e a corrida que nos proporcionam um bem-estar

(wellness), para ficar em paz com o modismo do termo, se feitas de forma errada sem

calçados e vestimentas apropriados em lugares e horários não favoráveis, nos causam

problemas em nossa estrutura: luxações, tendinites, torções, desidratação entre outros.

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4

Algumas dessas “técnicas” só são solicitadas raramente no cotidiano, através de

atividades físicas para a manutenção da saúde.

Para o pensador Le Breton (2003, p. 21.), o corpo torna-se objeto de

preocupação, “a humanidade urbanizada torna-se uma humanidade sentada” Algumas

pessoas programam caminhadas para manter sua forma física, outros preferem andar de

automóveis, e tem aqueles que ficam o dia todo sentado à frente da TV, ditando que os

computadores e videogames são objetos que estimulam o desligamento do convívio

social e até mesmo de sua própria existência, o que, para Le Breton, acarreta em

implicações num corpo não mais como o centro irradiante da existência, mas como um

elemento negligenciável da presença.

O corpo é visto como uma massa de modelar, socialmente modulável, uma vez

vivido conforme o estilo de vida de cada “indivíduo individualizado”, como diz

Bauman. Mudando o corpo tende-se a mudar a sua vida e assim, submetido a um design

de cirurgias plásticas, marcas corporais, transexualismo, próteses sofisticadíssimas...

traz uma idéia de liberdade arbitrado pelo modificar-se indiscriminadamente. Com esse

leiaute “insólito”, na solitude de cada corpo, os indivíduos vão agora encontrar outros

corpos (grifo nosso) igualmente solitários e voltam, segundo Bauman (2009) “para casa

com a confiança renovada em sua própria solidão”.

É notável que cada época estabelece um modelo de corpo, levando em

consideração os valores, as crenças, os mitos e as exigências ditados pelos interesses

sócio-culturais de cada sociedade. As pessoas não se contentam com o corpo que se

tem, querem complementá-lo, modificá-lo, conforme suas idéias. Afinal essa nova era

trouxe a permissão de liberdade. Essa é uma das primeiras suspeitas do corpo: a vontade

de modificar-se ao olhar sobre si mesmo e ao olhar do outro para se sentir indivíduo,

dono de sua própria identidade.

A cirurgia estética opera no imaginário e tende a uma relação homem/mundo, e

assim passa-se a ter presença e uma identidade ostentada. Corpo “máquina perfeita”

mais que corpo e que concepção de corpo, estamos buscando ao longo de nossa história.

À reflexão, no entanto, sobre as transformações que ocorreram ao longo do século XX,

percebemos mudanças na forma como vivemos e pensamos nosso corpo. A própria

antropologia vem apresentando modificações significativas com importante repercussão

sobre os conceitos de corpo, cultura e natureza, que se completam para melhor

descrição do que vem a ser corpo.

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5

A dedicação ao cuidado do corpo exacerbou-se, mormente nos aspectos

meramente físicos, tornando-o um outdoor que antecede a própria comunicação verbal

do indivíduo. O corpo comunica mais do que o próprio indivíduo e é por meio do corpo

que se dá a percepção de mundo exterior.

Para Le Breton (2003, p. 87): “O homem tem uma deficiência visível, desperta a

fantasia da fragmentação do corpo que habita muitos pesadelos”. Essa deficiência

visível a que se refere o autor é suscitada pelos mass media e realiza suas fantasias mais

íntimas, nunca antes pensadas ou vividas, ou até mesmo uma relação com seu próprio

corpo, o desejo de bem-estar consigo mesmo.

O corpo tem seu significado dentro de um contexto social: saúde, força,

identidade, estética, qualidade de vida e beleza são as suas melhores “narrativas”. Neil

Postman (2002, p. 14) adota o termo “narrativa”, quando se refere à educação,

sinonimizando-o a um deus, não para dar sentido ao mundo e nem para descrevê-lo

cientificamente, mas para organizar a vida em torno dele. A medida dessa organização

não está na verdade e nem na falsidade, mas na garantia de dar às pessoas um

sentimento de identidade pessoal, um sentimento de vida comunitária, uma base de

conduta moral. Talvez esteja aí a explicação das renitentes idas dos indivíduos à agora

para encontrar outros indivíduos.

É dentro desse contexto que o corpo passa a ser cultuado, muitas vezes exige

sacrifícios, submetendo-se a um ritual de pathos (sofrimento) para se ter uma inserção

social. A imagem corporal tem representado a aceitação ou não do indivíduo em todas

as esferas: social, cultural, política e econômica.

O espaço cibernético afasta o indivíduo do tempo e do espaço, o corpo se apaga

restando assim apenas a comunicação, mas sem o corpo, sem o rosto, a mente se libera

do corpo, de seus limites e dá força aos pensamentos. A única forma de toque de pele

são as mãos que podem tocar o teclado e a única imagem é a tela do computador, o

corpo é transportado do mundo físico para um mundo metafísico, um mundo simbólico,

onde deficientes e doentes se movem, magros e obesos se transformam, negros e

brancos se misturam em suas cores, crianças e adultos se confundem, os mais velhos se

tornam jovens, tornando um momento de igualdade, pondo o corpo entre parênteses, e

se entrega a essa vida virtual, com emoções, paixões, medos que reproduzem os valores

da sua existência. Mas o mundo fictício é um mundo sem carne, nos dá proteção e nos

tira do mundo real: talvez esteja aí a procura de viver “o mito do indivíduo perfeito”.

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6

O corpo é pensado como simples suporte da pessoa, as peças podem ser

substituídas, tanto por motivos terapêuticos como por conveniência pessoal. O

indivíduo é visto através de uma lente cultural. Há uma idealização da imagem corporal

como padrão que deverá ser seguido.

Segundo Le Breton (2003, p. 23), “alguns biólogos até sonham em eliminar a

mulher de toda a gestação graças à incubadora artificial.” Com isso poderá o homem

engravidar como já mencionam, com a possibilidade de implantar embriões em sua

parede abdominal e gestar, processo que seria assistido por médicos, dando à luz por

meio de obstetrícia cesariana. É sabido que todos nós somos embriões vencedores que

“deram certo”; a única diferença é que não fomos congelados. Os pesquisadores e

médicos consideram possível essa realização. Existem hoje muitos homens preocupados

com sua identidade desejada de mulher. Seria uma igualdade dos sexos a qual nós já

vemos hoje no mundo virtual?

A medicina intervém para dominar a vida e controlar os dados genéticos; acaba

com o medo da AIDS, das doenças sexualmente transmissíveis e até mesmo com o

cansaço. No espaço cibernético pode-se até ficar livre das doenças, mas não se está livre

do cansaço do corpo, da mente, da fome, do sono, das doenças ou da deficiência.

Le Breton arremata descrevendo que “o corpo é escaneado, purificado, gerado,

remanejado, renaturado, artificializado, recodificado geneticamente decomposto e

reconstruído ou eliminado, estigmatizado em nome do “espírito” ou do “gene ruim”.

(2003, p. 26). O corpo é hoje um desafio importante e fundamental para a nossa

sociedade pós-moderna. Estamos carregados de marcantes símbolos culturais que

terminam por diferenciar, agrupar, classificar e ordenar os sujeitos e seus corpos. Todo

nosso agir, falar, sentir, andar e pensar representa o modus vivendi de uma vida

diferente de um determinado grupo social.

As tatuagens e os piercings são marcas corporais que implicam numa vontade de

atrair o olhar, de fabricar uma estética da presença do hic et nunc. São instaladas em

diversos pontos das orelhas, da boca, do nariz, da língua, nos mamilos, no umbigo, nos

órgãos genitais (masculino e feminino) para aumentar o prazer na relação sexual,

sobrancelhas. Essas partes do corpo ficam privilegiadas por aqueles que usam. A

tatuagem é um sinal visível na pele feita por uma injeção de uma matéria colorida na

derme. Ela é diferente da maquiagem feminina que é direcionada ao rosto, é definitiva e

é tanto para homem quanto para mulher, e pode ser feita no corpo, ombro, braço, peito,

pernas, costas, mas raramente no rosto.

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Encontramos muito essas marcas corporais nas “tribos urbanas”, por exemplo,

entre os Punks: jovens que se vestem de maneira chocante, usam cabelos coloridos e

enfeites de metal e protestam contra tudo que é convencional, rebelde. Para a cultura

cyberpunk não existe limites para a liberdade de informação de dados, entre outros,

hard rock, Techno, grunge, bikers, gays... que vêm se propagando ao entorno da

“sociedade oficial” (grifo nosso), fazendo multiplicar os espaços (estúdios) de tatuagem

e piercing. Simbólico, desenhado ou acoplado sobre a pele, é um sinal de identidade.

Segundo Le Breton (2003, p. 15): “O corpo é normalmente colocado como um alter ego

consagrado ao rancor dos cientistas” Corpo esse que encarna à maneira de um objeto,

esvaziado de seu caráter simbólico, perdendo o seu valor. O corpo nada mais é que um

rascunho a ser corrigido, uma imagem no foto shop a ser arrumado.

Le Breton nos diz que um dicionário moderno de idéias feitas escreveria hoje no

verbete corpo: “uma máquina maravilhosa”. Nós não aludimos a máquina ao corpo e

sim o corpo à máquina. Se o corpo não estiver ligado à máquina nada mais ele é. Esse

“corpo máquina” para os médicos envelhece, perde a sua forma, adquire lesões, doenças

e a morte que o corpo sofre pela sua perfeição, a dor (pathos), o prazer, as emoções são

perdidas, morrem mesmo antes de nascer, passa a ser simbólico social. Já a máquina é

sempre fixa, nada vai alterar, mas ela não morre, porque sua morte é simbólica, vai para

oficina, passa um antivírus, troca-se seu chip, substitui seu software ou é substituída por

outra.

A humanidade não se encontra isolada, está sempre em contato com outros sítios

de relacionamentos: chat, msn, Orkut, octop... e satisfaz aqueles que buscam uma

interação cotidiana. Para Le Breton (2003, p. 221), interpretando Descartes, “abandonar

a densidade do corpo seria abandonar a carne do mundo, perder o sabor das coisas” e

ainda afirma que o homem está enraizado em seu corpo para o melhor e para o pior.

Enraizado significa que estamos agregados aos nossos valores, à nossa cultura.

Le Breton fala sobre a atualidade, chamando a atenção em nossa cibercultura e

como nos tornamos maquinizados, e tudo isso é uma aprendizagem, seja ela tradicional

ou atual. Sua análise se estrutura de fora para dentro, começa na pele para chegar aos

genes ou, mais além, à abstração de um corpo inexistente, um sujeito que se desvincula

do corpo material no mundo da cibercultura.

Vemos as criações de andróides que foram feitas por engenheiros homens, e não

por mulheres; isso nos faz levar a um pensamento que o homem teria ódio ao corpo, à

sexualidade e aos sentimentos. Podemos ver essas criações nos filmes, desenhos e

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podemos citar alguns deles: Robocop, Exterminador do Futuro, o 5º Elemento, Matrix,

Power Ranger’s, Zi o Andróide.

Le Breton propõe que pensemos o próprio homem contemporâneo como um

cyborg. Foi implantada nos andróides uma memória fictícia que lhes dá a ilusão de ter

tido uma infância, pais, uma história de vida. O filme “O Homem Bicentenário” é um

outro exemplo: o seu corpo tomado de sentimentos revela o segredo de sua existência.

Le Breton nos faz uma pergunta “sou um homem ou uma máquina?

A tecnologia tem alimentado a totalidade da relação com o mundo do homem,

da psicofarmacologia aos meios de comunicação, das próteses às técnicas da vida

cotidiana. Para Freud (op. cit., p. 206), a teoria da evolução que inscreve o homem na

continuidade do animal e a revelação do inconsciente remetem o sujeito a uma

ignorância das razões superiores de seus atos. Não falamos mais do homem sem a

máquina, é um paradigma incontornável para pensar o mundo contemporâneo.

Considerações Finais

O corpo é o epicêntrico de tudo, o corpo é simbólico: queremos descobrir e

interpretar a nossa existência passamos a construir coisas, evoluímos cientificamente,

fazemos filhos, queremos dar qualidade a nossa existência, a vida se materializa no

corpo.

A professora-pesquisadora uspiana Maria do Rosário Silveira Porto (2009), em

conferência no Seminário Temático no Instituto de Educação da UFMT, citando Gaston

Bachelard disse que “o mundo não é dado conscientemente, mas resulta da mediação

simbólica estabelecida entre o homem e o mundo” mudei um pouco para ficar mais

claro. Temos os cinco sentidos para que aconteça essa relação homem/mundo, olfato,

paladar, visão, tato e audição que são os quais utilizamos para nossa sobrevivência e

estamos no mundo com o corpo. As coisas se não naturalizam: é o olhar direcionado

pela nossa cultura que nos obriga a ver este mundo, a representá-lo com as rubricas de

nossa existência, ou seja, do Homo sapiens-ludens-faber-dêmens, que somos.

Assim, pensamos na metáfora “Adeus ao corpo” como uma tentativa de nos

mostrar o que está por vir: mostra uma visão do presente e anuncia um futuro

transitando entre o real e o simbólico. Seria um aviso para observarmos mais os

movimentos tecnológicos, sociais, culturais e refletir sobre a forma de viver, de se

comportar e pensar? Os fatores econômicos, culturais, sociais entre outros têm um papel

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decisivo no comportamento de ser de cada grupo. Se a Etologia está certa em seu

aforismo, não é de se desperdiçar a sua deixa: os homens como animais, antes de serem

culturais, são mais naturais do que possamos imaginar.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias

vividas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2009.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus, 2003.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas

sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1987.

MONTAGU, Ashley. Tocar o significado humano da pele. São Paulo: Summus,

1988.

PORTO, Maria do Rosário Silveira. Corpo, Casa e Cosmos: os ritmos da vida.

(conferência) proferida no Seminário Temático “Símbolo, Imagem e Educação” no

PPGE/Instituto de Educação da UFMT. Cuiabá, 2009.

POSTMAN, Neil. O Fim da educação, redefinindo o valor da escola. Rio de Janeiro:

Editora Graphia, 2002.

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1

Introdução “Pensar o corpo é uma outra maneira de pensar o mundo e o vínculo social: qualquer confusão introduzida na configuração do corpo é uma confusão introduzida na coerência do mundo”. (Le Breton)

Para compreender melhor o comportamento e suas atribuições referentes ao

corpo, nesses tempos “pós-modernos”, observamos o seu abandono. Temos deixado o

corpo em standby, quando damos-lhe um adeus. Marcel Mauss (2008, p. 420) nos diz

que em toda sociedade, de hábito, as pessoas sabem o que devem saber ou aprender e

aquilo que devem fazer nas condições que dizem respeito ao corpo.

Naturalmente a vida social não é isenta de estupidez e anormalidades. Essa

estupidez de que fala Mauss pode ser notada nas falas e na própria expressão de ser de

cada indivíduo. Porém a pós-modernidade contribui para libertar os indivíduos dos

constrangimentos sociais próprios das sociedades tradicionais estáticas, onde não existe

inovação e contribui para que nas sociedades pós-modernas os indivíduos encontrem

cada vez maior expressão na sua individualidade o que contribui para uma crescente

democratização das sociedades.

O comportamento social faz parte da constituição da espécie humana, é uma

característica básica do ser humano. Essa socialidade conforme entende Michel

Maffesoli (1998, p. 48) se remete a um sentimento de comunidade que é marcada,

predominantemente pelo corpo coletivo sobre o individual do ser humano que acontece

pela via da comunicação e das linguagens, num processo de espaço partilhado. Essa

partilha possibilita aos indivíduos a possibilidade de ser e de existir, nesta socialidade

que sugere um comportamento orgânico, ou seja, o processo de surgimento de

interações sociais em comunidades de maneira que condiciona o surgimento de laços

sociais. Diferentes formações culturais emergem na medida em que surgem novos

processos de comunicação mediados por novos meios, acumulado em todos os ciclos

culturais.

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Parece que não existe mais um “corpo feliz”, se é que sempre existiu, e sim um

corpo atarefado, fatigado, fustigado, deprimido. Se não temos saúde, apelamos aos

medicamentos, suplementos e moderadores de apetites. A busca do corpo perfeito nos

faz apelar para técnicas de relaxamento, a medicamentos para dormir, a dietas

alimentares para emagrecer, para engordar, entre outros. Não paramos para pensar em

nosso corpo. Para Le Breton (2003, p. 34) “há um ódio social que se converte em um

ódio do corpo”, preocupamo-nos somente com a estética: o silicone, o botox, as

plásticas, a lipoaspiração constituem a sua melhor ocupação. Estamos sempre anexados

a uma prótese, num mundo que celebra essas mudanças, fazendo perder a forma

corporal. Estamos mais obesos, infelizes, hipertensos e não pensamos no corpo coletivo,

mas no corpo individual. Assim cada “eu” vai se arrastando como pode.

O antropólogo Ashley Montagu (1988, p. 19) assinala que “em virtude de nossa

progressiva sofisticação e falta de envolvimento recíproco passamos [...] a excluir de

nossa experiência o universo da comunicação não-verbal, para o nosso acentuado

empobrecimento”. Para esse autor há na “ocidentalização do corpo” (grifo nosso), uma

ausência de toque. Essa falta de pele a que ele se refere pode ser vista em nossos dias

dentro de apertados elevadores, em condomínios das grandes cidades, em filas de

bancos, em salas de consultórios, em casas de show. Abarrotados de pessoas esses

espaços ditam uma corporeidade e afinam uma “técnica corporal” para ser caro a

expressão cunhada por Mauss, que elimina qualquer possibilidade de toque, qualquer

experiência de pele. Essa etologia coincide com o título da obra “sociedade

individualizada” de Zygmunt Bauman (2009) que pode nos ajudar a interpretar melhor

essa conduta. Os mass media têm sido o porta-voz dessa nova mentalidade. Será que o

mundo não tem mais saída? O que podemos fazer? É possível inverter essa situação?

Toda produção tem uma linha de tempo e a produção dos tempos pós-modernos é

orientada pela tecnologia, que para Le Breton (2003, p. 31) “o próprio sujeito é o

mestre-de-obras que decide a orientação de sua existência”. Com isso passamos a usar

da ciência, porque sentimos mais confortáveis. Temos muito em comum com o século

passado, porém olhares e fazeres diferentes. Alguns valores mudaram, como os tabus

corporais que eram orientados por princípios míticos (ciclo menstrual, reprodução, uso

de cosméticos...) outros permaneceram (respeito aos mais velhos, crença na ciência,

esperança no futuro...), mas o mais gritante tem a ver com o modus operandi de nosso

cotidiano.

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A relação do homem consigo mesmo e com o mundo vem mudando, a revolução

sexual, o body-art, a crítica do esporte são parte desse novo imaginário do corpo na

sociedade onde temos, por exemplo, o homossexualismo o lesbianismo e grupos

simpatizantes, tantas “tribos” entre outros. Para Le Breton, o “transexualismo” seria

uma marca corporal, pois “a marca corporal traduz a necessidade de completar, por

iniciativa pessoal, um corpo que não chega a incorporar/encarnar a identidade pessoal”

(2003, p. 40). O Corpo é fabricado, rascunhado. Porque os corpos são feitos,

inventados, por tudo que se diz do indivíduo, sobre o indivíduo, para o indivíduo, ao

indivíduo. É certo que o ser humano sempre modificou seu corpo de alguma forma nas

mais diferentes sociedades, e que essas modificações são como signos da eterna tensão

entre cultura e natureza.

No filme “2001, Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick (1968), os

movimentos dos Homo sapiens, que mostram a disputa pela territorialidade e a

afirmação do bando, se deslocam para a descoberta da ferramenta, a partir de um fêmur

de uma carcaça de zebra, pela via da linguagem não-verbal. Nesse momento, parece que

quer nos dizer Kubrick que nos tornamos homo-sapiens-faber-demens, porque

passamos a desenvolver novas técnicas corporais como andar, falar, sentar, copular,

vestir, comer, agrupar-se, caminhar, correr, enfim adquirir novos padrões de

comportamento que perduram no em nosso processo de humanização.

Essas rubricas humanas nos põem de pé frente a uma questão paradoxal: o sentar

que é um ato de perduração pode ter na invenção do utensílio cadeira duas condutas de

sentidos e significados opostos ― a mesma cadeira que nos acomoda também nos

desestrutura, causando-nos um problema de postura (a escoliose nos bancos escolares).

Como símbolo de poder, quando, ao sentarmos nela, ficamos investidos de um

determinado papel social: rei ou imperador, juiz, professor ou presidente de uma

empresa. Portanto, também nos dá poder. A cópula que nos diviniza por assim realizar o

mistério da reprodução, também nos desgraça se nos contaminarmos com doenças

sexualmente transmissíveis. Isto é, o mesmo ato que pode revelar uma nova vida, pode

também nos levar à morte. O alimento nos dignifica, traduz a nossa face de um deus

criador, mantém a nossa existência em equilíbrio, mas também pode nos tornar obesos,

hipertensos, diabéticos. A caminhada e a corrida que nos proporcionam um bem-estar

(wellness), para ficar em paz com o modismo do termo, se feitas de forma errada sem

calçados e vestimentas apropriados em lugares e horários não favoráveis, nos causam

problemas em nossa estrutura: luxações, tendinites, torções, desidratação entre outros.

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Algumas dessas “técnicas” só são solicitadas raramente no cotidiano, através de

atividades físicas para a manutenção da saúde.

Para o pensador Le Breton (2003, p. 21.), o corpo torna-se objeto de

preocupação, “a humanidade urbanizada torna-se uma humanidade sentada” Algumas

pessoas programam caminhadas para manter sua forma física, outros preferem andar de

automóveis, e tem aqueles que ficam o dia todo sentado à frente da TV, ditando que os

computadores e videogames são objetos que estimulam o desligamento do convívio

social e até mesmo de sua própria existência, o que, para Le Breton, acarreta em

implicações num corpo não mais como o centro irradiante da existência, mas como um

elemento negligenciável da presença.

O corpo é visto como uma massa de modelar, socialmente modulável, uma vez

vivido conforme o estilo de vida de cada “indivíduo individualizado”, como diz

Bauman. Mudando o corpo tende-se a mudar a sua vida e assim, submetido a um design

de cirurgias plásticas, marcas corporais, transexualismo, próteses sofisticadíssimas...

traz uma idéia de liberdade arbitrado pelo modificar-se indiscriminadamente. Com esse

leiaute “insólito”, na solitude de cada corpo, os indivíduos vão agora encontrar outros

corpos (grifo nosso) igualmente solitários e voltam, segundo Bauman (2009) “para casa

com a confiança renovada em sua própria solidão”.

É notável que cada época estabelece um modelo de corpo, levando em

consideração os valores, as crenças, os mitos e as exigências ditados pelos interesses

sócio-culturais de cada sociedade. As pessoas não se contentam com o corpo que se

tem, querem complementá-lo, modificá-lo, conforme suas idéias. Afinal essa nova era

trouxe a permissão de liberdade. Essa é uma das primeiras suspeitas do corpo: a vontade

de modificar-se ao olhar sobre si mesmo e ao olhar do outro para se sentir indivíduo,

dono de sua própria identidade.

A cirurgia estética opera no imaginário e tende a uma relação homem/mundo, e

assim passa-se a ter presença e uma identidade ostentada. Corpo “máquina perfeita”

mais que corpo e que concepção de corpo, estamos buscando ao longo de nossa história.

À reflexão, no entanto, sobre as transformações que ocorreram ao longo do século XX,

percebemos mudanças na forma como vivemos e pensamos nosso corpo. A própria

antropologia vem apresentando modificações significativas com importante repercussão

sobre os conceitos de corpo, cultura e natureza, que se completam para melhor

descrição do que vem a ser corpo.

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A dedicação ao cuidado do corpo exacerbou-se, mormente nos aspectos

meramente físicos, tornando-o um outdoor que antecede a própria comunicação verbal

do indivíduo. O corpo comunica mais do que o próprio indivíduo e é por meio do corpo

que se dá a percepção de mundo exterior.

Para Le Breton (2003, p. 87): “O homem tem uma deficiência visível, desperta a

fantasia da fragmentação do corpo que habita muitos pesadelos”. Essa deficiência

visível a que se refere o autor é suscitada pelos mass media e realiza suas fantasias mais

íntimas, nunca antes pensadas ou vividas, ou até mesmo uma relação com seu próprio

corpo, o desejo de bem-estar consigo mesmo.

O corpo tem seu significado dentro de um contexto social: saúde, força,

identidade, estética, qualidade de vida e beleza são as suas melhores “narrativas”. Neil

Postman (2002, p. 14) adota o termo “narrativa”, quando se refere à educação,

sinonimizando-o a um deus, não para dar sentido ao mundo e nem para descrevê-lo

cientificamente, mas para organizar a vida em torno dele. A medida dessa organização

não está na verdade e nem na falsidade, mas na garantia de dar às pessoas um

sentimento de identidade pessoal, um sentimento de vida comunitária, uma base de

conduta moral. Talvez esteja aí a explicação das renitentes idas dos indivíduos à agora

para encontrar outros indivíduos.

É dentro desse contexto que o corpo passa a ser cultuado, muitas vezes exige

sacrifícios, submetendo-se a um ritual de pathos (sofrimento) para se ter uma inserção

social. A imagem corporal tem representado a aceitação ou não do indivíduo em todas

as esferas: social, cultural, política e econômica.

O espaço cibernético afasta o indivíduo do tempo e do espaço, o corpo se apaga

restando assim apenas a comunicação, mas sem o corpo, sem o rosto, a mente se libera

do corpo, de seus limites e dá força aos pensamentos. A única forma de toque de pele

são as mãos que podem tocar o teclado e a única imagem é a tela do computador, o

corpo é transportado do mundo físico para um mundo metafísico, um mundo simbólico,

onde deficientes e doentes se movem, magros e obesos se transformam, negros e

brancos se misturam em suas cores, crianças e adultos se confundem, os mais velhos se

tornam jovens, tornando um momento de igualdade, pondo o corpo entre parênteses, e

se entrega a essa vida virtual, com emoções, paixões, medos que reproduzem os valores

da sua existência. Mas o mundo fictício é um mundo sem carne, nos dá proteção e nos

tira do mundo real: talvez esteja aí a procura de viver “o mito do indivíduo perfeito”.

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O corpo é pensado como simples suporte da pessoa, as peças podem ser

substituídas, tanto por motivos terapêuticos como por conveniência pessoal. O

indivíduo é visto através de uma lente cultural. Há uma idealização da imagem corporal

como padrão que deverá ser seguido.

Segundo Le Breton (2003, p. 23), “alguns biólogos até sonham em eliminar a

mulher de toda a gestação graças à incubadora artificial.” Com isso poderá o homem

engravidar como já mencionam, com a possibilidade de implantar embriões em sua

parede abdominal e gestar, processo que seria assistido por médicos, dando à luz por

meio de obstetrícia cesariana. É sabido que todos nós somos embriões vencedores que

“deram certo”; a única diferença é que não fomos congelados. Os pesquisadores e

médicos consideram possível essa realização. Existem hoje muitos homens preocupados

com sua identidade desejada de mulher. Seria uma igualdade dos sexos a qual nós já

vemos hoje no mundo virtual?

A medicina intervém para dominar a vida e controlar os dados genéticos; acaba

com o medo da AIDS, das doenças sexualmente transmissíveis e até mesmo com o

cansaço. No espaço cibernético pode-se até ficar livre das doenças, mas não se está livre

do cansaço do corpo, da mente, da fome, do sono, das doenças ou da deficiência.

Le Breton arremata descrevendo que “o corpo é escaneado, purificado, gerado,

remanejado, renaturado, artificializado, recodificado geneticamente decomposto e

reconstruído ou eliminado, estigmatizado em nome do “espírito” ou do “gene ruim”.

(2003, p. 26). O corpo é hoje um desafio importante e fundamental para a nossa

sociedade pós-moderna. Estamos carregados de marcantes símbolos culturais que

terminam por diferenciar, agrupar, classificar e ordenar os sujeitos e seus corpos. Todo

nosso agir, falar, sentir, andar e pensar representa o modus vivendi de uma vida

diferente de um determinado grupo social.

As tatuagens e os piercings são marcas corporais que implicam numa vontade de

atrair o olhar, de fabricar uma estética da presença do hic et nunc. São instaladas em

diversos pontos das orelhas, da boca, do nariz, da língua, nos mamilos, no umbigo, nos

órgãos genitais (masculino e feminino) para aumentar o prazer na relação sexual,

sobrancelhas. Essas partes do corpo ficam privilegiadas por aqueles que usam. A

tatuagem é um sinal visível na pele feita por uma injeção de uma matéria colorida na

derme. Ela é diferente da maquiagem feminina que é direcionada ao rosto, é definitiva e

é tanto para homem quanto para mulher, e pode ser feita no corpo, ombro, braço, peito,

pernas, costas, mas raramente no rosto.

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Encontramos muito essas marcas corporais nas “tribos urbanas”, por exemplo,

entre os Punks: jovens que se vestem de maneira chocante, usam cabelos coloridos e

enfeites de metal e protestam contra tudo que é convencional, rebelde. Para a cultura

cyberpunk não existe limites para a liberdade de informação de dados, entre outros,

hard rock, Techno, grunge, bikers, gays... que vêm se propagando ao entorno da

“sociedade oficial” (grifo nosso), fazendo multiplicar os espaços (estúdios) de tatuagem

e piercing. Simbólico, desenhado ou acoplado sobre a pele, é um sinal de identidade.

Segundo Le Breton (2003, p. 15): “O corpo é normalmente colocado como um alter ego

consagrado ao rancor dos cientistas” Corpo esse que encarna à maneira de um objeto,

esvaziado de seu caráter simbólico, perdendo o seu valor. O corpo nada mais é que um

rascunho a ser corrigido, uma imagem no foto shop a ser arrumado.

Le Breton nos diz que um dicionário moderno de idéias feitas escreveria hoje no

verbete corpo: “uma máquina maravilhosa”. Nós não aludimos a máquina ao corpo e

sim o corpo à máquina. Se o corpo não estiver ligado à máquina nada mais ele é. Esse

“corpo máquina” para os médicos envelhece, perde a sua forma, adquire lesões, doenças

e a morte que o corpo sofre pela sua perfeição, a dor (pathos), o prazer, as emoções são

perdidas, morrem mesmo antes de nascer, passa a ser simbólico social. Já a máquina é

sempre fixa, nada vai alterar, mas ela não morre, porque sua morte é simbólica, vai para

oficina, passa um antivírus, troca-se seu chip, substitui seu software ou é substituída por

outra.

A humanidade não se encontra isolada, está sempre em contato com outros sítios

de relacionamentos: chat, msn, Orkut, octop... e satisfaz aqueles que buscam uma

interação cotidiana. Para Le Breton (2003, p. 221), interpretando Descartes, “abandonar

a densidade do corpo seria abandonar a carne do mundo, perder o sabor das coisas” e

ainda afirma que o homem está enraizado em seu corpo para o melhor e para o pior.

Enraizado significa que estamos agregados aos nossos valores, à nossa cultura.

Le Breton fala sobre a atualidade, chamando a atenção em nossa cibercultura e

como nos tornamos maquinizados, e tudo isso é uma aprendizagem, seja ela tradicional

ou atual. Sua análise se estrutura de fora para dentro, começa na pele para chegar aos

genes ou, mais além, à abstração de um corpo inexistente, um sujeito que se desvincula

do corpo material no mundo da cibercultura.

Vemos as criações de andróides que foram feitas por engenheiros homens, e não

por mulheres; isso nos faz levar a um pensamento que o homem teria ódio ao corpo, à

sexualidade e aos sentimentos. Podemos ver essas criações nos filmes, desenhos e

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podemos citar alguns deles: Robocop, Exterminador do Futuro, o 5º Elemento, Matrix,

Power Ranger’s, Zi o Andróide.

Le Breton propõe que pensemos o próprio homem contemporâneo como um

cyborg. Foi implantada nos andróides uma memória fictícia que lhes dá a ilusão de ter

tido uma infância, pais, uma história de vida. O filme “O Homem Bicentenário” é um

outro exemplo: o seu corpo tomado de sentimentos revela o segredo de sua existência.

Le Breton nos faz uma pergunta “sou um homem ou uma máquina?

A tecnologia tem alimentado a totalidade da relação com o mundo do homem,

da psicofarmacologia aos meios de comunicação, das próteses às técnicas da vida

cotidiana. Para Freud (op. cit., p. 206), a teoria da evolução que inscreve o homem na

continuidade do animal e a revelação do inconsciente remetem o sujeito a uma

ignorância das razões superiores de seus atos. Não falamos mais do homem sem a

máquina, é um paradigma incontornável para pensar o mundo contemporâneo.

Considerações Finais

O corpo é o epicêntrico de tudo, o corpo é simbólico: queremos descobrir e

interpretar a nossa existência passamos a construir coisas, evoluímos cientificamente,

fazemos filhos, queremos dar qualidade a nossa existência, a vida se materializa no

corpo.

A professora-pesquisadora uspiana Maria do Rosário Silveira Porto (2009), em

conferência no Seminário Temático no Instituto de Educação da UFMT, citando Gaston

Bachelard disse que “o mundo não é dado conscientemente, mas resulta da mediação

simbólica estabelecida entre o homem e o mundo” mudei um pouco para ficar mais

claro. Temos os cinco sentidos para que aconteça essa relação homem/mundo, olfato,

paladar, visão, tato e audição que são os quais utilizamos para nossa sobrevivência e

estamos no mundo com o corpo. As coisas se não naturalizam: é o olhar direcionado

pela nossa cultura que nos obriga a ver este mundo, a representá-lo com as rubricas de

nossa existência, ou seja, do Homo sapiens-ludens-faber-dêmens, que somos.

Assim, pensamos na metáfora “Adeus ao corpo” como uma tentativa de nos

mostrar o que está por vir: mostra uma visão do presente e anuncia um futuro

transitando entre o real e o simbólico. Seria um aviso para observarmos mais os

movimentos tecnológicos, sociais, culturais e refletir sobre a forma de viver, de se

comportar e pensar? Os fatores econômicos, culturais, sociais entre outros têm um papel

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decisivo no comportamento de ser de cada grupo. Se a Etologia está certa em seu

aforismo, não é de se desperdiçar a sua deixa: os homens como animais, antes de serem

culturais, são mais naturais do que possamos imaginar.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias

vividas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2009.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus, 2003.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas

sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1987.

MONTAGU, Ashley. Tocar o significado humano da pele. São Paulo: Summus,

1988.

PORTO, Maria do Rosário Silveira. Corpo, Casa e Cosmos: os ritmos da vida.

(conferência) proferida no Seminário Temático “Símbolo, Imagem e Educação” no

PPGE/Instituto de Educação da UFMT. Cuiabá, 2009.

POSTMAN, Neil. O Fim da educação, redefinindo o valor da escola. Rio de Janeiro:

Editora Graphia, 2002.