A Linguagem de Beckett - Introdução

download A Linguagem de Beckett - Introdução

of 4

Transcript of A Linguagem de Beckett - Introdução

  • 7/27/2019 A Linguagem de Beckett - Introduo

    1/4

    Introduo

    Clia Berrettini

    Introduo1

    Entre os dramaturgos da dcada de 50, o irlands Samuel Beckett , sem dvida, o de obra mais rica,profunda e complexa, o que lhe garantiu, com justia, o prmio Nobel, em 1969. Se com Ionesco e Adamov, entreoutros, viveu a poca conturbada da guerra, e a no menos agitada e confusa aps-guerra, quem, certamente,com maior originalidade, exprimiu sua posio diante da vida e do universo, usando de trgicas notas, deprofundas ressonncias, e cuja universalidade lhe tem valido uma audincia internacional. Atestam-no asfreqentes encenaes, em distintos pases e para os mais diversos pblicos.

    Beckett, o grande trgico do sculo XX, que pinta o absurdo da condio humana, as grandes dificuldadesdo homem moderno, sem absoluto, sem Deus, completamente desamparado num universo hostil, desprovido dequalquer sentido, um moderno clssico. Um moderno clssico que lana mo de procedimentos modernos, mastambm antigos e mesmo arcaicos. Inspiram-no o mimus antigo, a Commedia dell'Arte, os bufes da Idade Mdia,as cmicas personagens shakespearianas, a literature of verbal nonsense, o surrealismo, o music-hallanglo-ame-ricano, os filmes de Laurel e Hardy, de Carlitos, de Buster Keaton e dos Irmos Marx. o teatro beckettiano umteatro novo, antitradicional, que tem tambm sido designado por: teatro do absurdo, teatro de protesto, metateatro,farsa metafsica, comdia sombria, tragicomdia moderna, teatro apocalptico, teatro de choque, teatro daderriso, teatro da condio humana, ou mesmo ateatro, a exemplo do termo aliteratura, na medida em que ostermos teatro e literatura indicam formas esclerosadas, trazendo em si um sentido pejorativo. Teatro novo, anti-tradicional, mas que , paradoxalmente, um teatro tradicional, pela sua identidade com o passado. E, se bem quesejam vlidas e plausveis todas as designaes assinaladas, preferimos a do Teatro da Condio Humana, pois este o seu grande tema, compreendendo uma srie de temas eternos e modernos.

    A vida, feita de incomodidade, de sofrimento, de solido, de incomunicabilidade, com o malogro do amor eda amizade; a vida, feita da destruio da esperana, do malogro da cincia, enfim, da angstia, da misria dohomem num universo ilgico, inspito, hostil, lgubre, vazio. Isto o teatro beckettiano: a ilustrao da condiohumana, simbolizada por Vladimir e Estragon, Pozzo e Lucky, personagens daquela primeira obra-prima do autor -Esperando Godot (En attendant Godot, encenada em 1953) -, e cujos nomes, por sua origem eslava, francesa,italiana e inglesa respectivamente, parecem universalizar sua condio de homem e no indicar individualidades;simbolizada ainda pelos enfermos Hamm, Clov, Nagg e NelI, de Fim de Jogo (Fin de Partie, estreada em 1957);ou pelos solitrios Krapp de A ltima Gravao (La derniere bande, levada ao palco em 1958), Winnie de Oh osBelos Dias (Oh les beaux jours, encenada em 1961) ou ainda Henry da pea radiofnica Cinzas (Cendres, criadaem 1959), para citarmos apenas alguns dos mais conhecidos seres beckettianos.

    Folheando ao acaso certas obras, deparamo-nos com falas que contm esses temas bsicos e que,mesmo isoladas no contexto, no perdem sua carga expressiva: o protesto do homem diante do universo, diantede sua condio, e da qual no h forma de evadir-se. Em Fim de Jogo, lemos: "Mas reflita, reflita, voc est naterra, sem remdio!" (p. 73). o homem preso sua condio de homem; nada pode salv-lo. o irreme divel,o insanvel!

    Ainda em Fim de Jogo, parodiando o racionalista Descartes, numa amarga e desiludida reinterpretao doser humano, e das suas reais possibilidades, lemos:

    - Ele chora.- Portanto ele vive.

    Vida, sinnimo de sofrimento; vida, sinnimo de priso, de irremedivel enclausuramento, desde o abrir dos olhosdiante do universo. E o dilogo continua, sem vislumbre de otimismo:

    - Voc j teve alguma vez um instante de felicidade?

    - No, no meu conhecimento (p. 85).

    Embora a solido no seja prerrogativa das personagens beckettianas ou das de qualquer outrodramaturgo do absurdo, posto que j a ilustrara a gerao anterior - a de Sartre e Camus, por exemplo -, vai serela agora retratada de peculiar maneira. A solido do Orestes de Sartre em As Moscas, ou da protagonista deAntgona de Anouilh lhes conferia uma aurola de grandeza, enquanto a solido das personagens dosdramaturgos da dcada de 50 - e, entre eles, de Beckett - se manifesta como uma espcie de doena que asatinge profundamente, sem transmitir-lhes nenhuma elevao ou glria. Aparece traduzida fisicamente,concretamente, e materializada inclusive atravs do cenrio.

    A solido - ainda que as personagens surjam freqentemente em par - o tema beckettiano por exce-lncia. Estragon e Vladimir, os dois protagonistas daquela obra que um autntico marco na Histria do Teatro,no se sentem menos solitrios, embora juntos e espera de Godot; amigos e inseparveis no infortnio, nemassim desaparece sua solido. O desgaste da vida destri-lhes a cordialidade; se vivem lado a lado, porque pior

    1 BERRETTINI, Clia.A Linguagem de Beckett, So Paulo: Perspectiva, 1977.1

  • 7/27/2019 A Linguagem de Beckett - Introduo

    2/4

    Introduo

    Clia Berrettini

    seria a total solido fsica. A vida a dois acentua-lhes talvez mais o isolamento, uma vez que a comunicao nemsempre possvel. Tentam entabular dilogo, porm este logo se esgota, caindo num arrasador e fatal silncio,como a significar que cada ser prisioneiro de suas idias e idiossincrasias, e isto por mais que procure abrir-seao outro, acolhendo-o ou oferecendo-se-lhe. A atividade verbal no consegue fazer diluir a solido que os envolve;no passa de simulacro de dilogo, pois o monlogo continua, acentuando-se o carter trgico da solido a dois.

    Se Estragon se aproxima de Vladimir atravs do contato fsico, este prontamente repelido, de ambos oslados, numa traduo visvel da natural separao entre os homens. Diz ele:

    Vejamos, Didi. (Silncio.) Me d a mo! (Vladimir se volta.) Me d um abrao! (Vladimir fica rgido.) Deixe que eu oabrace! (Vladimir se distende. Abraam-se. Estragon recua.) Voc fede a alho! (p. 21).

    Impossvel a aproximao, a boa comunicao. Mas impossvel tambm a separao, criando-se verdadeiroimpasse, sem soluo, profundamente aniquilador, como quando Estragon lana ao outro um grito repleto deangstia:

    No me toque! No me pea nada! No me diga nada! Fique comigo! (p. 81).

    Atrao e repulso. Atroz constatao da necessidade de companhia, ainda que no a queira. a trgicaincomunicabilidade entre os seres, uma das constantes do pensamento beckettiano, encontrvel em romances -Mercier e Camier, que o antecedente mais prximo de Esperando Godot, com seus dois miserveis

    protagonistas, sempre juntos, mas que se separam no final -, e em ensaios, sobretudo em Proust. Neste ltimo,lemos que dois seres so "dois dinamismos separados e imanentes que no so ligados por nenhum sistema desincronizao"; e ainda: "a tentativa de comunicao quando no possvel nenhuma comunicao simplesmente um vulgar arremedo ou uma horrvel comdia". a comdia que ele, Beckett, ilustra atravs desuas personagens e suas frustradoras tentativas de aproximao... Ou a tragdia de seres que se dilaceram numrelacionamento sado-masoquista, transformando a solido em sofrimento - a dor a substituir outra dor.

    As personagens se caracterizam pela dor, pela solido, pela angstia, pelo desespero, pela decadnciafsica, pela runa, enfim. Beckett "este profeta de u sculo desesperador", na opinio de Pierre de Boisdeffre (His-toire vivante de Ia littrature d'aujourd'hui, p. 340), vem desumanizando paulatinamente suas criaturas, no que seope a Ionesco, que evolui em sentido inverso. Vladimir e Estragon ainda eram seres humanos que esperavamalgo ou algum, mas as quatro personagens de Fim de Jogo - Hamm, cego e paraltico; Nagg e NelI, seus pais,sem pernas e sempre recolhidos em latas de lixo; Clov, impossibilitado de sentar-se - so antes restos de criaturashumanas. Se os dois primeiros ainda esperavam Godot - Deus, algum ou algo para aliviar-lhes o sofrimento j os

    quatro seguintes nada esperam. o ceticismo de Hamm, ao gritar violentamente a uma das personagens dahistria que ele narra: "Mas enfim qual sua esperana? Que a terra renasa primavera? Que o mar e os rios setomem novamente cheios de peixes? Que ainda haja man no cu para os imbecis como voc?" (p. 73). Ou talvezapenas esperem a morte liberadora de sua desprezvel condio, uma vez que "- Toda a casa fede a cadver. -Todo o universo" (p. 65). E as primeiras palavras da pea espelham a desagregao reinante: "Acabado, estacabado, isto vai acabar, isto vai talvez acabar". a total desesperana, pois se Hamm se dirige a Deus, logoaps o renega, dizendo: "O sujo! Ele no existe" (p. 76). Nem fim, nem renovao. O Nada.

    Seres-troncos: Nagg, NelI e Winnie; seres enfermos: Dan, da pea radiofnica Todos os que Caem (Tollsceux qui tombent), um rebotalho humano com sua cegueira e seu corao desfalecente; Krapp mope e quasesurdo... a decadncia fsica, a mutilao, o depauperamento gradativo do organismo, seja no teatro, seja noromance, com Malone estendido no seu leito, em Malone Morre (Malone meurt) ou com Mahood, o homem sempernas de O Sem Nome (L'Innommable), formando as personagens uma verdadeira "galeria de mortos", segundoo prprio autor, pois atravs da obra desfilam: paralisia, cegueira, tumores e outras enfermidades. O homem

    beckettiano um ser em processo de desagregao e no um ser normal: a normalidade parece ter sido extintado universo como uma espcie de cegueira de si prprio. Ou talvez seja ainda a maneira de representar a marchaprogressiva da decadncia fsica das criaturas num mundo sem ressonncia espiritual. Onde os valoresespirituais, se o homem est preso ao corpo e s suas funes e necessidades? Homem-matria, matria emdecomposio, nauseabunda; "heri" deplorvel de um mundo absurdo, fechado, sem sada. Homem infeliz.

    A expresso beckettiana do sofrimento lembra em certa medida - a de Camus, atravs de Calgula, aodar-se este conta do absurdo existencial. "Os homens morrem e no so felizes", dizia ele, pretendendo alcanara lua, isto , o impossvel (pp. 27-8). E Estragon e Vladimir tambm sentem a inviabilidade da supresso dainfelicidade, do sofrimento, da dor do mundo; mas isso os leva a pensarem no liberador suicdio, uma vez queGodot, o to esperado Godot no vem. Referem-se em vrias ocasies inteno de sair da vida, embora nochegue a concretizar-se tal idia, o mesmo se dando om o protagonista da pantomima Ato Sem Palavras I (ActeSans Paroles I). como se, atrados pelo sonho de *ma sada liberadora, sentissem ao mesmo tempo uma in. on-fessada esperana, ou talvez o medo diante do igno ado alm. Na terra, tudo vai mal; e, para alm da te ra? a

    angstia em face do mistrio da existncia e traterrena que ainda prende o homem beckettiano a ste planeta queno lhe traz seno sofrimentos e cuja ida se resume em: nascer-sofrer-morrer, nada justificando sua vinda ao

    2

  • 7/27/2019 A Linguagem de Beckett - Introduo

    3/4

    Introduo

    Clia Berrettini

    mundo. a angstia metafsica, uma vez que as ardentes e sempre novas perguntas que o homem se fazpermanecem sem resposta; no pode haver resposta lgica, satisfatria, definitiva.

    Esta noo do absurdo da existncia que, desde Le Mythe de Sisyphe de Camus se tornou um ldimoclich, e contra o qual Ionesco posteriormente se pronunciou, encontra em Beckett seu grande ilustrador: odramaturgo do absurdo metafsico - que provm menos da natureza do homem que de sua situao no universo.Muitas so as falas de suas personagens que expressam tal preocupao, como as que transcrevemos por nosparecerem fundamentais. So as personagens que se perguntam sobre o porqu de sua permanncia na terra,

    sobre o que devem fazer, numa ntida imagem de sua angstia:

    Para que que eu sirvo? (Fim de Jogo, p. 79).Ento, que fazer? (Esperando Godot, p. 22).

    Proferem desalentadas afirmaes quanto vinda e situao do homem na terra, tais como:

    Que fazemos, aqui, o que devemos nos perguntar (Esperando Godot, p. 112).Elas do luz a cavalo sobre uma sepultura, o dia brilha um instante, depois a noite novamente (Esperando Godot,

    p. 126).O fim est no comeo e no entanto continuamos (Fim de Jogo, p. 91).

    De entre os chamados dramaturgos do absurdo realmente Beckett o que mais se revela obcecado como problema do homem no universo. E, se seus temas no so novos, nova porm a maneira pela qual osexprime, se bem que lanando mo de procedimentos antigos submetidos a uma original amlgama. Se Camusadota no teatro uma linguagem tradicional; se Montherlant segue, via de regra, a linha raciniana na expresso doabsurdo, j Beckett, com mpar originalidade, associa sua viso metafsica esttica, une o trgico e o farsesco,cultivando a farsa metafsica. Se a consciel1tizao da condio humana, por sua total desesperana, profundamente trgica, j a sua ilustrao no teatro aparece desprovida de sentido, tal uma grotesca farsa. E assim que uma das personagens de Fim de Jogo comenta a comicidade da desgraa, recebendo aprovadoraresposta:

    - Nada mais cmico que a infelicidade (...)- Sim, sim, a coisa mais cmica do mundo (p. 33).

    A obra beckettiana a tragdia farsesca ou a farsa trgica do homem, heri que expia o pecado,imperdovel, de haver nascido: heri exilado na terra, a expiar o pecado original. Ou, para utilizarmos as palavras

    do prprio autor, no j citado ensaio sobre Proust: "A tragdia' a narrao de uma expiao, mas no a expiaomiservel de uma infrao a um cdigo local organizado pelos valetes para os loucos". E acrescenta que "a figuratrgica representa a expiao do pecado original, de seu pecado original e eterno, dele e de todos os seus, sociimalorum, o pecado de haver nascido" (p. 49).

    Nascer a maior infelicidade; nascer no receber o dia, a luz, }Das sim a noite, as trevas, como dizsarcasticamente Molloy, protagonista do romance com o mesmo nome. Ao referir-se me, diz ele: "Aquela queme havia dado a noite" (p. 45). E isso porque, como j vimos repetindo, viver sofrer. Tudo se resume, como dizimagisticamente Vladimir: "A cavalo sobre uma tumba e um nascimento difcil. Do fundo do buraco, sonhadora-mente, o coveiro aplica seus ferros. Temos o tempo de envelhecer. O ar est repleto de nossos gritos. (Eleescuta.) Mas o hbito uma grande surdina" (p. 128). Amargura, pranto, morte, decorrncia do mal do nascimento- a vida. E ridiculariza Beckett o amor fsico, o instinto de procriao. Hamm e Clov, entre outras personagens,exprimem profunda averso a que a vida continue ou renasa: o primeiro, ao saber, por Clov, da existncia deuma pulga viva, diz preocupado: "A humanidade poderia reconstituir-se" (p. 50); e o segundo, ao ver um menino,pela janela, tem. a inteno de exterminar "o procriador em potncia" (p. 105).

    Se Esperando Godot mostrava humanidade o trajeto de algo assim como uma espcie de viagematravs da noite - viagem quase esttica, em que os viajantes passavam da espera ao desnimo porque Godotno chegava, e eram obrigados a arrastar o fardo de uma espera sem esperana; se Esperando Godotexprimia alenta, dolorosa crucifixo dos viajantes naquele longo percurso atravs da noite, vtimas da solido porque, sebem que amigos, cada um se encontra s em face de seu destino particular, j Fim de Jogo o quadro da vida,tendo: de um lado, a eterna maldio dos filhos que no pediram o nascimento e, do outro, a mentirosa mentirados pais que julgam ter procriado para o futuro. Quadro da histria da humanidade, com a maldosa separaoentre fortes e fracos - Hamm, o dspota; e Clov, o submisso (como tambm seria o caso de Pozzo e Lucky).Painel da condio humana, com a vaidade das realizaes; pavorosa imagem do universo em desagregao,produto de uma poca que no animada pela f num absoluto. Misria do homem sem Deus, sem esperana,vazio. E mesmo Oh os Belos Dias, com seu alegre e otimista ttulo, no deixa de ilustrar a vida melanclica,desoladora, absurda: Winnie, que quer vencer os "borbotes de melancolia", inventariando seus "bens" - todos osmidos objetos de sua bolsa-sacola - e falando sem trgua, num cmico e dilacerante monlogo (o marido est

    3

  • 7/27/2019 A Linguagem de Beckett - Introduo

    4/4

    Introduo

    Clia Berrettini

    praticamente invisvel e mudo) se eleva a smbolo da solido e da usura da vida. Suas frases joviais, repetidasinsistentemente, so, no fundo, tristes como se ela se esforasse tal uma criana - por espantar o mal que ainiquila gradativamente, tentando aplacar as divindades infernais. E seus gestos, inteis, bem ilustram a frivolidadeda agitao, e a falta de sentido dos atos humanos.

    Viso trgica do homem e do universo muitos autores a tiveram e a tm. Mas a de Beckett talvez a maistrgica, pois nela, como o notou Ionesco, " a totalidade da condio humana que entra em jogo, e no o homemde tal ou tal sociedade" (citado por Pierre Mlse, Beckett, p. 156), havendo ruptura com o didatismo, o

    engajamento e a ideologia caracterizada, seja religiosa como a de Claudel, seja poltico-filosfica como a deSartre. Ensaios, poesias, romances, novelas, contos, peas para o teatro, rdio e televiso revelam,incansavelmente, suas preocupaes - o homem e sua condio - expressas atravs de uma linguagem cujoselementos tentaremos precisar neste breve estudo, que focaliza apenas as peas e um curto filme mudo.

    4