A Linguagem Moderna Da Arquitetura

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Bruno Zevi A Linguagem Moderna da arquitetura ZEVI, Bruno. A L inguage m M oderna da Ar quitetura  , Lisboa: Dom Quixote, 1984

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Bruno Zevi

A Linguagem

Moderna daarquitetura

ZEVI, Bruno. A L inguagem M oderna da Arquitetura , Lisboa: DomQuixote, 1984

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INTRODUÇÃOFalar arquiteto

Em 1964 John Summerson publica um pequeno livro intitulado The Classical Language of

 Architecture, que foi traduzido seguidamente para diversas Ínguas. Durante dez anos aguardei o seunatural e indispensável complemento: The Anti-Classical Language of Architecture ou, melhor dito,The Modem Language of Architecture, mas nem Summerson nem ninguém o escreveu. Por quê?

Muitas são as razões que se podem intuir, mas todas elas pouco elucidativas. Contudo, a lacuna será preenchida: é uma tarefa inadiável, de todas a mais urgente para a cultura histórico-crítica; o nossoatraso é já considerável.

Sem uma língua não se pode falar. Mais ainda, sabe-se bem que a língua «nos fala» no sentidoem que oferece instrumentos de comunicação sem os quais não seria possível sequer a própriaelaboração dos pensamentos. Pois bem, no decurso dos séculos codificou-se uma única línguaarquitectônica: a do classicismo. Todas as outras, subtraídas ao processo redutor necessário para seconverterem em língua, consideraram-se exceções à regra clássica e não altemativas dotadas de vidaautônoma. Também arquitetura modema, surgida como antítese polemica do neoclassicismo, ao nãose estruturar em língua, corre o risco de retroceder até aos já gastos arquétipos Beaux-Arts, uma vezesgotado ciclo da vanguarda.

Eis uma situação incrível e absurda. Estamos a dilapidar um colossal patrimônio expressivo porque evitamos a responsabilidade de concretizar de o tornar transmissível . Talvez dentro de pouco

tempo não saibamos falar arquiteto; de fato, hoje a maioria dos que projetam e constroem não fazemmais do que balbuciar, emitir sons desarticulados, desprovidos de sentido, sem transmitir nenhumamensagem, ignorando os meios para comunicar seja o que for: eis a razão por que não dizem nadanem tem coisa alguma para dizer. E existe outro perigo mais grave ainda: uma vez desacreditado omovimento modemo, já não estamos em condições de ler as imagens de todos os arquitetos quefalaram uma língua diferente da do classicismo, quer dizer, os paleolíticos, os mestres da antiguidadee os medievais, os maneiristas e Miguel Ângelo, Borromini, o movimento Arts and Crafts e Art

 Nouveau, Wright, Loos, Le Corbusier, Gropius, Mies, Aalto, Scharoun, nem tão pouco os jovens,desde Johansen a Safdie.

 Não há ninguém hoje que adopte as ordens clássicas. No entanto, o classicismo ultrapassa as«ordens», chegando a cristalizar inclusivamente os argumentos desenvolvidos com nomes e verbosanticlássicos. Com efeito, o sistema Beaux-Arts codificou o gótico, depois o românico, o barroco, oegípcio, o japonês e, por ultimo, a modema arquitetura, servindo-se de um simplicíssimo processo:

congelando-os, quer dizer, convertendo-os em clássicos. Por outro lado, quando se verificasse serimpossível codificar em sentido dinâmico a linguagem modema, não restaria outra coisa do que estásolução suicida, invocada já por alguns infelizes, quer sejam críticos e/ou arquitetos.

E necessário, pois, experimentar imediatamente todos os problemas teóricos cujo estudoconstitui frequentemente uma prova convincente para ulteriores dilucidações, sem cair na veleidadede resolver a priori, quer dizer, a margem das provas concretas. Há livros as dezenas e ensaios ascentenas que discutem se e possível assimilar a arquitetura a uma língua, se as linguagens nãoverbais possuem ou não uma dupla articulação, se o propósito de codificar a arquitetura modema nãoestá destinado a desembocar no corte do seu desenvolvimento. A pesquisa semiológica éfundamental, se bem que não possamos pretender que resolva os problemas arquitectônico a margemda arquitetura. Bem ou mal, os arquitetos comunicam; falam arquitetura, seja ou não uma língua.Convém estabelecer com exatidão o que implica falar arquitetura em código anticlássico; se oconseguirmos, o aparato teórico surgira por si próprio, inerente a prospecção lingüística.

Contam-se aos milhares os arquitetos e os estudantes de arquitetura que projetam, mas quedesconhecem o léxico, a gramática e a sintaxe da linguagem moderna que, em relação ao

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classicismo, são o antiléxico, a antigramática e a anti-sintaxe. Os críticos, situados no duplo nível profissional e didático, julgam; mas, com que critério, com que legit imidade, quando este falta? Eiso desafio que devemos enfrentar, produtores e utentes; para que nos entendamos, devemos utilizar amesma língua, fazer concordar termos e comportamentos. E uma questão que, se nos parece agorairrealizável, e unicamente porque se encontra por explorar.

Um objetivo que se pretende seja provocador: estabelecer uma série de «invariáveis» da

arquitetura moderna baseando-nos nas obras mais significativas e paradigmáticas. Surge uma duvida:quando se trata de uma linguagem verbal, torna-se imprescindível a utilização de um código, sob pena de incomunicação; em arquitetura, qualquer pessoa estará em condições de o ultrapassar se odesejar, sem por isso renunciar a construção. Pode construir, sem dúvida alguma, inclusivamente emestilo babilônico, se lhe apetecer, ainda que não comunicando outra coisa sem a própria neurose.

Tratei a questão da linguagem arquitectônica com professores universitários e com profissionais, especialmente com estudantes inquietos, confusos, desorientados perante acircunstancia de que não haja ninguém que lhes ensine uma língua com a qual possam falar. Destesintercâmbios resultou uma conclusão: ainda que existam boas razões para não abordar um tema tãodifícil e traumático, é necessário sair desta situação e começar de novo.

O presente ensaio, contudo, e mais curto que o de Summerson, já de si bastante sucinto. Apenasanalisa sete invariáveis. Podem-se-lhe acrescentar outras dez, vinte ou cinqüenta, sempre com acondição de que não contradigam as anteriores. A validez desta aproximação comprova-se nas obras

e nos estiradores. Toda a gente esta em condições de se exercitar na comprovação desta «basiclanguage». E não há motivos para ninguém se surpreender ao descobrir que, entre cem edifíciosconstruídos hoje, noventa são totalmente anacrônicos, podem datar-se entre o Renascimento e omundo Beaux-Arts, oito contem em si, de uma maneira incoerente, algum elemento lexical modernoe dois, no melhor dos casos, cometem erros de gramática, quer dizer, não falam a antiga língua, nemsequer a nova. E há mais: até os grandes mestres do movimento moderno, como se verá, produziram

 por vezes obras retrógradas e classicistas. Em conseqüência, vem a idéia de perguntar: que língua éesta, se ninguém ou muito poucos a falam? A que se responde com outra interrogação: poderá sermais divulgada sem que possua um código?

Este trabalho tem a ambição de qualquer ato herético: suscitar a dissensão. Se desencadear umadiscussão, terá conseguido o seu propósito: em vez de falar até ao tédio de arquitetura, falaremosfinalmente arquitetura*.

* Quatro anos depois da publicação da edição italiana deste livro, saiu um interessante ensaiode Charles Jencks intitulado The Language of Post-Modern Architecture (Nova Iorque, Rizzoli,1977). Ele demonstra que o pós-moderno, opondo-se ao moderno,regressa ao pré-moderno, isto é, aoclassicismo acadêmico. Talvez por isso este livro devesse ter um novo título: A Linguagem Pós-Pós-Moderna da Arquitetura.

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IO CATÁLOGO

COMO METODOLOGIA DO PROJETO

A lista, ou inventario, de funções e o princípio genético da linguagem moderna que resume emsi todos os restantes. Assinala a linha de demarcação ética e operativa entre os que falam em termosatuais e os ruminantes das línguas mortas: qualquer erro, involução, bloqueio psicológico, senilidademental em matéria de projeção pode atribuir-se, sem exceção, a falta de respeito por este princípio.Trata-se, pois, de uma invariável fundamental do código contemporâneo.

O catálogo supõe a dissolução e a rejeição crítica das regras clássicas, quer dizer, das «ordens»,

dos apriorismos, das frases feitas, das convenções de qualquer origem ou espécie. Nasce de um atodestruidor de afirmação cultural, que leva a desbaratar toda a bagagem de normas e de cânonestradicionais, a recomeçar desde a raiz, como se nunca tivesse existido nenhum sistema lingüístico,como se, pela primeira vez na história, tivéssemos que construir uma Casa ou uma cidade.

É mais um eixo ético que operativo. De fato, é necessário despojarmo-nos, com um terrívelesforço e uma imensa alegria, dos tabus culturais que herdamos, identificando-os dentro de nós

 próprios, profanan do-os um a um. Para o arquiteto moderno, os dogmas, os costumes, as inércias, osresíduos acumulados durante séculos de classicismo são tabus que o paralisam. Ao recusar e anulartodo o modelo institucionalizado, liberta-se da idolatria. Reconstrói, revive o processo de formação edesenvolvimento do homem e comprova que, no decurso de milênios, os arquitetos asseguraramvárias vezes a escrita figurativa e apagaram todo o preceito gramatical e sintático. Os espíritosautenticamente criadores sempre tiveram que romper com os moldes. Por conseguinte, a revoluçãoarquitectônica moderna não é um fenômeno inédito, apocalíptico; a luta contra os vínculos

repressivos conta com séculos de existência.Catalogar significa sistematizar. Deixa de se empregar as palavras sem antes se ter analisado afundo o seu conteúdo. Além disso, pelo menos de princípio, eliminam-se os verbos, os nexos, as

1. A ditadura da linha reta, segundo umcartoon do Mauris. Dela deriva a mania das

 paralelas, das proporções, doa traçadosortogonais, dos ângulos de 90°, quer dizer,o léxico, a gramática e a sintaxe doclassicismo. Os monumentos daantiguidade chamada «clássica» foramfalseados para se ajustarem a essa

ideologia apriorística e abstrata.

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maneiras possíveis de construir uma frase. De seguida damos um exemplo, para entrarmos no pontomais importante da metodologia de projetar.

As janelas. o classicismo seleciona um módulo para as janelas dum palácio renascentista; emcontinuação estuda a seqüência dos módulos, as relações entre vazios e cheios, os alinhamentoshorizontais e verticais,quer dizer, a sobreposição das ordens. Pois bem, o arquiteto moderno liberta-se destas preocupações formais para se lançar numa tarefa de nova semantização, muito mais

complexa e proveitosa. Sobretudo: nenhum módulo deve ser repetitivo. Cada janela e uma palavraque vale por si própria, pelo que diz, para aquilo que serve; não é necessário delineá-la, proporcioná-la. Pode adotar qualquer forma: retangular, quadrada, circular, elíptica, triangular, ser composta, terum perfil livre. Em relação ao compartimento que deve iluminar, pode ser uma fresta longa e estreitaa altura do teto ou do pavimento, uma abertura feita na parede, uma cinta continua a altura dohomem: será o que se desejar ou o que se considerar oportuno depois de se calcular a sua função am-

 biente por ambiente. Não há razão para uniformizar as janelas, anulando a sua especificidade; aosubtraí-las ao império classicista conseguir-se-á que quanto mais diversas forem mais eficazesresultarão, porque se converterão em veículos de mensagens plurais.

A decompaginação da justaposição e a sobreposição dos módulos leva a reconquistar aintegridade da fachada, até agora desarticulada em faixas verticais e horizontais desde o classicismo.E além disso significa outra coisa mais importante: a fachada passa a ser inacabada. Dado o caráterepisódico das aberturas, altas e baixas, retas e tortas, não obrigadas pelas relações axiais, deixa de

ser um objeto fechado, autônomo, que tem o seu fim em si próprio, e estabelece um diálogo com ocircundante, adotando uma função de participação: não é há uma elemento estranho e hostil no rostoda cidade ou da paisagem.

2. Metodologia do catálogo nas janelas. o classicismo, antigo (em cima) ou pseudomoderno (nocentro) preocupa-se com o módulo, com a sua repetição, com a relação entre cheio e vazios, com osalinhamentos, em resumo, com tudo menos com as janelas. Em contrapartida, o catálogo dá um novo

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valor semântico a cada elemento Icm (em baixo) e procede depois à sua junção.

O exemplo das janelas parece inoportuno numa argumentação em torno darquitetura moderna porque, como veremos o princípio do catalogo exclui a noção de «fachada». Contudo, ao ter queintervir em tecidos urbanos condicionados por urdidos e volumetrias fixados de antemão, é frequenteque o arquiteto se veja obrigado a desenhar uma fachada. Mas por isso não renunciará, no entanto, a

falar numa linguagem actual. A partir do momento em que se diferenciem as janelas pela forma e pela colocação, recusará a fachada tradicional, suas conotações classicistas. Por outro lado, poderádenunciar a sua inutilidade colocando algumas janelas em saliência, encaixando outras, jogando coma espessura das paredes para dotar com uma moldura de sombra o espelho vítreo ou, pelo contrário,

 para o expor ao fulgor da luz. E porque não inclinar as janelas em relação ao plano da fachada? Uma poderá ficar voltada para baixo, focando uma praça, uma árvore, um portal colocado perante ela;outra poderá ficar voltada para cima, captando o céu em circuito espacial. A inclinação podeefectuar-se para a esquerda ou para a direita, recuperando imagens panorâmicas profundas eapreciáveis, a perspectiva de uma rua, um monumento, o mar. A multiplicidade dos ângulos em quese dispõem as janelas permitirá que as superfícies vítreas nunca sejam paralelas a do fundo.

O princípio do catálogo, ainda que circunscrito ao pormenor das janelas, desafia a janelaclássica, impede o seu acabamento, rompe a moldura dando uma tesourada nas arestas e no cimo,entre o ultimo nível e o tecto. Assim se consegue um duplo objectivo: aumentar as alternativas de

iluminação nos interiores e exaltar a carga comunicativa do edifício.Parece-me haver duas objecções: a primeira é de desanimo, a segunda tenta ocultá-lo comalegações de caracter ideológico. A primeira protesta: e um trabalho enorme, espantoso. Se énecessário projetar a moldura e a posição de cada janela seguindo este mesmo procedimento, paradesenhar uma fachada com dez janelas é preciso um esforço de reflexão excessivo, incongruente do

 ponto de vista profissional. A segunda contra ataca: tudo isto não nos ira levar a «academia dadesordem», ao triunfo do arbitrário?

A primeira objecção responde-se com o seguinte: uma janela é o resultado do estudo do espaçoque deve iluminar, cujo valor perceptivo e comportamental depende em grande parte da luz; narealidade, para formar as janelas, e necessário ter projetado já espaços e volumes, o edifício na suatotalidade. É difícil arquitetura moderna? Indubitavelmente, mas é maravilhosa porque cada um dosseus componentes tem relação com um conteúdo social. Se fosse fácil, a maior parte dos edifíciosque hoje se constroem seriam modernos; em contrapartida, basta observar as janelas para entender

que são fruto da irresponsabilidade acadêmica.Arbitrariedade, no que se refere a segunda objecção? Pelo contrário, o classicismo é totalmentearbitrário, dado que mitifica a ordem abstracta, opressiva da liberdade e das funções sociais. Que ocatálogo leva a desordem? Bendita desordem que desanca a ordem idolátrica, os tabus da «série» damassificação alienante! Rejeita a produção industrial noecapitalista, como na segunda metade doséculo XIX William Morris rejeitou a produção paleocapitalista. A indústria torna as coisasuniformes, classifica-as, tipifica-as, toma-as clássicas; os recentes arranha-céus, com as sus curtainwalls, são mais monolíticos e mais estáticos que os erigidos há cinqüenta anos; isto reconhece-setambém graças as janelas.

As duas objecções revelam turvas origens psicológicas. A arquitetura moderna multiplica as possibilidades de escolha, ao passo que a clássica as reduz. A escolha origina angústia, umaneurótica «ansia de certeza» . Que se há-de fazer? Não existem tranquilizantes para a evitar.Contudo, será que os há em outros campos? Acaso não desencadeiam angústia a pintura abstrata e a

informal, a musica dodecafonica e aleatória, a arte conceptual? Não será talvez angustiosocontemplarmo-nos num espelho pela primeira vez e reconhecermo-nos numa imagem que não é

 própria. Ou melhor, inteirarmo- nos com estupefacção que a terra gira, quando na realidade parecenão se mover? Medo da liberdade, dos movimentos irracionais. Suponhamos por momentos que, emigualdade de rendimento funcional, as janelas podem ser iguais ou diferentes. A linguagem modernadecide: diferentes, para oferecer mais opções. O clássico diz, em contrapartida: todas iguais, paraque resultem ordenadas... como os cadáveres. Não obstante, a hipótese de que o rendimento seja omesmo é absurda, verdadeiramente arbitrária. Por conseguinte, confirma-se um fato conhecido eincontroverso, mas bastante difícil de inculcar na consciência dos arquitetos: o que parece racional,

 porque está regulamentado e ordenado, é humana e socialmente desregrado, tem sua lógicaunicamente no poder despótico, enquanto que na generalidade aquilo que se presume irracionalnasce de um hábito de intensa reflexão a de um forte reconhecimento do direito a fantasia. Oclassicismo liga bem com os cemitérios, não com a vida. Somente a morte desenvolve a «ânsia de

certeza»Tudo quanto se disse sobre as janelas e válido também para todo o aspecto da metodologia da

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 projecção, a qualquer escala: volumes, espaços, interligações volumétricas e espaciais, redesurbanas, planos territoriais. A invariável e sempre o catálogo. Por que razão deve ser cúbico ou

 prismático um compartimento, em vez de ter uma forma livre, ditada pelas suas funções? Por querazão o conjunto de compartimentos deve formar uma caixa elementar? Por que razão se há-deconceber um edifício como a embalagem de diferentes caixinhas dentro duma caixa enorme? Por querazão tem que estar encerrado em si próprio, criando uma clara cesura entre as cavidades

arquitectônicas e a paisagem urbana ou natural? Por que razão os espaços de um apartamento devemter todos a mesma altura? E assim sucessivamente. A invariável da linguagem moderna consiste nos porquês e nos para quês, em não se submeter a leis

3. Metodologia do catálogo nos volumes. O classicismo, antigo ou pseudomoderno, encaixotaas funções humanas coarctando os seus pormenores específicos: depois, sobrepõe e justapõe ascaixas para formar como que um caixote (à esquerda ). O catálogo da novo valor semântico aosvolumes e, ao reagrupá-los, preocupa-se com, a sua individualidade (a direita).

apriorísticas, no repensar qualquer afirmação convencional, no desenvolvimento e verificaçãosistemáticos de novas hipóteses. Uma vontade de libertação dos dogmas idolátricos e a mola

 principal da arquitetura atual, começando pelos famosos cinco princípios enunciados por LeCorbusier: a planta «livre», a fachada «livre» os pilares que deixam «livre» o terreno debaixo doedifício, o terraço jardim que implica o uso «livre» da cobertura, inclusivamente a janelalongitudinal como elemento comprovativo de que a fachada foi «liberta» da armação estrutural.

A metodologia do catálogo evolui continuamente, submete a comprovação inclusivamente oscinco princípios, como fez o próprio Le Corbusier na fase senil, de Ronchamp em diante. De fato, oseu anterior «purismo» impunha um pesado limite, visto que a «planta livre» só o era dentro do

 perímetro duma figura geométrica «pura» Por que razão devemos mitificar a geometria, a linha e oangulo rectos? O catálogo diz não também a estes preceitos. Influencia conteúdos e formas, éticaindividual e vida colectiva, justamente como a linguagem.

Os catálogos seguintes examinam outros significados desta invariável. Fora do processo docatálogo, não existe arquitetura moderna. O resto é fraude, classicista ou pseudomoderna: um crime,

 para falar numa linguagem mais adequada.

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IIASSIMETRIA E DISSONANCIA

Onde então? Noutro lugar qualquer. Esta é a resposta a dar aquele que, depois de escutar ovosso parecer sobre um objeto colocado de maneira que componha uma simetria, vos pergunte ondese deve colocá-lo. Noutro lugar qualquer. Só há um totalmente errado: aquele que é escolhido«espontaneamente», quando se resolvem as convenções atávicas do subconsciente.

Podemos servir-nos de um exemplo ainda mais comezinho do que uma janela, com o qual efácil experimentar: um quadro. Dispomos de uma parede: onde o penduramos? No centro,evidentemente. Não, noutro lugar qualquer: à direita, à esquerda, mais acima ou mais abaixo, emqualquer parte menos nessa. No meio, divide a parede em partes iguais, diminui-lhes as dimensõesvisuais e banaliza-as. O quadro parece ficar emoldurado e isolado pela parede, quando podia «abrir»o compartimento e aumentar-lhe o espaço para respiração.

A simetria é uma invariável do classicismo. Portanto, a assimetria pertence à linguagemmoderna. Extirpar o feitiço da simetria significa percorrer um longo trecho do caminho que conduzarquitetura contemporânea.

Simetria -= desperdício econômico + cinismo intelectual. De cada vez que se vos depare umacasa composta dum bloco central e de dois corpos laterais simétricos, podereis rejeitá-la sem hesitar.O que há no lado esquerdo? Possivelmente a Sala de estar. E no direito? As casas de banho ou osquartos. Há alguma razão para que as duas caixas que os albergam sejam idênticas? O arquitetoesbanjou espaço, ampliando.

4. Um quadro? É necessário em qualquer parte, menos no centro de uma parede (em cima).Uma porta? É necessário abri-la em qualquer parte, salvo no centro dum aposento (segunda fila).Quando se afasta a porta do ponto médio, o espaço adquire profundidade (terceira franja). O ideal é a

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 porta colocada na esquina, porque acentua a diagonal (em baixo).a cubição da sala de estar parauniformizá-la com os quartos ou vice-versa; reprimiu funções essenciais para obrigar a zona dascamas a assumir o mesmo rosto que a sala de estar. Basta pensar unicamente na altura: pois querazão um espaço amplo deve renunciar a sobressair? o esbanjamento é flagrante, tanto no sentidoeconômico como estético: um quarto demasiado alto torna-se, visualmente, estreito, sufocante.Duplo prejuízo e duplo sacrifício. No altar de que tabu? No da simetria.

Simetria = necessidade espasmódica de segurança, medo à flexibilidade, à indeterminação, àrelatividade, ao crescimento; em resumo, ao tempo vivido. O esquizofrênico não suporta o tempovivido; para controlar a angústia, exige a imobilidade. O classicismo é arquitetura da esquizofreniaconformista. Simetria = passividade ou, dito em termos freudianos, homossexualidade. Um

 psicanalista, num «tema» deste livro, explica-o. Partes homólogas, não heterónimas. Terror infantildo pai - a academia é uma figura paternal, protectora do pusilânime — que te castrará se atacaresuma figura heterônima, a mulher, a mãe. No momento em que alguém se torna passivo e aceita asimetria, parece atenuar-se a angústia porque o pai deixa de ameaçar, passa a possuir.Talvez se pudesse ler toda a história darquitetura segundo a perspectiva da neurose da simetria. Semdúvida que nos referimos arquitetura europeia. Não é uma casualidade, por exemplo, que a Itáliatenha sido a primeira, durante a época do Renascimento, a venerar de novo este ídolo, enquanto nosrestantes países se continuava a desenvolver a linguagem gótica. A economia da Península Itálicaentrava numa grave crise e as classes dominantes compensavam-na com uma mascara classicista.

Evocavam o passado greco-romano mitificando-o, a fim de ocultar a instabilidade do presente;atribuíam-se um rosto cortês, grave ou olímpico, para encobrirem a desolação social. Sempre assimfoi: a simetria é a fachada de um poder fictício, que quer parecer indestrutível. Os edifíciosrepresentativos do fascismo, do nazismo e da URSS stalinista são todos eles simétricos. Os dasditaduras sul-americanas, simétricos. Os das instituições teocráticas, simétricos, por vezes, com umadupla simetria. Pode imaginar-se assimétrico, desequilibrado, diverso em suas partes, com umaestátua equestre colocada à esquerda ou à direita, não no centro, o Monumento a Vittorio EmanueleII? Uma Itália que fosse capaz de construí-lo seria outra nação, comprometida em criar umaadministração democrática do Estado, um sector terciário eficaz, uma sociedade equilibrada mire

 Norte e Sul, fundada na justiça. Por outro lado, uma 5. A Praça Venezia, em Rona, estreita e profunda,rematada pelo palacete (em cima) poderia ter albergado um monumento evocador, como a «mão aberta»de Le Corbusier (segunda fila à esquerda). Em contrapartido, foi desocupada para dar lugar ao faraônicoVittoriano (à direita, terceira fila), contra toda a assimetria (em baixo).

nação assim constituída não teria desbaratado dinheiro público para erigir uma monstruosidademarmórea como o Vittoriano nem para desfigurar a Praça Venezia banalizando as suas proporções,deslocando o palacete, demolindo o palácio Torlonia; numa palavra, destruindo não só um ponto deapoio como todo o sistema urbano de Roma. Teria utilizado esse dinheiro para construir casas

 populares, escolas, bibliotecas, para levar a cabo uma reforma agrária e sanitária. O Vittorianoapresenta a debilidade de um país retrogrado, que finge ser um país avançado adotando uma atitudesobranceira, monumental, perversa, grandiloquente. A chama do Soldado Desconhecido aos pés doArco do Triunfo parisiense e o Cenotaph de Whitehall, em Londres, empalidecem por modéstia

 perante tal horror, onde a simetria adquire proporções da infâmia titânica.Existem edifícios simétricos que não são retóricos, mas todos os edifícios retóricos, símbolos

da autoridade totalitária ou produtos da inércia e do cinismo, são simétricos. Além disso, os primeiros, observados através de uma análise mais rigorosa, tornam-se simétricos somente em parte,

sobretudo na frente principal. Isto leva a outra observação: tem-se aldrabado com a simetria damaneira mais obscena, deformando e falseando a harmonia dos monumentos. Exemplo escandaloso:os Propi leus da acrópole ateniense. Tem um traçado assimétrico blasfemante, razão pela qual a Ecoledes Beaux-Arts não podia admitir que, precisamente na entrada daquele santuário do classicismo, seerguesse uma estrutura herética; por isso apresentou a obra de Mnesicles como se fosse simétrica. Seo não era, queria dizer que os Gregos, num momento de ofuscação mental, se tinham equivocado eera necessário corrigi-los. Outro exemplo? O  Erecteu, construção irregular, assimétrica, «moderna»

 por assim dizer, que antecipa inclusivamente os desníveis do Raumplan de Adolf Loos. Qual foi asua importância na doutrina Beaux-Arts? Nenhuma. Não era simétrica, não servia.

Um quarto. Por onde se deve entrar nele? Por outro lado qualquer que seja o situado no pontomédio de uma parede. Dividiremos em duas partes o espaço. Mais ainda, outro lado qualquer querdizer no ponto mais convenientemente mais descentrado, a fim de realçar a diagonal, a profundidademáxima. Para acentuar a visão em diagonal, porque não fazemos ressaltar a porta de entrada sobre o

 plano da parede, inclinando-a? è mais indicado, damos- Ihe um novo sentido, diferenciando-a a dasrestantes.

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O mesmo quarto. Onde se deve situar a iluminação? Num lugar qualquer que não seja o centro,a fim de não dividir em três partes o ambiente, iluminando uma zona, situada entre duas zonasescuras laterais. Demos um sentido novo à janela em função do espaço interior, conferindoqualificação à luz. Não há um panorama ao qual seja possível chegar: então, nesse caso, utiliza-seuma fresta paralela ao solo, uma outra (de altura variável, para evitar a simetria) paralela ao tecto, etalvez frestas verticais nos cantos para iluminar as paredes. No traçado da estação de Romaencontramos duas franjas de luz por plano: uma a altura dos escritórios e outra no tecto; umadisposição satisfatória, ainda que transformada em clássica por aliteração excessiva. No caso de se

 poderem abrir janelas de ambos os lados, não devem estar nunca contrapostas, porque iluminar -se-

iam reciprocamente em vez de fornecerem luz ao espaço. Observai a Sala dos Meses no famoso palácio Schifanoia, em Ferrara: a cada janela corresponde, frontalmente, um lugar utilizável, demodo que a luz se derrama magnificamente sobre os celebres frescos expostos.

A simetria um sintoma particular, macroscópico, de um tumor que prolifera capilarmente ecujas metástases são infinitas: a geometria. Com efeito, poder-se-ia interpretar a historia das cidadescomo uma colisão entre a geometria (uma invariável do poder ditatorial ou burocrático) e as formeslivres (que se harmonizam com a vida humana). Durante centenas de milhares de anos, acomunidade paleolítica desconhece a geometria. Porem, logo que se dão as fixações neolíticas e oscaçadores-cultivadores se submetem a um chefe de tribo, temos o tabuleiro de xadrez. Todos osabsolutismos políticos geometrizam, ordenam a estrutura urbana em eixos e mais eixos paralelos eortogonais. Todos os quartéis, cárceres e edifícios militares são rigidamente geométricos. Não se

 permite a um cidadão que se volte à direita ou à esquerda com um movimento natural, seguindo umacurva: tem de dar um salto de 90 0, como se fosse uma marioneta. De maneira similar, os tecidos

urbanos estão desenhados em forma de grelha; em casos excepcionais, são realizados segundo umesquema hexagonal ou triangular. Nova Iorque e um tabuleiro de xadrez que permite apenas a

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diagonal da Broadway. A Paris imperial baseia-se nos cortes cruéis que, sadicamente, esquartejam otecido popular preexistente. A colonização da América Latina produziu-se através de leis

 peremptórias, que impunham a priori formas geométricas as cidades, qualquer que fosse atopografia.

6. Como se deve iluminar um aposento? Não através da parte central de uma parede (em cima).Qualquer outra solução é mais aceitável: janela angular, em forma de cinta, de dupla cinta (esboçoscentrais). Na estação de Roma há uma dupla fila de vidros que ilumina os escritórios (em baixo, àesquerda), ainda que fosse preferível uma maior variedade funcional (à direita).

As cidades, especialmente as capitais, são vitimas constantes da intervenção geométrica;salvam-se unicamente porque o seu crescimento faz claudicar o diktat  político -administrativo. Emcontrapartida, as povoações, especialmente as aldeias rurais, não são normalmente geométricas; poroutro lado, são-no, com implacável rigor, as que a Máfia domina, na Sicília.

Este cancro secular, ainda que desmentido por ilustres exceções como a civilização medieval eas povoações rurais, só pode ser extirpado com a ajuda de uma inexorável vontade. O arquitetoencontra-se tão condicionado por uma geometria artificial e desumana que a sente «natural» e«espontânea»; não conhece outra linguagem. E um cancro ancestral, reforçado pelos própriosinstrumentos de desenho: régua T, esquadro, compasso, maquina de desenhar. Servem para traçarlinhas paralelas, paredes paralelas, quartos paralelos, ruas paralelas, talhões paralelos e,

 posteriormente, formarem -se ortogonalmente mais paredes paralelas, tetos paralelos aos soalhos,mais ruas paralelas, demarcações ortogonais. Um universo perfeitamente enquadrado dentro deretangulos e prismas, controlável a tiro de espingarda ou de metralhadora. Os caixões servem paraencerrar os cadáveres, mas aqueles pelo menos, graças a sua forma trapezoidal, adaptam-se amorfologia do conteúdo. Os homens vivos, porem, não tem reservada a mesma sorte: encaixam-nosde maneira inorgânica, abstrata, cínica.

Desde o fim da Idade Media que se perdeu o gosto pela libertação da geometria regular, que

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coincide emblematicamente com o gosto pela liberdade tout court . Um edifício como o PalazzoVecchio, de Florença, conjuntos como Siena e Perugia, parecem pertencer a outro planeta; osarquitetos já não sabem desenhá-los, a sua linguagem é deficiente. Para voltar a ensiná-los, eranecessário proibir as réguas T, os esquadros, os compassos, as maquinas de desenhar, todo o arsenal

 preparado em função da gramática e da sintaxe classicistas. A antigeometria, a forma livre e, comoconseqüência, a assimetria e o antiparalelismo são invariáveis da linguagem moderna. Significam a

emancipação da dissonância.Schonberg dizia que as dissonâncias não podem ser condimentos picantes de sons insípidos.São componentes de um novo organismo que viva, com a mesma vitalidade dos protótipos do

 passado, nas suas fases e nos seus motivos. Descobriu que uma música que deixasse se referir a umatônica, a um centro harmônico, era totalmente compreensível e capaz de suscitar emoções. Atonalidade equivale a simetria, à proporção, à consonância geométrica. No entanto, os arquitetos nãoo descobriram.

7. Com a régua e o esquadro, o estirador e a máquina de desenhar torna-se difícil e esgotantereproduzir uma situação urbana medieval como a Piazza del Campo, em Siena. Com a ajuda destesinstrumentos podem conceber-se unicamente arquitetos de caixote, facilmente representáveis em

 perspectiva.

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IIITRIDIMENSIONALIDADE

ANTITÉTICA DA PERSPECTIVA

 Nos princípios do século XV deu-se a hecatombe. Foi o triunfo da perspectiva. Os arquitetosdeixaram de se ocupar com arquitetura, limitando -se a desenhá-la. Os prejuízos foram enormes,multiplicaram-se com o decorrer dos séculos e continuaram a aumentar com a construçãoindustrializada. Este paradoxo talvez não tenha paralelo noutras atividades: entre o arquiteto earquitetura abre-se um fosso que não é possível preencher. Não nos surpreende que haja muitosarquitetos clue nem sequer suspeitem em que consiste arquitetura.

A perspectiva é uma técnica gráfica destinada a representar uma realidade tridimensional sobreuma folha de papel bidimensional. Para facilitar o trabalho, levou a quadriculagem de todos osedifícios, reduzindo-os a prismas regulares. De repente, ficou inutilizado um gigantesco patrimôniovisual composto de curvas, assimetrias, desvios bruscos, modulações, ângulos que não eram de 900:o mundo passou a compor-se de caixas e as «ordens» serviram para distinguir partes sobrepostas ou

 justapostas. A perspectiva teria de oferecer os instrumentos para adquirir com um maiorconhecimento de causa a tridimensionalidade. Em contrapartida, anquilosou-se até ao ponto de

converter a sua representação em algo mecânico, quase inútil. Nova prova sintomática daquilo queafirmam os lingüistas: a língua «fala-nos», não podemos pensar se não tivermos um código. Oclassicismo renascido, que gira em redor da perspectiva, depauperou de maneira drástica alinguagem arquitectônica. Deixou-se de inventar espaços próprios para a vida humana para sedesenhar uma espécie de embrulhos que servem para a acomodar. Com a perspectiva, a arquiteturadeixou de dominar para passar ser dominante o seu conteúdo.

Teoricamente, a perspectiva deveria estabelecer-se como um instrumento a realçar a profundidade. Poder-se-ia conjeturar que todo o volume edificado sublinhá-la-ia oferecendo-se emescorços angulares; a aresta converter-se-ia em elemento propulsor do prisma e, desafiando o seuisolamento, envolvê-la-ia no discurso urbano. O Palácio Farnese, em Roma, é uma caixa, estarmosde acordo, mas não era possível fazer outra coisa com a linguagem da perspectiva; contudo, as

 paredes, ainda que obliquas, devem conduzir o olhar para uma série de vistas dinâmicas. É óbvio quetodos os ângulos teriam sido diferentes, sobressaindo aquele que esta virado para a praça, sendo os

restantes dissimulados, para não interromper a continuidade das ruas.Como é sabido, nada disso aconteceu. O Palácio Farnese não comunica realidades

estereométricas, desarticula-se numa frente principal, em flancos que se desmoronam sobre as vielaslaterais e numa segunda fachada quase independente, que dá para a parte posterior. O volume algoem si mesmo, acabado, desprovido de comunicação com o circundante, como se tivesse sidocatapultado para a praça; como objecto tridimensional, é visível unicamente do ar. Por conseguinte,as fachadas estão do encerradas em ângulos idênticos: harakiri da perspectiva.

Imposta em nome da terceira dimensão, aplicou-se normalmente a perspectiva como umenquadramento central, isto é, no sentido bidimensional. Observai um edifício re

tilíneo renascentista ou, se se quiser, classicista: uma fissura entre casas e cortejos de fachadas planas. Onde está a tridimensionalidade? Onde estão os volumes? Então, porque dilapidar estaenorme herança lingüística medieval, pletórica de mensagens estereométricas, por acréscimocontrárias ao encaixotamento? Investigai na história política e social: a resposta encontra-se ai.

Da mesma forma que para a geometria, há muito poucas esperanças de vencer o vírus da perspectiva, que contamina o corpo da arquitetura até as suas fibras mais intimas. Se bem que nestecaso o c6digo moderno afunde as suas raízes numa longa série de precedentes, precisamente a partirdo século XV. A arte, desde o maneirismo em diante, tende a superar a visão da perspectiva, e asvanguardas renovadoras,desde o impressionismo ao informal, aceleram este processo. A arquitetura

 para trás em relação a pintura e a escultura; a mentalidade da perspectiva resiste e corrompe umainfinidade de obras que em

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8. Para realçar a tridimencionalidade, dever-se-ia dar em escorço o palácio Farnese, de Roma(em cima); apresenta-se, em contrapartida, como uma parede bidimensional (centro). Miguel Ângelo,na praça do Campidoglio, refeita o paralelismo e a imagem vista em perspectiva (em baixo, àesquerda), inverte o trapézio (à direita.).

outros aspectos são actuais. Contudo, basta conhecer um pouco de história para saber que todosos arquitetos autênticos lutam desde a crise de 1527 contra a perspectiva. Chegou o momento de portermo a esta luta.

 Nos finais do século XV surge -nos Biagio Rossetti, o arquiteto de Ferrara, «a primeira cidade

européia moderna», no dizer de Jacob Burckhardt. Rossetti não é um arquiteto famoso, razão por quecompreende as necessidades fundamentais da cidade, que os grandes arquitetos em contrapartidadesconhecem, desorientados por uma óptica centrada quase exclusivamente no edifício. O que e quedescobriu este modesto artesão que constrói Ferrara sem a desenhar sequer? Simplesmente que, para

 pertencerem ao contexto, os edifícios não podem ser simétricos, auto -suficientes, acabados; as perspectivas das esquinas são notas que dão o tom de qualquer imagem urbana; o restante surge porsi só. No traçado da Addizione Erculea, Rossetti empenha-se nos edifícios situados nos cruzamentosdas ruas, cujos ângulos realça. Constitui o único exemplo de conjunto renascentista pensado emtermos de perspectiva concretamente tridimensional. Depois de tiés séculos e meio, a Paris do barãoHaussmann: fachadas em vez de ângulos.

Miguel Ângelo é outra fi gura extraordinária de desafiador da pers pectiva central. Na praça doCampidoglio profana o código vigente, abarca o espaço e retém-no, rompe os cânones da geometriaelementar, converte um rectângulo num trapézio invertido em relação ao da pers pectiva, chega a

negar o paralelismo nos dois palácios, ainda que idênticos, que flanqueiam a praça. É incrível:Miguel Ângelo é o artista mais celebre da historia da arte, glorificam-se as suas obras, valorizam-se,

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copiam-se; em Montreal existe uma reprodução decalcada de São Pedro, cuja escala é metade daoriginal; o Campidoglio é paragem obrigatória no itinerário de milhões de turistas e de todos osarquitetos cultos. Mas quantos há destes que, tranquilizados perante precedente tão explosivo,tiveram o atrevimento de colocar dois edifícios frontais em sentido não paralelo?

De passagem, recordaremos outro arrebatador trabalho de Miguel Ângelo: os seus desenhos para as fortificações florentinas de 1529. Movimento inédito dos espaços interiores e paisagísticos,

com taludes e balaustres ramificando-se na paisagem circundante; não há linhas paralelas nestasestruturas sinuosas e encurvadas na sua função de resistência estática a dupla investida dos espaçosagressivos. Pois bem, durante quatro séculos nunca houve ninguém que olhasse estes desenhos,ninguém que os descobrisse apesar de serem perfeitamente conhecidos. Em termos de linguagemarquitectônica, em termos de código novo e revolucionário, não serviram para nada. Porquê?

A linguagem de Miguel Ângelo não se tinha formalizado; por conseguinte, ninguém a podiafalar; e o pior é que não havia ninguém que pudesse enteder o que Miguel Ângelo dizia. Eis omotivo do prejuízo. A codificação da linguagem moderna — repetimo-lo — e a condiçãoindispensável para falar hoje em dia através darquitetura, como também para compreender os textosdo passado, adulterados pelo classicismo. É este o ponto crucial de toda a questão: arquiteturamoderna coincide com a maneira moderna de ver arquitetura do passado. Escreve-se em código novose se lê em código novo, e vice-versa. Isso confere a linguagem contemporânea umainstrumentalidade de alcance formidável mesmo em termos historiográficos.

Põe-se uma objecção: se a única linguagem codificada é a classicista, como se pode pretenderque, adoptando uma língua anticlássica, se consiga comunicar? Na linguagem verbal não se produzem revoluções súbitas e tão radicais que se possa dizer: até ontem falava-se duma maneira, a partir de hoje falar -se-á doutra. E além disso, como se pode fundamentar um código arquitectôniconovo sobre a simples base de umas grandes obras de uns poucos artistas que, entre outras coisas,costumam aceitar simetrias, esquemas geométricos, consonâncias, sistemas de perspectiva? Não serádemasiado simplista?

 Não. A linguagem arquitetonica moderna não nasce subitamente em 1859, com a CasaVermelha de William Morris. Não se serve de códigos incompreensíveis; as suas mensagensencontram amplas antecipações no ecletismo, no barroco, no próprio Renascimento — como vimos

 —, nas epopéias medievais, no período romano tardio, na Grécia (no autentico mundo helênico, nãono profanado pela hermenêutica Beaux-Arts) e, mais para trás ainda, até se chegar a época

 paleolítica. Embora o único código formalizado seja o do classicismo, não estamos inermes perante

ele. Temos a nosso favor a força dos fatos históricos: sabemos que não há um único monumento do passado que obedeça aquele código, nem tão-pouco um único templo grego que possua as proporções insti tucionalizadas no sentido abstracto de «templo grego». As chamadas civilizações«clássicas» não o são totalmente, nem por sombras sequer. Os grandes arquitetos, em cuja autoridadese baseia a codificação classicista, são os primeiros a negá-la concretamente, Será Bramanteclássico? Será Palladio clássico? Sê-lo-á talvez Vignola?

A circunstancia de Wright, Le Corbusier, Gropius, Mies van der Rohe, Aalto e outros mestresdo movimento moderno adoptarem, descontextualizando-os geralmente, certos elementos clássicos, éalgo que não nos surpreende. A nova linguagem, ao desenvolver-se em contraste

Dialético com a idolatria Beaux-Arts, teve do levar em conta a estratégia inimiga. Trata-se de

uma relação análoga a existente entre o italiano e o latim (ainda que, em arquitetura, o moderno nãoderive totalmente do clássico). Durante os primeiros séculos da nossa era, o vernáculo misturou-secom palavras latinas, enquanto o latim era «corrompido» por termos vulgares. A medida que o tempo

9. Armado com a régua T. o arquiteto não pensa já na arquitetura, mas somente namaneira de a representar. A linguagem da

 perspectiva incita-o a falar obrigando- o a projetar à base de prismas e de ordens prismáticas sobrepostas, quer seja através dos palácios renascentistas ou do grotesco «Coliseuquadrado» da E.U.R. fascista, de Roma.

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avança, o latim vai sendo cada vez menos latim, a estrutura do código é vulgar. No decurso doséculo XV, em sincronização com a perspectiva e por razoes afins, o latim volta a to o seu esplendore, referido ao seu código específico, parece prevalecer; eras naquela altura suicida-se, visto que aoperação e anti-histórica, repressiva, absurda.

Os mestres modernos erigiram edifícios simétricos, conformes com a perspectiva? É necessáriofazer distinções. Quando Gropius, Mies, Aalto os produzem, o fato constitui um ato de rendição: à

falta de uma codificação moderna, detêm-se e fazem marcha atrás até ao ventre materno doclassicismo. Com Mendelsohn não acontece o mesmo: o seu expressionismo e tão agressivo que o bloco tridimensional da perspectiva destrói toda a solenidade estática, explode, eletriza, magnetiza a paisagem. Onde estão os edifícios simétricos de Le Corbusier? É simétrica a Villa Savoye? Sê-lo-áapenas para aquele que tenha contemplado com olhar pouco atento uma fotografia. E muito menosainda os trabalhos de Wright.

Finalmente, deveremos reconhecer igualmente que, entre as mil alternativas possíveis, existetambém a da perspectiva? De acordo: mas elejamo-la entre mil, depois de ter considerado asvantagens das outras novecentas e noventa e nove, e nunca a priori.

IV

SINTAXE DA DECOMPOSIÇÃOQUADRIDIMENSIONAL

A teoria De Stijl, única tentativa coerente de elaborar um código Para a arquitetura moderna, proporcionou um processo rigoroso, generalizável. Se o problema consiste em desfazer o bloco da perspectiva, a primeira coisa que devemos fazer e suprimir a tercei ra dimensão, decompondo a caixa,dividindo-a em painéis. Nada de volumes fechados. Um quarto? Não, seis planos: o teto, quatro

 paredes, o soalho. Separemos as junções, libertemos os tabiques: a luz penetra nos cantos escu ros, oespaço anima-se. E o ovo de Colombo, mas é também um grande passo em frente na emancipaçãoarquitectônica. O espaço interior continua a ser cúbico, mas, iluminado desta maneira, torna-secompletamente diferente.

Prossigamos nesta linha de pensamento. Os tabiques são agora independentes, podemultrapassar o perímetro da antiga caixa, estender-se, subir ou descer, exceder os limites que até agora

separavam o interior do exterior. A Casa e a cidade podem transformar-se num panorama de painéisazuis, amarelos, vermelhos, brancos e negros, como Mondrian sonhava. Uma vez desmembrada acaixa, os planos já não recomporão volumes fechados, detentores de espaços finitos, masfluidificarão os ambientes unindo-os e encaixando-os num discurso contínuo. A qualidade estáticado classicismo é substituída por uma visão dinâmica, temporalizada ou, se se quiser,quadridimensional.

A sintaxe De Stijl poderia ter alimentado a linguagem da arquitetura por um espaço dedecênios; dos painéis ter-se-ia passado às superfícies curvas, onduladas, de formas livres, ricas eminumeráveis alternativas nas articulações. Contudo, os arquitetos não compreenderam o códigoneoplásticos e abandonaram-no sem lhe terem explorado as possibilidades.

 Não obstante, a decomposição continua a ser uma invariável substancial da linguagemmoderna. No complexo da Bauhaus, em Dessau, por exemplo, Gropius desarticula o volume em trêscorpos perfeitamente diferenciados: os dormitórios, as salas de aula, o laboratório. São blocos

 programaticamente dissonantes, relacionados num sentido antitético com a perspectiva. Não existenenhum ponto de vista desde o qual se consiga abarcar o conjunto, é preciso circundá-lo:movimento, por conseguinte, tempo. Uma vez mais e como sempre, e do catálogo que se trata. Umavez destruída a qualidade compacta da caixa, individualizam-se as componentes funcionais doorganismo, acentuando a distinção, a especificidade das mensagens respectivas. Rejeita-se qualquerrelação conectiva harmônica: as passagens entre os três blocos são toscas e brutais, para marcar adissonância.

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1O. A caixa encerra, encarcera, como se fosse um ataúde (em cima). Ao desvincularmos os seis planos, levamos a cabo o ato revolucionário moderno (segunda file). Os painéis podem ampliar-se oureduzir-se com o sentido de dosificar a luz nos espaços fluídos (terceira file). To rapidamentecomo se desata o pacote repressivo, expressam-se as funções com absoluta liberdade (em

 baixo).

Gropius captou apenas uma parte da operação De Stijl, sem se arriscar a fragmentar os volumesem painéis. Os restantes arquitetos compreenderam medianamente a operação Bauhaus. O método dedecomposição do volume em unidades funcionais menores viu-se amplamente adotado,especialmente nos edifícios escolares, onde se torna fácil separar o bloco das salas de aula dos doginásio e administrativos. Contudo, trata-se na generalidade de «harmonizar» as três unidades, de«torná-las proporcionais» reciprocamente e de conectá-las com passagens «assonantes» ; em resumo,de tornar clássico o anticlássico. Como explicar que a dissonância é uma invariável fundamentaltanto da arquitetura moderna como da musica moderna? Condiciona a nova semantização dasformas, das palavras, dos sons, quer dizer, o catalogo. Não obstante, os arquitetos voltam a coser oenvoltório logo após tê-lo descosido e, quando o bloco das salas de aula, do ginásio e dosadministrativos «se compõem» harmoniosamente, voltamos a cair na imagem da perspectiva, comum ponto de vista privilegiado.

A mania da proporção, outro tumor no qual se deve enterrar o bisturi para o extirpar. Que e a proporção? Um dispositivo para conectar, em relação vinculante, partes heterogêneas do edifício. Neurose da «síntese», possivelmente a priori. Se os fenômenos são diferentes e transmitem uma pluralidade de mensagens, para que unificá-los mediante a proporção, obtendo uma única

mensagem? Terror da liberdade, do crescimento; por conseguinte, da vida. De cada vez que se vosdeparar um edifício «proporcionado», acautelai-vos: a proporção congela o processo vital, ocultafalsidade e desperdício.

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Mies van der Rohe é o expoente Maximo da sintaxe De Stijl: o seu pavilhão da Alemanha naExposição de Barcelona de 1929 constitui a obra-mestra desta poética. Painéis de travertino emármore, lâminas de vidro, superfícies de água, planos horizontais e verticais que quebram aimobilidade dos espaços fechados, rompem os volumes e orientam o olhar para vistas exteriores. Erasomente um início: aqui os planos são todos ortogonais entre si, enquanto que se podia enriquecer osistema libertando-o do angulo recto, movendo-o segundo pianos inclinados. Porem foi o inicio e o

epílogo: a decomposição quadridimensional converteu-se num lúdico e descuidado exercício dedesenho de varandas, alpendres e mobiliário.Contudo, para evitar equívocos é necessário abrir um parêntesis. O código moderno pode

aplicar-se a qualquer situação, a qualquer escala, tanto a uma cadeira como a uma rede de auto-estradas, tanto a uma colher como a uma cidade. Em caso algum o arquiteto tem o direito de serecusar. Se esta a espera, para «falar» corretamente, de encontrar a ocasião ideal e o cliente certo, omelhor será desde já abandonar a sua profissão. Um exemplo? Escolha-se um quarto, mesmo o maistradicional e anacrônico. Comecemos por pintar os planos de seis cores: amarelo, vermelho, azul,

 branco, negro, e uma outra cor para o chão. Será ainda o mesmo quarto? Mudemos agora adisposição cromática: tecto negro, paredes em azul, vermelho, branco, amarelo. Ao comprimir oespaço, da a impressão de maior amplitude. Mas, onde esta a janela? Se quisermos mais luz, a paredea sua frente terá de ser amarela ou branca; no caso contrario, azul ou vermelha, ou talvez negra.Pintemos as quadraturas sobre as portas e janelas até ao teto, para que estas deixem de ser aberturas

na parede, transformando-se assim em tabiques. E porque não traçar riscas? Basta um gesto emdiagonal para que uma superfície se torne mais dinâmica. E hoje em dia o campo do desenhosupergráfico esta ao alcance de toda a gente.

Poder-se-á objetar que se trata de operações cosméticas. De fato são-no, mas podem ter umafunção corretiva e protestatória. O código clássico esta pejado de recursos cosméticos: desde asinúteis colunatas as falsas janelas. O moderno, pelo menos, adota-os como provocação, para indicara angustiante necessidade de um novo tratamento do espaço.

Além disso, a cosmética moderna não e dispendiosa nem esbanjadora, enquanto que a antiga,entre simetrias, proporções, revestimentos de mármore, se torna proibitiva. Observe-se o paláciooitocentista da rainha Margherita na Via Veneto, em Roma. Ao ser concebido em termos clássicos,necessitava de um majestoso «volume» no topo, para que a cornija sobressaísse. Em conseqüência,corn esta unica finalidade construiu-se todo um piso, inabitável por estar desprovido de janelas. Nãoé vergonhoso? Pois bem, depois da última guerra, os Americanos adquiriram o palácio para o

converter na embaixada dos Estados Unidos. Ao verificarem a existência desse último piso,quiseram aproveitá-lo e abriram a cornija com uma série de pequenas janelas. Duplo disparate: umaembaixada «real» com pretensiosismos de eficiência. A linguagem moderna não admite construir,nem todo-pouco projetar, um edifício parecido, e muito menos ainda um Vittoriano ou um palácio de

 justiça. Por ter nascido com propósitos sociais, psicológicos, humanos, detesta a sumptuosidade e assuperstruturas. A arquitetura clássica é muito dispendiosa: é simbólica, imponente, sufocante para ocidadão.

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11. A decomposição do bloco volumétrico em prismas funcionais tem lugar no Convento dosFilipenses, de Roma, projetado por Francesco Borromini (em cima), da mesma forma que na Buhaus,de Dessau, idealizada por Walter Gropius (em baixo) contudo, Ludwing Mies Van der Rohedecompõe, em Barcelona, o volume em planos (esquerda, centro).

O método da decomposição constitui, pois, uma invariável: mesmo quando o problema se referea reintegração, esta só tem algum significado se derivar de um processo de decomposição. De outromodo não é reintegrarão, mas sim integração apriorística, clássica.

A quarta invariável não foi descoberta por De Stijl em 1917. Observe-se o convento dos

Filipenses, em Roma, concebido por Borromini: enorme bloco desmembrado em sectores funcionaisem relação aos espaços interiores e a cidade. Frontispício côncavo, que absorve o mundo exterior; aesquerda, um ângulo saliente, o mais extraordinário da história da arquitetura, que penetra na ruelalateral; para esta dá uma longa parede opaca, com janelas quase episódicas, dissonantes; aodesembocar na praça do Orologio, esta parece incitar o edifício a projetar uma torre, como parairritar o céu com os seus arabescos lineares de ferro forjado. As estruturas «modernas» do passadodominam as clássicas. A villa sempre decompôs, articulou, aumentou ou subtraiu. Delacroixafirmava que a linha reta não existia. Os cientistas dizem-nos que a simetria não é uma lei danatureza. Analogamente, em arquitetura o classicismo não existe, somente nos manuais Beaux-Arts enos edifícios deles copiados.

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VES TRUTURAS EM CONSOLA,

COBERTURAS E SUPERFÍCIES

«Agora demonstrar-vos-ei por que razão a arquitetura orgânica é a arquitetura da liberdadedemocrática... Eis, digamos, a vossa caixa da construção (1): podeis fazer uma grande abertura, oumelhor, uma serie de aberturas mais pequenas (2), se vos aprouver; subsiste sempre a envoltura dumembrulho algo estranho a uma sociedade democrática... Estudei suficiente engenharia para saber queos ângulos da caixa não constituem os pontos mais econômicos para os pontos de apoio: tais pontosencontram-se colocados a uma certa distancia dos extremos (3), porque aí se criam uns pequenosressaltos laterais que reduzem a luz das vigas. Além disso, pode-se dar espaço a caixa (4)substituindo o velho sistema de apoio e de viga por um novo sentido da construção, qualificado pelosressaltos e pela continuidade. É um processo de radical libertação do espaço, cuja manifestação se vêunicamente nas janelas angulares; em contrapartida, e nele que se encontra a substância da passagemda caixa a planta livre, da matéria ao espaço... Prossigamos. As paredes tornaram-se independentes,não se fecham mais, podem encurtar-se, ampliar-se, perfurar-se, ou por vezes eliminar-se (5). Liber-

dade e não aprisionamento; podeis dispor as paredes-diafragma como vos parecer melhor (6), porqueo sentido da caixa fechada desapareceu. Mais ainda: se é valido na horizontal este processo delibertação, porque não há-de sê-lo na vertical? Ninguém olhou para o céu através da caixa

 precisamente daquele ângulo superior, porque ali estava a cornija, posta naquele lugar exactamente para que a caixa se tornasse mais evi dente... Eliminei a opressão da clausura em todos os ângulos, notopo e nas restantes partes (7)... Agora o espaço pode expandir-se e penetrar no cerne da própriavida, como uma sua componente (8).»(F. Loyd Wright, Na  American Architecture, ed. EdgarKaufman, Nova Iorque, Horizon Press, 1955, pp. 76-78) Wirght antecipa a sintaxe De Stijl e leva ateas profundezas a investigação lingüística partindo de considerações estruturais.

A idéia dos pontos de apoio colocados a uma certa distância das margens da viga é elementar;até uma criança se apercebe disso. Mas, quantos arquitetos tem essa noção? Olhai a vossa volta:contam-se por milhões os apoios colocados nos extremos, que com a sua estrutura de gaiolasobstruem o espaço. E os engenheiros? Salvo raras exceções, são vitimas dos preconceitos clássicos,

simetrizam e procuram a proporção. A história da engenharia esta repleta de compromissos.Exemplo notório a Torre Eiffel. Os quatro grandes arcos que dão a impressão de suportar o peso sãofalsos. O célebre engenheiro francês não se arriscou a enfrentar o «escândalo» de construir a torresegundo as autênticas formas construtivas: quatro pilares reunidos no topo; era necessário respeitar a«estaticidade visual» clássica ainda que com isso se contrariasse a realidade. Por essa razão aplicoude lado a lado uma grande viga, pesada e inútil, da qual suspendeu os arcos. Desta forma, os arcos,ao serem sustentados, criavam a ilusão do contrário: assim se satisfaziam os classicistas. Típicodesperdício cometido numa obra de engenharia.

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12. Oito esboços que ilustram os argumentos em torno da participação de cada elementoarquitectônico no jogo estrutural, desenvolvido por Frank Lloyd Wright. Em baixo: esboço daFalling Water House ou Casa da Cascata, residência do Kaufmann em Bear Run, Penn., realizada em1936-39, que incorpora as sete invariáveis da linguagem moderna da arquitetura.

Codificar a linguagem moderna significa libertar das cadeias do classisismo não só osarquitetos mas também os engenheiros, acabando com o velho conflito entre técnica e expressarão erecuperando-os para a criatividade; hoje em dia encontram-se mais ou menos inactivos.

Considere-se uma figura de prestígio internacional como Pier Luigi Nervi. Depois da obra-mestra dos hangares de Orbetello, magníficos pelo espaço que encerram, o volume que cobrem, assoluções angulares que projetam a estrutura na paisagem, produz-se uma regressão. Salvo de

Exposições, em Turim: módulos em si próprios espl~endidos, mas repetindo-se segundo a formulatradicional e sem poderem ser transportados até às paredes extremas. Para cúmulo, construiu-se umaabside horrorosa, agravada para além disso por uma decoração pseudo-estrutural. Palazzo delLavoro, em Turim: desgracioso caixote com colunas de cimento armado, providas inclusivamente deestrias e de capitéis em aço; só lhe faltam as colossais estátuas faraônicas para o converter numtemplo egípicio. Sala das audiências pontifícias, no Vaticano: sem comentários.

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13. Estruturas modernas. Em cima: secção do salão subterrâneo do automóvel, em Turim, projetado por Riccardo Morandi; transporte por meio de dirigível de uma torre residencial idealizada por Buckminster Fuller. No centro: três hiperbolóides hiperbólicas de Felix Candela; a direita,coberturas Eduardo Torroja. Em baixo: membranas de Frei Otto.

Palazzo dello Sport, em Roma: torta cilíndrica acerca da qual diremos apenas que está perfeitamente de acordo com o conjunt o fascista EUR projetado por Marcello Piacentini . Palazzettodello Sport, em Viale Tiziano: sem dúvida que é melhor, mas em que se apóia a coroa de forquilhasque sustenta a cúpula? Debaixo da terra oculta-se um anel circular de betão pré-esforçado,verdadeira ligação estrutural do organismo. E além disso, porque esta mania das cúpulas? Osimbolismo da cúpula corresponde a divindade, aos ídolos, as monarquias absolutas, aos santuários,

aos Estados ditatoriais; no plano psicológico, a segurança ou ao simulacro da mesma, dado que é aforma clássica por excelência, completamente simétrica e fechada. Nervi não se inspira nas cúpulasanticlássicas de Santa Sofia de Constantinopla, nem de Santa Maria del Fiore, em Florença, mas simno Panteão. Multiplica tours de force para reduzir a espessura do envoltório: onde o Panteãoacumula matéria, Nervi rasga toda uma série de janelas. Mas o espaço continua bloqueado, semdiálogo com o mundo que o rodeia: uma segurança à sombra dos ídolos clássicos não é mais do queum medo disfarçado.

Que aconteceu a Nervi depois dos hangares de Orbetello? Esgotou-se a sua criatividade? Bastaobservar a fábrica de papel Burgo, em Mântua, e inumeráveis pormenores das mesmas obrascomentadas anteriormente para excluir essa hipótese. O motivo é mais simples e mui to mais grave:quando Nervi fala arquitetura, fala latim, o código clássico que faz malograr a maior parte dosengenheiros. Quantos estão imunes em relação ao código? Em primeiro lugar Riccardo Morandi,especialmente com o salão subterrâneo do automóvel, em Turim; Buckminster Fuller, com as

cúpulas geodésicas aerotransportavéis e com os projetos de arranha-céus quase incorpóreos; EduardoTorroja, com as coberturas do hipódromo de Madrid; Felix Candela, com as hiperbolóides

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hiperbólicas; Frei Otto, com as estruturas tênseis transparentes, assim como muitos jovens que,lentamente, se vão libertando do código clássico, especialmente nas suas coberturas e superfícies, ouno revestimento de plástico e ar comprimido. Nestas «tendas» fundem-se arquitetura e engenharia, oespaço plasma as estruturas e é plasmado por elas.

A invariável estrutural da linguagem moderna esta menos relacionada com consolas, coberturase superfícies do que com o envolvimento de todos os elementos arquitectônicos numa sinfônia de

forcas estáticas. Sabe-se que a resistência de uma estrutura depende da forma, da tensão dascurvaturas. Mas quantos levam isso em costa? Vejamos uma varanda vulgar: o elemento quefunciona é a consola, não o parapeito; dai o desperdício. Observai, em contrapartida, a célebreFalling Water House. Parecia tão arrojada no lançamento do seu terraço que os trabalhadores serecusaram a retirar os andaimes, receando um desmoronamento. Mas o próprio Wright os arrancou,

 para espanto de quantos o presenciaram; também no campo da engenharia falava a linguagemmoderna, demonstrada em trabalhos que os «respeitadores» e os acadêmicos consideravam loucos esuicidas.

 No campo da construção, a ciência vegeta num estádio antediluviano. Há enormes organismosque, a semelhança dos transatlânticos, flutuam, mas as edificações urbanas pesam duma maneiraabsurda. Não se põe a render um imponente capital de experiências construtivas. Diz SergioMusmeci: «A falta de previsão tecnológica é a causa da crise atual da arquitetura e aquilo que aimpede de tornar-se verdadeiramente moderna. A história tem de ser atualizada, dando-se um salto

do passado para o futuro; o problema da futurabilidade das formas não pode adiar-se por maistempo.»Incitamento a utopia? Pelo contrário, incitamento à utilização dos calculadores eletrônicos que

resolvam a temática estrutural e tecnológica, incluindo a das instalações, com rapidez e exatidão atéagora inexeqüíveis. O computador difunde-se; no decurso de alguns anos desaparecera talvez oengenheiro tal como nos o conhecemos, imerso em cálculos tão misteriosos quanto aproximados.Contaremos com finíssimas estruturas, extremamente leves, prefabricadas e, por conseguinte,transferíveis. Talvez não seja necessário «irmos ao emprego» nem «regressarmos a casa»: com umsó carregar de botão, a casa ou o emprego, suspensos de um helicóptero, virão até nos, colocando-seno sitio onde quisermos.

14. Superfície ondulada, desenhada pelo computador da Aerospace Division da BoeingCompany. Seria quase impossível concretize-la com a ajuda dos rígidos instrumentos do arquiteto:régua e esquadro, compasso e maquina de desenhar. O computador estimula a invenção'o de formasatravés do enriquecimento do léxico, da gramática e da sintaxe arquitectônica

A revolução tecnológica coincide com a revolução lingüística. O computador permite simular arealidade arquitectônica, não de uma maneira estática, como a perspectiva, mas em qualquer aspectovisual ou de comportamento. Podemos verificar os dados espaciais de uma casa, as suas dimensões,a luz, o calor, a fluência. O simulador gráfico desenha plantas, secções, elevações, faz-nos percorrero edifício ou a cidade, torna possível uma infinidade de soluções alternativas. E óbvio que nãogarante que os arquitetos falem a linguagem moderna, mas oferece-lhes essa possibilidade,anquilosada até agora pelos mesmos instrumentos de desenho: a régua T, o esquadro, o compasso, amaquina de desenhar. Além disso, o computador converte a projeção num processo democrático: ocliente poderá controlar a qualquer momento a construção da sua casa, «vê-la-á», e mais ainda,«viverá» nela antes de estar acabada, poderá fazer opções e transformá-la. Finalmente, ficará

 preenchida a persistente lacuna, pelo menos a part ir do Renascimento, entre arquitetura e arquiteto.E igualmente a separação entre espaços e coberturas estruturais. Leiam-se as reflexões de JohnJohansen sobre a arquitetura da idade eletrônica: é um argumento especialmente revelador entretodos aqueles que apresenta.

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15. Gráficos realizados pelo computador da  Airplane Division da Boeing Company.Demonstram come é fácil representar um mesmo objeto desde variadíssimos pontos de vista,mediante simuladores acionados pelo computador. Graças a este suporte tecnológico, a fantasiaarquitectônica conseguirá uma prova imediata das suas hipóteses.

16. Caricatura da profissão arquitectônica após o aparecimento do computador, publicada noAIA Journal. O arquiteto, sem se mover do seu lugar, descreve a uma secretária a sua idéia e elatranscreve-a no computador, A maquinaria Põe-se em movimento e um robot constrói o edifíciotridimensional.

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VITEMPORALIDADE DO ESPACO

A história da arquitetura está pejada de oportunidades desperdiçadas, de longos passos em

frente e de longos retrocessos. Surge Miguel Ângelo; todos o elogiam, ninguém o segue. SurgeBorromini; isolado durante anos e anos, para depois ficar repentinamente esquecido. Após aRevolução de Outubro, surge o construtivismo; Staline, como bom classicist, congela-o. SurgeWright; no nosso actual panorama, quais as marcas deixadas por ele?

Compreende-se que sejam muitos os que abdicam. Não é fácil sair do regaço da academia. Nomelhor dos casos, chega-se a um acordo: a pior das soluções. Se houvesse um arquiteto com acoragem de proclamar: «quero falar grego antigo», poder-se-ia considerá-lo um louco, mas narealidade sê-lo-ia muito menos do que aqueles que falam grego antigo sem conhecerem o léxico nema sintaxe, cometendo erros gramaticais. Houve um único arquiteto do nosso tempo que procurou eencontrou a arquitetura da antiga Grécia, descobrindo-a directamente, sem os antolhos da escolaBeaux-Arts: Charles-Edouard Jeanneret, que passaria a ser conhecido como Le Corbusier depois doseu baptismo em águas gregas. Para falar verdadeiramente grego antigo, era necessário formular asinvariáveis: antiperspectiva, nada de alinhamento nem paralelismo de volumes, proibição da simetria

em nome dos propileus, veto para o classicismo em nome do Erecteu. Não são estas as invariáveis daarquitetura moderna? Certamente. Para a emancipação do condicionamento da perspectiva., foinecessário fazer um retorno a perspectiva das civilizações anteriores, geralmente a. Idade Media, eno caso de Le Corbusier a Grécia.

17. «Cheios»: um menhir, uma pirâmide e um templo grego (em cima). Espacos interioresestáticos: Panteão e Minerva Médica (segunda fila). Trajectos: acrópole de Atenas. Vlla Adriana,catacumbas de Roma (terceira fila). Monodireccionalidade paleocristã, bidireccionalidade gótica,

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movimento barroco da Praça do Quirinal, em Roma (em baixo).Considere-se Villa Adriana, em Tivoli: fala a linguagem clássica ou a diametralmente oposta,

com os seus blocos livres assentes em redor e estentendo-se na paisagem? «O mundo clássico»: umaabstração sem sentido, parece um paradoxo, mas é quase totalmente anticlássico.

Espaço temporalizado. Eis, enunciado sinteticamente, o cerne da questão: Foram necessáriosmilênios para que o Homem se apossasse do espaço. Somente durante um brevíssimo período e em

situações excepcionais se experimentou o tempo: nas catacumbas. Serão precisos séculos, talvezmilênios, para que o Homem capte a dinâmica noção da temporalidade do espaço.Para tornar-se moderno, todo o homem deve reviver em si próprio as etapas da história.

Anteriormente ao Panteão não existem espaços internos criados pelo Homem, mas somente espaçosvazios, resíduos negativos, não preenchidos. O homem primitivo tem o horror do espaço. O seumonumento é o menhir, uma «pedra Tonga» levantada no sentido vertical, algo cheio no desertoinfinito. O antigo Oriente multiplica os sólidos, desde as pirâmides aos templos, em cujas salashipóstilas há enormes colunas que usurpam o espaço. O templo grego humaniza o volume, masignora o espaço. A idéia de utilizar a realidade não táctil como instrumento arquitectônico plasma-seno Panteão: espaço, contudo, temeroso, encerrado entre gigantescas muralhas, sem contacto com oexterior, apenas iluminado por um óculo central que inunda de claro escuro a cúpula artesonada paraconfirmar que se trata de matéria sólida e pesada. Decorrerão séculos antes de o Homem admitir umdiálogo entre espaço interior e espaço exterior; devemos chegar até ao período antigo tardio, até ao

templo de Minerva Médica, em Roma. E o continuum readquire realidade depois dum milênio, nascatedrais góticas.Há um período durante o percurso no qual se condena o mundo físico e se põe a hipótese de

uma vida para além da morte. O Homem vive para a outra vida, desprezando os valores terrenos.Reprime-se o espaço: sob as cenografias estáticas e monumentais da antiga Roma escavam-seintermináveis hipogeus. O tempo sai vencedor e nasce a arquitetura que e um trajecto. Ascatacumbas eram apenas um trajecto, carente de meta: o preceito bíblico em tom metafísico,transcendental, uma arquitetura do suicídio. Durou muito pouco tempo. A Igreja, convertida a umcerto mundanismo, pactuou com o poder político- administrativo. O tempo fundiu-se com o sentidodo espaço da tradição greco-romana. Preservou-se a passagem ao longo da basílica, desde o nártex àabside, ainda que as colunas e as paredes de ambos os lados da nave se organizassem classicamente,imprimindo-lhe uma única direcção. Somente na catedral gótica encontramos o contraste entre duasdirectrizes: uma longitudinal, que pode percorrer-se fisicamente, outra vertical, que assinala um

trajecto ideal, em direção ao céu.Com o Renascimento limita-se a temporalidade. Prevalece o espaço puro, o objecto auto-suficiente, o edifício de planta cêntrica. A furiosa luta sobre a basílica de S. Pedro relaciona-se coma estase e o movimento, a Reforma e a Contra-Reforma. Massacra-se o esquema de Miguel Ângelo

 para dar Lugar a uma basílica «aparatosa». Mas Borromini faz reviver a idéia de Miguel Ângelo naigreja de Sant'Agnese, da Praça Navona, demonstrando assim, conjuntamente com Sant'Ivo allaSapienza, que o impossível era possível: as virtualidades dinâmicas de um espaço centralizado. Oseu brado triunfante extingue-se sem produzir eco.

A concepção bíblica da vida implica passagem e mudança. A greco-romana, espaço estático. Ocristianismo coloca-se num termo médio entre as duas posições num duvidoso equilíbrio: omovimento e multi-direccional no plano da Roma sistina e nas articulações das cidades barrocas.Depois surge a congelacão neoclássica.

Sexta invariável da linguagem moderna: o espaço temporalizado, vivido, socialmente

desfrutado, apto para recolher e realçar os acontecimentos. Ao incorporarem-se ao espaçotemporalizado, as cinco primeiras invariáveis adquirem uma nova substância. O catálogo converte-sena sua premissa. A assimetria e a dissonância são indispensáveis nas suas conotações, porque diantede um edifício simétrico as pessoas não se movem, apenas o contemplam. A antiperspectiva e outraconseqüência; temporalizar significa modificar incessantemente o ponto de vista. As estruturas dedecomposição e de projecção são instrumentos que determinam a temporalização e que, aofragmentarem a caixa, talham os ângulos.

É necessário temporalizar o espaço. Como? Louis Kahn indica um dos meios: distinguindo oespaço transitável dos espaços de «chegada». Um corredor: aquele que o concebe com paredes

 paralelas, como um prisma estático, desconhece o á-bê-cê da arquitetura. Tão-pouco podem serestáticos os espaços de chegada, a sala de estar, os quartos, a fim de favorecer a comunicação, atensão intelectual, o despertar depois do sono. A vida encontra-se se, pré repleta de acontecimentos;trata-se de regular o seu dinamismo, mas em nenhum caso se poderá reduzir a zero.

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118. Arquitetura sem edifícios: o projetista deve estudar as funções humanas, sem se preocuparcom a maneira de as revestir (em cima). Por conseguinte, deve evitar comprimi-las num prismaunitário ou numa serie regular de prismas (centro). A linguagem moderna da arquitetura adapta osespaços, as funções e aos trajectos humanos (em baixo).

Em qualquer compartimento se efectuam passagens, entra-se, atravessa--se, sai-se: tudo isto setem que prever, corporizar, arquiteturar. O que e a planta livre, o princípio da flexibilidade, aeliminação das divisórias fixas, a fluidez de um espaço para outro? Uma maneira diferente deexpressar a temporalidade. Na Villa Savoye, em Poissy, o volume, desde o solo ao terraço jardim,encontra-se separado por uma rampa que e visível de todas as partes. Le Corbusier denominou-a«promenade architecturale» : uma arquitetura para passear, para se percorrer.

É indubitável que as escadas são passagens, mas na maior parte dos casos encontram-se presasno interior de tubos verticais. No Pavilhão Sumo da Universidade de Paris sobressaem do volume,enquanto que as acaricia uma parede encantadora «de mão livre». Um exemplo mais avançado: asescadas fundidas com os corredores, realçando espaços e volumes, formando serpentinas dentro dosdormitórios do Massachusetts Institute of Technology (MIT) de Aalto, em Cambridge. Outro salto:uma arquitetura totalmente transitável? O Guggenheim Museum, de Nova Torque, itineráriocontínuo, promenade helicoidal extrovertida.

 Norris Kelly Smith sustenta que, com Wright, o pensamento bíblico entra pela primeira vez nocampo arquitectônico, dominado durante dois mil anos pelas concepções greco-romanas. E claroque, por não ter tido uma educação Beaux-Arts, a libertação do classicismo foi-lhe facilitada. Alémdisso, odiava as grandes cidades, as instituições burocráticas, a autoridade, o poder, mantinha intactoo orgulho individual dos pioneiros. Em Taliesin, no Wisconsin, e em Taliesin West, no Arizona,vivia em contacto com a natureza, era um entendedor e um estudioso do tempo. Por outro lado,

ninguém situa uma casa sobre uma cascata se não adquiriu consciência do fluir das coisas. NoGuggenheim Museum uma faixa de vidros estende-se em redor da espiral, a fim de iluminar osquadros mediante um doseamento de luz exterior e de luz artificial: temporaliza a paisagem desde a

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cidade ao museu e vice-versa. A parte invadida muda do tom em cada hora e em cada estação.Temporalizar. Onde? Em todas as partes. Como? De diversas maneiras. Nos soalhos, por

exemplo. Pode admitir-se que o pavimento de um corredor seja igual ao de uma sala de estar, de umacasa de banho, de um estudio ou de um quarto? Isto é, que a velocidade de movimento e a suamaleabilidade sejam as mesmas em espaços com funções completamente diferentes? Quemestabeleceu uma regra tão inane? O classisimo. E em que bases? Não será certamente o chamado

 período clássico que revela uma sensibilidade utópica dos movimentos: a acrópole ateniense ergue-se num terreno rochoso, rústico, assim conservado para impor um avanço lento, arquitetonicamentecalculado. Cada espaco deveria ter um pavimento que o diferenciasse: duro, macio, coberto decascalho, liso ou impraticável, oblíquo, mas que fosse ponderado. Diz Einstein que o acontecimentonão se localiza somente no tempo mas também no espaço. Idéia revolucionária que em arquiteturanão foi contudo assimilada. O que se traduz na seguinte invariável: projecção aberta, constantementeem vias de realização, temporalizada, inacabada.

19 Frank Loyd Wright, desde o catálogo a reintegração. Em cima: axonometria das casasMartin e Barton, construídas no Buffalo, N. I., em 1903-1904, segundo uma metodologia quearticula os corpus funcionais isolados. Em baixo: esboço do Guggenheim Museum, de Nova torque,de 1946-59, espiral extrovertida sobre a metrópole.

VIIREINTEGRACAO

EDIFÍCIO-CIDADE-PAISAGEM

Se a metodologia do catálogo constitui a primeira invariável da linguagem moderna,logicamente a reintegrada é a última; entre estas duas, cinco invariáveis que poderiam multiplicar-sequando se passasse do nível básico a uma ampla analise do léxico, da gramática e da sintaxearquitetonica.

O catálogo desintegra o bloco, enumera os elementos sem os classificar, torna a semantizá-los

dentro das mensagens individuais asfixiadas pelo classicismo nas «ordens» e nas seqüências proporcionais. As suces sivas invariáveis confirmam o catálogo destruindo os tabus da simetria, daassonância, dos traçados geométricos, dos planeamentos da perspectiva, decompondo o volume em

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 painéis, libertando os ângulos no plano estrutural, temporalizando o espaço; contudo, ao procederemdeste modo, estimulam no sentido duma reintegração dos elementos catalogados. A própria plantalivre constitui uma etapa no caminho reintegrador porque postula a máxima comunicação e fluênciaentre os espaços, unificando-os. No entanto, não se trata de síntese classicista, estática, apriorística,mas precisamente do contrário: de uma unidade dinâmica que recupera o movimento, ajustando oespaço ao tempo. E claro que, fisicamente, também se caminha dentro de um edifício clássico, mas o

homem tem sempre a impressão de ser um estranho e um indesejado nesse Lugar: aqueles espaçosnão foram construídos para ele mas para imóveis simulacros. O formalismo dos túmulos.Adolf Loos investigou o princípio da reintegração vertical no Raumplan, interligação de células

espaciais a diversas alturas, que multiplicam

20. Raumplam e reintegração. Em cima: os níveis escalonados rompem a sobreposiçãomecânica dos planos, garantindo a cada habitação uma altura funcionalmente correcta, semdesaproveitamentos. Em baixo: uma visão urbana que reintrega equipamentos colectivos,residências, ruas e parques,rede de transportes, jogando com uma pluralidade de níveis.

a superfície habitável, com o que se economizam e aumentam os valores artísticos. A zonareservada aos serviços ou aos quartos de dormir pode ser mais baixa que a sala de estar? Exploremosa diferença altimétrica para conseguir em troca outros espaços dos quais possamos desfrutar,íntimos, atractivos, acessíveis mediante alguns degraus. Máxima fantasia na sobreposição desigual=máxima economia espacial. No palácio romano Littorio de la Farnesiana, utilizado inopinadamentecomo sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, há lavabos de sete metros de altura,correspondente a dos maiores salões: deveriam servir para libertar as viscerais exigências degigantes fabulosos ou de duques montados em andas de cinco metros pelo menos; em contrapartida,são utilizados por homúlucos que, naquelas retretes imperiais, parecem deslocados. A esquizofrenia

do classicismo.Reintregação horizontal e vertical, percursos em todas as direções, já não esquadrados emângulo recto, mas curvilíneos, oblíquos, inclinados. Este princípio leva-nos para além do edifício,

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reintegrando-o na cidade. Uma vez dividido o volume em painéis que depois se interligam no sentidoquadridimensional, desaparecem as fachadas tradicionais, desfaz-se toda a diferença entre o espaçointerior e exterior, entre arquitetura e urbanística; da fusão edifício-cidade nasce a «urbatectura».Jamais terrenos ocupados por edifícios ou terrenos vagos com ruas e praças; desenredai a trama ereintegrareis a paisagem. Ao abolir-se a antiga dicotomia cidade-campo, a urbatectura dilata-se noterritório, enquanto que no tecido metropolitano se introduz a natureza. Cidade-paisagem, nada de

acumulações superpovoadas, contaminadas, caóticas, homicidas, por um lado, e campos desolados,abandonados, por outro.Uma utopia? Sê-lo-á apenas enquanto subsista como uma vaga aspiração. Se no design, na

decoração, no vosso quarto, nos edifícios a qualquer escala se converte em língua falada, adquirirauma forca envolvente, Os arquitetos e todos quantos estão interessados no habitat disporão de umaarma revolucionária, não em sentido genérico, no âmbito da arquitetura, mas explosivo, em virtudeda arquitetura. Se falamos a linguagem moderna, apresentam-se dois casos: ou nos permitem que nosexpressemos ou teremos de eliminar os obstáculos que nos impedem de o fazer. Luta contra acensura. É a especulação imobiliária que impede a liberdade de falar? Temos de combatê-la com umvigor proporcional à exactidão da linguagem urbatectônica; a nossa causa ficará mais

21. John Johansen, desde o catálogo a reintegração. Parte das componentes básicas doMummers Theater, em Oklahoma City, dispondo-as sobre o terreno («place it»). Continua com asestruturas («support it») e com os tubos de comunicação («connect it»), para acabar num edifício-cidade em diálogo com o ambiente.

debiilitada se pensarmos que, uma vez colectivizado o uso do solo, não mudará nada em termosde censura arquitectônica, como na URSS.

Como é óbvio, também esta última invariável tem conseqüências funcionais. Depois de se tercatalogado e decomposto as funções do edifício, do bairro, da cidade, da paisagem, convém repensaras suas relações. Por que motivo uma escola deve constituir uma estrutura de par si, em vez de sefundir com o centro social, as repartições administrativas locais, as fábricas, os estúdios

 profissionais, as residências? Convém separar as vivendas das zonas de recreio e dos núcleoscomerciais ou não será necessário favorecer uma interpenetração das funções? Considerem-se as

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universidades, noutro tempo constituídas por diferentes faculdades separadas, cada uma provida deum edifício próprio, de uma aula magna própria, de uma biblioteca específica; hoje a culturainterdisciplinar instiga a romper o seu isolamento. Além disso, as universidades devem espalhar-se

 por zonas afastadas das cidades, como nos tradicionais campuses ingleses e americanos, ou penetrarcapilarmente no circuito do habitat e dos lugares de trabalho?

As ruas também se reintegram. Em alguns andares da Unite d'Habitation, em Marselha, Le

Corbusier inseriu uma série de lojas, reintegrando a actividade comercial e a residência; aoscorredores deu-lhes o nome de «rues», ruas interiores. Mas, por que razão os canais que constituemas ruas da cidade não hão-de distender-se ao nível do décimo ou quinquagésimo andar, projetando-seentre os arranha-céus, estruturando o céu? Existem inumeráveis projetos utópicos que assinalamestas novas imagens urbanas e vários exemplos realizados que as prefiguram.

O edifício da Ford Foundation, em Nova Iorque, tem um parque interior coberto, sobre o qualse levantam os escritórios. Em Roma, o palacete da Via Romagna reintegra, sobrepondo-as, a funçãocomercial (lojas), a administrativa (escritórios) e a habitacional (casas). O Mummers Theater, deOklahoma City, foi construído com materiais heterogêneos, pedaços de metal, peças de automóveisdestruídos e tubos, action architecture, como o demonstram os esboços de Johansen. O Habitat ´67,de Montreal, acumula células incrustando o espaço arquitectônico com o urbano, com ruas a todos osníveis. Ampliado, poderia acomodar no sentido da altura escolas, hospitais, praças, jardins e

 parques; uma espécie de bricolage que Louis Kahn queria que fosse flutuante, livre geometria.

Macroestruturas que não se podem preterir por mais tempo, a não ser que se resolva o problemademográfico com uma guerra nuclear, mas que não se tornem aterradoras, antes pelo contrário,sejam reconfortantes e vivas, tão estimulantes nos espaços colectivos como íntimas nos privados.

Reintegrarão cidade-campo; por conseguinte, arquitetura-cenário natural. A psicanálise e aantropologia demonstram que o homem, no decurso da civilização, perdeu certos valores essenciais:a unidade do espaço e do tempo, a componente nômade, errante, o prazer de vaguear sem asimposições da perspectiva. Devemos e podemos recuperá-los: as

22. Bricolage de células residenciais do Habitat '67, em Montreal, projetado por Moshe Safdie.Em cima: dois cartoons do Habitat, executados por Ting e Daigneault. Em baixo: um esboço deLouis Kahn que, ao mesmo tempo que critica a rigidez de caixote que as células apresentam, propõeuma reunião livre, «coma as folhas nos ramos duma árvore».

comunidades hippies, a revolta juvenil contra a sociedade de consumo, a cidade magmática ecruel, as instituições repressivas são sintomas desta urgência de renovação cultural. Mas recomeça-

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se avançando, oferecendo alternativas concretas, adoptando a linguagem moderna que permiteexpressá-las; de outro modo, fica-se atolado no protesto romântico, bloqueado no grau zero.

Como sempre, queremos exemplificar em relação a coisas tangíveis, verificáveis, o leitor podefazer por sua conta as extrapolações à escala da cidade-região e de territórios urbanizados. Quesignifica reintegrar a aiquitectura na natureza? Entrai numa caverna ou numa gruta natural, possívelrefúgio do homem pré-histórico. É necessário caminhar sentindo n terra, fruindo a terra, felicidade

 perdida com as nossas ruas asfaltadas e os soalhos encerados. O teto não será esquadrejado, prossegue pelas paredes arqueadas e ásperas, prolonga-se no próprio solo. A luz, incidindo sobre asmassas rochosas ou aflorando a abobada, consegue efeitos mágicos, arrebatadores, que mudam coma passagem das horas. Quando se trata de grutas marinhas, as águas refletem a luz depois de a colorirnas suas profundezas, a luz move-se com as ondas, regista o ceu sereno ou enevoado, comunica comos ventos. São valores abandonados, que a linguagem moderna redescobre. Na capela deMassachusetts Institute of Technology, Eero Saarinen iluminou o espaço com uma luz trêmula,reverberada na água. Recurso que suscitou controvérsia mas que, no entanto, é esclarecedor. Areintegração arquitetura-natureza processa-se de uma maneira científica, sobre as bases de estudosantropológicos, sociológicos e psicanalíticos; o código moderno assim o exige.

Do catálogo à reintegração: sete invariáveis testemunham contra a idolatria, os dogmas, asconvenções, as frases feitas, os lugares-comuns, mais ou menos humanistas, os fenômenosrepressivos como quer que se manifestem, onde quer que se ocultem, no consciente ou no

inconsciente. A nova linguagem «fala-nos», desde os futuristas a pré-história, isenta de misticismos;nela confluem a idéia de Moisés e a palavra de Aarão.

23. Em cima: recuperação dos valores tácteis e figurativos das cavernas pré-históricas numedifício comunitário com estruturas pneumáticas, projetado por J. P. Jungmann do grupo francêsUtopie. Em baixo: cenário de reintegração urbana, com macroestruturas e tubos de comunicação,

 proposto pelo grupo inglês Archigram.

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CONCLUSÃOArquitetura não acabada e Kitsch

Comparem-se duas teses: o grito iconoclasta de Friedrich Hundertwasser e as melancólicasreflexões de Mr. Sammler de Saul Bellow.

Afirma o primeiro: Todo o homem tem o direito de construir como quer. Hoje a arquitetura éobjecto de uma censura idêntica a que aflige a actividade dos pintores na URSS. Todo o indivíduo

deveria ter a pós-sensibilidade de construir as quatro paredes entre as quais vive, assumindo aresponsabilidade da sua feitura. A arquitetura actual é criminosamente infecunda. Isto deriva do fatode o processo de construção se deter logo que o untente entra na sua morada, quando deveriacomeçar precisamente nessa altura e desenvolver-se como a pele em volta de um organismo humano1.» Por conseguinte, os arquitetos para a fogueira e restituição ao povo, aos consumidores, das suastarefas e privilégios.

Mr. Samrnler depara-se-nos muito mais céptico perante a espontaneidade criadora: «Portanto,uma espécie louca? Sim, talvez. Mesmo que a loucura seja também uma mascarada. Que fazer,então? Permanecermos no âmbito dos histriões, ver, por exemplo, o que fizera aquele furiosoagitador do mundo que era Marx ao insistir que as revoluções se engendravam trajes históricos, oscromwellianos ataviados como os profetas do Antigo Testamento, os Franceses em 1789 disfarçadosde Romanos antigos. Mas o proletariado, disse ele, declarando afirmativamente, ia fazer a primeirarevolução original. Não teria necessidade da droga da recordação hitórica. Da ignorância pura e

simples, do desconhecimento de todo o modelo, nasceria a coisa pura. A originalidade transtomava-lhe a cabeça, igualmente como a todos os restantes. E a única classe original era a trabalhadora... Oh,não. Não e não, de modo nenhum, considerou Sammier.» A sociedade proletária de Staline copiara aarquitetura da autocracia e do despotismo; no Ocidente, os contestatários globais «derivavamevidentemente de alguma coisa. De que? Dos Paiutes, de Fidel Castro? Não, dos comparsas deHollywood. Pretendiam-se místicos...Será muito melhor aceitar a inevitabilidade da imitação e imitaro que é bom... Grandiosidade sem modelos? Inconcebível. Convém, pois, pactuar com ointermediário 2.»

É necessaria uma linguagem arquitectônica, Sammler tem razão, mas a linguagem moderna daarquitetura possui uma força libertadora que se dirige aos objectivos de Hundertwasser: ensina a

 profanar cânones e preceitos iluministas para multiplicar as opções concretas. As sete invariáveisdescritas referem-se a modelos concretos, desde a Casa Vermelha de William Morris até as obras-mestras de Wright, Le Corbusier, Gropius, Mies, Aalto, para chegar as experiências recentes de

Safdie e Johansen e também, através do passado, até Borromini, Miguel Ângelo, Rossetti,Brunelleschi e ao mundo medieval, a baixa Antiguidade, a Villa Adriana, as acrópoles helênicas emesmo a pré-história —para sustentar que a linguagem moderna da arquitetura é unicamente alinguagem da arquitetura moderna, pois capta as heresias e dissonâncias da Historia, as inumeráveis«excepções a regra», hoje finalmente emancipadas e capazes de vertebrar uma linguagem alternativa.

Participação: estandarte agitado por jovens políticos, sociólogos e artistas, não sem uma ampladose de demagogia. Qual o seu significado em arquitetura? Colocar nas mãos das pessoas a régua T,os esquadros e os compassos, exortando-as: «Construi como quiserdes»? Não fariam mais quemacaquear os modelos clássicos mais retrógrados. Apresentar várias soluções para depois dizer:«Escolhei»? Com que critério? Interpretada desta maneira, a participação converte-se num slogan.Quando, na verdade, e um corolário essencial das sete invariáveis da linguagem moderna

Desde o catalogo até à reintegração, estas invariáveis exigem a participação, devido aapontarem para o não acabado, para um processo de formação, não para a forma, para uma

arquitetura apta ao desenvolvimento e à transformação, já não isolada, mas disposta inclusivamente aentrar em diálogo com a realidade exterior, a conspurcar-se pondo-se em contacto com o Kitsch. Não

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8/20/2019 A Linguagem Moderna Da Arquitetura

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há ninguém que queira objetos «belos» e consoladores. A arte desce do seu pedestal para ir aoencontro da vida e capta os valores estéticos do feio, da banalidade. Burri pinta trapos; Oldenburgdescobre a mensagem de uma máquina de escrever «soft» , impraticável; o ruído não é antimúsica,mas musica «autre»; por outro lado, também em arquitetura, o Mummers Theatre acumula restoscomprados no ferro-velho.

O não acabado incide em toda a extensão do itinerário histórico, desde Mnésicles a Rossetti e a

Palladio, culminando em Miguel Ângelo. Mas a arte contemporânea codifica-o no impulso de um processo de comunicação interrompido, que exige que o usufrutuário o integre. Portanto, a participação não é um dom paternalista, mas uma característica inerente a elabo ração da obra aberta.Considere-se a urbanística.

24. Projeto de um «projeto de cidades»: Plug-in City, elaborado pelo grupo inglês Archigram.Para salvaguardar o território do magma dos edifícios, favorecendo uma vida social mais intensa,necessita-se de grandes condensações urbanas, de florestas de arranha-céus conectados a diferentesníveis, funcionalmente reintegrados, rodeados de extensas zonas de vegetação.

Os classicistas crêem nos planos reguladores definitivos, somente realizáveis com os regimesditatoriais. Em contrapartida, os arquitetos modernos lutam por uma planificação aberta e contínuaque corresponda constantemente às expectativas, sempre novas, da sociedade. Os primeirosdesenham «cidades ideais» de tipo renascentista, abstractas, utópicas, perpetuamente frustradoras.Os segundos pensam em projetar, não a cidade, mas o projeto da cidade, uma hipótese do seu futuroque, com o tempo, se transformará em formas diversas e imprevistas.

Como fruto das sete invariáveis, o lido acabado é condição para que a arquitetura se encontreenvolvida na paisagem urbana, assimile as suas contradições, se afunde no lixo e no Kitsch, com oobjectivo de os recuperar a nível expressivo. Os sociólogos revelam que nos  slums, bidonvilles,favelas e barriadas existe um intenso intercâmbio comunitário que é ignorado nos bairros«planificados» de casas populares. Por quê? Porque a estes últimos falta a aventura, o espírito

 pioneiro, o sentido de vizinhança, o Kitsch espontâneo, com os seus aspectos negativos e, noentanto, impregnados de vitalidade. Pois bem, na linguagem moderna não acabada a participação é ocomplemento estrutural indispensável da ação arquitectônica.

Tudo está contido nisto. As sete invariáveis oferecem um vade-mécum para a projeção. Não hánenhum arquiteto certamente nem Wright, nem Le Corbusier, nem Mies, nem Aalto; só talvezJohansen — que as subscreva em bloco. Sete heresias ou testemunhos contra a idolatria classicista,intoleráveis se tomadas no seu conjunto. Pouco importa. Com este vade-mécum na algibeira, cadaum poderá aplicá-las conforme o seu desejo. Haverá alguns que não as aplicarão na totalidade.Marcuse define-os como «os insensatos e os não comprometidos, os fugitivos de qualquer tipo dernisticismo, os parvalhões e os velhacos, aqueles a quem nada importa, aconteça o que acontecer».

1- Friedrich Hundertwasser, Manifesto for the Boycotting of Architecture.2- Saul Bellow, Mr. Sammler´s Planet, Nova Iorque, Viking, 1970, pp.148-149.