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A LINGUAGEM VISUAL NA CONSTRUÇÃO DE IMAGENS FEITAS DE
PALAVRAS
Edina Regina P. Panichi (UEL)
Pedro Nava, em suas memórias, demonstra uma fantástica capacidade de
conservar e retomar certas impressões do passado de forma artística e reveladora. São
várias as passagens em que o autor - fascinado pela escala cromática que oferecia os
crepúsculos de Belo Horizonte - descreve ocasos, de perspectivas diversas, partindo da
releitura de telas de autores famosos que lhe permitem acesso direto às paisagens que
evoca.
Imagem corresponde à idéia de semelhança. Corresponde a algo a que ela
equivale, ou seja, é sinônimo de identidade ou de identificação com alguma coisa
existente anterior ou exterior a ela. Baseado neste pressuposto, o memorialista dá asas à
imaginação no que diz respeito aos referenciais plásticos e visuais que lhe servem de
apoio na configuração iconográfica dos crepúsculos de Belo Horizonte, descritos na
obra Beira-Mar: memórias 4. A leitura que o autor faz das telas revela os valores
plásticos que são transportados para o texto escrito num movimento intersemiótico, um
movimento tradutório que, através de signos verbais, brinca com palavras e imagens
importadas da pintura numa busca de retratar o intenso colorido do céu mineiro cuja
realidade está também sendo recortada e transformada em obra de arte.
Pedro Nava revela, em sua escrita, plasticidade de raciocínio. Focaliza o
movimento tradutório que se realiza na sua criação, ou seja, o modo como a pintura vai
sendo poeticamente incorporada à obra, num entrelaçar de linguagens. O movimento
tradutório do visual para o verbal processa-se através de imagens calcadas no
“espetáculo prodigioso e gratuito de Belo Horizonte”. Percebe-se um quadro sendo
pintado com palavras em que o autor vai clareando, escurecendo, misturando ou
justapondo cores na sua palheta para ver que efeitos consegue alcançar na captação da
mutante paisagem.
As imagens dos crepúsculos, observadas e vivenciadas pelo autor, ficaram
registradas em sua mente aguardando o momento de serem decodificadas em linguagem
verbal. A percepção de tais imagens é única, tem a ver com as experiências vividas e o
olhar singular de quem as observa. A criação está atrelada à percepção da imagem e ao
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modo como o autor vê o mundo, reconhecendo a realidade para traduzi-la em signo. As
impressões sensoriais vão sendo transformadas em imagens mentais e traduzidas para
linguagem verbal. Ao divisar, do alto, um por do sol no verão belorizontino, Pedro
Nava inicia sua descrição tendo como suporte o quadro Combate das Amazonas de
Pedro Paulo Rubens:
No princípio era só luz e como que uma sucessão de metais cortantes – faíscas purpurinas pontas de lanças ensanguentadas, cimitarras de prata gotejando púrpura, cascos de ouro lampejando na carreira, mantos rubros se afinando como focinhos, se levantando como patas, que nem tubas e cornetas. Longe parecia que se ouviam clarins esmaecendo indo-se embora. Viam-se braços no céu, brandindo armas, cabeças voando decepadas e mãos escorrendo vermelho.
Percebe-se a incidência da luz irradiando da paisagem, evocando a tela de
Rubens em seus detalhes: faíscas purpurinas, pontas de lanças, cimitarras de prata,
cascos de ouro, mantos rubros, clarins. Tais detalhes aparecem esboçados nas nuvens
que, rapidamente, mudam suas formas e as cores cambiantes aparecem, ativando a
percepção do leitor, enquanto o autor prossegue a sua descrição:
Mas já mudav’o ar, as cores iam cambiando, tornavam-se mais nítidos certos contornos e as tonalidades escuras de caudas, crinas e couraças disparando sobre bancos de coral. Um instante tudo se configurava e surgiam personagens que duravam um segundo compondo as cores densas, os amarelos, os encarnados, os baios, os marrons e os negros do Combate das Amazonas de Pedro Paulo Rubens.
O autor, agora, vislumbra os personagens da pintura que aparecem nitidamente,
mas por pouco tempo, enquanto novas configurações tomam o lugar das formas
anteriores:
A tela esplendia um instante e logo desmerecia quanto mais mergulhava o sol. Um vapor pardo ia subindo que a devorava, deixando nas zonas mais claras e onde se arrastava ainda memória do dia, um fundo que empalidecia seu metal logo ocre todo riscado de cirros cor de café, de castanha, casca de árvore. O biochênio das nuvens diminuía sua densidade, ia-se degradando em livores roxos e a lua, agora livre do poder do sol, fazia ressaltar as nuvens cavalos, as nuvens guerreiros, as nuvens guerreiras de há pouco, transformando-as em multidões de fantasmas e corpos despidos esvaziados de todo sangue. Caíam em torvelinhos, multidões puxadas funilarmente, legiões de anatomias nuas em torrente descendo para abismos muito
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pralá do horizonte. Ainda era Rubens em Os condenados caindo no inferno. (NAVA, 1979, p. 262)
Finalmente o jogo de luz e cores se interrompe com o fluir de novas formações
que, neste instante, reproduzem a tela Os condenados caindo no inferno, do mesmo
artista flamengo, numa interpenetração de literatura e pintura, o que resulta numa
realidade virtual que só o autor tem acesso pela imaginação criadora. As pinturas de
Rubens enfatizam movimento e sensualidade e se destacam por possuírem um estilo que
envolve uma rica, surpreendente e emotiva mistura de cores, luz e movimento,
elementos fundamentais para a descrição de Nava.
Ao focalizar a tradução intersemiótica que se realiza na criação, o modo como a
paisagem vai sendo incorporada à obra e o aproveitamento das telas, o autor assimila
essa visualidade e a transforma em prosa poética. Percebe-se, assim, a plasticidade do
raciocínio do autor que soube justapor a sua escrita e as pinturas mencionadas,
sugerindo um jogo de contrastes e oposições e todo um caminho de analogias traçadas
pela mente criadora.
A narrativa cria um ritmo que evoca os grafismos das paisagens: rapidez,
urgência e a necessidade de abarcar vários instantes, ao mesmo tempo, para não perder
de vista o que vai na mente. Que seria das descrições do autor não fosse a pinacoteca
que trazia na memória? Observando as telas e as passagens que lhes fazem referência,
percebemos que Nava busca nessas imagens não uma cópia da realidade, mas uma
tapeçaria de percepções imprescindíveis à sua necessidade de expressão. O seu domínio
linguístico não envolve apenas a riqueza do vocabulário, mas também a capacidade de
descrever uma paisagem como se pintasse, combinando cores e arranjos à maneira do
artista.
A fim de respaldar as suas descrições, Pedro Nava baseia sua escrita em
reproduções das pinturas mencionadas que se encontram arquivadas entre seus
documentos de processo. Assim, toda essa proposta visual vai se delineando já nos
manuscritos, enquanto o autor vai testando a utilização das imagens ao longo de suas
descrições. Ao recompor os crepúsculos, Nava tinha consciência de que não poderia
resgatá-los em seu inteiro teor, mas ao menos, reproduzi-los, com o auxílio da memória
e amparado pelas telas de Rubens.
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Fig. 1 Combate das Amazonas (arquivo do autor)
Fig. 2 Os condenados caindo no inferno (arquivo do autor)
Os elementos que serão aproveitados no desenrolar da escritura demonstram que
as imagens do mundo da criação naveana já vêm esboçadas, antes mesmo de o texto
começar a ser produzido, na busca de apontar os elementos operacionais que compõem
o espaço em que o autor trabalha. A retórica verbal desse texto-pintura lança mão dos
mesmos artifícios empregados nas artes plásticas. As tonalidades das telas multiplicam-
se no texto como se estivessem em fusão, derramando-se em matizes diversos. As
anotações que servirão de suporte à escritura têm a finalidade de manter a sensibilidade
suspensa. Assim, estes registros denunciam a presença da visualidade das lembranças
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provenientes do inconsciente do autor que, através delas, tenta recompor criativamente a
realidade vivida:
É necessário que as idéias se façam palavras articuladas entre si, que se tornem imagens poéticas. Que se façam texto. E é no jogo energético de todos os possíveis que a trama dos manuscritos vai se desenvolvendo e se desdobrando num todo coerente. (ANASTÁCIO, 1999. p.55)
O deslumbramento, agora, era divisado da Floresta, um bairro onde o autor havia
morado e, por essa razão, um dos pontos eleitos por ele para assistir a mais um
“estardalhaço cósmico”. Os elementos explorados, neste instante, são as formas das
rochas. As nuvens, vistas da ribanceira onde se encontrava o autor, assumiam
contornos rochosos que logo se desfaziam para retomar sua ação transformadora.
Componentes urbanos, agora, se interseccionam com locais históricos na nova
realidade cromática. O autor vai buscar em cada cidade, cultura e civilização eleitas,
elementos que as identifiquem e possam ser utilizados na escala de cores daquela
hora crepuscular. O levantamento de dados feito pelo autor demonstra a sua
preocupação em ser o mais fiel possível às suas lembranças. Também demonstra
que o ato de escrever está “sujeito não só ao trabalho da imaginação, mas como
resultado de uma lenta e minuciosa pesquisa.” (SOUZA, 2004, p. 35). Os bastidores
da criação naveana permitem-nos perceber um entrecruzamento entre memória,
escrita e arquivos, artifícios empregados com vistas à descrição pormenorizada dos
lugares da memória, da recomposição de um passado que se desenha no momento
da escritura. Os documentos de processo confirmam o exposto:
Fig. 3 Levantamento de formas rochosas arquivadas pelo autor
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Fig. 4 Levantamento de componentes urbanos e cidades históricas
A descrição das formas tomadas pelas nuvens é a que segue:
Mas encarávamos os altos e o ocidente. Uma vibração percorria os céus agitados pelos milhares de cocares multicores das “tribus rubras da tarde” fugindo para mais longe e afinal se perdendo dentro das nuvens do horizonte. Essas nuvens fazendo blocos, rochedos, rocas, picos, cristas, anfractuosidades, escarpas. Logo o vento as mudava, os cúmulos se desenrolavam em largas ruas, jardins, avenidas, passagens, becos de burgos pendurados de morro abaixo como Andorra e Rocamadour ou eram metrópoles antigas que ressuscitavam às cambiantes do sol. Sodoma e Gomorra amarelas de enxofre. Atenas, Tiro e Gaza todas de ouro. Nínive, Semíramis e Pasárgada como cobre virando cinábrio. Micenas, Megara e Sidônia feitas de olivinas férricas. Em chama, Roma. Pompéia e Persépolis em chamas rubracundas e sobre todas o sol descendo como o ferro derretido da corrida dos altos-fornos. Um último clarão tira do negro Samarcanda onde muitos terão de chegar antes da noite para encontrar a Imperatriz. Ce soir à Samarcande... (NAVA, 1979, p. 266)
Nava inicia sua descrição fazendo um jogo intertextual com a poesia de Mário
de Andrade. O autor esteve em Belo Horizonte em 1924 integrando a caravana
paulista e foi festivamente recebido por Carlos Drummond de Andrade e Pedro
Nava, dentre outros mineiros. Como resultado desta visita, alguns poemas de Mário
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vieram à tona. A Serra do Rola Moça foi um deles. Em um dos versos, Mário se
refere às nesgas de sol que passam pelos vales, ressaltando o colorido avermelhado
do entardecer, certamente a mesma paisagem que avistaram os noivos do poema
quando retornavam da cerimônia de seu casamento, cavalgando através da serra. O
reflexo do sol imitava um cocar multicolorido, daí “as tribus rubras da tarde”,
citadas pelo poeta.
A escolha de Andorra e Rocamadour se dá pela seguinte razão: ambas estão
localizadas em terras rochosas e encimam montanhas. O amarelo de enxofre de
Sodoma e Gomorra também se justifica. A história das duas cidades é amplamente
conhecida. Ambas teriam sido destruídas por Deus, com fogo e enxofre, em virtude
da conduta imoral de seus habitantes. O ouro de Atenas, Tiro e Gaza advém da
riqueza de tais civilizações. Semíramis e Pasárgada estão colocadas no mesmo
patamar de Nínive que, no tempo de sua prosperidade temporal, era um centro de
crime e impunidade, caracterizada como “cidade ensanguentada”, daí a intensa cor
avermelhada envolvendo a sua históriai. Micenas, Megara e Sidônia têm em comum
o fato de serem cercadas por montanhas e muralhas, daí serem feitas de “olivinas
férricas”. Roma em chamas alude à loucura de Nero, o imperador que a incendiou.
Pompéia e Persépolis foram, também, ambas consumidas pelo fogo. O efeito
cenográfico se fecha com a proximidade da noite: Ce soir à Samarcande. O
emprego da expressão alude ao encontro inevitável com a Imperatriz, ou seja, a
Morte, aqui representada pela escuridão.
A propósito, são várias as expressões empregadas pelo autor para referir-se à
morte: “a indesejada das gentes”, numa alusão a Manuel Bandeira, “a Cachorra”,
lembrando Pedro Dantas (Prudente de Morais Neto), “A Dama Esfaimada”, “a
Esganada”, “A Intrusa”, dentre outras. (Cf. PANICHI e CONTANI, 2007, p. 158).
Os arquivos de Nava revelam a preocupação do autor em respaldar,
documentalmente, a sua escrita. Esses documentos de processo configuram o
universo memorialístico de forma sistematizada e representam o suporte sobre o
qual o texto foi promovido à existência, o que demonstra que
(...) a produção literária não é o dom dos deuses e das musas (mito da inspiração), nem mesmo o resultado da aplicação automatizada de um simples savoir-faire poético (mito da fabricação), mas uma forma dinâmica permanente entre trabalho do desejo e trabalho sobre a língua. (GRÉSILLON, 2007, p. 269)
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Nava não se limitou a permanecer passivo no seu posto de observador: logo
procurou integrar a realidade ao seu olhar e ao seu sentir. Em sua escrita, as
linguagens visual e verbal integram-se e correspondem-se sem se explicarem
mutuamente, complementam-se sem se fundirem, uma vez que essa integração nada
tem a ver com a ilustração da escrita pela imagem, nem com o esclarecimento da
imagem pela escrita. Cada uma das linguagens permanece íntegra, não havendo
fusão entre elas, mas contaminação de uma pela outra. A sua busca pela adequação
está baseada na analogia. A analogia tem a ver com semelhança de características.
Mundo analógico é um mundo que existe em lugar do mundo real, um mundo que
pretende representar um outro, cujas características se aproximam e se assemelham.
Ao comparar o movimento das nuvens com as telas de Rubens, por exemplo, Nava
faz uma analogia: o que a tela representa é uma imagem daquilo que ele viu, sentiu e
internalizou, cuja essência pretende ser verdadeira e autêntica.
Os fatos da vida de Pedro Nava passam a integrar a obra e nos oferecem a
possibilidade de acompanhar o modo como o olhar do autor transforma a cena
observada através do registro da imagem que será traduzida, futuramente, em
palavras. A força da percepção é evidente em sua escrita, uma vez que ele é capaz
de guardar a lembrança precisa de uma paisagem vista há mais de cinquenta anos.
Sua percepção é, assim, sustentada pela força da visualidade e a matéria-prima de
suas representações é também visual.
Ao relembrar uma certa manhã de domingo, observada da janela de seu quarto, o
autor se deixa levar pela analogia, o princípio norteador da adequação entre o já
visto e o vivido, ou seja, permite-nos acompanhar o modo como seu olhar processa
a realidade e transforma a cena observada:
Olhei para fora onde o sol nosso de cada dia belorizonte fazia paisagem de Renoir aquelas figuras caminhando mergulhadas no mar da erva entre árvores se esfumaçando debaixo dum céu solvente – as paisagem que eu vira numa reprodução enquadrada e pendurada no escritório de Aníbal Machado. Era o Chemin montant dans les hautes herbes – que eu tinha ali, ao vivo. (NAVA, 1979, p. 59)
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Fig. 5 Quadro de Renoir referido pelo autor
Fonte: <http://www.collegebrossolette.com>
Percebe-se que as percepções estão vinculadas à experiência passada e ficam
retidas na memória para uma futura utilização. Que seria das descrições de Nava não
fosse a pinacoteca que trazia na memória? A iniciação de Nava nas artes em geral se
deu através do amigo Aníbal Machado, em meados de 1922, quando o memorialista
era ainda estudante de medicina. Segundo o próprio NAVA (1979, p. 84):
Assim eu ia aprendendo com mestre Aníbal. Não era só literatura. Às vezes partíamos de um gesso que ele possuía, moldagem de La Pensée, de Rodin e a conversa tomava rumos de escultura. Ou da gravura que reproduzia um Renoir, e entrávamos pela pintura, sobretudo pelo Impressionismo, sua paixão mais recente. Lá vinham o próprio Renoir, Manet, Pissaro, Sisley, Degas, Cézanne. Fui sendo apresentado a um por um. (NAVA, 1979, p. 84)
É bem conhecida a aptidão de Pedro Nava para as artes plásticas. Sua prosa é
colorida, marcada por uma profusão de imagens, tons e formas e um dos pontos
altos de sua escrita é, com efeito, essa capacidade imagética, de artista, que em dois
ou três traços mostra situações com a justeza de uma luva na medida certa, resultado
da singularidade de seu olhar.
A criação, como um processo em rede, destaca o estabelecimento de relações; no entanto, para compreender melhor o ato criador, interessa-nos a natureza desses vínculos, que podem ser observados sob o ponto de vista das singularidades das transformações operadas. Essas transformações acontecem nos modos como se dá a percepção do artista, nas estratégias da memória, nos procedimentos artísticos
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agindo sobre as matérias-primas e na força da imaginação. (SALLES, 2010, p. 26)
O relato de experiências vividas pelo autor aparece sempre atrelado a uma
realidade cromática. Ele busca, através do apuro da percepção, aproximar o leitor
daquilo que está descrevendo, extraindo de sua linguagem o máximo poder de
visualização. Ao narrar o funeral de Raul Soares, ocorrido em 1924, recorta o
espaço e vai assimilando essa visualidade através do jogo de luz e sombra que
compõe a paisagem na sua transmutação
(o clarão inicial é invadido pela escuridão):
Seriam suas três horas, um pouco menos, um pouco mais, quando o coche fúnebre entrou pelo lado de Espírito Santo. O dia estava dum azul poderoso e aquela carruagem toda negra incisava-se brutalmente na paisagem como se fosse a colagem de uma gravura de Daumier sobre as cores luminosas de um Sisley. (NAVA, 1979, p. 206)
Em suas litografias, Daumier reproduzia, geralmente na cor preta, uma visão
direta e certeira dos acontecimentos de sua época, daí a opção de Nava pela pintura
do artista francêsii. Já Sisley era dono de uma capacidade surpreendente de
observação e captava os matizes mais sutis da luz. Em quase todos os seus quadros,
Sisley pintava um enorme céu, característica marcante de sua obraiii. As escolhas
dos artistas em questão comprovam, assim, que toda observação é mediatizada pelo
ponto de vista do observador. Esse agrupamento de imagens encontra correlato nos
processos de associação de idéias que também se agrupam por afinidade ou analogia
criando um “diálogo intertextual”. Daí obter o leitor, por meio do texto
memorialístico de Nava, a sensação de um estilo autobiográfico singular, porque as
diversas maneiras de a imagem se manifestar na memória são exploradas pelo autor
com um colorido e uma riqueza de detalhes que imprime, ao texto, forte teor
artístico:
Há diferentes modos de se aproximar da diversidade de informações e maneiras singulares de se apoderar delas. Nossa história, nossos interesses, nossas indagações é que escolhem o que queremos transformar em lembrança. (SALLES, 2006, p. 74)
O acompanhamento de pistas deixadas pelo autor, no decorrer de sua escrita, dão
conta do manejo de formas empreendido por ele. O transporte de uma imagem, que
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mais tarde se transformará num texto, em que as palavras e expressões serão
portadoras de um conteúdo visual, de natureza icônica, torna relevante esse material
textual, tanto na composição quanto na leitura, pois os elementos o fazem criativo,
singular e de valor esteticamente mais elevado. Pedro Nava estabelece uma relação
visual com o mundo ao construir arquivos para compor sua obra. A utilização de
pinturas e gravuras como suporte para descrições, a anotação de dados que julgava
importantes para a construção das memórias são os instrumentos de que lança mão
para transfigurar o mundo observado.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos. Tradução de Cristina de Campos Velho Birck. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
NAVA, Pedro. Beira-Mar: memórias 4. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
PANICHI, Edina Regina Pugas e CONTANI, Miguel Luiz. A visualidade produzida na palavra e os fatores que conferem relevância e destaque na construção do texto em Pedro Nava. Íkala: revista de lenguaje y cultura. Medellín: Universidad de Antioquia, vl. 12, n. 18, 2007.
SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Editora Horizonte, 2006.
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SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava: o risco da memória. Juiz de Fora: FUNALFA, 2004.
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