A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9...

155
1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA A LITERATURA E SEUS VARIADOS FINS DOMÉSTICOS: TRADUÇÃO E COMENTÁRIO DE QUATRO CONTOS DE PÚCHKIN Cecília Rosas Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Literatura e Cultura Russa, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide São Paulo 2009

Transcript of A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9...

Page 1: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

1

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA

A LITERATURA E SEUS VARIADOS FINS DOMÉSTICOS: TRADUÇÃO E COMENTÁRIO DE QUATRO CONTOS DE PÚCHKIN

Cecília Rosas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide

São Paulo 2009

Page 2: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

2

Para André, Armando, Caetano, Lili, Má,

Maria Augusta, Nanda e Roberta.

À memória do Cacau.

Page 3: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

3

Agradecimentos

Antes de mais nada, agradeço ao meu orientador, professor Bruno Gomide, pelo

acompanhamento do trabalho (mesmo antes da orientação), pelas sugestões, a

bibliografia e o incentivo.

As contribuições do professor Boris Schnaiderman foram muito importantes para

este trabalho. Também agradeço aos professores Samuel Titan Jr. e Fátima Bianchi, pela

leitura cuidadosa e pelas sugestões no exame de Qualificação.

Sou grata à Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior

(CAPES) pela bolsa de mestrado, de 2006 a 2008.

Muito obrigada à Gerusa Rosas pelos livros e dicionários que me acompanharam

desde o começo do meu aprendizado de russo, e que ainda serão muito úteis.

À Kátia Volkova, as aulas e a discussão paciente de cada palavra foram essenciais

para o desenvolvimento desse trabalho.

Agradeço em particular às Profas. Dras. Arlete Cavaliere e Elena Vássina e ao

Prof. Dr. Noé Silva pelo carinho, pelas contribuições e pelo apoio. Também gostaria de

agradecer aos funcionários do Departamento de Letras Orientais: Jorge, Luís, Iva, Álvaro

e Maribel.

À minha família, claro.

E um agradecimento especial aos amigos Ana Paula Bianconcini, Daniel Galvão,

Fábio Macedo, Helena Galvão, Isabel Fragelli, Júlia Hansen, Juliana Leite, Lucas

Monteiro, Luísa Torrano, Maíra Galvão, Mariana Fioravanti, Marina Macedo, Raquel

Page 4: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

4

Parrine, Ruy Luduvice e a todos os que leram este trabalho em algum dos seus estágios,

por contribuições tão variadas e sutis que seriam impossíveis de enumerar.

Page 5: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

5

Além de suas histórias, (...) Ivan Pietróvitch deixou grande quantidade de manuscritos,

que estão em parte comigo, em parte foram usados por sua governanta para variados

fins domésticos. Dessa forma, no inverno passado todas as janelas de sua casinha dos

fundos foram vedadas com a primeira parte de um romance que ele não terminou.

Aleksandr Púchkin

Alas! if the heroine of one novel be not patronized by the heroine of

another, from whom can she expect protection and regard?

Jane Austen

Page 6: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

6

Resumo

Este trabalho apresenta a tradução de quatro contos de Aleksandr Púchkin: “Do

Editor”, “A Nevasca”, “A Senhorita Camponesa” e História do Povoado de Goriúkhino,

seguidos de um comentário. No começo do século XIX, a ficção de prosa era vista como

um gênero menor na Rússia. O livro Contos do Falecido Ivan Pietróvitch Biélkin, de

Púchkin, publicado em 1831, é considerado um marco na história da literatura russa e a

inauguração de uma tradição de prosa ficcional. Púchkin dialoga constantemente com a

obra de Karamzin, seu mentor desde a juventude e escritor consagrado na época.

Karamzin era autor de diversos idílios e novelas sentimentalistas no campo da ficção, e

de obras sobre a história da Rússia. Sua influência transparece nos personagens dos

contos de Púchkin, mas as expectativas do leitor são sempre subvertidas.

Abstract

This work brings the translation of four short stories by Aleksandr Pushkin:

“From de Editor”, “The Snowstorm”, “Mistress into Maid” and History of the Village

of Goriukhino, followed by a comment. In the early nineteenth century, prose fiction was

regarded a minor genre in Russia. The book The Tales of the Late Ivan Petrovich Belkin,

published in 1831, is a landmark in the history of Russian literature and the start of a

prose fiction tradition. Pushkin’s work often refers to Karamzin, his mentor since youth

and a renowed writer at that time. Karamzin was the author of many idylls and

sentimentalist novels, in fiction, and of books about Russian history. His influence is seen

in the characters of Pushkin’s tales, who ironically subverts the reader expectations.

Palavras-chave: Literatura russa; século XIX; ascensão do romance russo; romantismo

Keywords: Russian literature; nineteenth century; rise of the Russian novel;

Romanticism.

Page 7: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

7

INTRODUÇÃO 9

TRADUÇÃO DOS CONTOS 16

DO EDITOR 16 A NEVASCA 21 A SENHORITA CAMPONESA 34 SOBRE “A NEVASCA” E “A SENHORITA CAMPONESA” 53 HISTÓRIA DO POVOADO DE GORIÚKHINO 62 COMENTÁRIO SOBRE HISTÓRIA DO POVOADO DE GORIÚKHINO 80

SOBRE A TRADUÇÃO 90

-“A SENHORITA CAMPONESA” E “A NEVASCA”. 91 LINGUAGEM POPULAR 92 БАРЫШНЯ (BÁRICHNIA) 93 БАТЮШКА (BÁTIUCHKA) 93 БАРСКИЙ ДВОР (BÁRSKI DVOR) 94 CE (SE) 94 ОНЫЙ (ONI) 94 МИРСКАЯ СХОДКА (MIRSKAIA SKHODKA) 94 СЕНАТСКИЙ ВЕДОМОСТИ (SENÁTSKI VEDOMOSTI) 94 САМОБЫТНОСТЬ (SAMOBITNOST) 95 ESLAVO ANTIGO 95 ASPECTOS MICRO-ESTILÍSTICOS 95 GLOSSÁRIO 96

ANEXO A 98

ОТ ИЗДАТЕЛЯ (DO EDITOR) 98 МЕТЕЛЬ (A NEVASCA) 102 БАРЫШНЯ-КРЕСТЬЯНКА (A SENHORITA CAMPONESA) 114 ИСТОРИЯ СЕЛА ГОРЮХИНА (HISTÓRIA DO POVOADO DE GORIÚKHINO) 131

BIBLIOGRAFIA 147

1. DE PÚCHKIN 147 2. SOBRE PÚCHKIN 148 3. GERAL 152

Page 8: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

8

Page 9: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

9

INTRODUÇÃO

No começo do século XIX, a tradição lírica na Rússia já era bastante estabelecida.

A prosa, no entanto, era considerada um gênero inferior. Isso, em parte, devia-se às

regras estabelecidas por Mikhail Lomonóssov em uma das primeiras gramáticas da língua

russa, no século XVIII. Lomonóssov era altamente prescritivo quanto à linguagem e aos

gêneros do russo: uma obra que pertencesse ao gênero elevado, como a tragédia ou a ode,

deveria utilizar um vocabulário próximo ao eslavo eclesiástico. Se, por outro lado,

pertencesse ao gênero baixo, deveria fazer uso do léxico popular, de preferência

aproximando-se dos provérbios e contos populares russos1.

Não havia um lugar previsto para a prosa, a não ser que estivesse ligada à oração.

Segundo Gita Hammarberg, a única prosa de ficção que circulava na primeira metade do

século XVIII, geralmente em manuscrito, era uma forma de literatura muito popular,

considerada indigna pelo movimento Neoclássico que predominava na Rússia. Isso

começou a mudar no final do século. Houve um grande aumento nas traduções de ficção

europeia para o russo: obras francesas, latinas, romances medievais e autores como

Richardson, Fielding e Goethe, por exemplo, começaram a circular2. Muitos desses livros

traziam prefácios dos tradutores defendendo os méritos da prosa e seu status de literatura

séria. Os Neoclassicistas, que antes só aceitavam gêneros clássicos como a tragédia e a

ode, começaram a publicar romances moralistas, com elogios ao potencial didático e

edificante da prosa. E logo, em oposição, começaram a aparecer paródias desse autor

pretensioso3. Ou seja, ainda que a prosa tivesse bem menos prestígio do que a poesia, ler

romances era um hábito difundido entre a população alfabetizada.

1 W. Brown. A History of Russian Literature of the Romantic Period. v. 1, Ann Arbor. Ardis, 1986. pp. 24-5. 2 G. Hammarberg. From the idyll to the novel: Karamzin’s sentimentalist prose. p. 2. 3 Idem. p. 1-2.

Page 10: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

10

Desde muito jovem, Púchkin ficou conhecido na corte de São Petersburgo como

um grande poeta. O ano de 1830, no entanto, foi o começo de uma virada na obra do

autor rumo à prosa. Púchkin passou quase todo o ano em Boldino, propriedade de

duzentas almas que ganhou do pai pelo noivado com Natália Gontchárova. Ao chegar lá,

foi detido por uma epidemia de cólera que durou até o fim do ano. Este período de

quarentena, em especial o outono, foi particularmente frutífero: foram compostos

aproximadamente trinta poemas líricos; as Pequenas Tragédias, compostas de cinco

dramas em verso; vários artigos sobre literatura; sua primeira obra acabada em prosa, Os

Contos do Falecido Ivan Pietróvitch Biélkin; e o conto História do Povoado de

Goriúkhino, que permaneceu incompleto.

Púchkin tentara escrever prosa pela primeira vez em 1827, com O Negro de

Pedro, o Grande. Os Contos De Biélkin, publicados em outubro de 1831, foram vistos

como sinal da decadência do autor. O livro reúne cinco contos – “O Tiro”, “A Nevasca”,

“O Fazedor de Caixões”, “O Chefe da Estação” e “A Senhorita Camponesa” –

introduzidos por um prefácio, “Do Editor”. O prefácio traz uma carta com uma biografia

(fictícia) de Biélkin e um informe do editor, que assina A.P. Mesmo que Púchkin ainda

fosse muito popular, principalmente durante a publicação de Evguêni Oniêguin, já não

era mais a figura do jovem poeta brilhante de antes. Bielínski, ainda um jovem crítico

nessa época, declarou em 1834: “o ano de 1830 concluiu, ou melhor, trouxe um fim

abrupto ao período puchkiniano, e o próprio Púchkin, assim como sua influência,

parecem ter desaparecido”4.

Em uma carta a Pletniov, o autor comentava não ter assinado Os Contos de

Biélkin com seu próprio nome para evitar as críticas de Bulgárin5, pois temia que a obra

se perdesse em disputas de grupos políticos e não fosse julgada por seu valor literário.

Eram tempos difíceis para os antigos aristocratas do Liceu: o grupo de Púchkin vinha

sofrendo perseguições desde a insurreição Dezembrista. A censura era implacável e era

impossível publicar.

Isso acontecia, em parte, por uma mudança no sistema de circulação de textos na

primeira metade do século XIX: a discussão literária, que antes acontecia exclusivamente

4 Paul Debreczeny. Social Functions of Literature – Aleksander Pushkin and Russian Culture. Stanford. Stanford University Press. 1997 p.15. 5 Tatiana Wolf. Pushkin on literature. The Athlone Press, 1998. Londres. Carta 204, p. 288.

Page 11: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

11

nos salões da corte, agora tinha lugar nas revistas literárias. Uma elite recente havia se

aliado à censura – com Bulgárin e Gretch como figuras principais – e produzia livros bem

mais populares do que os do grupo aristocrático de Púchkin; além disso, se declaravam

mais democráticos. Assim, os aristocratas estavam numa posição paradoxal: “Púchkin e

seu círculo se viram acusados, ao mesmo tempo, de serem politicamente liberais e

socialmente aristocráticos, e ambos serviam para afastá-los do público leitor.”6 Ou seja,

de um lado eram taxados de esnobes; de outro, estavam impedidos de publicar.

Era esse o momento quando Púchkin, em retiro forçado em Boldino, deu uma

guinada em sua obra rumo à prosa e à história. Sua primeira tentativa no terreno da prosa

havia sido com um romance, O Negro de Pedro, o Grande. O autor começara a escrevê-

lo em 1827, mas logo o abandonou. Outras tentativas se seguiram ao longo dos anos:

Dubróvski, Kirdjali, Romance em Cartas.

O romance ocupa um lugar muito peculiar na obra do autor, especialmente se

levarmos em conta que sua estreia no gênero não foi em prosa – Evguêni Oniêguin é um

dos raros exemplos de romance em verso. Por toda sua vida, Púchkin procurou escrever

um romance histórico à maneira de Walter Scott; o momento em que chegou mais

próximo de seu objetivo foi em 1836, com A Filha do Capitão. Em uma carta de 1833, o

autor reclamava: “Você não acredita no quanto quero escrever um romance. Mas não,

não posso. Já comecei três. Começo maravilhosamente; depois perco a paciência.”7. No

prefácio a Os Contos de Biélkin, o amigo anônimo menciona o mesmo problema: um dos

romances inacabados de Biélkin seria depois usado para vedar as janelas da casa da

cozinheira.

A peça Boris Godunov foi o primeiro passo de Púchkin em suas experimentações

com história. Seu objetivo era fazer um drama político à maneira de Shakespeare. Em

cartas e rascunhos para o prefácio, ele recomenda a leitura da História do Estado Russo,

de Karamzin, para compreensão da peça. Junto com os romances históricos de Walter

Scott, a obra de Karamzin foi uma grande influência para Púchkin, tanto na ficção quanto

no estudo de história.

6 I. Lotman. [Biografia Literária 164-72]. apud Debreczeny, Paul. Social Functions of Literature – Aleksander Pushkin and Russian Culture. Stanford. Stanford University Press. 1997 p. 121. 7 Richard Gregg. "Pushkin's Novelistic Prose: A Dead End?" in Slavic Review, vol. 57. 2002. p. 23.

Page 12: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

12

Karamzin era uma figura essencial na vida do autor. Historiador, editor e autor de

várias obras de ficção, tornou-se uma espécie de mentor de Púchkin desde os tempos do

Liceu; aos 16 anos, o então jovem poeta frequentava as reuniões da Arzamás, presididas

por ele. Num artigo de 1822 sobre a prosa, que não foi publicado, Púchkin escreveu:

“Para a pergunta ‘De quem é a melhor prosa de nossa literatura?’, a resposta é ‘de

Karamzin’. Mas isso também não é grande elogio.”8

Púchkin chamou Karamzin de “último cronista e primeiro historiador”, um epíteto

interessante, pois deixa claro que ele o considerava o marco de uma transição. Os críticos

David M. Bethea e Serguei Davydov acreditam que História do Povoado de Goriúkhino

foi “uma espécie de laboratório no qual Púchkin faz a passagem da ficção ‘pura’ de Os

Contos de Biélkin para o romance histórico de A Filha do Capitão.”9

A morte de Karamzin, em 26, abalou o poeta intensamente e Boris Godunov, sua

obra preferida, foi dedicada a ele. Neste mesmo ano, Viázemski, grande amigo de

Púchkin, sugeriu que ele fizesse sua primeira experiência em prosa escrevendo sobre seu

velho mentor. Púchkin, que há tempos manifestava o desejo de escrever prosa, respondeu

que “(...) a vida de Karamzim seria o décimo terceiro volume de sua história da Rússia;

Karamzin pertence à história.”10

De fato, ele foi uma figura central no sistema cultural da época. Um dos primeiros

autores na Rússia a viver exclusivamente do que escrevia, suas revistas e seus romances

sentimentalistas – em particular, Pobre Liza e Natália, a Filha do Boiardo, – tinham um

grande alcance. Segundo Gita Hammarberg, ele era um defensor ferrenho da

alfabetização, especialmente entre as mulheres, e Iuri Lotman defende que Karamzin

criou o público leitor de sua época, especialmente o feminino11. O autor criou em seus

livros uma personagem do narrador que se sobressaía e conversava com o leitor. Não que

ele tenha sido o primeiro. A figura do narrador-autor que se dirige ao seu público é uma

característica da prosa russa desde os anos 1770. “Viagem de São Petersburgo a Moscou

relaciona-se com o movimento sentimentalista exatamente pelo fato de que sua unidade é

8 Tatiana Wolf. Pushkin on literature. The Athlone Press, 1998. Londres. p.44. 9 David M. Bethea e Serguei Davydov. "The [Hi]story of the Village Gorjuxino: In Praise of Pushkin's Folly" in The Slavic and East European Journal, Vol. 28. nº 3, 1984 p.291. 10 Tatiana Wolf. Pushkin on literature. The Athlone Press, 1998. Londres. p.176. 11 G. Hammarberg. From the idyll to the novel: Karamzin’s sentimentalist prose. p. 11-2.

Page 13: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

13

criada pela imagem lírica do autor-narrador”12. Mas Karamzin conseguiu refinar uma

imagem de autor aceitável para a sensibilidade da época13, ao mesmo tempo irônico e

sensível. A ligação da primeira prosa de Púchkin com a obra de Karamzin é evidente. A

figura marcada do narrador, que frequentemente dirige-se aos leitores, é um dos traços de

identidade entre ambas.

Muito se fala do caráter inaugural de Os Contos de Biélkin. De fato, a obra é

considerada uma espécie de marco inaugural da literatura russa, e iniciou tradições que,

mais tarde, seriam retomadas por outros escritores, como o estilo irônico, os personagens

da pequena nobreza e os diversos homens sem importância que passam pelos contos. Mas

Púchkin também dialogava com a literatura russa de sua época. A secura de sua prosa,

por exemplo, costuma ser apontada como se fosse uma novidade na Rússia; mas Richard

Gregg mostra que, na realidade, era um estilo comum na época14.

Questões como a apropriação de formas europeias, a construção de uma literatura

russa e a ficcionalização da história eram discutidas em salões e periódicos, e Púchkin

participava intensamente desses debates. Era inevitável que sua obra também oferecesse

respostas a essas questões. A ficção russa da época muitas vezes se apropriava de forma

acrítica dos modelos europeus, e não somente na prosa. Os romances inaugurais de países

periféricos, segundo Franco Moretti, seguem um padrão peculiar: um descompasso entre

a experiência local e as formas europeias. Este choque geralmente se revela na figura do

narrador15. Os Contos de Biélkin também se encaixam no modelo de Moretti.

Para Richard Gregg, a unidade estrutural de Os Contos de Biélkin reside em um

padrão que se repete em quatro dos cinco contos: “A Nevasca”, “O Tiro”, “O Chefe da

Estação” e “A Senhorita Camponesa”. Em todos, a trama segue o mesmo padrão: um

homem que conquista o amor de uma mulher bonita, ultrapassa obstáculos que ameaçam

a união e, finalmente, consolida o marriage d’amour16.

12 Idem, p. 8. 13 Idem, p. 3. 14 Richard Gregg. "Pushkin's Novelistic Prose: A Dead End?" in Slavic Review, vol. 57. 2002. p. 3. 15 Franco Moretti. “Conjectures on World Literature” in New Left Review, Janeiro-Fevereiro de 2000. http://www.newleftreview.org/A2094 16 A hipótese deixa de fora o último conto, “O Fazedor de Caixões”, que é classificado como peça cômica que equilibra os outros. Ver Richard Gregg. "A Scapegoat for All Seasons: The Unity and the Shape of the Tales of Belkin". in Slavic Review, vol.30, nº4. 1971 p.750.

Page 14: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

14

Cada conto retoma um gênero europeu em voga na época e comenta suas

adaptações ao contexto russo; “O Fazedor de Caixões”, por exemplo, relaciona-se com o

conto gótico e os dois contos femininos, “A Senhorita Camponesa” e “A Nevasca”,

presentes neste trabalho, com romances sentimentalistas.

Os personagens masculinos, ainda segundo Gregg, dividem-se em dois tipos.

Todos os contos começam com um bode expiatório, ou seja, um personagem inferior aos

seus rivais em beleza, dinheiro, posição social, ousadia e impetuosidade e, por isso, são

punidos com um fim trágico. A outra classe são os heróis, sempre nobres e um tanto

inconsequentes, mas que ainda assim são premiados pelo destino com um final feliz e a

conquista da amada. No caso de “A Senhorita Camponesa”, não há nenhum bode

expiatório, apenas um herói vitorioso. O último conto, “O Fazedor de Caixões”, não se

encaixa no padrão e, para o crítico, serve apenas como para dar um tom cômico.

Bethea e Davidov retomam a argumentação de Gregg para apontar qual é o erro

desses bodes expiatórios: todos estão dispostos a viver acriticamente modelos literários

europeus. Silvio, de “O Tiro”, é descrito como o “herói de alguma novela misteriosa”17 e

tem um nome estrangeiro. Vladímir, de “A Nevasca”, encarna o herói das novelas

sentimentais lidas pela heroína Mária Gavrílovna, mas se esquece de uma peculiaridade

local: o clima. Vírin, de “O Chefe da Estação” arruina-se por acreditar ser um

personagem da parábola do filho pródigo, quando sua realidade é exatamente oposta.

Para os bodes expiatórios, a tentativa de viver os romances estrangeiros de maneira literal

leva todos à desgraça. Em cada conto, Púchkin coloca na epígrafes obras russas que,

acriticamente, copiavam os modelos europeus18: Jukóvski, Baratinski, Biestujev e

Dierjávin.

Segundo os críticos, “A Senhorita Camponesa” tem papel excepcional nesta

organização, pois é o único conto que resolve o arranjo entre modelo e contexto. A

apropriação literal – que é a desgraça dos outros personagens – não se aplica a seus

personagens principais, Aleksei e Liza. Eles, ao contrário, têm a sabedoria de despir suas

máscaras quando necessário. Aleksei, ainda que assuma a postura de um jovem

desiludido diante dos outros nobres, na verdade é “capaz dos prazeres da inocência”.

17 Pushkin’s Saturnine Cupid: The poetics of Parody in The Tales of Belkin”. in PMLA, vol 96 nº 1 (Janeiro de 1981) p. 224. 18 Idem, p. 14.

Page 15: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

15

Trata-se de uma teoria interessante, principalmente se levamos em conta a relação

entre a classe social de Púchkin e a dos heróis recompensados: todos são nobres

desprestigiados, contra os pequenos funcionários dos bodes expiatórios. Mas para quem

busca uma unidade estrutural, ela tem muitas exceções.

Os Contos de Biélkin foram desmembrados na edição brasileira A Dama de

Espadas, traduzida por Boris Schnaiderman. Este trabalho apresenta a tradução dos

contos restantes: “A Nevasca” e “A Senhorita Camponesa”, além do prefácio “Do

Editor” e de História do Povoado de Goriúkhino, conto publicado postumamente e que

retoma o mesmo narrador, Biélkin. Este último nunca havia sido traduzido para o

português.

Page 16: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

16

TRADUÇÃO DOS CONTOS

Quanto às notas:

(N.I.) Nota da edição inglesa.

(N.E.) Nota da edição soviética.

(N.T.) Nota da tradutora.

DO EDITOR

Ao assumir os trabalhos da edição dos Contos de I. P. Biélkin, ora oferecidas ao

público, desejávamos anexar a eles uma biografia, ainda que curta, do falecido autor, e

assim satisfazer em parte a justa curiosidade dos amantes das letras pátrias. Para tal,

dirigimo-nos a Maria Alekséievna Trafilina, parente mais próximo e herdeira de Ivan

Pietróvitch Biélkin; mas, infelizmente, ela não pode fornecer nenhuma notícia do dito

cujo, pois o defunto lhe era inteiramente desconhecido. Aconselhou-nos a tratar de tal

assunto com um honrado cavalheiro, velho amigo de Ivan Pietróvitch. Tomamos seu

conselho e recebemos por carta nossa desejada resposta, como segue. Reproduzimo-na

sem qualquer alteração ou comentário, como precioso monumento a uma nobre

mentalidade e a um comovente laço de amizade e, ao mesmo tempo, uma notícia

biográfica perfeitamente satisfatória.

Meu bom senhor ** **!

Aos 23 do mês corrente tive a honra de receber sua respeitosíssima carta, postada

aos 15 do mesmo mês, na qual o senhor manifesta o desejo de obter notícias detalhadas

sobre o nascimento e a morte, o serviço militar e as circunstâncias domésticas, assim

como as ocupações e o temperamento do falecido Ivan Pietróvitch Biélkin, outrora meu

amigo sincero e vizinho de propriedade. Com grande prazer satisfaço vossa vontade e

encaminho, meu bom senhor, tudo o que de suas conversas, assim como de minhas

próprias observações, consigo lembrar.

Page 17: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

17

Ivan Pietróvitch Biélkin nasceu de pais nobres e honrados ao ano de 1798 no

povoado de Goriúkhino. Seu falecido pai, o segundo-major19 Piotr Ivánovitch Biélkin,

havia contraído matrimônio com a donzela Pelagueia Gavrílovna da casa dos Trafilins.

Não era um homem rico, mas era comedido e bastante sagaz no tocante ao patrimônio.

Seu filho recebeu as primeiras letras do amanuense da aldeia. A este respeitável

cavalheiro ele devia, ao que parece, o apreço pela leitura e os exercícios no âmbito das

belas-letras russas. No ano de 1815, alistou-se no serviço do Exército como caçador no

regimento de Infantaria (não me recordo o número), no qual permaneceu até o ano de

1823. A morte de seus pais, ocorrida quase ao mesmo tempo, obrigou-o a pedir dispensa

e voltar ao povoado de Goriúkhino, seu torrão natal.

Ao assumir a administração da propriedade, Ivan Pietróvitch, em razão de sua

inexperiência e de seu coração mole, logo descuidou da economia e afrouxou a severa

ordem estabelecida por seu finado pai. Trocou o estárosta aplicado e expedito, com o qual

seus camponeses (por costume) estavam descontentes, e incumbiu a administração do

povoado à sua velha governanta, que adquirira sua confiança pela arte de contar histórias.

Essa velha tola nunca soube distinguir uma nota de vinte e cinco rublos de uma de

cinquenta; os camponeses, de todos os quais ela era comadre, não a temiam de forma

alguma; o novo estárosta eleito por eles mostrava-se tão condescendente, aproveitando

para fazer das suas, que Ivan Pietróvitch foi forçado a abolir a corveia e instituir um

tributo extremamente moderado; mas mesmo assim os camponeses, aproveitando-se de

sua fraqueza, tanto pediram que no primeiro ano acabaram conseguindo isenção, e nos

anos seguintes pagavam mais de dois terços em castanhas, mirtilo e assim por diante; e

sempre a menos.

Como amigo do falecido pai de Ivan Pietróvitch, considerava meu dever oferecer

também ao filho meus conselhos, e reiteradamente me ofereci para restaurar a antiga

ordem de que ele descuidara. Fui uma vez à sua casa com este propósito, exigi os livros

de contas, chamei o tratante do estárosta e, na presença de Ivan Pietróvitch, dediquei-me

ao exame do referido livro. O jovem proprietário, no começo, seguiu-me com toda

atenção e aplicação possível; mas como se verificou pelas contas que nos últimos dois

19 Oficial da 8ª classe da infantaria. Esta categoria só existiu entre 1731-1797. (N.T.)

Page 18: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

18

anos o número de camponeses aumentara, enquanto o número de aves e gado doméstico

obviamente diminuíra, Ivan Pietróvitch contentou-se com estas primeiras informações e

não me escutou mais; e no exato minuto em que, com minhas investigações e minhas

severas interrogações, coloquei o tratante do estárosta em extrema confusão e forcei-o a

um perfeito silêncio, para minha grande irritação escutei o sólido ronco de Ivan

Pietróvitch em sua cadeira. Desde então parei de intrometer-me na administração de sua

propriedade e deixei seus assuntos (como ele mesmo os deixou) aos cuidados do Todo-

Poderoso.

Tal ocorrência não abalou de forma alguma, aliás, nossas relações de amizade;

pois eu, apesar de compadecer-me de sua fraqueza e de sua perniciosa negligência, traço

comum aos nossos jovens nobres, amava sinceramente Ivan Pietróvitch; e seria mesmo

impossível não amar um jovem tão dócil e honrado. De sua parte, Ivan Pietróvitch

demonstrava consideração por meus anos e era de todo coração apegado a mim. Até seu

falecimento, me encontrava quase todo dia por apreço à minha palestra simples, ainda

que nem nossos hábitos, nem nosso modo de pensar, nem nosso temperamento na maior

parte das vezes se assemelhassem.

Ivan Pietróvitch levava uma vida das mais comedidas, e evitava toda sorte de

excessos; nunca me aconteceu de vê-lo um pouco alegre (o que, em nossa terra, pode-se

considerar um milagre sem precedentes); para o belo sexo, mostrava grande inclinação,

mas seu pudor era o de uma verdadeira donzela.*

Além de suas histórias, sobre as quais vossa carta teve a honra de lembrar, Ivan

Pietróvitch deixou grande quantidade de manuscritos, que estão em parte comigo, em

parte foram usados por sua governanta para variados fins domésticos. Dessa forma, no

inverno passado todas as janelas de sua casinha dos fundos foram vedadas com a primeira

parte de um romance que ele não terminou. Os supracitados contos eram, ao que parece,

seus primeiros experimentos. Em sua maior parte, como sempre falava Ivan Pietróvitch,

eram relatos verídicos e ele os havia escutado de diferentes pessoas.** Quase todos os

nomes, no entanto, foram inventados por ele próprio; quanto aos nomes dos povoados e

das aldeias, tomou-os de empréstimo de nossa vizinhança, e é por este motivo que até

minha aldeia é mencionada em algum lugar. Isso não aconteceu por má fé; foi

unicamente por falta de imaginação.

Page 19: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

19

Ivan Pietróvitch caiu enfermo no outono de 1828, com um resfriado que se

transformou em febre alta, e morreu, não obstante o incansável esforço de nosso médico

de província – homem extremamente hábil, sobretudo no tratamento de doenças

arraigadas como calos e semelhantes. Ele finou-se em meus braços no seu trigésimo ano

de existência e foi enterrado na igreja do povoado de Goriúkhino, perto de seus falecidos

pais.

Ivan Pietróvitch possuía estatura mediana, olhos azuis, cabelos loiros, nariz reto;

seu rosto era pálido e afilado.

Eis, meu bom senhor, tudo o que posso recordar referente ao modo de viver, às

ocupações, ao temperamento e à aparência de meu falecido amigo e vizinho. Mas caso o

senhor haja por bem fazer qualquer uso de minha carta, peço mui encarecidamente que de

forma alguma mencione meu nome; pois, ainda que eu muito respeite e estime os autores,

creio que receber este título seria excessivo e, na minha idade, indecoroso. Com sincero

respeito, etc.

16 de novembro de 1830.

Povoado de Nenarádovo

Considerando nosso dever cumprir a vontade do honrado amigo de nosso autor,

professamos a ele profunda gratidão pelo fornecimento dessas notícias e esperamos que o

público leitor aprecie sua sinceridade e bom coração.

A. P.

*Segue uma anedota, que não colocamos por considerá-la supérflua; entretanto,

asseguramos ao leitor que não consiste em nada de repreensível à memória de Ivan

Pietróvitch Biélkin.

** De fato, nos manuscritos do Sr. Biélkin, sobre cada história há uma nota com a letra

do autor: escutado por mim de tal pessoa (segue a posição ou a patente e o título e as

iniciais do nome e sobrenome). Copiamos para os exploradores curiosos: O “Chefe da

Estação” foi contado pelo conselheiro titular20 A. G. N., “O Tiro” pelo tenente-coronel21

20 9º título do funcionalismo público na Rússia tzarista, o mais baixo a conceder nobreza. (N.T.)

Page 20: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

20

I. L. P., O “Fazedor de Caixões” pelo intendente B. V., “A Nevasca” e “A Senhorita

Camponesa” pela donzela K. I. T.

21 Título da 7ª classe da infantaria/cavalaria. (N.T.)

Page 21: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

21

A NEVASCA

Cavalos galopam nos solavancos,

Pisoteiam a neve profunda...

Eis ao lado, solitário

o templo de Deus.

..............................................

De repente, um pouco de neve rodopia;

A nevasca desaba em flocos;

Um corvo negro, de asas sibilantes

Circula sobre o trenó

Um profético gemido anuncia dor!

Os cavalos, apressados

Atentos observam a negra vastidão,

E elevam as crinas...

Jukóvski

No fim do ano de 1811, numa época para nós memorável, vivia em sua

propriedade em Nenarádovo22 o bom Gavrila Gavrílovitch R***. Ele era célebre nas

redondezas pela hospitalidade e cordialidade; os vizinhos iam a todo instante à sua casa

para comer, beber e jogar boston a cinco copeques com sua mulher, Praskóvia Pietróvna;

e alguns também para olhar sua filha, Mária Gavrílovna, uma donzela esbelta e pálida de

17 anos. Ela era considerada um bom partido, e muitos desejavam tomá-la como esposa,

para si ou para seus filhos.

Mária Gavrílovna fora educada por romances franceses e, consequentemente,

estava apaixonada. O objeto de sua escolha era um pobre alferes do exército que estava

de licença na aldeia. É claro que o jovem ardia com igual paixão e que os pais de sua

amada, ao perceber a inclinação mútua, proibiram a filha até de pensar nele, e começaram

a tratá-lo pior do que ao zassiedátel23 aposentado.

22 Nenarádovo: vem do verbo не нарадоваться (ne naradovatcia), “não cansar de alegrar-se”. (N.T.) 23 Dvoriânski zassiedátel era uma espécie de delegado da nobreza no distrito. (N.T.)

Page 22: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

22

Nossos enamorados mantinham correspondência e todos os dias se encontravam a

sós no pinheiral ou na antiga capela. Lá, juravam amor eterno, lamentavam o destino e

faziam várias suposições. Escrevendo e conversando assim, eles (o que é perfeitamente

natural) chegaram ao seguinte raciocínio: se não podemos respirar um sem o outro, e a

vontade dos pais cruéis impede nossa felicidade, será que não poderíamos deixá-la de

lado? É claro que esta feliz ideia chegou primeiro à cabeça do jovem e agradou muito à

imaginação romântica de Mária Gavrílovna.

O inverno começou e interrompeu seus encontros; mas a correspondência ficou

ainda mais viva. A cada carta, Vladímir Nikoláievitch suplicava que se entregasse a ele e

se casassem em segredo. Poderiam esconder-se por um tempo e depois atirar-se aos pés

dos pais que, é claro, ao fim e ao cabo ficariam tocados pela constância heróica e pela

infelicidade dos enamorados e lhes diriam, sem falta: “Crianças! Venham aos nossos

braços!”.

Mária Gavrílovna hesitou longamente: uma infinidade de planos de fuga foi

recusada. Finalmente, concordou: no dia combinado, não jantaria e se retiraria para seu

quarto com a desculpa de uma dor de cabeça. Sua criada estava na conspiração; as duas

deveriam sair pela porta dos fundos, ir por atrás do jardim até encontrar o trenó já

preparado, sentar-se nele e andar cinco verstas desde Nenarádovo até o povoado de

Jádrino, diretamente para a igreja onde Vladímir já estaria esperando.

Na véspera do dia decisivo, Mária Gavrílovna não dormiu a noite toda; fez as

malas, empacotou24 a roupa branca e os vestidos, escreveu uma longa carta para uma

senhorita sensível, sua amiga, e outra para os seus pais. Ela se despedia deles com as

palavras mais comoventes, atribuía seu erro à indomável força da paixão e terminava

dizendo que abençoadíssimo seria o momento de sua vida em que lhe seria permitido

lançar-se aos pés de seus adoradíssimos pais25. Após lacrar as duas cartas com um sinete

de Tula que trazia dois corações flamejantes e uma inscrição adequada, lançou-se na

cama pouco antes de amanhecer e cochilou; mas mesmo então, sonhos terríveis a

24 Aqui, apesar do uso do imperfectivo, decidi usar o pretérito perfeito. A ideia de processo do imperfectivo em russo já fica dada pelo sentido dos verbos, e o pretérito imperfeito não soava muito natural. (N.T.) 25 O mau-gosto dos dois superlativos é proposital: revela o estilo de Mária Gavrílovna.(N.T.)

Page 23: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

23

despertavam a cada instante26. Ora parecia que no mesmo minuto em que se sentava no

trenó para ir casar-se, o pai a detinha e, com terrível agilidade, a arrastava pela neve e a

jogava em uma cova escura e sem fundo... e ela caía vertiginosamente, com o coração

inexplicavelmente desfalecido; ora, via Vladímir deitado na relva, pálido e

ensanguentado. Ele, agonizante, implorava com voz estridente que se apressasse para

casar-se com ele... outras visões repulsivas e absurdas esvoaçavam diante ela, uma após a

outra. Finalmente, levantou-se, mais pálida do que o habitual e com uma sincera dor de

cabeça. O pai e a mãe notaram sua inquietação; seus ternos cuidados e suas incessantes

perguntas: o que há, Macha? Não está doente, Macha? – dilaceravam seu coração. Ela

esforçava-se para acalmá-los, para mostrar-se feliz, e não conseguia. Caiu a noite. A ideia

de que pela última vez passava o dia em meio à família lhe oprimia o peito. Macha mal se

aguentava; em segredo, despedia-se de todas as pessoas, de todos os objetos à sua volta.

Foram jantar: seu coração pôs-se a bater com força. Com a voz trêmula, anunciou que

não queria jantar e começou a despedir-se do pai e da mãe. Eles beijaram-na e, como de

hábito, deram-lhe a bênção: por pouco ela não chorou. Ao chegar em seu quarto, lançou-

se na poltrona e se desfez em pranto. A criada a convencia a acalmar-se e animar-se27.

Tudo estava pronto. Dentro de meia hora, Macha devia deixar para sempre a casa dos

pais, seu quarto, a tranquila vida de donzela... Lá fora, a nevasca se enfurecia; o vento

uivava, as folhas da janela tremiam e batiam; tudo lhe parecia uma ameaça e um

presságio triste. Logo, tudo na casa acalmou-se e adormeceu. Macha cobriu-se com o

xale, vestiu seu capote quente, pegou o porta-joias e saiu pela porta dos fundos. A criada

de quarto levava duas trouxas. Saíram para o jardim. A nevasca não se acalmava; o vento

soprava de encontro às duas, como se quisesse impedir a jovem criminosa. A custo

chegaram até o fim do jardim. Na estrada, um trenó esperava por elas. Os cavalos,

enregelados, não paravam quietos; o cocheiro de Vladímir andava em frente à lança da

carruagem, segurando os cavalos. Ele ajudou a fidalga e sua criada a sentarem-se e alojar

as trouxas e o porta-joias, pegou as rédeas e os cavalos voaram. Entregando a senhorita

aos cuidados do destino e à arte do cocheiro Teriochka, voltemo-nos ao nosso jovem

apaixonado. 26 Поминутно (pominutno: a cada minuto) é talvez a palavra mais frequente no conto. Mostra a constante repetição de tudo o que acontece. (N.T.) 27 O uso dos reflexivos reproduz o estado emocional autocentrado e confuso de Mária Gavrílova. (N.T.)

Page 24: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

24

Vladímir passou o dia inteiro para cima e para baixo. De manhã, foi ao padre de

Jádrino; a custo chegou a um acordo com ele; depois, pôs-se a procurar testemunhas entre

os fazendeiros vizinhos. O primeiro que visitou foi um tenente de cavalaria28 aposentado

de 40 anos, Drávin, que concordou com gosto. Esta aventura, assegurou, lhe fazia

lembrar-se dos velhos tempos e das travessuras dos hussardos. Convenceu Vladímir a

ficar para o almoço e assegurou29 que as outras duas testemunhas não seriam problema.

De fato, logo depois do almoço apareceram o agrimensor Schmit, de bigode e esporas, e

o filho do capitão da polícia30, um garoto de uns 16 anos recém ingresso nos ulanos. Eles

não só aceitaram a proposta de Vladímir como prontamente juraram sacrificar a vida por

ele. Vladímir os abraçou exaltado e foi para casa aprontar-se.

Já havia começado a anoitecer há tempo. Ele enviou seu fiel Teriochka a

Nenarádovo com sua troika e instruções detalhadas, minuciosas; para si, ordenou que

atrelassem o pequeno trenó de um cavalo e só, sem cocheiro, dirigiu-se a Jádrino, onde

dentro de umas duas horas devia chegar Mária Gavrílovna. A estrada lhe era conhecida, e

a viagem levava apenas vinte minutos.

Mas mal Vladímir saiu da aldeia para o campo, o vento aumentou e desencadeou-

se tal nevasca que não se via mais nada. Em um minuto o caminho ficou coberto de neve

e os arredores sumiram na neblina amarelada e turva em que revoavam flocos brancos. O

céu se confundia com a terra. Vladímir foi parar no meio do campo e em vão tentava

encontrar novamente a estrada; o cavalo andava a esmo e, a todo instante, ou entrava em

montes de neve ou afundava num buraco; o trenó virava a todo instante31; Vladímir

esforçava-se apenas para não perder o rumo. Mas parecia que já havia se passado mais de

meia hora e ele ainda não chegara ao bosque de Jádrino. Cerca de mais dez minutos se

passaram; ainda não se via o bosque. Vladímir percorria o campo, atravessado por valas

profundas. A nevasca não diminuía, o céu não clareava. O cavalo começava a se cansar e

ele suava em bicas, apesar de a todo instante afundar-se na neve até a cintura.

Finalmente, viu que estava indo para o lado errado. Vladímir parou: pôs-se a

pensar, esforçou-se para lembrar, refletiu e convenceu-se de que precisava virar à

28 Um dos postos mais baixos da cavalaria (12º classe). (N.T.) 29 A repetição de “assegurou” aparece no original. Decidi mantê-la. (N.T.) 30 Capitão dos isprávniks: o equivalente a chefe de polícia na Rússia tzarista. (N.T.) 31 Novamente, mantive a repetição. (N.T.)

Page 25: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

25

direita32. Foi para a direita. Seu cavalo mal andava. Estava já há mais de uma hora na

estrada. Jádrino não devia estar longe. Mas ele andava, andava, e o campo não tinha fim.

Só montes de neve e barrancos; a todo instante o trenó virava, a todo instante ele o

levantava. O tempo ia passando; Vladímir começou a preocupar-se seriamente.

Finalmente, começou a aparecer ao longe alguma coisa mais escura. Vladímir

virou para lá. Aproximando-se, viu o bosque. Graças a Deus, pensou, agora está perto.

Andou ao longo do bosque, esperando encontrar imediatamente a estrada conhecida ou

dar a volta no bosque: Jádrino ficava bem atrás. Logo achou a estrada e entrou na

escuridão das árvores despidas pelo inverno. O vento já não conseguia castigá-lo; o

caminho estava plano; o cavalo animou-se, e Vladímir se acalmou.

Mas ele andava, andava, e não se via Jádrino; a floresta não tinha fim. Vladímir,

aterrorizado, percebeu que havia entrado em um bosque desconhecido. O desespero

tomou conta dele. Açoitou o cavalo: o pobre animal começou a trotar, mas foi logo

perdendo o passo e, um quarto de hora depois, ia a passo, apesar de todos os esforços do

infeliz Vladímir.

Pouco a pouco as árvores começaram a rarear, e Vladímir saiu do bosque; não se

via Jádrino. Devia ser por volta de meia noite. Lágrimas jorravam de seus olhos: ele

andara a esmo. O tempo se acalmou, as nuvens iam se dissipando e diante dele se

estendia uma planície coberta por um tapete branco e ondulado. A noite estava bastante

clara. Ele viu por perto um pequeno povoado, formado por quatro ou cinco casas.

Vladímir foi até elas. Na primeira isbá, saltou do trenó, correu até a janela e começou a

bater. Em alguns minutos a janela de madeira levantou-se, e um velho mostrou sua barba

grisalha.

– Precisa do quê?

– Jádrino está longe?

– Se Jádrino está longe?

– Sim, sim. Está longe?

– Longe, não. Deve dar umas dez verstas.

Depois dessa resposta Vladímir agarrou os cabelos e parou imóvel, como um

condenado à morte.

32 No original, os verbos no infinitivo criam um efeito de suspense. (N.T.)

Page 26: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

26

– E você, vem daonde? – prosseguiu o velho. Vladímir não teve ânimo para

responder às perguntas.

– Será, meu velho, – ele falou – que pode arranjar para mim um cavalo até

Jádrino?

– E nós lá temos cavalos? – respondeu o mujique.

– Então será que posso pegar um guia? Eu pago, o quanto ele quiser.

– Espera, – falou o velho baixando a janela – vou mandar meu filho; ele vai te

levar.

Vladímir começou a esperar. Não se passou um minuto, pôs-se a bater

novamente. A janela levantou-se, e a barba apareceu.

– Precisa do quê?

– E o seu filho?

– Já vem, está se calçando. Quer congelar? Entra aí para esquentar.

– Agradeço, mas mande logo seu filho.

O portão rangeu; o rapaz saiu com um porrete e seguiu na frente, ora apontando,

ora procurando a estrada coberta por montes de neve.

– Que horas são? – perguntou Vladímir.

– Já vai nascer o dia33, – respondeu o jovem mujique. Vladímir não falava uma

palavra.

Os galos cantavam e já estava claro quando finalmente alcançaram Jádrino. A

igreja estava trancada. Vladímir pagou o guia e foi para a casa falar com o padre. Sua

troika não estava no pátio. Que notícias esperavam por ele!

Mas voltemos aos bons senhores de Nenarádovo e vejamos que acontece por lá.

Nada.

Os velhos acordaram e foram para a sala. Gavrila Gavrílovitch, de barrete e

pijama de flanela, Praskóvia Pietróvna de camisole34 de algodão. Prepararam o samovar,

e Gavrila Gavrílovitch mandou uma criada saber de Mária Gavrílovna, como estava sua

saúde e como havia repoisado35. A criada voltou anunciando que a senhorita repoisara

33 Aqui se usa uma palavra popular para amanhecer. (N.T.) 34 A palavra está propositalmente escrita errado no original. (N.T.) 35 Почивать (potchivat) é uma forma antiga e rebuscada para dormir. (N.T.)

Page 27: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

27

mal, mas que já estava melhor e que vinha agora para a sala. De fato, a porta se abriu e

entrou Mária Gavrílovna para cumprimentar papai e mamãe.

– Como está sua cabeça, Macha? – perguntou Gavrila Gavrílovitch.

– Melhor, papai. – respondeu Macha.

– Talvez a fumaça do forno tenha lhe feito mal ontem, Macha36. – falou Praskóvia

Pietróvna.

– Pode ser, mamãe. – respondeu Macha.

O dia passou sem sobressaltos, mas à noite Macha caiu enferma. Mandaram

buscar o médico na cidade. Ele chegou à noitinha e a encontrou delirando. Começou uma

forte febre, e a pobre doente passou duas semanas à beira da morte.

Ninguém na casa sabia da suposta fuga. As cartas escritas por ela na véspera

haviam sido queimadas; sua criada de quarto não falava nada a ninguém, receando a

cólera dos senhores. O padre, o tenente de cavalaria, o agrônomo bigodudo e o pequeno

ulano eram discretos, e não de graça. O cocheiro Teriochka nunca falou nada de mais,

mesmo na bebedeira. Dessa forma, o segredo era preservado por mais de meia dúzia de

conspiradores. Mas a própria Mária Gavrílovna, em incessante delírio, contou seu

segredo. No entanto, suas palavras eram de tal forma sem sentido que até a mãe, que não

se afastava da sua cama, conseguiu entender delas apenas que sua filha estava

mortalmente apaixonada por Vladímir Nikoláievitch e que, provavelmente, o amor era a

causa de sua doença. Ela se aconselhou com o marido, com alguns vizinhos e, finalmente,

todos decidiram por unanimidade que este, pelo visto, era o destino de Mária Gavrílovna,

que casamento de imposição é de curta duração37, que pobreza não é defeito, que não

vivemos com o dinheiro, mas com a pessoa38, e assim por diante. Provérbios morais

costumam ser espantosamente úteis quando não sabemos o que fazer.

Enquanto isso, a senhorita começou a se restabelecer. Vladímir há tempos não era

visto na casa de Gavrila Gavrílovitch. Havia se assustado com a recepção habitual.

Decidiram mandar alguém atrás dele e anunciar-lhe a inesperada felicidade: o

consentimento do matrimônio. Mas qual não foi o espanto dos proprietários de

36 O verbo угореть (ugoriet) significa “ficar intoxicado pela fumaça”. (N.T.) 37 Literalmente: “não dá pra contornar o noivo prometido com um cavalo”, provérbio antigo. (N.T.) 38 Também se trata de um provérbio. Porém, neste caso optei por traduzir literalmente, já que é compreensível em português. (N.T.)

Page 28: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

28

Nenarádovo quando, como resposta ao seu convite, receberam dele uma carta meio

maluca! Declarava que não pisaria nunca em sua casa e pedia que esquecessem do infeliz

para quem a morte restava como única esperança. Em poucos dias eles souberam que

Vladímir fora para a guerra. Era o ano de 181239.

Por muito tempo não ousaram dar a notícia para a convalescente Macha. Ela

nunca mencionava Vladímir. Alguns meses já transcorridos, ao encontrar seu nome entre

os que se destacaram e foram gravemente feridos na batalha perto de Borodino, ela

desmaiou, e temeram a volta de sua febre. No entanto, graças a Deus, o desmaio não teve

maiores consequências.

Outra tristeza lhe sobreveio: Gavrila Gavrílovitch faleceu, deixando-a herdeira de

toda a propriedade. Mas a herança não a alegrou: repartiu sinceramente a tristeza com a

pobre Praskóvia Pietróvna e jurou nunca separar-se dela; ambas deixaram Nenarádovo,

lugar de tristes lembranças, e foram viver na propriedade de ***.

Aqui também os pretendentes rondavam o simpático bom partido; mas ela nunca

deu a menor esperança a nenhum deles. Sua mãe às vezes tentava convencê-la a tomar

para si um amigo; Mária Gavrílovna balançava a cabeça e ficava pensativa. Vladímir já

não existia mais: morrera em Moscou, na véspera da entrada dos franceses. Sua memória

parecia sagrada para Macha; pelo menos, ela guardava tudo o que podia lembrá-lo: livros

outrora lidos por ele, seus desenhos, notas e poemas copiados para ela. Os vizinhos, ao

saber de tudo, admiravam-se da constância e com curiosidade esperavam o herói que

deveria finalmente triunfar sobre a triste fidelidade daquela virginal Artemisa.

Enquanto isso, a guerra havia terminado gloriosa. Nossos regimentos retornavam

do exterior. O povo corria ao seu encontro. Nas músicas, cantavam canções dos

conquistados: Vive Henri-Quatre, valsas tirolesas e árias da Gioconda. Os oficiais, saídos

em campanha quase adolescentes, voltaram transformados em homens pelos ares da

guerra, cheios de condecorações40. Os soldados conversavam alegremente entre si,

misturando a todo instante na fala palavras alemãs e francesas. Tempos inesquecíveis!

Tempos de glória e êxtase! Como batia forte o coração russo diante da palavra pátria!

39 Ano em que Napoleão invadiu a Rússia. (N.T.) 40 Literalmente, cruzes, a forma das condecorações. Mas achei melhor traduzir por condecorações, ainda que explique um pouco. (N.T.)

Page 29: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

29

Como eram doces as lágrimas do encontro! Com qual unanimidade uníamos o sentimento

de orgulho nacional ao do amor ao soberano! E para ele, que momento glorioso!

As mulheres, as mulheres russas naquele tempo andavam incomparáveis. Sua

frieza habitual desaparecera. Seu êxtase era um verdadeiro deleite quando, ao encontrar

os vencedores, gritavam para eles: hurra!

E lançavam ao ar suas touquinhas41.

Qual dos oficiais daquele tempo não reconhece que a mulher russa deu a ele a

melhor, a mais preciosa recompensa?..

Neste tempo glorioso Mária Gavrílovna vivia com a mãe na província de *** e

não viu como ambas as capitais comemoravam a volta do exército. Mas nas províncias e

nos povoados o encantamento geral talvez fosse ainda maior. A aparição de um oficial

nestes lugares era para eles uma verdadeira solenidade, e ter um amante de fraque42 não

era bem-visto na vizinhança.

Já mencionamos que, apesar de sua frieza, Mária Gavrílovna continuava como

antes a ser rodeada por pretendentes. Mas todos tiveram que recuar quando apareceu em

seu castelo um hussardo ferido, o coronel Burmin, com a cruz de São Jorge na lapela e

com uma palidez interessante, como falavam as senhoritas locais. Tinha por volta de 26

anos. Estava de licença em sua propriedade, que ficava na vizinhança da vila de Mária

Gavrílovna. Ela o distinguia muito. Quando estava com ele, normalmente sua aparência

pensativa se animava. Não se pode dizer que ela coqueteava; mas o poeta, reparando em

seu comportamento, diria:

Se amor non è, che dunque?..43

Burmin, na verdade, era um jovem muito simpático. Possuía justamente aquele

espírito que agrada às mulheres: comportado e observador, sem quaisquer pretensões e

despreocupadamente brincalhão. Seu comportamento com Mária Gavrílovna era simples

e desenvolto; mas não importava o que ela falasse ou fizesse, sua alma e seus olhares

sempre a seguiam. Ele parecia ter um temperamento quieto e modesto, mas boatos

asseguravam que outrora havia sido um terrível pândego; isto não o prejudicou na

41 Citação de uma canção da época. (N.T.) 42 Em oposição ao uniforme militar. (N.T.) 43 Verso do soneto 88, de Petrarca. (N.E.)

Page 30: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

30

opinião de Mária Gavrílovna, que (como as jovens damas em geral) com prazer

desculpava as travessuras, pois revelavam ousadia e impetuosidade de caráter.

Mas acima de tudo... (acima de sua ternura, acima das conversas agradáveis,

acima da palidez interessante, acima do braço enfaixado) o silêncio do jovem hussardo

acima de tudo atiçava sua curiosidade e imaginação. Ela não podia deixar de reconhecer

o fato de que agradava muito a ele; provavelmente ele também, com sua inteligência e

experiência, já podia ter reparado que ela o distinguia. Mas o que acontecera para que até

agora ela não o tivesse visto a seus pés nem ouvido sua declaração? O que o detinha? A

timidez, inseparável do verdadeiro amor, o orgulho ou coqueteria de um conquistador

astuto? Era um mistério para ela. Depois de pensar bem, decidiu que só podia ser timidez;

resolveu encorajá-lo com maior atenção e, vendo as circunstâncias, até com ternura. Ela

preparava o desenlace mais inesperado e esperava impacientemente pelo momento da

declaração de amor. O mistério, não importa de que gênero, é sempre um peso para o

coração feminino. Sua manobra militar obteve o êxito desejado: ao menos, Burmin caiu

em tal estado de meditação e seus olhos negros paravam com tal fogo sobre Mária

Gavrílovna que, aparentemente, o minuto decisivo já estava próximo. Os vizinhos

falavam sobre o casamento como algo certo, e a boa Praskóvia Fiodorovna se alegrava ao

ver que sua filha finalmente contrairia um matrimônio digno.

Certo dia, a velhinha estava sentada na sala, só, jogando paciência; Burmin entrou

no cômodo e imediatamente perguntou por Mária Gavrílovna.

– Está no jardim – respondeu a velha – vá encontrá-la, eu espero aqui.

Burmin saiu, e a velha benzeu-se e pensou: “Oxalá este assunto acabe hoje

mesmo!”.

Burmin encontrou Mária Gavrílovna perto do lago, sob o salgueiro, de vestido

branco e com um livro nas mãos, uma autêntica heroína de romance. Depois das

primeiras perguntas ela deixou a conversa morrer de propósito; aumentava desta forma o

constrangimento mútuo do qual só seria possível livrar-se com uma declaração súbita e

decisiva. E assim se sucedeu: Burmin, sentindo a dificuldade da sua situação, anunciou

que procurava há tempo o momento para abrir seu coração e pediu um minuto de seu

favor. Mária Gavrílovna fechou o livro e baixou os olhos em sinal de assentimento.

Page 31: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

31

–Eu te amo44, – falou Burmin – eu te amo apaixonadamente...

(Mária Gavrílovna ruborizou e inclinou a cabeça ainda mais baixo).

– Agi levianamente, me entreguei a estes hábitos tão doces, de vê-la e ouvi-la

diariamente...

(Mária Gavrílovna lembrou-se da primeira carta de St.-Preux45)

– Agora é já tarde para opor-me ao meu destino; sua recordação, sua doce e

incomparável imagem de hoje em diante serão o tormento e o prazer da minha vida; mas

ainda me resta cumprir uma penosa obrigação; revelar-lhe um segredo terrível e colocar

entre nós um obstáculo insuperável.

– Ele sempre existiu – interrompeu com vivacidade Mária Gavrílovna – eu nunca

poderia ser sua esposa...

– Eu sei – ele respondeu em voz baixa, – eu sei que há tempos você amou alguém,

mas a morte e três anos de lamentação... Minha boa, minha querida Mária Gavrílovna!

Não se esforce para privar-me deste último consolo: a ideia de que você concordaria em

fazer minha felicidade, se... Não fale nada, pelo amor de Deus, não fale nada. Você me

martiriza. Sim, eu sei, eu sinto que você seria minha, mas... Sou a mais infeliz das

criaturas... eu sou casado!

Mária Gavrílovna lançou-lhe um olhar de surpresa.

– Sou casado – prosseguiu Burmin – sou casado há já quatro anos e não sei quem

é minha mulher, nem onde ela está, nem como posso encontrar-me com ela!

–De que está falando? – exclamou Mária Gavrílovna, – como isso é estranho!

Prossiga, contarei depois... mas prossiga, tenha a bondade.

– No começo de 1812 – falou Burmin – eu ia apressado para Vilna46, onde estava

nosso regimento. Um dia, ao chegar tarde da noite a uma estação, mandei que atrelassem

os cavalos quando, de repente, começou uma terrível nevasca. O chefe da estação e os

cocheiros aconselharam-me a esperar passar. Eu os escutei, mas uma inexplicável

inquietude apoderou-se de mim; parecia que algo me empurrava. Enquanto isso, a

nevasca não se acalmava. Não aguentei; mandei atrelar novamente e fui para o meio da

44 A partir daqui, optei por usar o “você” como tradução para o “vós”.“A senhora/o senhor” soaria artificial. (N.T.) 45 Do romance epistolar Júlia ou A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau. (N.E.) 46 Atual capital da Lituânia. Na época, era parte do império russo. (N.T.)

Page 32: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

32

tempestade. O cocheiro tencionou ir pelo rio, o que devia encurtar nosso caminho em

umas três verstas. As margens estavam cobertas; o cocheiro perdeu o caminho que ia dar

na estrada e, dessa forma, encontramo-nos em um lugar desconhecido. A tempestade não

abrandava; vi uma pequena luz e o mandei ir naquela direção. Chegamos a um povoado;

havia luz na igreja de madeira. A porta estava aberta e atrás da cerca havia alguns trenós;

pessoas andavam no átrio.

– Para cá! Para cá! – gritaram algumas vozes. Mandei o cocheiro aproximar-se.

– Ora, por que se atrasou? – disse-me alguém. – A noiva está desmaiada; o pope

não sabe o que fazer; estávamos prontos para voltar. Saia, rápido.

Sem dizer nada, saltei do trenó e entrei na igreja, fracamente iluminada por duas

ou três velas. Uma moça estava sentada em um banquinho, no canto escuro da igreja;

outra esfregava suas têmporas.

–Graças a Deus – falou – finalmente o senhor chegou. Por pouco o senhor não

acabou com a senhorita.

O velho pope aproximou-se de mim com uma pergunta:

– Deseja começar?

– Comece, comece, paizinho – respondi distraidamente. Levantaram a moça. Ela

não me pareceu feia... Incompreensível, imperdoável leviandade... Fiquei de pé perto

dela, diante da mesa47; o pope estava com pressa; três homens e a criada de quarto

sustentavam a noiva, e se ocupavam apenas dela. Casaram-nos. “Beijem-se”, nos

disseram... Minha mulher voltou para mim seu rosto pálido. Eu quis beijá-la... ela deu um

grito: “Ai, não é ele! Não é ele!”, e caiu sem sentidos. As testemunhas dirigiram para

mim olhares apavorados. Eu me virei, saí da igreja sem nenhum impedimento, lancei-me

na kibitka48 e gritei: “vá!”.

– Meu Deus! – gritou Mária Gavrílovna – e você não sabe o que aconteceu com

sua pobre mulher?

– Não sei – respondeu Burmin—não sei como se chama o povoado onde me

casei; não lembro-me de qual estação saí. Dava tão pouca importância à minha travessura

criminosa naquela época que, saindo da igreja, adormeci e acordei no dia seguinte de

47 Аналой (analoi): mesa onde se colocavam a cruz, a bíblia e o ícone. (N.T.) 48 Кибитка (kibitka): espécie de trenó coberto. (N.T.)

Page 33: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

33

manhã, já na terceira estação. Meu criado, que estava então comigo, morreu em

campanha e dessa forma não tenho nem esperanças de encontrar aquela de quem zombei

tão cruelmente e que agora foi tão cruelmente vingada.

–Meu Deus, meu Deus! – falou Mária Gavrílovna, agarrando sua mão – era você

então! E não me reconhece?

Burmin empalideceu... e se lançou aos seus pés...

Page 34: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

34

A SENHORITA CAMPONESA

Em você, Dúchenka49, tudo veste bem50.

Bogdánovitch

Em uma de nossas províncias longínquas se achava a propriedade de Ivan

Pietróvitch Bérestov. Em sua juventude, servira na Guarda; no começo de 1797, pediu

baixa, partiu para sua aldeia e desde então de lá não saiu mais. Ivan Pietróvitch foi casado

com uma nobre sem dinheiro, que morreu no parto enquanto ele se encontrava num

campo distante. O exercício dos negócios logo o consolou. Construiu uma casa de acordo

seu próprio projeto, montou perto uma fábrica de tecido, triplicou os lucros e começou a

se achar o homem mais inteligente daquelas bandas; e, neste assunto, os vizinhos nunca o

contradiziam quando vinham visitá-lo com a parentada e os cachorros. Nos dias de

semana vestia uma jaqueta plissada, nos dias santos uma sobrecasaca de feltro feita lá

mesmo; registrava pessoalmente seus gastos e não lia nada, a não ser a Boletim do

Senado51. Geralmente gostavam dele, apesar de alguns acharem-no arrogante. Só Grigori

Ivánovitch Múromski, seu vizinho mais próximo, não se entendia com ele. Múromski era

um verdadeiro proprietário russo. Depois de, simultaneamente, enviuvar e torrar a maior

parte de seu patrimônio em Moscou, se retirou para a única aldeia que lhe restava, onde

continuou aprontando, mas de um outro jeito: inventou um jardim inglês, no qual gastava

quase toda a renda que sobrara. Seus cavalariços andavam vestidos como jóqueis

ingleses. Para a filha, arrumou preceptora inglesa. Lavrava seus campos à moda inglesa;

Mas ao modo alheio não nasce o pão russo52,

49 Várias traduções optam por “minha querida” ao invés de Dúchenka. (N.T.) 50 Do segundo livro de poemas de Bogdánovitch, Dúchenka (1775). (N. E.) 51 Boletim do Senado: jornal oficial do governo, era publicado semanalmente. Sobre o Senado, ver mais nos comentários da tradução. (N.T.) 52 Verso de A. Chakhovski (1808). (N.E.)

Page 35: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

35

e, apesar da considerável diminuição nos gastos, a renda de Grigori Ivánovitch não

crescia; até na aldeia descobriu uma maneira de contrair novas; com tudo isso, não o

achavam tolo, pois fora o primeiro entre os proprietários de sua província que teve a ideia

de por no prego sua propriedade no Conselho Tutelar: manobra que na época parecia

extraordinariamente complexa e corajosa. Dentre todos os que o condenaram, foi de

Bérestov o julgamento mais rigoroso. O ódio a novidades era seu traço característico.

Não conseguia falar com indiferença da anglomania de seu vizinho e a todo minuto

encontrava ocasião para criticá-lo. Mesmo quando exibia sua propriedade para um

convidado, respondia aos elogios feitos a seus arranjos econômicos:

– Isso mesmo — dizia, com um risinho malicioso — não tenho o que tem meu

vizinho Grigori Ivánovitch. E lá somos capazes de nos arruinar à moda inglesa? Estamos

satisfeitos em encher a barriga ao modo russo53.

Estas e outras brincadeiras, graças ao empenho de vizinhos zelosos, chegavam aos

ouvidos de Grigori Ivánovitch com acréscimos e explicações. O anglômano encarava

críticas de forma tão impaciente quanto nossos jornalistas. Ficou uma fera e apelidou seu

desafeto de urso e caipira.

Assim andava a convivência entre os dois proprietários quando o filho de

Bérestov veio visitá-lo na aldeia. Estava formado na universidade de *** e pretendia

iniciar a carreira militar, mas seu pai não concordava com a ideia. O jovem se sentia

completamente inepto para o trabalho na burocracia54. Ambos se recusavam a ceder; e o

jovem Aleksei foi começando a viver a vida de senhor por enquanto e, por via das

dúvidas, deixou crescer o bigode55.

Aleksei era, de fato, um rapagão bonito. Seria mesmo uma pena se sua figura

esbelta não se apertasse num uniforme militar e se, ao invés de exibir-se num cavalo,

passasse sua juventude curvado sobre papéis de escritório. Ao ver como nas caçadas ele

sempre galopava na frente, sem olhar para o caminho, os vizinhos concordavam que dali

nunca sairia um funcionário que prestasse. As fidalgas ficavam olhando para ele, e

53 A primeira frase lembra um conto de fadas. No entanto, ao longo do trecho o tom muda para o de um contador de histórias. (N.T.) 54 Na Rússia tzarista, os nobres precisavam escolher entre serviço militar e funcionalismo público. (N.T.) 55 Os militares normalmente usavam bigode. (N.E.)

Page 36: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

36

algumas até olhavam demais; mas Aleksei pouco se preocupava com elas, que

creditavam sua insensibilidade a uma ligação amorosa. De fato, uma cópia do endereço

de uma das suas cartas havia passado de mão em mão: Para Akulina Pietróvna

Kúrotchkinaia, em Moscou, em frente ao mosteiro Alekseievski, na casa do caldeireiro

Saviélev, peço-lhe encarecidamente que entregue essa carta a A. N. R.56

Aqueles entre os meus leitores que nunca viveram no campo não podem imaginar

quão encantadoras são essas fidalgas de província! Educadas ao ar livre, à sombra das

macieiras do jardim, tiram dos livros o conhecimento do mundo e da vida. Solidão,

liberdade e leitura cedo desenvolvem nelas sentimentos e paixões desconhecidos de

nossas beldades já distraídas. Para as senhorinhas, o soar da campainha já é uma

aventura, uma viagem à cidade vizinha marca uma época da vida e uma visita deixa uma

lembrança duradoura, às vezes eterna. É claro, qualquer um pode rir dessas

excentricidades; mas as brincadeiras de um observador superficial não conseguem

destruir suas evidentes qualidades essenciais, das quais a mais importante é:

particularidade de caráter, singularidade57 (individualité58), sem a qual, na opinião de

Jean-Paul59, não existe a própria grandeza humana. Nas capitais as mulheres recebem,

talvez, melhor educação; mas os hábitos mundanos logo suavizam a personalidade e

deixam as almas tão uniformes quanto os chapéus femininos. Que isso não seja dito como

julgamento nem como censura, apenas Nota nostra manet, como escreve um antigo

comentador.

É fácil imaginar a impressão que Aleksei deve ter provocado no círculo de nossas

donzelas. Foi o primeiro a mostrar-se diante delas sombrio e desiludido, o primeiro a

falar-lhes de alegrias desfeitas e de sua juventude perdida; usava, além disso, um anel

negro com a imagem de uma caveira. Tudo isso era extraordinariamente novo naquela

província. As donzelas ficaram loucas por ele.

Mas, entre todas, a mais interessada era a filha do nosso anglófilo, Liza (ou Betsy,

como Grigori Ivánovitch tinha o hábito de chamá-la)60. Como seus pais não se

frequentavam, enquanto Aleksei era o único assunto entre todas as jovens da região, ela 56 A linguagem usada neste trecho é mais elevada, pois se está falando sobre a nobreza. (N.T.) 57 Púchkin forma a palavra самобытность (samobitnost) a partir do francês. (N.T.) 58 Em francês no original. 59 Pseudônimo do escritor alemão Johann Paul Richter (1763—1825). (N.E.) 60 Liza é o apelido de Lizavieta (Elisabete). Por isso o pai a chama de Betsy. (N.T.)

Page 37: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

37

ainda não o vira. Tinha 17 anos. Olhos negros animavam seu rosto moreno e muito

agradável. Era filha única e, portanto, mimada. Sua vivacidade e suas travessuras

incessantes encantavam o pai e levavam ao desespero sua preceptora, Miss Jackson, uma

donzela afetada de 40 anos que empoava o rosto, escurecia as sobrancelhas, lia Pamela61

duas vezes por ano, recebia para isso 2 mil rublos e morria de tédio nesta Rússia bárbara.

Quem servia Liza era Nástia; era um pouco mais velha, mas tão cabeça-de-vento

quanto sua senhora. Liza a amava muito e contava-lhe todos seus segredos; com ela,

planejava suas invenções. Em suma, Nástia era uma pessoa infinitamente mais

importante no povoado de Prilútchino que qualquer confidante de tragédia francesa.

— A senhora permite sair hoje para uma visita? — Disse Nástia certa vez,

enquanto vestia a senhora.

— Permito; para onde?

— Para Tuguílovo, na casa dos Bérestov. A mulher do cozinheiro faz aniversário

e, ontem, nos chamou para almoçar com eles.

— Veja só! — disse Liza — Os senhores são brigados e os criados se recebem.

— E lá temos a ver com os assuntos dos senhores? — objetou Nástia — Além do

mais, eu sou da senhora, não do seu papaizinho. A senhora ainda não bateu boca com o

jovem Bérestov; deixe os velhos se estapearem, já que eles se divertem.

— Procure ver Aleksei Bérestov, Nástia, e depois me conte direitinho qual é sua

aparência e que tipo de homem ele é.

Nástia fez a promessa e Liza esperou impacientemente o dia todo por seu retorno.

À noite, Nástia apareceu.

– Pois bem, Lizavieta Grigórievna — disse, entrando no quarto — vi o jovem

Bérestov. Olhei bastante; passamos o dia inteiro juntos.

— Como? Conte, conte tudo desde o começo.

– Às ordens: fomos eu, Anícia Egórovna, Nenila, Dúnka...

— Está bem, já sei. E depois?

— Permita-me62, vou contar tudo desde o começo. Chegamos bem na hora do

61 Pamela: Romance de 1741 do escritor inglês Richardson. (N.E.) 62 Nástia emprega o –c para falar com Liza. Era uma forma dos camponeses demonstrarem respeito. Quando possível, compensei com “senhora”. (N.T.)

Page 38: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

38

almoço. O quarto estava cheio de gente. Veio o pessoal de Kolbino, os Zakhárievo, a

mulher do feitor com suas filhas, de Khlúpino...

— Sim! E Bérestov?

— Espere um pouco, senhora. Sentamos à mesa; a mulher do intendente à

cabeceira, eu perto dela... As filhas ficaram emburradas, mas eu nem me preocupei.

— Ai, Nástia, você está me entediando com todos esses detalhes.

— Mas como a senhora é impaciente! Bem, nos levantamos da mesa... Estávamos

sentados há bem umas três horas e o almoço estava bom. O doce, blanc-mange azul,

vermelho e misturado... Então saímos da mesa e fomos ao jardim brincar de pega-pega;

foi aí que apareceu o jovem senhor.

— E então? É verdade que é muito bonito?

– Bonito demais. Lindo, posso dizer. Magro, alto, bochechas vermelhinhas...

– É mesmo? Mas eu achava que ele era pálido. E o que mais? Como lhe pareceu?

Triste, pensativo?

– Qual o quê! Nunca vi um doidivanas como ele. Inventou de brincar de pega-

pega com a gente.

– Brincar com vocês? Não é possível.

– É possível, sim. E sabe o que mais? Quando nos pegava, dava um beijo.

– Com todo respeito, Nástia, você está mentindo.

– Com todo respeito, senhora, não estou. À custo me livrei dele. Brincou o dia

todo com a gente.

– Mas como dizem que está apaixonado e não olha para ninguém?

– Disso eu não sei; mas para mim olhava até demais; e para Tânia, a filha do

feitor, também; e para a Pacha, de Kólbino, é um pecado mentir. Não deixou nenhuma

para trás, aquele danado.

– Isto é surpreendente! E o que falam dele os criados da casa?

– Dizem que o senhor é ótimo: tão bom, tão alegre. Só tem um problema: gosta

demais de correr atrás das meninas. Mas, para mim, isso não faz mal: com o tempo ele

cria juízo.

– Como eu gostaria de vê-lo! – disse Liza, suspirando.

Page 39: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

39

– Qual é a dificuldade? Tuguílovo não está longe, são só três verstas: vá caminhar

por aqueles lados, ou passear a cavalo; a senhora certamente vai encontrá-lo. Todo santo

dia, de manhã cedo, ele vai caçar com a espingarda.

– Acho que não, assim não serve. Ele pode achar que fui lá para vê-lo. Além do

mais, nossos pais estão brigados, não vai ser possível conhecê-lo. Ah, Nástia! Sabe de

uma coisa? Vou vestir-me de camponesa!

– Mas é isso mesmo, senhora: vista uma camisa grossa, um sarafã63 e vá direto à

Tuguílovo. Garanto que Bérestov não a deixará escapar.

– E eu sei muito bem como falam as pessoas daqui. Ah, Nástia, querida Nástia.

Que boa ideia! – E Liza foi dormir decidida a executar seu divertido plano.

No dia seguinte, pôs-se a trabalhar nos preparativos de seu plano; mandou

comprar na feira um pano grosso, seda azul e pequenos botões de cobre. Com a ajuda de

Nástia, cortou uma camisa e um sarafã, colocou todas as criadas para costurar e, à noite,

tudo estava pronto. Liza provou sua roupa nova e teve de admitir, olhando para o espelho,

que nunca se achara tão encantadora. Ensaiou seu papel; fazia reverências profundas e

depois balançava a cabeça algumas vezes, como os gatos de argila; falava como as

camponesas, ria cobrindo o rosto com a manga e por fim ganhou a aprovação completa

de Nástia. Apenas uma coisa lhe pareceu difícil: tentou passar pelo pátio descalça, mas a

grama machucava seus pés delicados, e a areia e as pedrinhas lhe pareciam insuportáveis.

Ao que Nástia também a socorreu: tirou a medida dos pés de Liza, correu para encontrar

o pastor Trofim, no campo, e encomendou um par de lapti64 segundo a medida. No dia

seguinte, mal nascia o sol e Liza já estava acordada. A casa inteira ainda dormia. Nástia,

no portão, esperava pelo pastor. A corneta tocou e o rebanho da aldeia começou a se

arrastar em frente à casa dos senhores. Trofim, ao passar por Nástia, deu-lhe um par de

pequenas lapti coloridas e recebeu cinquenta copeques como recompensa. Liza

silenciosamente se fantasiou de camponesa, sussurrou as instruções a propósito de Miss

Jackson para Nástia, saiu pela porta dos fundos e correu pela horta até o campo.

A aurora brilhava no horizonte e fileiras de nuvens douradas, parecia, esperavam

pelo sol, como os cortesãos esperam pelo rei; o céu claro, o frescor da manhã, o orvalho,

63 Vestido sem mangas usado pelas camponesas da época. (N.T.) 64 Lapti: sandálias de palha usadas pelos camponeses. (N.T.)

Page 40: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

40

o vento e o canto dos pássaros enchiam o coração de Liza com alegria infantil; temendo

encontrar alguém conhecido, parecia que não andava e sim voava. Ao aproximar-se do

pequeno bosque, no limite da propriedade de seu pai, Liza começou a andar com mais

vagar. Ali, devia esperar por Aleksei. Seu coração batia forte sem mesmo saber por quê;

mas o medo, companheiro de nossas travessuras de juventude, é também o maior dos

seus encantos. Liza entrou na penumbra do bosque. Um murmúrio ondulante e surdo

saudou a garota. Sua alegria se acalmou. Pouco a pouco, foi se entregando a uma doce

divagação. Ela pensava... Mas será possível determinar exatamente o que pensa uma

fidalga de 17 anos, sozinha no bosque, pouco depois das cinco horas, em uma manhã de

primavera? E assim ela andava, pensativa, pelo caminho sombreado por árvores altas,

quando de repente um maravilhoso cão perdigueiro pôs-se a latir para ela. Liza levou um

susto e gritou. Nesta hora, ouviu-se uma voz: “tout beau, Sbogar, ici...”65 e um jovem

caçador apareceu por trás do arbustos.

– Pode ficar calma, querida – disse para Liza: – meu cachorro não morde.

Liza ainda teve tempo de se recobrar do susto e imediatamente conseguiu tirar

proveito das circunstâncias.

– Ah, não, meu senhor – disse ela, fingindo uma expressão meio assustada, meio

tímida – tenho medo sim: óia66 como é bravo. Pode atacar de novo.

Enquanto isso, Aleksei (o leitor já o reconheceu), olhava atentamente para a

jovem camponesa.

– Eu a acompanho, se está com medo – disse para ela – permite que me aproxime

de você?

– E quem te impede?– respondeu Liza – cada um faz o que quer, a estrada é de

todos.

– De onde você é?

–De Prilútchino; sou filha do ferreiro Vassili, vim colher cogumelos. (Liza trazia

um cesto com uma cordinha) E você, é o senhor? De Tuguílovo, não é?

– Exatamente, – respondeu Aleksei, – sou camareiro do jovem senhor.

Aleksei queria igualar suas relações. Mas Liza olhou para ele e pôs-se a rir.

65 “Quieto, Sbogar, aqui.” (fr.) (N.T.) 66 Liza está forçando; soa exagerado. (N.T.)

Page 41: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

41

– Que mentira – disse – não pense que sou boba. Estou vendo que é o próprio

senhor.

– Por que você acha isso?

– Por tudo.

– Por exemplo?

– E por acaso não sei a diferença entre um senhor e um criado? Você se veste de

outro jeito, fala diferente e não chama o cachorro como a gente.

Liza agradava cada vez mais a Aleksei. Acostumado a não fazer cerimônias com

camponesas bonitinhas, quis abraçá-la; mas Liza saltou de lado e assumiu uma expressão

tão fria e austera que, apesar de ter feito Aleksei rir, fê-lo conter-se em relação a maiores

avanços.

– Se o senhor quiser que continuemos amigos – ela falou seriamente – trate de se

comportar.

– Quem lhe ensinou tanta sabedoria? – perguntou Aleksei, às gargalhadas. – Terá

sido minha conhecida Nástienka, a criada da sua senhora? Veja por quais caminhos se

espalha a educação!

Liza sentiu que havia saído de seu papel e imediatamente se corrigiu.

– O que está pensando? – falou – por acaso acha que nunca visitei os criados da

casa? Pode ter certeza: já ouvi e já vi de tudo. Mas, – ela prosseguiu – tagarelando

contigo não dá para colher cogumelos. Então vá para um lado, senhor, que vou para o

outro. Vamos desculpando...

Liza queria se retirar. Aleksei segurou-a pela mão.

– Como você se chama, minha querida?

– Akulina. – respondeu Liza, tentando tirar seus dedos da mão de Aleksei, – me

deixe ir, senhor; já é hora de voltar.

– Então, minha amiga Akulina, vou sem falta fazer uma visita ao seu pai, o

ferreiro Vassili.

–Nada disso – objetou Liza com vivacidade, – Santo Cristo, não vá. Se lá em casa

ficam sabendo que eu tagarelei com o senhor sozinha no bosque, será a minha desgraça.

Meu pai me mata.

– Mas quero encontrá-la novamente, sem falta.

Page 42: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

42

– Bem, um dia volto aqui para colher cogumelos.

– Quando, então?

– Pode ser amanhã.

– Querida Akulina, eu a beijaria, mas não me atrevo. Então, amanhã, a esta hora,

não é?

– Sim, sim.

– Você não vai me enganar?

– Não.

– Jure.

– Juro por Nosso Senhor, eu venho.

Os jovens se separaram. Liza saiu do bosque, atravessou o campo, entrou

sorrateiramente no jardim e correu a toda pressa para a fazenda, onde Nástia a esperava.

Lá, trocou de roupa enquanto, distraidamente, respondia às perguntas de sua inquieta

confidente, e se dirigiu para a sala. A mesa estava posta, o café da manhã, pronto; Miss

Jackson, já empoada e apertada em um espartilho, como um cálice, cortava finas fatias de

pão. Seu pai a elogiou pelo passeio matinal.

– Não há nada mais saudável – disse – do que despertar ao alvorecer.

Em seguida, citou vários exemplos de longevidade, tirados das revistas inglesas,

observando que todas as pessoas que viveram mais de cem anos não bebiam vodka e

despertavam com a aurora, tanto no verão quanto no inverno. Liza não o escutava. Em

seus pensamentos, repetia todas as circunstâncias de seu encontro naquela manhã, toda a

conversa entre Akulina e o jovem caçador, e a consciência começou a atormentá-la. Em

vão objetava para si mesma que a conversa não passara dos limites do decoro, que esta

brincadeira não teria nenhuma consequência, mas sua consciência reclamava mais alto

que a razão. A promessa que fizera em relação ao dia seguinte era o que mais a

incomodava: quase decidiu quebrar seu solene juramento. Mas, se Aleksei a esperasse em

vão, poderia ir ao povoado e descobrir a filha do ferreiro Vassili, a verdadeira Akulina,

uma menina gorda e sardenta – e, dessa forma, adivinhar sua brincadeira irresponsável.

Esta ideia deixou Liza horrorizada, e fê-la decidir que Akulina iria ao bosque novamente

na manhã seguinte.

Page 43: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

43

De sua parte, Aleksei estava extasiado e, durante todo o dia, pensou em sua nova

conhecida; à noite, a imagem da bela morena perseguia sua imaginação. Mal nascia o

dia,já estava vestido. Sem mesmo se dar tempo de carregar a espingarda, foi para o

campo com seu leal Sbogar e correu ao lugar do prometido encontro. Passou-se cerca de

meia hora de uma espera insuportável; finalmente, viu surgir entre os arbustos um sarafã

azul e se lançou ao encontro da sua querida Akulina. Ela sorriu ao seu êxtase de gratidão,

mas Aleksei imediatamente notou em seu rosto um vestígio de tristeza e ansiedade.

Indagou-lhe qual era o motivo. Liza reconheceu que sua conduta lhe parecia leviana, que

estava arrependida, que dessa vez não queria manter a promessa e que esse encontro seria

o último, e pedia a ele para interromper aquela amizade sem futuro. Tudo isso, é claro, foi

dito em uma linguagem de camponesa; mas o raciocínio e os sentimentos, singulares em

uma moça simples, deixaram Aleksei pasmo. Ele recorreu a toda sua eloquência para

demover Akulina de sua intenção: jurou a inocência de seus desejos, prometeu que nunca

lhe daria motivo de arrependimento, que a obedeceria em tudo, suplicou que não o

privasse dessa única alegria: encontrar-se com ela a sós, nem que fosse dia sim, dia não,

nem que fosse duas vezes por semana. Ele falava a língua da verdadeira paixão e, nesse

minuto, estava completamente enamorado. Liza o escutava em silêncio.

– Dê-me sua palavra, – falou, finalmente – de que nunca me procurará na aldeia,

nem fará perguntas sobre mim. Dê-me sua palavra de que nunca procurará ter comigo

outros encontros além desses que eu mesma estabeleci.67

Aleksei quis jurar por tudo o que há de mais sagrado, mas ela o impediu com um

sorriso.

– Não preciso que jure, – disse Liza – basta-me a sua promessa.

Depois disso, conversaram fraternalmente, passeando juntos pelo bosque até que

Liza disse: está na hora. Despediram-se e, quando Aleksei ficou só, não conseguia

entender como uma simples menina da aldeia conseguira em dois encontros ter sobre ele

verdadeiro poder. Sua relação com Akulina exercia sobre ele o fascínio de uma novidade,

e, embora a ordem daquela estranha camponesa lhe parecesse difícil, a ideia de faltar com

a palavra nem lhe passou pela cabeça. Acontece que Aleksei, apesar de seu anel sinistro,

67 Neste trecho ela também sai do papel. (N.T.)

Page 44: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

44

da correspondência enigmática e do ar de sombria desilusão, era um rapaz bom,

apaixonado e possuía um coração puro, capaz de sentir os prazeres da inocência.

Se eu pudesse seguir apenas meus próprios desejos, certamente descreveria com

todos os detalhes os encontros dos jovens, a crescente inclinação que sentiam um pelo

outro, a confiança mútua, os passatempos, as conversas; mas sei que a maior parte dos

meus leitores não partilharia comigo este prazer. Esses detalhes geralmente parecem

adocicados, pois bem, vou omiti-los, dizendo apenas que mal se passaram dois meses e

meu Aleksei já estava perdidamente apaixonado – e Liza não lhe era indiferente, apesar

de mais silente. Ambos estavam felizes com o presente e pouco pensavam no futuro.

A ideia de vínculos indissolúveis surgia com frequência em seus pensamentos,

mas nunca haviam falado sobre isso um com o outro. A razão era óbvia: Aleksei, por

mais que estivesse ligado à sua querida Akulina, sempre se lembrava da distância

existente entre ele e a pobre camponesa; e Liza sabia quanto ódio havia entre seus pais, e

não se atrevia a ter esperanças de uma reconciliação. Além disso, seu amor próprio era

incitado em segredo pela esperança obscura e romântica de, ao fim de tudo, ver o senhor

de Tuguílovo aos pés da filha do ferreiro de Prilútchino. De súbito, um acontecimento

importante quase mudou suas relações.

Em uma manhã clara e fria (do tipo que é rico nosso outono russo), Ivan

Pietróvitch Bérestov saiu para passear a cavalo, e, por via das dúvidas, levou consigo três

pares de galgos, um cavalariço e vários garotos com matracas. Simultaneamente, Grigori

Ivánovitch Múromski, seduzido pelo bom tempo, mandou selar sua eguinha sem rabo e

saiu a trote em volta de sua propriedade anglicizada. Aproximando-se do bosque, viu seu

vizinho, altivamente sentado no cavalo, com um casaco68 forrado de pele de raposa,

aguardando uma lebre que os garotos aos gritos e matracas enxotavam de um arbusto. Se

Grigori Ivánovitch pudesse prever esse encontro, haveria certamente mudado de direção;

mas deu com Bérestov de forma absolutamente inesperada, e de repente encontraram-se à

distância de um tiro de pistola. Não havia o que fazer: Múromski, como um europeu

instruído, aproximou-se de seu adversário e cumprimentou-o educadamente. Bérestov

respondeu com o empenho de um urso acorrentado que faz reverência aos senhores por

ordem de seu dono. Enquanto isso, a lebre pulou do bosque e correu pelo campo.

68 Bérestov usa um casaco dos guerreiros do cáucaso, чекмень (tchekmen). (N.T.)

Page 45: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

45

Bérestov e seu cavalariço gritaram a plenos pulmões, soltaram os cães e puseram-se a

cavalgar à rédea solta. O cavalo de Múromski, que nunca havia estado em uma caçada,

assustou-se e desembestou. Múromski se proclamava um excelente cavaleiro; deixou-o

correr, interiormente satisfeito com os acontecimentos que o haviam livrado do

desagradável interlocutor. Mas o cavalo, galopando até o barranco sem se dar conta, de

repente atirou-se para o lado, e Múromski não conseguiu se segurar. Ao cair pesadamente

sobre a terra gelada, lá ficou deitado, amaldiçoando sua eguinha sem rabo, que, como se

voltasse a si, imediatamente parou quando percebeu que estava sem cavaleiro. Ivan

Pietróvitch aproximou-se a galope perguntando se ele não havia se machucado. Enquanto

isso, o valete trouxe o cavalo criminoso, segurando-o pela rédea. Ajudou Múromski a

subir, e Bérestov o convidou à sua casa. Múromski não podia recusar, pois se sentia

obrigado e, dessa forma, Bérestov voltou para casa, coberto pela glória de ter caçado uma

lebre e trazido consigo seu adversário ferido, quase um prisioneiro de guerra.

Enquanto tomavam café da manhã, os vizinhos conversaram de forma bastante

amigável. Múromski pediu a Bérestov seu drojki69, pois confessou que com aquele

machucado não poderia ir para casa cavalgando. Bérestov chegou até a conduzi-lo ao seu

terraço; Múromski partiu, não sem antes fazê-lo prometer que no dia seguinte (e com

Aleksei Ivánovitch) iria cordialmente almoçar em Prilútchino. Dessa forma, ao que

parece, a antiga inimizade profundamente arraigada estava prestes a ser dissolvida pelo

susto de uma eguinha sem rabo.

Liza correu ao encontro de Grigori Ivánovitch.

– O que aconteceu, papai?— ela perguntou, espantada, – por que o senhor está

mancando? Onde está seu cavalo? De quem é esse drojki?

– Você nunca vai adivinhar, my dear – respondeu-lhe Grigori Ivánovitch, e

contou tudo o que havia acontecido. Liza não acreditava em seus ouvidos. Grigori

Ivánovitch, sem dar a ela tempo de voltar a si, anunciou que no dia seguinte os dois

Bérestov almoçariam com eles.

– O que o senhor está dizendo? – disse ela, empalidecendo. – Bérestov, pai e

filho! Almoçando conosco amanhã! Não, papai, pode fazer o que quiser: eu não vou

aparecer por nada.

69 Tipo de veículo leve, puxado por um cavalo. (N.T.)

Page 46: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

46

– Mas como? Perdeu o juízo? – replicou o pai – quando ficou assim tão tímida?

Ou será que nutre por eles um ódio hereditário, como uma heroína de romance? Basta,

deixe de bobagem.

– Não, papai, por nada no mundo, nem pelo maior dos tesouros apareço na frente

dos Bérestov.

Grigori Ivánovitch deu de ombros e não discutiu mais, pois sabia que não

adiantava contradizê-la; e foi descansar de sua notável cavalgada.

Lizavieta Grigórievna foi ao seu quarto e chamou Nástia. Ambas passaram um

longo tempo conversando sobre a visita do dia seguinte. O que pensaria Aleksei quando

reconhecesse na educada senhorita sua Akulina? Que opinião teria sobre sua conduta, seu

procedimento, sobre seu juízo? Por outro lado, Liza queria muito ver a impressão que

causaria nele um encontro tão inesperado... De repente, veio-lhe uma ideia. Anunciou-a

imediatamente a Nástia; ambas alegraram-se com a solução e puseram-se a executá-la

sem demora.

No dia seguinte, no café da manhã, Grigori Ivánovitch perguntou à filha se ainda

pretendia esconder-se dos Bérestov.

– Papai, – respondeu Liza, – vou recebê-los, se isso lhe agrada, mas com uma só

condição: não importa como eu apareça diante deles, não importa o que eu faça, você não

pode me repreender, nem dará sinal algum de surpresa ou desagrado.

– Mais uma de suas travessuras! – disse Grigori Ivánovitch, rindo. – Bom, está

bem, tudo bem; concordo, faça o que quiser, minha danadinha de olhos pretos.

Com essas palavras, beijou-a na testa, e Liza correu para aprontar-se.

Às duas horas, exatamente, uma carruagem artesanal, atrelada a seis cavalos,

entrou no pátio e circundou o gramado. O velho Bérestov subiu ao terraço com a ajuda de

dois lacaios de libré de Múromski. Atrás dele, seu filho chegou a cavalo e entraram

juntos na sala de jantar, onde a mesa já estava posta. Múromski recebeu seus vizinhos da

maneira mais carinhosa possível, propôs-lhes uma visita ao jardim e aos animais antes do

almoço e os conduziu por caminhos cuidadosamente varridos e cobertos de areia. O velho

Bérestov internamente lamentava o trabalho desperdiçado e o tempo gasto com aqueles

caprichos inúteis, mas, por educação, mantinha-se calado. Seu filho não partilhava nem

do descontentamento do econômico senhor, nem do entusiasmo do anglômano cheio de

Page 47: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

47

si: esperava impacientemente a aparição da filha do senhor, sobre a qual muito ouvira; e

apesar de seu coração já encontrar-se, como sabemos, indisponível, uma jovem beldade

sempre tinha direito à sua imaginação.

Voltando à sala de jantar, sentaram-se juntos; os velhos recordaram-se dos tempos

antigos e das anedotas do serviço militar, e Aleksei meditava quanto ao papel que deveria

representar na presença de Liza. Decidiu que uma fria displicência era sempre o mais

indicado, e aprontou-se para tanto. A porta se abriu: ele virou a cabeça com tal

indiferença, com tal desdém orgulhoso, que mesmo o coração da mais inveterada coquete

haveria de estremecer. Infelizmente, em vez de Liza entrou a velha Miss Jackson,

empoada, espremida no espartilho, com os olhos baixos e uma pequena reverência, e a

bela manobra militar de Aleksei foi em vão. Nem teve tempo de reunir novamente suas

forças, e a porta se abriu novamente; desta vez, entrou Liza. Todos se levantaram: o pai

começou a apresentar os convidados, mas de repente parou e apressadamente mordeu os

lábios... Liza, sua querida Liza, estava empoada até as orelhas, com as sobrancelhas mais

negras do que as da própria Miss Jackson; usava cachos falsos, bem mais claros do que

seus cabelos, armados como a peruca de Luís XIV; mangas à l’imbecile se avolumavam

como as anquinhas de Madame de Pompadour70; sua cintura estava apertada como a letra

X, e todos os brilhantes de sua sua mãe que ainda não haviam sido penhorados brilhavam

em seus dedos, pescoço e orelhas.

Aleksei não podia reconhecer sua Akulina naquela senhorita reluzente e ridícula.

Seu pai tomou sua mão e ele o seguiu com desgosto; quando tocou seus dedos pintados

de branco, teve a impressão de que tremiam. Enquanto isso, conseguiu vislumbrar seu

pezinho, estendido de propósito para deixar à mostra o sapato com toda coquetterie. Isso

de alguma forma o reconciliou com o resto da toilette. Quanto ao pó-de-arroz e à tinta

preta, confesso que, pela simplicidade de seu coração, à primeira vista nem os notou e,

depois, não desconfiou. Grigori Ivánovitch lembrou-se de sua promessa e se esforçou

para não demonstrar nenhuma surpresa, mas a travessura de sua filha lhe parecia tão

divertida que mal podia segurar-se. A inglesa afetada é que não achou a menor graça.

Adivinhou que o pó e a tinta haviam sido raptados de sua cômoda, e um ardor rubro de

70 Jeanne Antoinette Poisson, Marquesa de Pompadour (1721 - 64), amante de Louis XV. (N.I.)

Page 48: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

48

despeito irrompia por entre branco artificial de seu rosto. Lançava olhares fulminantes

para a jovem levada que, deixando as explicações para depois, fingia não percebê-los.

Sentaram-se à mesa. Aleksei continuou a interpretar seu papel de indiferente e

pensativo. Liza fazia charme, falava entre os dentes, meio cantado e somente em francês.

O pai a olhava a todo instante, sem entender seus objetivos, mas achava tudo aquilo

extremamente divertido. A inglesa se encolerizava e nada dizia. Apenas Ivan Pietróvitch

se sentia em casa: comia por dois, bebia o quanto podia, ria de sua própria risada e a cada

hora conversava mais cordialmente e gargalhava.

Finalmente, levantaram-se da mesa. Os convidados se foram e Grigori Ivánovitch

ficou à vontade para rir e fazer perguntas.

– Que invenção foi essa de fazê-los de bobos? – perguntou a Liza. – E sabe de

uma coisa? O pó-de-arroz lhe caiu bem, é verdade. Não conheço os segredos da toilette

feminina mas, no seu lugar, começaria a me empoar. Não tanto, sem dúvida, um pouco

menos.

Liza estava encantada com o êxito da sua invenção. Abraçou o pai, prometeu

pensar no seu conselho e correu para abrandar a cólera de Miss Jackson, que a custo

concordou em abrir a porta e ouvir suas explicações. Liza disse que tinha vergonha de

apresentar-se a desconhecidos com o rosto tão moreno; que não ousava pedir, mas tinha

certeza de que a bondosa e querida Miss Jackson a perdoaria... etc, etc. Miss Jackson,

convencida de que Liza não queria ridicularizá-la, se acalmou, beijou-a e, como prova de

reconciliação, deu a ela uma caixinha de pó-de-arroz inglês, que Liza aceitou

expressando sincera gratidão.

O leitor pode imaginar que, na manhã seguinte, Liza se apressou para seu

encontro no bosque.

– Você esteve ontem à noite com nossos senhores? – Disse imediatamente para

Aleksei. – O que achou da fidalga, senhor71?

Aleksei disse que não havia prestado atenção nela.

– Que pena, – respondeu Liza.

– E por quê? – perguntou Aleksei.

71 Akulina/Liza chama Aleksei de барин (bárin). Não tive escolha senão usar fidalga, para evitar o eco. (N.T.)

Page 49: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

49

– Porque eu queria perguntar se é verdade o que dizem...

– E o que é que dizem?

– Se é verdade o que dizem, que sou parecida com a senhorita.

– Que besteira! Comparada a você, ela é a feiúra em pessoa.

–Ah, senhor, que pecado dizer isso! A nossa senhorita é tão branquinha, tão

faceira! Como é que vou me comparar a ela?

Aleksei jurou por Deus que ela era melhor que todas as senhoritas branquinhas do

mundo e, para tranquilizá-la por completo, começou a descrevê-la com traços tão

engraçados que Liza riu com toda a alma.

– Pode ser, – ela disse com um suspiro – a senhorita pode ser ridícula; mas em

comparação a ela sou só uma burra analfabeta.

– Ih! – falou Aleksei, – achou um motivo para ficar triste! Se quiser, lhe ensino a

ler agora mesmo.

– Verdade? – disse Liza – Por que não tentamos?

– Como queira, meu bem; comecemos imediatamente.

Eles sentaram-se. Aleksei tirou um lápis do bolso e um caderno de notas, e

Akulina aprendeu o alfabeto com rapidez admirável. Aleksei não se cansava de admirar

sua esperteza. Na manhã seguinte ela quis tentar escrever também; no começo, o lápis

não lhe obedecia, mas em poucos minutos começou a desenhar as letras de modo bastante

satisfatório.

– Mas que milagre! – disse Aleksei – O nosso estudo vai mais rápido do que pelo

sistema Lancaster72.

De fato, já na terceira aula ela leu, sílaba por sílaba, Natália, a filha do boiardo73,

interrompendo a leitura com observações que deixavam Aleksei sinceramente

assombrado, além de encher uma folha de papel inteira com aforismos tirados da história.

Passada uma semana, estabeleceu-se entre eles uma correspondência. A agência

de correio foi inaugurada no oco de um carvalho. Coube a Nástia exercer secretamente a

função de mensageira. Aleksei levava suas cartas escritas em letras grandes e lá

encontrava em um suave papel azul os rabisquinhos de sua amada. Akulina pelo visto se

72 Método de educação popular na época, criado pelo pedagogo inglês Lancaster (1771—1838), em que os alunos mais velhos ajudavam os mais novos. (N.E.) 73 Novela de Karamzin de 1792. (N.E.)

Page 50: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

50

acostumava melhor à composição das falas, e sua mente visivelmente se desenvolvia e se

educava.

Enquanto isso, o recente vínculo entre Ivan Pietróvitch Bérestov e Grigori

Ivánovitch Múromski fortalecia-se cada vez mais e logo se transformou em amizade,

pelas seguintes circunstâncias: Múromski frequentemente pensava que, quando Ivan

Pietróvitch morresse, toda a propriedade passaria para as mãos de Aleksei Ivánovitch;

neste caso, Aleksei Ivánovitch seria um dos proprietários mais ricos daquela província, e

não haveria nenhuma razão para ele não casar-se com Liza. O velho Bérestov, de sua

parte, apesar de reconhecer em seu vizinho uma certa extravagância (ou, em suas

palavras, mania de inglês), não negava, no entanto, que ele reunia grandes qualidades.

Por exemplo: uma rara habilidade para negócios. Grigori Ivánovitch era também parente

próximo do conde Pronski, um nobre poderoso; o conde poderia ser muito útil a Aleksei,

e Múromski (assim pensava Ivan Pietróvitch) provavelmente ficaria feliz com a

possibilidade de casar sua filha de forma tão vantajosa. Os velhos haviam pensado tanto

nisso, cada um para si, que finalmente falaram um com o outro, abraçaram-se,

prometeram trabalhar com empenho no assunto e puseram-se a ciscar, cada um por seu

lado. Múromski tinha pela frente uma dificuldade: persuadir sua Betsy a conhecer mais

estreitamente Aleksei, que ela não via desde aquele memorável almoço. Aparentemente

não haviam gostado muito um do outro; pelo menos, Aleksei não voltara mais a

Prilútchino, e Liza retirava-se para seu quarto todas as vezes em que Ivan Pietróvitch os

honrava com sua visita. Mas, pensava Grigori Ivánovitch, se Aleksei vier nos ver todos

os dias, Betsy terá de se apaixonar por ele. É a ordem natural das coisas. O tempo

arranjará tudo.

Ivan Pietróvitch incomodou-se menos com o êxito de suas intenções. Na mesma

noite, chamou seu filho ao escritório, acendeu o cachimbo e, depois de um tempo calado,

disse:

– O que é que há com você74, Aliocha, que há tempos não fala do serviço militar?

Ou o uniforme de hussardo já não lhe encanta mais?

–Não, papai75 – respondeu Aleksei respeitosamente – vejo que o senhor não quer

que eu ingresse nos hussardos: é meu dever obedecê-lo.

74 Bérestov fala de forma curta e direta, um pouco militar. No caso dele, optei por usar o “você”. (N.T.)

Page 51: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

51

– Muito bem, –respondeu Ivan Pietróvitch – vejo que é um filho obediente, isso

me consola; não quero obrigá-lo a nada; não vou forçá-lo a ingressar, imediatamente, no

serviço público. Por ora, quero vê-lo casado.

– Mas com quem, papai?– perguntou, assombrado, Aleksei.

– Com Lizavieta Grigorievna Múromskaia – respondeu Ivan Pietróvitch – uma

belezura de noiva, não é verdade?

– Pai, não penso ainda em casamento.

– Você não pensa, então já pensei e repensei por você.

– Como queira, mas Liza Múromskaia não me agrada de forma alguma.

– Depois acaba agradando. Primeiro aguenta, depois se apaixona76.

– Não me sinto capaz de fazê-la feliz.

– Não é seu problema, a felicidade dela. O quê? É assim que honra a vontade de

seu pai? Pois bem!

– Como queira. Não quero e não vou me casar.

– Vai se casar sim, senão eu o amaldiçoo: e quanto à propriedade, juro por Deus!

Vendo tudo e acabo com o dinheiro, não vai sobrar um tostão para você. Dou-lhe três

dias para refletir. Por agora, não ouse aparecer na minha frente.

Aleksei sabia que, se o pai metia alguma coisa na cabeça, nem um prego a

arrancava, como dizia Tarás Skotinin77. Mas Aleksei havia puxado o pai, e era tão

teimoso quanto ele. Retirou-se para o quarto e pôs-se a pensar nos limites do poder

paterno, em Lizavieta Grigorievna, na promessa solene do pai de deixá-lo na miséria e,

finalmente, em Akulina. Pela primeira vez viu com clareza que estava perdidamente

apaixonado; passou por sua cabeça uma ideia romântica de casar-se com uma camponesa

e viver de seu próprio trabalho, e quanto mais ele pensava nesta ação resoluta, mais via

nela sensatez. Há pouco tempo os encontros no bosque haviam sido interrompidos pelo

tempo chuvoso. Escreveu para Akulina uma carta com sua letra mais legível, e seu estilo

mais desvairado, informando-a do destino que os ameaçava e em seguida, pedindo sua

mão em casamento. Imediatamente levou a carta ao correio, no oco, e foi deitar-se

bastante satisfeito consigo mesmo.

75 Батюшка (bátiuchka): forma respeitosa e familiar para “pai”. (N.T.) 76 Provérbio russo. (N.T.) 77 Tarás Skotinin: personagem da comédia de Fonvizin “O Menor de Idade”. (N.I.)

Page 52: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

52

No dia seguinte Aleksei, persistente em suas intenções, foi cedo à propriedade de

Múromski para explicar-se sinceramente. Tinha esperanças de instigar sua generosidade e

ganhá-lo para sua causa.

– Grigori Ivánovitch está em casa? – perguntou, parando o cavalo na entrada do

castelo de Prilútchino.

– Não, senhor – respondeu o criado. – Grigori Ivánovitch deu de sair de manhã.

– Que aborrecimento! – pensou Aleksei – Lizavieta Grigorievna está em casa, ao

menos?

– Está sim, senhor.

Aleksei saltou do cavalo, deixou as rédeas na mão do lacaio e entrou sem ser

anunciado.

– Será tudo resolvido – pensava, aproximando-se da sala – explico-me para ela

mesma.

Ele entrou... e ficou petrificado! Liza, não, Akulina, sua querida e morena

Akulina, não mais vestida com um sarafã, e sim com um vestidinho branco matinal,

estava sentada em frente à janela e lia sua carta; estava tão ocupada que nem o ouviu

entrar. Aleksei não conseguiu segurar a exclamação de felicidade. Liza sobressaltou-se,

ergueu a cabeça, deu um grito e quis sair correndo. Ele se jogou para segurá-la:

– Akulina, Akulina!

Liza se esforçava para livrar-se dele...

– Mais laissez-moi donc, Monsieur; mais êtes-vous fou?78 – repetia, afastando-se.

– Akulina, minha querida Akulina – ele repetia, beijando sua mão. Miss Jackson,

testemunha desta cena, não sabia o que pensar. Neste minuto a porta se abriu, e Grigori

Ivánovitch entrou.

– Arrá! – disse Múromski – parece que o negócio entre vocês já está bem

encaminhado.

Os leitores me pouparão da obrigação supérflua de descrever o desenlace.

78 Ora, solte-me, senhor; está louco?(fr.)

Page 53: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

53

SOBRE “A NEVASCA” E “A SENHORITA CAMPONESA”

No manuscrito de Biélkin, a profissão dos narradores originais, aqueles que

contaram a história pela primeira vez, está diretamente ligada ao tipo de história contada.

De fato, nos manuscritos do Sr. Biélkin, sobre cada história há uma nota com a letra do autor:

escutado por mim de tal pessoa (segue a posição ou a patente e o título e as iniciais do nome e

sobrenome). Copiamos para os exploradores curiosos: O “Chefe da Estação” foi contado pelo

conselheiro titular A. G. N., “O Tiro” pelo tenente-coronel I. L. P., O “Fazedor de Caixões” pelo

intendente B. V., “A Nevasca” e “A Senhorita Camponesa” pela donzela K. I. T.

A história do tenente-coronel se passa em um ambiente militar, enquanto “O Chefe da

Estação” narra as desgraças de um baixo funcionário. As duas histórias contadas por

K.I.T., logo, possuem um ponto de vista feminino. Mais do que isso, é importante notar

como ambas se ligam à literatura considerada “feminina” na época de Púchkin.

O crescimento do público leitor na Rússia do começo do século XIX foi marcante

entre as mulheres da época. A criação de um sistema educacional público em 1782 por

Catarina, a Grande e a inclusão de mulheres na sua consolidação no começo do século

XIX, havia criado um público leitor feminino considerável79. A nobreza rural também

vinha fazendo um esforço para criar bibliotecas pessoais. Em 1802, Karamzin escrevia

que os comerciantes, muitas vezes analfabetos, começavam a levar livros em suas

mercadorias. Um mercado de literatura se constituía fora das capitais e influenciava as

gerações seguintes80.

Várias heroínas de Púchkin se encaixam neste perfil: moça solteira e provinciana,

oriunda da nobreza rural e influenciada pela leitura de romances de gosto duvidoso. O

narrador geralmente refere-se a elas com ironia carinhosa:

Educadas ao ar livre, à sombra das macieiras do jardim, tiram dos livros o conhecimento do

79 Paul Debreczeny. Social Functions of Literature – Aleksander Pushkin and Russian Culture. Stanford. Stanford University Press. 1997 p. 101. 80 Idem, p. 100.

Page 54: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

54

mundo e da vida. Solidão, liberdade e leitura cedo desenvolvem nelas sentimentos e paixões desconhecidos

de nossas beldades já distraídas. Para as senhorinhas, o soar da campainha já é uma aventura, uma viagem à

cidade vizinha marca uma época da vida e uma visita deixa uma lembrança duradoura, às vezes eterna. É

claro, qualquer um pode rir dessas excentricidades; mas as brincadeiras de um observador superficial não

conseguem destruir suas evidentes qualidades essenciais, das quais a mais importante é: particularidade de

caráter, singularidade (individualité), sem a qual, na opinião de Jean-Paul, não existe a própria grandeza

humana. Nas capitais as mulheres recebem, talvez, melhor educação; mas os hábitos mundanos logo

suavizam a personalidade e deixam as almas tão uniformes quanto os chapéus femininos.

A representante mais famosa deste tipo, e sem dúvida a mais clássica, é Tatiana

de Evguêni Oniêguin. Mas há também Macha, de “A Nevasca”, a outra Macha, de

Dubróvski81 e Liza, de “A Senhorita Camponesa”. São personagens absolutamente

diferentes entre si (todas têm sua particularidade de caráter); ainda assim, compartilham

o fato de terem sua subjetividade formada pela combinação de “solidão, liberdade e

leitura”. Para elas, os livros eram o único contato com o mundo.

Karamzin era defensor do ingresso das mulheres entre o público leitor. Em fins do

século XVIII, a instituição dos salões literários deu às mulheres da corte o poder de ditar

as modas. Havia uma literatura de salão que tinha essas mulheres como público alvo. A

Condessa de A Dama de Espadas é uma representante remanescente destes antigos

salões. Liam-se romances franceses e ingleses que geralmente pendiam para o

sentimentalismo. No campo das letras russas, Karamzin era o principal autor desse tipo

de obra. Era importante para ele que o círculo de leitura feminino se ampliasse para

abarcar as nobres do campo. “Do ponto de vista literário, gêneros menores, pouca idade e

sofisticação são equivalentes ao ‘nobre selvagem’ de Rousseau, e tudo tende à

trivialização como uma força positiva de renovação na literatura.”82. Ou seja, o fato de

ser lido por mulheres de áreas rurais, supostamente mais inocentes, era muito valorizado

por ele.

81 “A enorme biblioteca, formada na maior parte com obras de escritores franceses do século XVIII, fora colocada à sua disposição. O pai, que nunca lera nada, como exceção de A cozinheira exemplar, não podia orientá-la na escolha dos livros, e, como é natural, depois de vasculhar obras de toda natureza, Macha fixou-se nos romances. Desse modo, completava ela a sua educação, que fora iniciada sob a direção de mademoiselle Mimi (...).” “Dubróvski”, in A Dama de Espadas. p. 111. 82 Idem, ibidem.

Page 55: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

55

A crítica Gita Hammaberg defende que a obra de Karamzin faz uma passagem

dos idílios para o romance sentimentalista. Era inevitável que, em sua primeira obra em

prosa, Púchkin partisse da tradição de Karamzin para estabelecer seu estilo. A seguir,

procuro dar alguns exemplos de como, fazendo uso de uma ironia carcteristicamente

romântica, Púchkin atualiza nos dois contos questões presentes na obra de ficção de

Karamzin em seus dois gêneros principais: o idílio e o romance sentimental.

1. “A Nevasca”

“A Nevasca” começa com uma pequena crônica da paixão impossível entre

Macha e Vladímir. O tema dos pais cruéis que se impõe como obstáculo para a

concretização do amor é clássico e aqui encontra seu desenvolvimento mais consagrado:

a fuga e o casamento escondido. Vladímir segue uma lógica impecável para os leitores de

romances sentimentais:

A cada carta, Vladímir Nikoláievitch suplicava que se entregasse a ele e se casassem em segredo.

Poderiam se esconder por um tempo e depois se atirar aos pés dos pais que, é claro, ao fim e ao

cabo ficariam tocados pela constância heróica e pela infelicidade dos enamorados e lhes diriam,

sem falta: “Crianças! Venham aos nossos braços!”.

A base desse raciocínio é a inevitabilidade do final feliz que se repetirá na

estrutura maior do conto. Quando Macha finalmente concorda com a fuga, tem sonhos

terríveis. As interpretações freudianas de Evguêni Oniêguin apontam o sonho de Tatiana

como “expressão do medo da noiva de seu ‘defloramento’ iminente, da morte de sua

virgindade.”83. No caso de Macha, o sonho tem papel semelhante.

A linguagem de Macha, que fica evidente na carta que escreve para seus pais,

também está totalmente contaminada pelos romances açucarados que lê.

Ela se despedia deles com as palavras mais comoventes, atribuía seu erro à indomável força da

paixão e terminava dizendo que abençoadíssimo seria o momento de sua vida em que lhe seria

permitido lançar-se aos pés de seus adoradíssimos pais. Após lacrar as duas cartas com um sinete

83 Greenleaf, Monika. Pushkin and the Romantic fashion – Fragment, Elegy, Orient, Irony. Stanford. Stanford University Press, 1994. p. 265.

Page 56: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

56

de Tula que trazia dois corações flamejantes e uma inscrição adequada, lançou-se na cama pouco

antes de amanhecer e cochilou.

O crítico Waclaw Lednicki afirma que não há conflitos psicológicos no conto84.

De fato, elementos exteriores aos personagens são responsáveis pelo desenrolar da trama.

Neste aspecto, o conto segue o esquema clássico do roman d’aventures, de que o

melodrama se apropriou: a separação dos amantes por um evento externo, a notícia da

morte, o teste de fidelidade, o reencontro e, por fim, o reconhecimento85. Segundo a

lógica de Macha, esta parece ser a única ordem possível dos acontecimentos em uma

história de amor. O amor predestinado que vence todos os obstáculos é levado ao

extremo, a despeito inclusive dos personagens.

Neste ponto, não só “A Nevasca”, mas também “A Senhorita Camponesa”

encenam o quid pro quo, ou seja, a confusão entre os amantes. No primeiro, pelo motivo

da separação. No segundo, pelo disfarce. Segundo Lednicki, a confusão era um motivo

trágico que depois foi apropriado pela comédia de erros. Trata-se de um motivo caro a

Shakespeare, de quem Púchkin era grande leitor e chegou, inclusive, a traduzir Medida

por Medida para o russo, com o nome de Angelo.

Mas as conexões mais evidentes de “A Nevasca”, ainda segundo Lednicki, são

com duas comédias: Démocrite, de Regnard, e La Fausse Antipathie, de Nivelle de la

Chaussée. Ambas trazem mesmo o esquema: um casal se separa, passa anos sem se ver,

no reencontro não se reconhecem, se apaixonam e, por fim, se reconhecem. A segunda é

uma comédie larmoyante em defesa do amor conjugal, característica da literatura

burguesa do século XVIII.

“A Nevasca” mobiliza uma série de referências sentimentalistas, como se levasse

o gênero até suas últimas instâncias. A passividade da heroína é tão completa que chega a

casar-se inconsciente. Macha, ao final, é encontrada “perto do lago, sob o salgueiro, de

vestido branco e com um livro nas mãos, uma autêntica heroína de romance.” Segundo

Norma Telles, os romances de aventuras eram uma forma de ter personagens femininas

84 Waclaw Lednicki, “Bits of table talk on Puchkin. III. The Snowstorm.” in American Slavic and East European Review, Vol. 6 nº 3/4 (Fev. 1947) p.112. 85 Idem, p. 114. Essa é uma das sequências possíveis no romance de aventuras.

Page 57: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

57

principais que fossem ativas, sem que isso fosse inapropriado para uma mulher86. Assim,

o autor devia colocá-la em situações que as obrigassem a agir para preservar sua virtude.

Macha parece transitar por um mundo de provérbios e histórias de amor em que

seu status de heroína lhe dá o direito, ou talvez a obrigação, de fazer sempre o mínimo

possível. Mesmo quando ela quer provocar a declaração de Burmin, sua ação é negativa:

deixar a conversa morrer de propósito. Nesse ponto em particular, ela é oposta à Liza, a

heroína de “A Senhorita Camponesa”.

2. “A Senhorita Camponesa”

“A Senhorita Camponesa” encerra o ciclo d’Os Contos de Biélkin e é apontado

como uma espécie de resolução das questões apresentadas ao longo do livro. Na

introdução, abordei a interpretação de David Bethea e Serguei Davydov sobre como o

conto resolve o problema das formas estrangeiras aplicadas à vida russa. A seguir, tratarei

das relações que o conto estabelece com uma forma karamziniana por excelência, o

idílio.

O tom de contos de fadas introduz ironicamente o idílio russo: a vida calma e

parada de Bérestov, representante da pequena nobreza nacionalista e prática. Sua

adaptação ao local e à época é completa; a mediocridade plenamente autossatisfeita, e até

arrogante. De outro lado, o deslumbramento de Múromski – também ridículo em seu

entusiasmo por tudo o que é estrangeiro – é descrito como o de “um verdadeiro

proprietário russo”.

Os filhos, que virão a ser uma espécie de Romeu e Julieta à moda russa, aparecem

simbolicamente como frutos da disputa. Tanto Liza quanto Aleksei também encarnam um

tipo literário. Liza, o da moça ingênua do campo, heroína prototípica do idílio. Aleksei, o

herói byrônico amargo e desiludido. Mas a sabedoria de ambos está em subverter seus

personagens quando necessário.

Pobre Liza, de Karamzin, era o idílio mais conhecido e é considerado uma das

melhores obras em prosa da literatura russa antes de Os Contos de Biélkin. Conta a 86 N. Telles. “Autora+a”. In: J.Luiz Jobim. (Org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 45-64.

Page 58: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

58

história de uma garota ingênua do campo, Liza, que é cortejada por um barin da cidade

grande. A Liza de Karamzin sente uma culpa enorme por estar enganando sua mãe com

seu amor proibido e, quando se entrega, não suporta e comete suicídio.

A Liza de “A Senhorita Camponesa” é o contrário. É ela que seduz Aleksei,

interpretando a camponesa ingênua. Não sente culpa nenhuma por seu pai; ao contrário,

leva ele a entrar na brincadeira. Liza dita as regras e se aproveita do bom coração de

Aleksei. Karamzin faz várias oposições maniqueístas entre cidade/campo,

nobre/camponês, esperto/ingênuo. No conto de Púchkin, tudo isso aparece com o sinal

invertido. A moça do campo tem mais qualidades – originalidade, individualidade – do

que os clichês interpretados por Aleksei, e é ela que seduz, engana e manipula a história.

Liza sabe exatamente como lidar com o clichê do herói byrônico evocado por

Aleksei: as ligações amorosas secretas, a insensibilidade, o anel de caveira, a carreira

militar. O jovem sente-se talhado para levar uma vida grandiosa e trágica. O próprio

Púchkin já havia explorado essa figura a sério em seus contos do sul. Aleksei alude a um

texto conhecido por Liza, como antes acontecera com Burmin e Macha. Liza, no entanto,

tem uma postura bem menos passiva: ela se traveste e provoca o quid pro quo. Liza cria

seu próprio idílio, artificial, como os de Karamzin. A menção a Pamela, leitura da

governanta, não é gratuita: como Pamela, sua Akulina resiste aos avanços do senhor e

virtuosamente conquista seu amor.

Segundo Gita Hammaberg, uma das características principais do sentimentalismo

é a de confusão de limites entre narrador/autor/leitor. “A arte tende a ser projetada na

vida, e a vida a ser vista nos termos da arte.”87 Os heróis d’Os Contos de Biélkin

procuram viver sua vida de acordo com critérios das obras que leem. Aplicar critérios

estéticos para julgar a realidade é um procedimento típico do sentimentalismo. Assim,

como Tatiana antes delas, Liza e Macha têm nos romances a base de códigos de

comportamento. São leitoras por excelência: veem nos romances o texto original.

“Formada pela linguagem dos romances –romany—ela [Tatiana] vê a vida como um

sistema de signos e espera que eles assumam a configuração de algum texto ‘original’. ”88

87 Hammarberg, G. From the idyll to the novel: Karamzin’s sentimentalist prose. p.158. 88 Greenleaf, Monika. Pushkin and the Romantic fashion – Fragment, Elegy, Orient, Irony. Stanford. Stanford University Press, 1994. p. 249.

Page 59: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

59

Segundo Monika Greenleaf, a ironia romântica parte do princípio de que o leitor

deve completar o sentido da obra; cabe a ele preencher o que ficou aludido. Para ela,

Púchkin faz parte de um grupo de escritores ironistas românticos para quem as categorias

de pensamento do sujeito são determinadas por suas limitações tanto de tempo e espaço,

quanto da própria linguagem89.

Na obra de Púchkin, a representação de um ponto de vista nunca é definitiva,

ainda segundo a autora. Ao contrário, cada discurso se contrapõe a outros, sem que se

chegue a uma resposta unívoca. Jakobson escreve algo parecido:

Cada imagem de Púchkin é de uma polissemia tão elástica, de uma capacidade assimilatória tão

impressionante, que se insere facilmente nos contextos mais variados. O famoso talento que tinha

Púchkin para a transformação poética está igualmente ligado a este feito: é por isso que os traços

do autor de Oniêguin diferem de um crítico para outro, a ponto de deixá-lo irreconhecível.90

Aqui, ambos se referem a Evguêni Oniêguin como obra exemplar da ironia de Púchkin.

Greenleaf explica que, em Oniêguin, não chega nunca a se completar uma formação.

Todos os pontos de vista, em algum momento, são expostos em sua limitação e

contrapostos a outro que, momentaneamente, parece mais completo91.

Muitos personagens da obra de Púchkin são grandes ironistas, e talvez Oniêguin

seja o maior de todos. Liza também faz jus ao título por constantemente promover um

deslocamento de sentidos para um outro sistema referencial. A personagem alterna entre

diversas possibilidades de linguagem e alterna suas máscaras de acordo com o que lhe

convém.

É preciso dar crédito a Aleksei, que também sabe a hora de se desfazer de sua

máscara byrônica quando necessário. Ainda que seja mais inconsciente, o jovem só afeta

desilusão diante das nobres locais: em frente às camponesas, ele é doce e entusiasmado.

No caso das personagens femininas, o ironista está ligado à figura da coquete: a mulher

89 Idem, p. 207. 90 Jakobson. “Pouchkine” in Russie, folie, poésie. Paris. Ed. Seuil, 1986. p. 118. 91 Monika Greenleaf. Pushkin and the Romantic fashion – Fragment, Elegy, Orient, Irony. Stanford. Stanford University Press, 1994. p. 207.

Page 60: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

60

que sabe se transformar de objeto a sujeito da conquista amorosa pelo jogo com sua

própria imagem92.

Aleksei tenta fazer o papel da coquete – e chega a ser literalmente comparado a

uma na cena de jantar– mas é frustrado. Seu encontro com Liza, travestida desta vez de

dama russa afrancesada, é um desastre. Os tons ridículos do teatro byrônico de Aleksei e

da pantomima cortesã de Liza dão conta da incompatibilidade de executar este roteiro em

solo russo, mas, além disso, mostram a capacidade de Liza de brincar com todos os

estereótipos que circulavam entre a nobreza rural e levá-los a um extremo ridículo.

Ainda para Monika Greenleaf, na obra inicial de Púchkin – especialmente em

seus poemas do sul – há uma divisão entre personagens femininas estrangeiras, que

encarnam uma paixão inarticulada, e os personagens principais russos, portadores do

discurso. “Parece ser essencial que o objeto do amor não seja um falante nativo do

discurso amoroso masculino.”93. Sempre que as personagens femininas tentam falar sobre

amor (e articular seu discurso), sofrem consequências terríveis. É impossível para a

mulher passar de objeto a sujeito de uma paixão.

A mudança na sua obra acontece com Tatiana. Leitora voraz de romances, ela

ainda está no domínio feminino: e aqui, Greenleaf traça um paralelo entre leitor e objeto.

Tatiana passa a sujeito quando escreve a carta de amor a Oniêguin. Seu processo de

articulação, no entanto, só pode acontecer em francês; o russo ainda é a língua masculina.

Greenleaf fala que, sob este ângulo, o sucesso de Tatiana é a capacidade de passar para a

condição de artista ao se reinventar94. Neste aspecto, Liza acha uma saída parecida e tem

ainda mais sucesso.

Para Liza, a apropriação da língua russa é um ato criativo. Trata-se de tomar o

lugar masculino, de enunciador e sujeito. Liza então cria uma espécie de língua própria,

travestida e artificial, para poder assumir a iniciativa de aproximar-se e seduzir Aleksei.

Como Tatiana, desafia a diferenciação tradicional entre o sujeito erótico/escritor e objeto

erótico/leitora95. Liza procura ser heroína de seu próprio romance quando acha um herói.

92 Idem, p. 252. 93 Monika Greenleaf. Pushkin and the Romantic fashion – Fragment, Elegy, Orient, Irony. Stanford. Stanford University Press, 1994. p. 254. 94 Idem, p. 254. 95 Idem, p 261.

Page 61: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

61

Page 62: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

62

HISTÓRIA DO POVOADO DE GORIÚKHINO

Se prouver a Deus enviar-me leitores, talvez tenham curiosidade em saber como

decidi escrever a História do povoado de Goriúkhino96. Para tanto, devo entrar em alguns

detalhes prévios.

Nasci de pais nobres e honrados no povoado de Goriúkhino ao 1º de abril de 1801

e, de início, recebi as primeiras letras de nosso sacristãozinho. A este respeitável

cavalheiro devo o desenvolvimento posterior de meu gosto pela leitura e pela prática da

literatura de uma forma geral. Meus êxitos, ainda que lentos, foram merecedores de

confiança, pois ao décimo ano eu já sabia quase tudo o que ainda hoje resta em minha

memória, fraca por natureza, e a qual – por simples motivo de saúde fraca97 – não me

permitiram sobrecarregar em excesso.

O título de homem de letras sempre me pareceu invejável. Meus pais, pessoas

respeitáveis, mas simples e educadas à moda antiga, nunca liam nada; e em toda casa

além de uma cartilha – comprada para mim –, de calendários e do Novíssimo Manual de

Cartas98, não havia livro algum. A leitura do manual de cartas foi por muito tempo meu

exercício preferido. Eu o sabia de cor e, apesar disso, todos os dias encontrava nele

belezas desapercebidas. Depois do general Plemiannikov99, de quem papai outrora fora

ajudante de ordens, Kurgánov me parecia o homem mais grandioso do mundo. Eu

perguntava a seu respeito para todos; infelizmente, ninguém conseguia satisfazer minha

curiosidade, ninguém o conhecera pessoalmente e a todas minhas perguntas respondiam

apenas que Kurgánov havia composto o Novíssimo Manual de Cartas, e disso eu já tinha

sólido conhecimento prévio. As trevas da obscuridade o circundavam, como a algum

semideus arcaico; ocasionalmente, até duvidava da veracidade de sua existência. Seu

nome me parecia fictício, e sua lenda, um simples mito, à espera do estudo de um novo

96 O nome Goriúkhino vem da palavra горе (desgraça). (N.T.) 97 A repetição de “fraco” aparece no original. (N.T.) 98 Новейший письмовник (Novíssimo Manual de Cartas): publicado pela primeira vez em 1769, foi compilado por N. G. Kurgánov (1726-96) e reeditado várias vezes. Continha anedotas, amostras de cartas, gramática e uma grande variedade de informações sobre astronomia e outros assuntos. (N. I.) 99 General Plemiannikov: General morto em 1775; serviu sob a imperatriz Isabel, filha de Pedro I. (N. I.)

Page 63: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

63

Niebuhr 100. No entanto, ele continuava perseguindo minha imaginação; esforçava-me

para dar alguma forma a seu rosto enigmático, e finalmente decidi que devia parecer-se

com o assessor do zemstvo Koriútchkin101, um velhote baixinho de nariz vermelho e

olhos brilhantes.

No ano de 1812, me levaram para Moscou e me mandaram para o internato de

Karl Ivánovitch Meier – onde não passei mais de três meses, pois fomos liberados diante

da invasão do inimigo. Retornei à aldeia. Depois da expulsão das doze nações102, queriam

levar-me de volta para Moscou para ver se Karl Ivánovitch tinha se restabelecido sobre as

cinzas ou, caso contrário, colocar-me em outra escola. Implorei à mamãe que me deixasse

ficar na aldeia, pois minha saúde não permitia que me levantasse da cama às sete da

manhã, como acontece habitualmente em todos os internatos. Desta forma, alcancei a

idade de dezesseis anos apenas com minha educação primária e jogando taco com meus

meninos do pátio; foi a única ciência de que adquiri amplo conhecimento no meu período

de internato.

Na referida época, ingressei como cadete no ** Regimento de Infantaria, no qual

permaneci até o ano passado, 18**. Minha permanência no regimento deixou poucas

impressões agradáveis, além de uma promoção a oficial e um ganho de 245 rublos no

jogo, justamente numa época em que só me sobrava um rublo e seis grivnas103 no bolso.

A morte de meus queridíssimos pais me obrigou a pedir baixa e voltar para minha

propriedade.

Essa época de minha vida permanece tão importante para mim que tenciono

estender-me nela, pedindo antecipadamente desculpas ao benevolente leitor se mal

emprego sua indulgente atenção.

Era um dia nublado de outono. Chegando à estação em que devia me desviar da

estrada principal até Goriúkhino, aluguei cavalos particulares e segui pela estrada vicinal.

Apesar da natureza tranquila do meu caráter, a impaciência para ver o local onde passara

meus melhores anos apoderou-se de mim de tal forma que a todo instante apressava meu

cocheiro, ora prometendo-lhe dinheiro para vodka, ora ameaçando-lhe uma surra; e como 100 B. G. Niebuhr (1776-1835): Historiador alemão, escreveu História de Roma. É considerado o primeiro exemplo de abordagem científica da história. (N. R.) 101 Земского заседател (zemskogo zassiedátiel): cargo burocrático na Rússia ista. (N.T.) 102 O exército de Napoleão era composto de batalhões de doze países. (N. I.) 103 Grivna: moeda de dez copeques. (N.T.)

Page 64: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

64

era mais cômodo empurrar-lhe as costas do que tirar e desamarrar o saquinho de dinheiro,

confesso que bati nele umas três vezes, coisa que nunca havia me acontecido, pois a

classe dos cocheiros, nem eu mesmo sei por que, é por mim particularmente querida. O

cocheiro açoitava sua troika, mas me parecia que, por hábito, mesmo falando com os

cavalos e agitando o chicote, ainda assim atrasava a carruagem. Finalmente, avistei o

bosque de Goriúkhino e em dez minutos entrei no pátio. Meu coração batia forte – olhava

ao redor com indescritível comoção. Há oito anos não via Goriúkhino. As bétulas, cujo

plantio perto da cerca presenciara, estavam crescidas e eram já árvores altas e copadas. O

pátio – outrora adornado por três canteiros simétricos de flores, por entre os quais

passava um largo caminho coberto de areia – havia se tornado um mato alto em que

pastava uma vaca parda. Minha brítchka104 parou em frente ao terraço. Meu homem

tentou abrir as portas, mas estavam fechadas com pedaços de madeira105, ainda que as

janelas estivessem abertas e a casa parecesse habitada. Uma bába106 saiu da isbá coletiva

e perguntou de quem eu precisava107. Ao saber que o senhor havia chegado, correu de

novo para dentro da isbá, e logo a criadagem me rodeou. Eu estava do fundo do coração

comovido ao ver rostos conhecidos e desconhecidos – e amigavelmente beijava a todos:

meus criados de quintal já eram mujiques, e as meninas que antes ficavam sentadas no

chão esperando recados eram bábas casadas. Os homens choravam. Eu falava para as

mulheres, sem cerimônia: “Como você envelheceu” – e elas respondiam, emocionadas:

“O senhor também, paizinho, como ficou feio”. Conduziram-me até a entrada dos fundos;

minha ama de leite veio ao meu encontro e me abraçou, com lágrimas e soluços, como ao

muito-sofrido108 Odisseu. Correram para aquecer a bánia. O cozinheiro, que deixara

crescer a barba por pura falta do que fazer, ofereceu-se para preparar o almoço, ou jantar

– pois já estava anoitecendo. Imediatamente limparam meus quartos, nos quais estavam

vivendo minha ama de leite com as criadas de minha finada mãe; encontrei-me na

humilde morada paterna e adormeci no mesmo quarto em que, há 23 anos, havia nascido.

104 Brítchka: pequena carruagem aberta. (N.T.) 105 заколочены (zakolotcheni): procurei, quando possível, não traduzir uma palavra por várias. Mas aqui, se traduzisse só por “trancar” perderia a imagem. (N.T.) 106 Bába: camponesa, feminino de “mujique”. 107O narrador reproduz a voz da criada. (N.T.) 108Referência aos epítetos de Odisseu, que sempre começavam com poli (muito). (N.T.)

Page 65: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

65

Por aproximadamente três semanas me ocupei com afazeres de toda espécie –

conduzi reuniões com delegados e com o líder da nobreza109, com todos os possíveis altos

funcionários provinciais. Finalmente, recebi a herança e tomei posse da propriedade:

sosseguei, mas logo o tédio da inatividade começou a atormentar-me. Ainda não havia

travado conhecimento com meu bom e honrado vizinho **. Afazeres econômicos me

eram inteiramente estranhos. As conversas com minha ama, promovida por mim a

governanta e intendente, consistiam apenas em quinze anedotas domésticas, muito

curiosas para mim, mas que eram sempre contadas da mesma maneira, de forma que ela

se tornou para mim um segundo Novíssimo Manual de Cartas, no qual sabia em que

página encontrar cada linha. O valoroso manual verdadeiro fora encontrado por mim no

depósito, entre vários trastes, em situação lastimável. Levei-o para a luz e fui tentar lê-lo,

mas Kurgánov perdera o antigo fascínio para mim. Li mais uma vez e nunca mais o abri.

Nesta situação extrema, veio-me o pensamento: “por que não experimentar

escrever algo?”. Meu benévolo leitor já sabe que fui educado a moedas de cobre e que

não tive ocasião de adquirir sozinho aquilo que foi uma vez perdido até os dezesseis anos

brincando com os meninos do pátio e depois andando, de província em província, de

alojamento em alojamento, passando tempo com judeus e vivandeiras, jogando em

bilhares descascados e marchando na lama.

Além disso, ser escritor me parecia algo tão engenhoso, tão inacessível para nós,

não-iniciados, que de início a ideia de pegar na pluma me assustou. Ousaria eu ter

esperanças de alcançar um dia o título de escritor, quando nem mesmo meu ardente

desejo de encontrar-me com um deles jamais fora realizado? Mas isto me recorda um

caso que tenciono contar como demonstração de minha habitual paixão pelas belas-letras

pátrias.

No ano de 1820, quando ainda era cadete110, aconteceu-me de estar em

Petersburgo por necessidades de trabalho. Passei uma semana e, apesar de não ter lá

sequer um conhecido, foi um período extraordinariamente feliz: todo dia ia discretamente

109 Segundo nota de Boris Schnaiderman em A Dama de Espadas, “existia na época uma organização da nobreza, destinada a defender seus interesses e zelar pelo cumprimento das obrigações pelos seus membros. Dvoriânski zassiedátiel (...) era um delegado eleito periodicamente para defender os interesses dos nobres de um distrito. Prievodítel dvorianstva era quem zelava pelo cumprimento das obrigações de cada um e representava a nobreza perante as autoridades.” (N.T.) 110 Cadete (junker): oficial da penúltima classe (13ª) de artilharia. (N.T.)

Page 66: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

66

ao teatro, na galeria do quarto camarote. Reconheci pelo nome todos os atores e me

apaixonei perdidamente por ***, que interpretou com grande arte num certo domingo o

papel de Amália no drama Misantropia e Arrependimento111. De manhã, voltando do

quartel-general, habitualmente entrava numa pequenina confeitaria e, tomando uma

xícara de chocolate, lia as revistas literárias. Uma vez, estava absorto na seção crítica d’O

Bem-Pensante112; alguém com um capote militar verde-ervilha veio até mim e puxou

devagarinho de baixo do meu livro uma folha da Gazeta de Hamburgo113. Estava eu tão

ocupado que nem levantei os olhos. O desconhecido pediu para si uma bisteca e sentou-

se à minha frente; continuei lendo, sem lhe prestar atenção; enquanto isso, terminou seu

desjejum, repreendeu asperamente o garoto por um descuido, bebeu meia garrafa de

vinho e saiu. Dois jovens ali mesmo comiam.

– Sabe quem era aquele? – disse um ao outro: – era B., o escritor114.

–Escritor! – exclamei involuntariamente. E, deixando a revista meio lida e o

chocolate meio bebido, corri para pagar a conta e, sem aguardar o troco, voei para a rua.

Olhando para todos os lados, vi de longe um capote verde-ervilha e parti atrás dele pela

Avenida Niévski, quase correndo. Depois de alguns passos, senti que de repente me

paravam – olhando para trás, um oficial da guarda me advertiu que não devia empurrá-lo

da calçada, e sim parar e bater continência. Depois dessa advertência, fiquei mais

cuidadoso; para minha desgraça, a todo instante encontrava um oficial, e a todo instante

parava, enquanto o escritor seguia em frente e me deixava para trás. Nunca meu uniforme

militar me foi tão pesado, nunca dragonas me pareceram tão invejáveis. Finalmente, já

perto da ponte Ánitchkin, alcancei o capote verde-ervilha.

– Permita-me perguntar, – falei, levando a mão à testa, – o senhor é B., cujos

maravilhosos artigos tive a felicidade de ler no “Competidor do Iluminismo”?

– De jeito nenhum, eu não – respondeu, – não sou escritor, sou amanuense. Mas

conheço bem **; há quinze minutos encontrei-o na ponte Politzeiski.

111 Misantropia e Arrependimento (Menschenhass und Reue): melodrama de 1789 escrito por A. von Kotzebue (1761 - 1819), dramaturgo alemão extremamente popular na Rússia da época. (N.T.) 112 Благонамеренный (Blagonamerenni): revista influente da época. (N. R.) 113 Trata-se de uma ironia de Púchkin; Bulgárin tinha fama de plagiar os artigos da Gazeta de Hamburgo. (N.T.) 114 Provavelmente, Faddei Venediktovitch Bulgárin (1789-1859), escritor e jornalista de origem polonesa. Atacava quase todos os escritores em sua revista. O capote verde refere-se ao fato de que Bulgárin era informante da polícia – era a cor do uniforme policial. (N. I.)

Page 67: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

67

Desta forma, minha estima pela literatura russa me custara os trinta copeques

perdidos do troco, um sermão pelo serviço e por pouco uma prisão – e tudo isso em vão.

Apesar de todas as objeções da minha razão, a impertinente ideia de tornar-me

escritor me vinha a todo instante à cabeça. Finalmente, sem mais condições de opor-me à

inclinação natural, costurei um gordo caderno com a sólida intenção de preenchê-lo com

o que quer que fosse. Todos os gêneros poéticos (pois ainda nem pensava na humilde

prosa), foram por mim analisados e avaliados; escolhi resolutamente o poema épico,

extraído da história de nossa pátria. Não levei muito tempo procurando por um herói.

Escolhi Riurik115 – e pus-me a trabalhar.

Com os versos, adquiri alguma habilidade copiando cadernos que circulavam

pelas mãos dos nossos oficiais, como: “Vizinho Perigoso” 116, “Crítica no bulevar de

Moscou” e “Crítica nos lagos de Presnia”,117 e assim por diante. Apesar disso, meu

poema avançava lentamente, e larguei-o no terceiro verso. Pensei que o gênero épico não

era para mim, e comecei uma tragédia “Riurik”. A tragédia não saiu. Tentei convertê-la

em uma balada – mas a balada não combinou comigo. Finalmente a inspiração me

iluminou; comecei e, com sucesso, terminei a legenda de um retrato de Riurik.

Ainda que minha legenda não fosse de todo indigna de atenção, sobretudo como

primeira obra de um jovem lirista, não obstante senti que não era um poeta nato e me

contentei com esta primeira experiência. Mas meu esforço criativo me prendera de tal

forma ao exercício da literatura que já não podia mais separar-me do caderno e do

tinteiro. Quis descer à prosa. Primeiro, não querendo trabalhar em estudos prévios, plano

de estrutura, ligação entre partes e assim por diante, decidi escrever pensamentos

esparsos, sem conexão nem ordem, com a aparência de quando me surgissem.

Infelizmente, não me vinha nenhum pensamento à cabeça, e por dois dias inteiros só

consegui a seguinte observação:

“O homem que não obedece às leis da razão e se habitua a seguir as inclinações

das paixões frequentemente se engana e se submete a um arrependimento tardio.”

115 Rurik: lendário fundador da casa dos Rurikids em Novgorod, em 862. (N.I.) 116 Опасный сосед (Opasni Sossied): Poema humorístico de V.L. Púchkin, tio do autor, escrito em 1811. (N.T) 117Критика на Московский бульвар, на Пресненские пруды (Kritika na Moscovski bulevar, na Presnenskie prudi): Versos satíricos anônimos que circulavam em manuscritos. (N.T.)

Page 68: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

68

A ideia é obviamente legítima, mas já não é nova. Deixando os pensamentos de

lado, me aventurei pelas novelas mas, por inexperiência, não soube ordenar

acontecimentos fictícios; elegi notáveis anedotas, outrora ouvidas de várias pessoas, e

pus-me a embelezar a verdade com a vivacidade da narração ou, às vezes, com as flores

de minha própria imaginação. Compondo estes contos, aos poucos criei meu próprio

estilo e me acostumei a expressar-me com correção, leveza e liberdade. Mas logo minha

reserva se esgotou e pus-me novamente a procurar um objeto para minha atividade

literária.

A ideia de renunciar a anedotas mesquinhas e duvidosas em prol de relatos

verídicos e acontecimentos grandiosos há muito inquietava minha imaginação. Ser o juiz,

o observador e o profeta dos séculos e dos povos parecia a mim o mais elevado patamar

acessível a um escritor. Mas qual história poderia escrever com minha pobre instrução,

onde não me haviam precedido homens conscienciosos e eruditos? Que gênero da

história ainda não fora por eles esgotado? Deveria escrever a história universal – mas já

não existe o imortal trabalho do Abbé Millot118? Voltar-me-ia para a história da pátria?

Mas o que poderia dizer depois de Tatíchev, Bóltin e Gólikov119? Deveria eu mesmo

revolver as crônicas, e assim alcançar o sentido secreto da língua arcaica, quando não

sabia nem ler os velhos números eslavos? Pensei em uma história de menor volume; por

exemplo, a história da capital de nossa província; mas também aqui, quantos obstáculos

invencíveis para mim! Viagem à cidade, visitas ao governador e ao metropolita,

solicitação de acesso aos arquivos e depósitos do monastério e assim por diante. A

história de nosso distrito interiorano seria mais propícia para mim, mas não era

interessante nem para o filósofo, nem para o pragmático; e apresentava pouco alimento

para a eloquência: *** recebeu o título de cidade no ano de 17**, e o único

acontecimento notável mantido nas crônicas foi um terrível incêndio ocorrido há dez

anos, que devastou a feira e as repartições públicas.

Um acontecimento imprevisto resolveu meu impasse. Uma bába, pendurando

roupa no sótão, achou um velho cesto cheio de serragem, lixo e livros. Toda a casa sabia

118 Abbé Millot: C. F. X. Millot (1726 - 85) historiador francês cuja Histoire Universelle foi traduzida para o russo em 1785. (N.I.) 119 V. N. Tatíchev: (1686-1750) sua História da Rússia desde os Tempos Antigos lançou as bases da historiografia russa moderna. Bóltin e Gólikov também eram historiadores proeminentes. (N. I.)

Page 69: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

69

de meu apreço pela leitura. Minha governanta – no exato minuto em que eu, debruçado

sobre meu caderno, roía a pluma e tentava pensar em um sermão ao povoado –

triunfalmente arrastou o cesto ao meu quarto, exclamando alegremente: “Livros!

Livros!”.

– Livros! –, repeti com enlevo, e me atirei ao cesto. De fato, vi toda uma pilha de

livros em encadernação verde e cinza. Era uma coletânea de velhos calendários. Tal

descobrimento esfriou meu enlevo, mas ainda assim estava alegre com o inesperado

achado, ainda assim eram livros, e generosamente recompensei o zelo da lavadeira com

um tostão de prata. Ao ficar só, pus-me a examinar os calendários, e logo minha atenção

foi chamada. Eles formavam uma corrente contínua do ano 1744 até 1799, ou seja,

exatamente 55 anos. As folhas cinza que de costume colocam no calendário estavam

rabiscadas em uma letra antiga. Olhei rapidamente para essas linhas e vi que continham

não apenas observações sobre o tempo e notas de contabilidade, mas também breves

notícias históricas acerca do povoado de Goriúkhino. Imediatamente me ocupei da

análise destas preciosas notas e logo descobri que representavam metade da história de

minha propriedade natal ao curso de quase um século completo, em severa ordem

cronológica. Além disso, traziam um inesgotável estoque de observações econômicas,

estatísticas, meteorológicas e outros assuntos acadêmicos. Desde então, o estudo dos

mesmos me ocupou infatigavelmente, pois vi a possibilidade de extrair deles uma

narrativa harmoniosa, curiosa e edificante. Inteirando-me o suficiente destes preciosos

monumentos, comecei a procurar novas fontes de história do povoado de Goriúkhino. E

logo a abundância me surpreendeu. Consagrei seis meses inteiros aos estudos

preliminares. Finalmente, lancei-me ao longamente desejado trabalho e, com a ajuda de

Deus, terminei-o neste terceiro dia de novembro do ano de 1827.

Hoje em dia, como um certo historiador semelhante a mim120 cujo nome não me

recordo, finda minha trabalhosa proeza, solto a pluma e vou melancolicamente ao jardim

refletir sobre minhas conquistas. Também a mim parece que, após escrever a História de

Goriúkhino, já não sou mais necessário no mundo, que meu dever está cumprido e que

chega a hora de finar-me!

120 Edward Gibbon, historiador inglês (1737-1794), autor de História do Declínio e Queda do Império Romano (N.T.)

Page 70: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

70

Trago aqui a fonte das anotações que me serviram para a composição da História

de Goriúkhino;

1. Coletânea de velhos calendários. 54 partes. Primeiras vinte partes escritas em

caligrafia antiga com abreviações. Tal crônica foi escrita por meu bisavô Andrei

Stepánovitch Biélkin. Distingue-se pela lucidez e pela concisão de estilo, por exemplo:

4 de maio121– Neve. Trichka apanhou por ser grosso.

6 – Morreu vaca marrom. Senka apanhou por bebedeira.

8 – Tempo claro.

9 – Chuva e neve. Trichka apanhou pelo tempo.

11 – Tempo claro.

12 – Neve fresca com vento. Abati três lebres.

E anotações semelhantes, sem maiores reflexões... Restam 35 partes escritas em várias

letras, a maior parte na chamada “caligrafia de vendedor”, com e sem abreviações,

geralmente prolíficas, sem nexo nem observância de ortografia. Lá e cá nota-se uma mão

feminina. Nesta parte estão os escritos de meu avô Ivan Adréievitch Biélkin e de minha

avó, sua cônjuge, Evpráksia Aleksêivna, assim como anotações do intendente

Garbovitski.

2. Crônicas do sacristãozinho de Goriúkhino. Estes curiosos manuscritos foram

encontrados por mim na casa do meu pope, casado com a filha do cronista. As primeiras

folhas foram arrancadas e utilizadas pelos filhos do padre nas assim chamadas pipas.

Uma delas caiu no meio do meu pátio. Peguei-a, e tencionava devolvê-la às crianças

quando reparei que estava toda escrita. Desde as primeiras linhas vi que a pipa fora feita

com a crônica, felizmente a tempo de recuperar o restante. Tal crônica, adquirida por uma

quarta de aveia, distingue-se pela profundidade e pela incomum clareza de estilo.

3- Lendas orais. Não dispensei nenhum relato. Mas em particular devo agradecer à

Agrafenia Trífonova, mãe do estárosta Avdei e, dizem, antiga amante do intendente

Garbovitski.

121 No calendário antigo, equivalente a abril. (N.T.)

Page 71: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

71

4. Registros fiscais122; anotações dos antigos anciãos (contas e livros de gastos)

concernentes à moralidade e condições dos camponeses.

O país – chamado de Goriúkhino em homenagem à sua capital – ocupa mais de

240 dessiatinas no globo terrestre. O número de sua população estende-se a 63 almas. Ao

norte, faz fronteira com as aldeias Deriúkhovo123 e Perkukhovo , cujos habitantes são

pobres, esquálidos e de baixa estatura, e cujos orgulhosos proprietários dedicam-se ao

exercício marcial da caça ao coelho. Ao sul, o rio Sivka o separa das propriedades dos

agricultores livres de Karachevo, vizinhos inquietos, famosos pela selvageria e crueldade

de seus modos. Ao oeste124, limita-se com o campo florescente de Zakharino, próspero

sob a autoridade de seus sábios e iluministas proprietários. Ao leste, faz limite com um

lugar selvagem e inabitado, um pântano intransitável onde brota apenas o arando, ouve-se

tão somente o monótono coaxar dos sapos e a supersticiosa tradição supõe ser a morada

de um certo demônio.

NB. Este pântano chama-se inclusive Brejo do Diabo. Dizem que certa vez uma pastora

sem juízo guardou seu rebanho de porcos perto desse lugar ermo. Ela ficou grávida e não

conseguiu explicar de forma satisfatória tal acontecimento. A voz do povo culpou o

demônio do pântano; mas esta história é indigna da atenção de um historiador, e depois

de Niebuhr seria indesculpável acreditar nisto.

––-

Desde os tempos imemoriais Goriúkhino é renomado por sua fertilidade e seu clima

temperado. Centeio, aveia, cevada e trigo sarraceno nascem em seus fartos campos. Um

bosque de bétulas e uma floresta de abetos abastecem os habitantes da aldeia com

madeira e lenha para construção e para o aquecimento de suas moradas. Não há carência

de castanhas, mirtilo, airela e arando. Cogumelos brotam em extraordinária quantidade;

122 Lista de servos que era incluída nos impostos. (N.T.) 123 O nome vem de “puxar pela orelha”. (N.T.) 124 Alusão à Europa e à China. (N.T.)

Page 72: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

72

assados no creme azedo representam agradável alimento, apesar de pouco saudável. O

lago é cheio de carpas, e no rio Sivka correm lúcios e enguias.

––––

Os habitantes de Goriúkhino têm, na maioria, estatura mediana, composição forte e viril,

com olhos azuis e cabelos louros ou ruivos. As mulheres distinguem-se pelo nariz, um

pouco arrebitado, pelas maçãs do rosto salientes e pela composição fornida.

NB: Encontra-se com frequência a expressão bába robusta nas anotações do estárosta

nos registros fiscais. Os homens têm boa índole, são diligentes (especialmente nas suas

próprias roças)125, valentes, guerreiros: muitos deles enfrentam a sós um urso e têm nas

redondezas fama de bons lutadores126: são, em sua maioria, inclinados aos deleites da

bebedeira. As mulheres, além do trabalho doméstico, dividem com os homens a maior

parte do trabalho deles; e não lhes ficam atrás em valentia, raras entre elas temem o

estárosta. Chamadas de lanceiras127 (da palavra eslava lança), elas compõem vigorosa

brigada social, infatigavelmente vigilantes no pátio. A principal obrigação das lanceiras é,

com a maior frequência possível, bater uma pedra em uma placa de ferro e, assim,

espantar a má intenção. São tão castas quanto belas; às tentativas dos audazes, respondem

de maneira severa e enfática.

Os habitantes de Goriúkhino há tempos executam abundante comércio de palha,

cestos de palha e sandálias de palha128. Para isso contribui o rio Sivka, que na primavera

atravessam em barcos, como faziam os antigos escandinavos, e em outras estações

atravessam a pé, arregaçando as calças até os joelhos.

A língua goriukhiniana é definitivamente um ramo da língua eslava, mas difere

tanto dela quanto o russo129. Está repleta de abreviações e apócopes; algumas de suas

letras foram completamente eliminadas ou trocadas por outras. Não obstante, um

habitante da Gran-Rússia130 facilmente compreende um goriukhinófono, e vice-versa.

125 Os servos trabalhavam alguns dias nas suas plantações e outros na dos senhores. (N.T.) 126 Da palavra кулак, punho. (N.T.) 127 Копейщи (kopeichi): palavra inventada pelo autor. (N.T.) 128 Neste caso, traduzi lápti para mostrar a pouca variedade da produção de Goriukhino. (N.T.) 129 Ironia com a discussão da época à respeito das relações entre russo e eslavo eclesiástico. (N.T.) 130 Gran-Rússia: parte central da Rússia. É a língua do principal grupo étnico da região. (N.I.)

Page 73: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

73

Os homens, em geral, contraíam núpcias no 14º ano com moças de 21 anos. As

mulheres batiam em seus maridos ao longo de quatro ou cinco anos. Depois disso, já os

maridos começavam a bater nas mulheres; dessa forma, ambos os sexos tinham seu

período de poder e o equilíbrio era observado.

A cerimônia de enterro ocorria da seguinte maneira. O defunto era carregado para

o cemitério no próprio dia da morte, para não ocupar lugar na isbá desnecessariamente.

Por esse motivo, já aconteceu que o morto espirrasse ou bocejasse, para indescritível

júbilo dos parentes, justo quando era levado no caixão para fora da aldeia. As mulheres

carpiam os maridos, lastimando-se e repetindo: “Minha luz, meu bravo, por quem me

abandonastes? com o que poderei prantear-te?”. Depois de retornar do cemitério, dava-se

início a um banquete funerário em honra do finado, e tanto a parentada quanto os amigos

ficavam bêbados por dois, três dias, ou mesmo uma semana inteira, dependendo do zelo e

do apego à sua memória. Estes rituais antigos conservaram-se até a atualidade.

O traje dos goriukhinenses consistia em camisa, vestida sobre as calças131, um

sinal indicativo da sua procedência eslava. No inverno, trajavam tulups132 de pele de

ovelha, mas mais como adorno do que por verdadeira necessidade, pois geralmente

usavam-no sobre um só ombro e jogavam-no ao menor trabalho que exigisse movimento.

Ciências, artes e poesia achavam-se, desde tempos imemóráveis, em situação

deveras vicejante em Goriúkhino. Além do padre e dos eclesiásticos, sempre houve

gente alfabetizada na cidade. As crônicas mencionam o zemski Terênti, vivo por volta do

ano 1767, que sabia escrever não somente com a mão direita, mas também com a

esquerda. Este homem singular ficou famoso nas redondezas por manufaturar todos os

tipos de cartas, passaportes caseiros e similares. Diversas vezes foi vítima de sua arte, por

sua obsequiosidade, prontidão e participação em diversas ocorrências notáveis; morreu já

na profunda velhice, justo quando aprendia a escrever com o pé direito, pois a letra de

ambas as suas mãos já estava demasiado conhecida. Ele desempenha, como verá o leitor

mais abaixo, um papel importante na história de Goriúkhino.

131 Портки (portki): tipo de calças russas. (N.T.) 132 Тулуп (tulup): sobretudo típico feito de peles. (N.T.)

Page 74: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

74

Música sempre foi a arte preferida dos goriukhinenses instruídos; até hoje a

balalaica e a volinka133, deleitando corações sensíveis, ressoam em suas moradas,

especialmente no antigo edifício público da aldeia, embelezado com um pinheiro e a

efígie da águia bicéfala.

A poesia outrora floresceu na Goriúkhino arcaica. Até nossos dias os poemas de

Arkhip, o Careca, conservaram-se na memória da posteridade.

Em ternura não são inferiores às éclogas do famoso Virgílio, em beleza de

imaginação superam em muito os idílios do Sr. Sumarokov134. E apesar de serem

inferiores ao estilo das novas obras de nossa musa em afetação, são a elas comparáveis

em engenhosidade e espírito.

Colocaremos um exemplo deste poeta satírico:

Para o pátio dos boiardos

Vai o estárosta Anton (2)

Contas junto ao peito traz (2)

Ao boiardo dá

O boiardo olha

Sem nada entender

Ai, estárosta Anton

Você roubou os boiardos por todos os lados

Deixou o povoado na miséria

Deu presentes para sua mulher

Havendo então mostrado ao meu leitor as condições etnográficas e estatísticas de

Goriúkhino, assim como os modos e costumes de seus habitantes, comecemos agora o

relato em si.

TEMPOS FABULOSOS

133 Instrumento russo semelhante a uma gaita. (N.T.) 134 Sr. Sumarokov: A. P. Sumarokov (1718 - 77), importante contribuidor para o desenvolvimento da linguagem literária e versificação da língua russa. Escreveu em uma grande variedade de gêneros: idílios, odes, baladas, éclogas, sátiras etc. (N. I.)

Page 75: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

75

ESTÁROSTA TRÍFON

A forma de governo de Goriúkhino modificou-se diversas vezes. Alternou-se sob

o poder dos estarchim135, eleitos pelo povo, dos intendentes, indicados pelos senhores, e,

por fim, sob o poder direto dos próprios senhores. As vantagens e desvantagens destas

várias formas de governo serão desenvolvidas ao curso de meu relato.

A fundação de Goriúkhino e sua população inicial estão envoltos nas trevas da

incerteza. Lendas obscuras declaram que há tempos Goriúkhino foi um povoado grande e

próspero, que todos os seus moradores eram abastados, que o obrók era coletado uma vez

ao ano e enviado a sabe-deus-quem em várias carroças. Naquela época compravam tudo

barato, e caro vendiam. Não existiam intendentes, os estárostas não insultavam ninguém,

os habitantes trabalhavam pouco e viviam na flauta e até os pastores usavam botas para

vigiar o rebanho136. Não devemos nos deixar seduzir por esse quadro encantador. A ideia

de um século de ouro é inerente à tradição de todos os povos e demonstra apenas que as

pessoas nunca estão satisfeitas com o presente e – como a experiência lhes dá pouca

esperança no futuro – enfeitam o passado irrecuperável com todas as cores de sua

imaginação. Eis o que se sabe ao certo:

O povoado de Goriúkhino pertenceu à ilustre estirpe dos Biélkins desde os tempos

imemoriais. Mas meus antepassados, possuindo muitas outras propriedades, não davam

atenção a esta terra remota. Goriúkhino pagava um tributo pequeno, era governado pelos

starchini eleitos pelo povo na vietche137, chamada de reunião popular.

Mas com o curso do tempo as propriedades da casa dos Biélkins fragmentaram-se

e entraram em declínio. Netos empobrecidos de um avô rico não conseguiram perder seus

hábitos luxuosos e exigiam da propriedade, já reduzida à décima parte, toda a renda

antiga. Ordens ameaçadoras seguiam-se umas às outras. O estárosta as lia na vietche; os

anciãos tergiversavam, o povo agitava-se e os senhores, em vez de um obrok duplicado,

só recebiam pretextos astutos e lamentos conformados, escritos em papel ensebado e

selados com uma moedinha. 135 Espécie de conselho de anciãos anterior à figura do estárosta. A palavra significa literalmente “os mais velhos”. (N.T.) 136 Isso daria um sinal da riqueza do povoado: pastores, se não ficassem descalços, usavam lápti. (N.T.) 137 Referência à história da Rússia. A vietche era o sistema que vigorava em Novgorod: uma espécie de reunião popular que decidia quem seriam os representantes do povo. (N.T.)

Page 76: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

76

Uma nuvem sombria pairava sobre Goriúkhino, mas ninguém nem sonhava com

isso. No último ano do reinado de Trífon – o último estárosta eleito pelo povo –, no exato

dia da celebração do templo, quando todo o povo ou se aglomerava ruidosamente em

torno do estabelecimento recreativo (vulgo bodega, na linguagem popular ou

perambulava pelas ruas, apoiados uns nos outros, cantando em voz alta as canções de

Arkhip, o Careca, entrou no povoado uma britchka trançada e coberta por uma treliça,

atrelada a um par de pangarés que mal se aguentavam; sentava-se na boleia um judeu

esfarrapado, e de dentro da brítchka aparecia uma cabeça de kartuz138 que, ao que parece,

olhava com curiosidade o povo festivo. Os habitantes receberam a carroça com risos e

zombarias grosseiras. (N.B. Enrolando as pontas de suas roupas, os loucos

achincalhavam o cocheiro judeu e exclamavam rindo: “Judeu, judeu139, coma uma orelha

de porco!” Crônica do amanuense de Goriúkhino ) Mas qual não foi a surpresa quando a

britchka parou no meio do povoado e o forasteiro, saltando para fora, exigiu com voz

imperiosa falar com o estárosta Trífon. Este alto funcionário encontrava-se então no

estabelecimento recreativo, de onde dois starchi respeitosamente trouxeram-no apoiado

pelos braços. O desconhecido, olhando para ele de forma ameaçadora, deu-lhe uma carta

e ordenou que a lesse imediatamente. Os estárostas de Goriúkhino tinham o hábito de

nunca ler nada eles mesmos. O estárosta era analfabeto. Mandaram alguém buscar o

zemski140 Avdei. Acharam-no por perto, na travessa, dormindo sob a cerca, e trouxeram-

no ao desconhecido. Mas à sua chegada – fosse pelo susto repentino ou por um doloroso

pressentimento – as letras da carta, apesar de nitidamente escritas, apareceram-lhe turvas

e ele não teve condições de decifrá-las. Com terríveis imprecações o desconhecido

mandou o estárosta Trífon e o zemski Avdei irem dormir, adiou a leitura da carta para o

dia seguinte e foi para a isbá oficial, para onde o judeu levou sua pequena mala.

Os goriukhinenses assistiram a esse extraordinário acontecimento com muda

surpresa, mas logo a brítchka, o judeu e o desconhecido foram esquecidos. O dia

terminou com barulho e alegria, e Goriúkhino adormeceu sem prever o que lhe

aguardava.

138 Kartuz: espécie de quepe. (N.T.) 139 “Jid” tem sentido pejorativo em russo. (N. T.) 140 Funcionário do zemstvo, uma espécie de guarda. (N.T.)

Page 77: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

77

Com o nascer do sol matinal, os habitantes foram despertos com batidas nas

janelas e chamados para a reunião popular. Os cidadãos, um após o outro, apareceram no

pátio da isbá oficial, que servia de praça da viétche. Seus olhos estavam turvos e

vermelhos, seus rostos, inchados; bocejando e se coçando, olhavam para o homem de

kartuz e kaftan azul surrado, em pé no umbral da isbá com ar de importância, e se

esforçavam para lembrar de seus traços, já vistos outrora. O estárosta Trífon e o zemski

Avdei estavam ao seu lado, sem gorro, com um ar servil e profundamente triste.

– Está todo mundo aqui? – perguntou o desconhecido.

– Tá todo mundo aqui? – repetiu o estárosta.

– Tá. – responderam os cidadãos. Então, o estárosta anunciou o recebimento de

uma carta do senhor e ordenou ao zemski que lesse para os ouvidos do povo. Avdei deu

um passo adiante e em com voz tonitruante leu o seguinte. (N.B. “Copiei este documento

ameaço-profético141 na casa do estárosta Trífon, onde era conservada num baú ao pé de

outros memoriais de seu reinado sobre Goriúkhino” . Não pude descobrir o original desta

curiosa carta.)

Trífon Ivanov!

O portador desta carta, meu encarregado **, está sendo mandado à minha

propriedade do povoado de Goriúkhino para assumir sua administração. Imediatamente à

sua chegada, reúnam-se os mujiques e anuncie-se minha senhorial vontade, ou seja: que

os mujiques escutem as ordens de meu encarregado como se fossem minhas próprias. E

em tudo o que lhe concerne, executem sem discussão; caso contrário ** possui o direito

de proceder com toda a severidade possível. Fui obrigado a isto pela desonesta

desobediência deles e por sua, Trífon Ivanov, conivência trapaceira.

Assinado NN.

Então **, abrindo as pernas como a letra X e colocando os braços como a letra Ф,

pronunciou este breve e expressivo discurso: “Escutem aqui, não se façam de espertos;

vocês são um povo mimado, que eu sei, mas vou tirar na pancada as bobagens de suas

cabeças, podem deixar; vão sair mais rápido do que a bebedeira de ontem”. Já não tinha

141 Грозновещии (groznoviechi): palavra inventada, composta por “ameaça” e “profético”. (N.T.)

Page 78: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

78

mais bebedeira em cabeça nenhuma. Os goriukhinenses, estarrecidos, baixaram a cabeça

e, com pavor, dispersaram-se para suas casas.

GESTÃO DO INTENDENTE **

** tomou as rédeas do governo e deu início à execução de seu sistema político,

sistema este que merece especial atenção.

Seu principal fundamento era o seguinte axioma: quanto mais rico é o mujique,

mais mimado; quanto mais pobre, mais submisso. Consequentemente, este ** encorajava

a submissão na comunidade como a principal virtude camponesa. Exigiu um inventário

dos camponeses e dividiu-os em ricos e pobres. 1) Os atrasos foram divididos entre os

mujiques prósperos e cobrados com toda a severidade possível. 2) Faltantes e ociosos

eram rapidamente colocados na enxada e se, na compreensão do intendente, seu trabalho

se mostrasse insuficiente, eram mandados como mão-de-obra para os campos de outros

camponeses, que por isso lhe pagavam um tributo voluntário; e os que eram mandados

para este regime de servidão tinham todo o direito de comprar sua independência se

pagassem para isso, além da soma faltante, o obrok de dois anos. Todas as obrigações

comunais recaíam sobre os mujiques prósperos. O recrutamento dos soldados foi uma

verdadeira festa para o ávido intendente; pois todos os mujiques ricos, um por um, foram

pagando para ele por sua liberdade até que finalmente a alternativa recaía num canalha ou

falido. As reuniões populares foram extintas. O obrok foi recolhido aos poucos e ao longo

do ano inteiro. Além disso, o intendente conduzia coletas-supresa. Os mujiques, parece,

não pagavam muito mais do que antes, mas nunca conseguiam ganhar ou acumular

dinheiro suficiente. Em três anos, Goriúkhino empobreceu por completo.

Goriúkhino se entristeceu, a feira foi abandonada, as canções de Arkhip, o Careca,

se calaram. As crianças foram mendigar. Metade dos mujiques ficou no campo senhorial,

e a outra metade na servidão; e o dia da celebração do templo passou a ser, nas palavras

do cronista, não mais um dia de felicidade e júbilo, mas o aniversário da tristeza e de

pesarosas lembranças.

Page 79: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

79

* O desgraçado do intendente colocou Anton Timofeiev nos ferros, até que o velho

Timofei pagou por ele cem rublos; então, o intendente acorrentou Petruchka Eremeiev,

que foi resgatado por seu pai por 68 rublos: aí, o desgraçado queria acorrentar Liokha

Tarássov, mas o referido fugiu para a floresta. O intendente tanto se perturbou que

encolerizou-se nas palavras; então levaram para a cidade, para o recrutamento, o bêbado

Vanka. (De um relato dos camponeses de Goriúkhino)

Page 80: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

80

COMENTÁRIO SOBRE HISTÓRIA DO POVOADO DE GORIÚKHINO

O Liceu de Tsarskoe Celo, criado dentro do palácio do Czar para educar jovens

das famílias mais importantes da aristocracia, foi essencial para a formação de Púchkin.

Na turma inaugural, ele conheceu alguns de seus melhores amigos, como Dielvig e

Kiukhelbeker, e teve seu primeiro reconhecimento como jovem poeta promissor. Este

grupo mais tarde formaria a “plêiade de Púchkin” – um grupo de escritores com

afinidades mais políticas do que estéticas. Faziam parte deste grupo outros poetas como

Viázemski, Baratínski e Bátiuchkov.

Muitos deles integraram as duas grandes sociedades secretas revolucionárias que

protagonizaram a Revolta Dezembrista de 1825. Púchkin nunca chegou a participar das

sociedades mais sérias, mas houve uma identificação de sua poesia com o momento.

Muitos de seus melhores amigos foram enviados à Sibéria ou condenados à morte, e ele

mesmo teria admitido ao Czar que teria participado da insurreição se não estivesse

exilado. São tantas as lendas que circulam em torno da figura de Púchkin que é difícil

saber com precisão se o diálogo com o Czar aconteceu mesmo, ou se foi exatamente

assim. Mas é certo que, desde jovem, Púchkin foi fortemente identificado com a geração

dos aristocratas liberais do Liceu.

Depois de 1825, a aristocracia antiga começou a perder rapidamente o poder.

Nicolau I, recém coroado, reforçou a repressão e começou a favorecer um grupo de

jornalistas e escritores vindos de uma classe intermediária. Escritores como Bulgárin,

Nadejdin e Pelevoi estabeleceram-se como representantes desta classe ascendente, que

entrou em choque direto com o grupo de Púchkin.

A mudança na forma de circulação da literatura, a ampliação do público – antes

restrito aos salões – e as reformas no sistema educacional público provocaram uma

expansão no mercado editorial, criaram um novo público leitor e, consequentemente, uma

Page 81: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

81

mudança nos padrões literários142. Progressivamente, o número de vendas ia sendo tão

importante quanto a aceitação em círculos aristocráticos.

Boa parte da disputa literária agora acontecia por meio de revistas. Por volta de

1830, o círculo aristocrático contava com a Литературная газета (Jornal Literário),

editada por Diélvig, que publicava os artigos de Púchkin, Viázemski e Pletniov. Tratava-

se de uma revista liberal, representativa do pensamento dos antigos estudantes do Liceu.

Do lado oposto estavam as revistas conservadoras como a Северная Пчела (Abelha do

Norte), comandada por Bulgárin e Gretch, e Московский Телеграф (Telégrafo de

Moscou), editada por Pelevoi.

Nesta disputa, Bulgárin era o principal inimigo de Púchkin. Escritor e jornalista

de origem polonesa, seus livros eram extremamente populares. Era aliado do governo,

informante de Aleksandr Benkendorf, chefe da Censura, ele também atuava como censor.

Em uma carta de abril de 1824 ao seu irmão, Púchkin criticava Bulgárin por publicar uma

carta particular sua a Biestújev: “Como alguém pode publicar uma carta particular?

Quem sabe o que pode passar pela minha cabeça quando escrevo a um amigo? Mas estão

preparados para publicar tudo – é pura pirataria.”143. Bulgárin e Gretch haviam começado

a publicar em meados da década de 20 e, nos anos seguintes, tornaram-se cada vez mais

influentes. Na época da publicação de Boris Godunov, sua relação com Púchkin piorou

muito. A peça teve vários percalços antes da publicação. Púchkin suspeitava que Bulgárin

havia sido o agente da censura que proibira a publicação de Boris Godunov. Logo depois,

Bulgárin publicou O Falso Dmitri, que falava sobre o mesmo evento histórico, o que

levantou suspeitas de plágio. Por volta de 1830, o círculo de Bulgárin já tinha um certo

domínio sobre as publicações literárias, e ele escrevia várias críticas negativas aos livros

de Púchkin. Este, por sua vez, respondia com epigramas e artigos.

Púchkin sempre teve problemas com a censura. Como vivia das vendas de seus

livros, a vendagem era antes de tudo uma questão prática. Além disso, na década de 30,

suas obras já começavam a perder a estrondosa popularidade que tiveram nos anos 20,

marcados pelo exílio do poeta da corte de São Petersburgo.

142 Paul Debreczeny. Social Functions of Literature – Aleksander Pushkin and Russian Culture. Stanford. Stanford University Press. 1997 pp. 97-102. 143 Tatiana Wolf. Pushkin on literature. The Athlone Press, 1998. Londres. p.86 carta 51.

Page 82: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

82

Restava a revista de Diélvig, Literaturnaya Gazeta144 (Jornal Literário). Apesar

da distância e da censura, Púchkin e seus amigos tentavam contribuir ao máximo para sua

publicação. Apesar disso, a revista teve vida breve. A publicação de quatro versos em

defesa da Revolução Francesa provocou sua suspensão no final de 1830145. Em carta ao

amigo Pletniov, Púchkin escreveu: “e assim, a literatura russa está entregue de corpo e

alma à Bulgárin e Gretch!”146. Também nesta época Bulgárin publicara uma crítica

devastadora à Evguêni Oniêguin na Abelha do Norte. Com total apoio do governo e de

Benckendof, o jornalista era um alvo difícil para Púchkin. Suas tentativas de escrever um

prefácio à Boris Godunov com críticas a Bulgárin foram desestimuladas por Pletniov147.

A disputa entre Bulgárin e Púchkin muitas vezes se focava tanto em questões

políticas quanto literárias. Com a perda de poder da plêiade de Púchkin, interessava cada

vez mais ao seu círculo aristocrático se fixar como uma elite literária detentora dos

verdadeiros códigos artísticos. Os livros de Bulgárin, por outro lado, eram extremamente

populares e atingiam altas vendagens. Ele, por isso, se proclamava mais democrático.

Púchkin, ao desancar o adversário, sempre reafirmava sua própria origem nobre.148

Paul Debreczeny tem um extenso estudo sobre a relação de Púchkin com seus

imitadores e com a literatura menor de sua época. Segundo ele, o contexto social mais

amplo e menos homogêneo decorrente da ampliação do público leitor multiplicou os

códigos de comunicação149. Por exemplo, Raiévski, amigo pessoal de Púchkin, escreveu

em uma carta que O Prisioneiro do Cáucaso não era um bom poema, mas que abria um

caminho para a mediocridade tropeçar. Púchkin, porém, sabia que se tratava de um

elogio, pois ambos compartilhavam o código blasé da elite150.

Mas a mediocridade de fato tropeçou. Ruslan e Liudmila, de 1820, lançou tal

moda de poemas épicos irônicos sobre a história da Rússia que, segundo Walter Vickery,

citado por Debreczeny, ficou quase impossível escrever um poema épico a sério151.

144 Uso o nome transliterado por ser uma forma mais consagrada do que Jornal Literário. 145 Tatiana Wolf. Pushkin on literature. The Athlone Press, 1998. Londres. p. 288 146 Idem. Carta 204. p. 288. 147 Idem. p. 282. 148 Paul Debreczeny. Social Functions of Literature – Aleksander Pushkin and Russian Culture. Stanford. Stanford University Press. 1997 p. 133. 149 Idem, p. 97. 150 Idem. p. 89. 151 Idem, p. 81.

Page 83: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

83

Depois, os personagens de Evguêni Oniêguin inauguraram uma série de tradições: vemos

rastros de Tatiana e Evguêni por toda a prosa russa subsequente. Era uma questão cultural

e política, para o círculo de Púchkin, se diferenciar e estabelecer sua literatura como

superior.

Neste contexto, Biélkin é uma resposta direta de Púchkin à nova situação em que

se via. A grande aspiração do personagem – “ser o juiz, o observador e o profeta dos

séculos e dos povos,(...) o mais elevado patamar acessível a um escritor”— reflete um

certo tipo de aspiração dos jovens das décadas de 20/30. O conjunto de referências

intelectuais e artísticas de Biélkin é, por si só, um apanhado irônico do panorama cultural

russo da época. Seu talento aparece sempre como uma predestinação, um “chamado

natural”. Biélkin é uma versão irônica do “homem supérfluo” descrito por Fátima

Bianchi em sua tese de Doutorado:

E é nesse contexto [o idealismo dos anos 20] que, em parte, se explica em parte a gênese do que

veio a ser conhecido como o “o homem supérfluo”, o herói da nova literatura russa. Um herói da

nobreza que fazia parte da pequena minoria de homens cultos e moralmente sensíveis que,

incapazes de encontrar um lugar na sociedade para desenvolver suas potencialidades, se fechavam

em si mesmos, refugiando-se em fantasias e ilusões, ou no ceticismo e desespero.152

Biélkin é uma faceta cômica do homem supérfluo, ridícula e medíocre153. É uma

resposta do próprio Púchkin à tradição inaugurada por Oniêguin.

A própria ideia que Biélkin faz dos autores é um traço geracional. Para ele, a

vocação de escritor é uma benção inata, mas também um fardo. Esse encanto não é

compartilhado pelo vizinho mais velho, na notícia biográfica do prefácio, que acha o

título de autor indecoroso.

- O conto

Alguns estudos recentes dos manuscritos procuram descobrir quando o

personagem de Biélkin teria sido criado: como a História do Povoado e Os Contos de

152 M. de Fátima Bianchi. O "sonhador" de A Senhoria, de Dostoiévski: um "homem supérfluo". Tese de Doutorado, USP. São Paulo, 2006. p. 110. 153 Idem, p. 115.

Page 84: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

84

Biélkin foram escritos simultaneamente, N. N. Petrunina, citada pelo crítico Shvarzband,

defende que o personagem do narrador foi criado para o primeiro e depois adaptado para

o prefácio d’Os Contos de Biélkin.

A edição de História do Povoado de Goriukhino é polêmica. Sua primeira

publicação foi em 1837, com várias supressões, na edição da revista Современник

(Contemporâneo) em homenagem a Púchkin, logo após sua morte154. Não há uma versão

final, apenas um plano e partes separadas. Nas primeiras edições, foi intitulado Crônica

[Летопись] do Povoado de Goriúkhino, e narrativa dos “Tempos Fabulosos” não vinha

no final, mas na metade. Apenas em 1910, com a edição de Vengerov, o título foi

definido como “história”155. O nome da cidade também varia ao longo do manuscrito: em

alguns momentos, consta como Gorokhino, o que já leva a algumas interpretações de que

seria uma referência ao Czar Gorokh156. Uma outra possibilidade é a ligação com a raiz

de горючий (goriutchi), que significa amargo e inflamável. Mas a possibilidade mais

aceita é de que o nome viria de горе (gore), desgraça.

Como todo trabalho inacabado, História do Povoado de Goriúkhino impõe

algumas dificuldades à sua análise. Há um certo consenso entre os críticos que se

debruçaram sobre ele, segundo Bethea e Davydov, de que este seja um dos trabalhos mais

problemáticos de Púchkin. De fato, não há nenhum indício de que o autor pretendia

publicá-lo; o que, por outro lado, talvez lhe tenha permitido ir mais longe em sua verve

crítica do que a censura lhe permitiria.

A fortuna crítica apresenta uma grande variedade de interpretações do texto: sátira

social ou paródia de Karamzin ou Pelevoi; enfatizam-se os paralelos com o escritor

alemão Gottlieb Rabener e com Washington Irving, e as conexões com Os Contos de

Biélkin. A questão da paródia em si traz um ponto controverso: quem está sendo

parodiado. Os dois candidatos principais são a Истории Государства Российского

(História do Estado Russo), de Karamzin, a История Русского Народа (História do

Povo Russo), de Pelevoi, e os antigos cronistas russos.

154 Thomas G Winner. "The History of the Village of Goriukhino". Russian Review, Vol. 13 nº 2 (Abril, 1954). Blackwell Publishing. 1954.p. 120. 155 David M. Bethea e Serguei Davydov. "The [Hi]story of the Village Gorjuxino: In Praise of Pushkin's Folly" in The Slavic and East European Journal, Vol. 28. nº 3, 1984 p. 304. 156 Idem, ibidem.

Page 85: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

85

Tradicionalmente, também se traça uma relação com a Viagem de Petersburgo a

Moscou, de Radichev, e a História de uma Cidade, de Saltikov-Schedrin157. Púchkin

sempre teve interesse por Radicher e, em fins de 1833, chegou a escrever uma Viagem de

Moscou a Petersburgo, que nunca passou pela censura158.

Disputas de interpretações radicalmente diferentes não são raras na fortuna crítica

de Púchkin. Ao ler História do Povoado de Goriúkhino, fica evidente que sua crítica

tinha vários alvos – coisa que, aliás, não é rara na obra de Púchkin. Sua ironia aqui dirige-

se a todos: aos cronistas e historiadores, ao sistema literário e intelectual de São

Petersburgo, à pequena nobreza rural e aos servos.

O texto abre com uma explicação autobiográfica que nos detalha a vida de

Biélkin. Ironicamente, havia sido justamente isso o que o editor havia pedido ao seu

amigo no prefácio (“modo de viver, ocupações, temperamento e aparência”). Antes de

iniciar seus estudos de História, o narrador parece ter necessidade de nos explicar o que

lhe autoriza a se colocar no lugar de autor. Esta autobiografia explicativa não deveria ter

lugar em um estudo que se pretende científico. É sintomático que nenhuma das obras que

havia na sua casa – cartilha, calendários, almanaque – tivessem uma trama propriamente

dita159. O pensamento de Biélkin é tão desarticulado quanto suas obras de formação.

Depois, quando decide escrever prosa, ele se recusa a “trabalhar em estudos prévios,

plano de estrutura, ligação entre partes e assim por diante”. O personagem é incapaz de

articular suas ideias, e isto se revela na estrutura de História do Povoado de Goriúkhino.

O Novíssimo Manual de Cartas, guia de Biélkin e uma espécie de obra de

formação do jovem artista, era um almanaque cuja primeira publicação data de 1769,

originalmente sob o título Gramática Russa Geral160. Segundo a nota da edição inglesa,

seu conteúdo era formado por cartas, gramática e uma grande variedade de informações

sobre diversos assuntos.

O narrador transita entre duas identidades: homem de letras e historiador. A

alternância de ambas no texto causa uma indefinição quanto ao seu gênero, que passa de

157 Idem, p. 292. 158 Tatiana Wolf. Pushkin on literature. The Athlone Press, 1998. Londres. p. 344-51. 159 David M. Bethea e Serguei Davydov. "The [Hi]story of the Village Gorjuxino: In Praise of Pushkin's Folly" in The Slavic and East European Journal, Vol. 28. nº 3, 1984 p. 299. 160 Paul Debreczeny. Social Functions of Literature – Aleksander Pushkin and Russian Culture. Stanford. Stanford University Press. 1997. p. 99.

Page 86: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

86

relato memorialista para história científica, e depois de novo para autobiografia sem

maiores transições além das humildes desculpas de Biélkin. Apesar de citar Niebuhr, o

pai da historiografia moderna, como grande referência, Biélkin é incapaz de se manter no

discurso estritamente científico.

Por seu amor à leitura de Kurgánov, somos levados a crer que a tarefa de autor e

historiador para Biélkin tem um caráter de missão que transcende o ambiente familiar.

Nos entanto, ele se recusa a sair deste ambiente, como se vê no incidente com a escola. O

ano em que ele vai para o internato também é significativo. 1812, uma data simbólica na

história da Rússia, aparece de forma irônica na vida de Biélkin. A invasão das tropas

napoleônicas não tem um efeito de fortalecimento de caráter para ele; muito pelo

contrário, é por causa da guerra que ele consegue escapar da disciplina do internato e,

com a indulgência dos pais, voltar para casa e deixar sua educação incompleta. Da

mesma forma, sua passagem pelo serviço militar não serve para torná-lo mais maduro ou

forte – suas lembranças são todas de jogos de cartas, bilhar e vivandeiras.

A resistência de Biélkin a mudar de ares finalmente culmina no seu retorno à

propriedade dos pais. A comparação que o narrador faz de si mesmo com Odisseu é a

primeira referência à alta cultura no texto. Neste trecho, a imagem de decadência da casa

se espelha no próprio Biélkin – quando os criados lhe dizem “como o senhor ficou feio”.

A imagem de um passado áureo, da casa e da infância, contrasta com a decadência da

casa no presente. É interessante notar que Biélkin mais adiante diz que este é um traço

comum a todos os povos.

O retorno à casa paterna tem um sentido de renascimento. Ao chegar, Biélkin

toma posse de sua herança e assume definitivamente o papel de proprietário. É

precisamente neste momento que o Novíssimo Manual de Cartas perde seu valor e,

depois de uma leitura rápida, é dispensado. É também este o ponto – de constituição de

sua personalidade adulta– em que se manifesta a vocação de escritor. A vocação de

Biélkin surge, parece, por tédio. Depois de reler (e superar) o Novíssimo Manual e

decorar as anedotas de sua governanta, ele resolve testar sua mão. Se, por um lado, a

ambição de ser escritor lhe parece exagerada, por outro é um motivo bem banal o que o

impele a escrever. Biélkin está sempre incerto de sua autoridade como autor. Ao longo de

todo o conto, ele pede desculpas e tenta provar sua inclinação para as letras. A

Page 87: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

87

subserviência de Biélkin é pura fórmula; por trás do seu estilo antiquado transparece uma

verdadeira humildade que, em seu contraste com a grandiloquência do tom, dá a forma

irônica ao texto.

Em São Petersburgo, sua busca pela autoria vira uma perseguição, literalmente.

Há um consenso de que o autor perseguido por Biélkin e chamado misteriosamente de B.

era Bulgárin. O capote verde-ervilha era parte do uniforme policial, uma referência às

ligações do autor com a censura. A menção à Gazeta de Hamburgo também é proposital;

Bulgárin tinha a fama de plagiar os artigos da revista. Além desta, são citadas outras duas

revistas: Благонамеренный (O Bem-Pensante) e O Competidor do Iluminismo

(Соревнователь просвещения). A primeira era conduzida por Izmailov e só foi

publicada até 1826. Era, junto com a Abelha do Norte, de Bulgárin, e o Telégrafo de

Moscou, de Pelevoi, parte do conjunto de publicações conservadoras a que Púchkin e

seus amigos se contrapunham161.

A menção à peça de Kotzebue também é uma indicação da baixa cultura do

narrador. Os melodramas de August von Kotzebue eram extremamente populares na

Rússia, onde morou por um tempo. Em uma carta ao seu irmão datada de 1822, Púchkin

ridiculariza o estilo declamatório do atores em uma dessas peças162.

Por fim, temos as referências de Biélkin no âmbito da poesia. “Vizinho Perigoso”,

“Crítica no Bulevar de Moscou” e “Crítica nos lagos de Presnia” eram publicações

humorísticas anônimas ou de salão, que circulavam em manuscritos.

A construção de Biélkin como um autor é curiosa. Apesar do tom irônico, o

narrador tem vários pontos em comum com Púchkin. O primeiro é a classe: de acordo

com Bethea e Davydov, ambos são nobres de uma linhagem antiga em decadência. Para

eles, “a perda de poder dos boiardos provocada pela ascensão da nobreza ‘meritória’ de

Pedro, junto com a derrocada econômica causada pela abolição da primogenitura no

reinado de Ana resultou na decadência” 163 dos nobres e, segundo Púchkin, dos servos

também.

161 Tatiana Wolf. Pushkin on literature. The Athlone Press, 1998. Londres. Carta 130, p. 174 162 Idem, carta 25. p. 57. 163 David M. Bethea, e Serguei Davydov. "The [Hi]story of the Village Gorjuxino: In Praise of Pushkin's Folly" in The Slavic and East European Journal, Vol. 28. nº 3, 1984 p. 293.

Page 88: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

88

O percurso de Biélkin em busca de sua vocação imita o caminho da literatura

russa e do próprio Púchkin. As etapas da “evolução” de Biélkin como autor também

mantêm um padrão: clássico (poema épico, tragédia), romântico (balada), descida à prosa

(ensaio, contos). O início pela poesia é o mais natural já que, segundo as leis de

Lomonóssov, a prosa não era digna. Ao optar pela ficção histórica, Biélkin também

repete um movimento de Púchkin. Em 26, Púchkin escolheu Boris Godunov como

personagem principal de sua tragédia. No caso de Biélkin, a escolha por Riurik é a um

tempo óbvia e pretensiosa.

Os contos são mencionados apenas de passagem. Finalmente, Biélkin chega à

conclusão de que a forma mais digna de prosa é o estudo e a escrita da história. Também

um acaso fornece os “documentos” necessários. A parte de justificativa autobiográfica

ocupa metade do conto. Depois, o narrador faz um relato detalhado dos “documentos”

utilizados, para em seguida passar ao relato histórico propriamente dito.

Bethea e Davydov defendem que História do Povoado de Goriúkhino é uma obra

de transição entre Os Contos de Biélkin e a ficção histórica de A Filha do Capitão.

Púchkin teve a oportunidade de fazer do conto uma espécie de “laboratório conceitual”

dos limites do romance histórico. Ou seja, para “examinar a fronteira epistemológica que

separa ficção e história, arte de artefato” 164, em vez de escrever ficção histórica, Púchkin

decidiu escrever uma história ficcional.

Era um momento de transição para a prosa em geral, não só na literatura russa.

Segundo Monika Greenleaf, depois do auge dos romances históricos de Scott em

1810/20, o jornalismo começava a ditar novas formas de escrever romances. Stendhal

declarava que “o colarinho de couro de um servo medieval é mais fácil de descrever do

que as emoções do coração humano”. De fato, O Vermelho e o Negro se passa em 1830 e

já faz uma espécie de “literatura jornalística”, por tratar de sua própria época em tons

documentais165.

Ainda que essas mudanças demorassem a chegar à Rússia, Púchkin sempre se

manteve completamente a par das tendências literárias europeias; consta em sua

biblioteca uma edição de 1831 de O Vermelho e o Negro. Mas ele continuava a ter Walter

164 Idem, ibidem. 165 Monika Greenleaf. Pushkin and the Romantic fashion – Fragment, Elegy, Orient, Irony. Stanford. Stanford University Press, 1994. p. 311.

Page 89: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

89

Scott como modelo. Em seus ensaios de 1830, ainda segundo Greenleaf, ele parece

desprezar esta nova prosa jornalística por seu frenesi plebeu. Tolstói elogiava Púchkin

pela disposição da “hierarquia correta dos objetos”; e é a falta disso que Púchkin aponta

como grande defeito de Balzac166.

Se na ficção histórica Púchkin valorizava a habilidade do poeta para fabricar a densa realidade

doméstica e os interesses humanos conflitantes que ficavam de fora dos documentos escritos, ele esperava

o oposto do conto de sociedade: a depuração de um historiador para achar traços significativos de uma

sociedade, a habilidade de um dramaturgo para esculpir o conflito simbólico a partir do fluxo informe dos

discursos cotidianos e a habilidade de um poeta para omitir o resto. Em suma, ele exigia uma visão

contemporânea da história, mas uma visão de historiador para a contemporaneidade.167

Ao longo da década de 30, Púchkin foi progressivamente se aproximando do

estudo da história e se aprofundando na escrita de prosa. Considera-se A Filha do

Capitão o ponto culminante deste percurso. História do Povoado de Goriúkhino

representa um dos pontos iniciais deste caminho. É uma narrativa que procura delinear as

perguntas antes de fixar respostas. E é nisto que está a riqueza do conto: nesta profusão

de interlocutores e referências há um vasto material para estudo.

166 Idem, p. 313. 167 Idem, ibidem.

Page 90: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

90

SOBRE A TRADUÇÃO

A importância de Púchkin para a literatura russa não é proporcional às suas

traduções em português, talvez por uma certa fama de intraduzibilidade do autor. Neste

sentido, a coletânea A Dama de Espadas é muito importante, tanto por ser uma antologia

de parte importante do trabalho de Púchkin como pela qualidade das traduções. Porém, o

critério escolhido pela antologia incluiu apenas alguns dos contos, ainda que Boris

Schnaiderman acene brevemente para a unidade entre eles em seu prefácio. Com o

desmembramento, perde-se o propósito de unidade presente na obra original e a estrutura

comum que une todos os contos: o narrador. A tradução do restante da obra, assim como

a de outro conto que retoma o mesmo narrador, contribui para o diálogo e os estudos da

obra de Púchkin no Brasil.

Na recente safra de traduções diretas do russo, pouco se dedicou à obra de

Púchkin, especialmente se consideramos sua enorme produção em prosa, poesia e teatro.

Na tradução da obra poética talvez esteja o maior vácuo. Há a tradução de alguns

poemas feita por Nelson Ascher para a edição A Dama de Espadas e uma coletânea

bilíngue, chamada Poesias Escolhidas, traduzida e organizada por José Casado, lançada

em 1992. De suas narrativas em verso, têm tradução direta uma versão do conto “O Pope

Avarento” (“Сказка о попе и о работнике его Балде”) feita por Tatiana Belinky e O

Cavaleiro de Bronze (Медный всадник). Uma tradução do Evguêni Oniêguin (Евгений

Онегин) foi concluida recentemente por Dário de Castro Alves.

Da obra dramática, Irineu Franco Perpétuo traduziu as pequenas tragédias em

verso e Boris Godunov (Борис Годунов).

Quanto à prosa de Púchkin, há algumas traduções diretas. Suas novelas foram

quase todas vertidas para o português. Helena Nazário traduziu e estudou A Filha do

Capitão (Капитанская дочка) em sua tese de doutorado, publicada em 1980 pela

editora Perspectiva.

Page 91: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

91

Boris Schnaiderman traduziu outras novelas e romances inacabados: O Negro de

Pedro, o Grande (Арап Петра Великого), A Dama de Espadas (Пиковая дама),

Kirdjali (Кирджали) e Dubróvski (Дубровский) e três dos Contos de Biélkin: “O Chefe

da Estação”, “O Tiro” e “O Fazedor de Caixões”. Há também uma versão de Tatiana

Belinky para “A Nevasca”, lançada em 1988 no livro Salada Russa.

Há duas traduções que respeitam a organização original dos Contos de Biélkin. A

primeira, de 1964, foi feita por Eduardo Sucupira Filho, mas não diretamente do russo. A

tradução de Klara Gourianova, lançada em 2003 pela editora Nova Alexandria, é a única

direta do russo que segue a forma original.

O texto utilizado para esta tradução foi o da edição das Obras Completas de

Púchkin em dez volumes de 1956, a primeira a que tive acesso. Fiz uma comparação

quando consegui uma edição mais recente, de 2002, mas não encontrei diferenças

significativas. Para a versão final, foi essencial o cotejo feito com a professora Kátia

Volkova.

Também fiz uma comparação com a edição em espanhol e duas traduções para o

inglês: a de Paul Debreczeny, lançada em 1999 pela editora Everyman’s Library, e a de

Ronald Wilks, da Penguin, edição de 1998.

As outras traduções para o português também foram de grande ajuda. O fato de os

contos serem parte de uma estrutura maior levou-me inevitavelmente a procurar a

tradução de Boris Schnaiderman.

Para evitar que o texto ficasse pesado, coloquei em notas de rodapé apenas

informações mais diretas. Apresento aqui algumas discussões sobre a tradução e o

glossário. Em relação às questões de tradução, é possível agrupar os contos em dois

pares:

-“A Senhorita Camponesa” e “A Nevasca”.

Tanto “Nevasca” quanto “A Senhorita Camponesa” foram contados a Biélkin por

uma mesma narradora na origem, a donzela K.I.T. O fato de ser uma mulher certamente

tem relação com o fato de serem duas histórias românticas, claramente ligadas à tradição

sentimentalista de Karamzin. A paródia recai sobre um tipo de discurso específico:

Page 92: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

92

histórias de amor proibido que, necessariamente, terminam em final feliz. É fácil para o

leitor moderno reconhecer os clichês românticos e a estrutura da narrativa.

De outro lado, alterna-se com o discurso romântico uma linguagem cotidiana e

cheia de provérbios. É normal que os personagens mais complexos e o narrador transitem

entre os dois tipos de linguagem, dependendo de com quem se fala ou do assunto tratado.

Já personagens secundários, como a família de Macha em “A Nevasca” e a criada de “A

Senhorita Camponesa”, falam sempre com o estilo mais popular.

O tom de oralidade em “A Senhorita Camponesa” dura enquanto se descreve o

cenário. Depois, rapidamente muda para um estilo mais elevado, quando se fala dos

nobres. Isso é frequente: o estilo, em geral, muda de acordo com o personagem que

domina a cena. Na passagem, muitas vezes, uma voz contamina a seguinte. Por exemplo:

durante o passeio matinal de Liza pelo bosque, perdura um tom lírico que reproduz o

estado de espírito da garota. De repente, há uma quebra abrupta pela chegada de Aleksei

e a narrativa torna-se cômica. Há uma pequena contaminação da realidade pela divagação

de Liza: “E assim andava, pensativa, pelo caminho sombreado por grandes árvores,

quando de repente um maravilhoso cão perdigueiro pôs-se a latir para ela.” O

“maravilhoso” sobra como resquício da voz de Liza.

-“Do Editor” e História do Povoado de Goriúkhino Nestes dois contos, a linguagem tende a ser rebuscada e bacharelesca, mas sempre

de forma irônica. Concentrei-me em encontrar fórmulas burocráticas e contrastá-las com

expressões cotidianas para criar o efeito cômico.

Linguagem popular

A diferença de classe é sempre marcada na linguagem dos personagens. Na

linguagem da nobreza é possível encontrar equivalentes em português, mas no caso dos

camponeses há alguns riscos, como regionalização excessiva, excesso de notas de rodapé,

tom artificial. Procurei utilizar a forma culta na fala dos nobres, como “ты” por “você” e

“вы” por a senhora/o senhor. Nos casos em que não foi possível, há uma explicação nas

notas.

Page 93: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

93

Para os camponeses, usei a forma coloquial, muitas vezes sem uniformização dos

pronomes. Em “A Senhorita Camponesa”, por exemplo, Nástia emprega o –c (-s) para

falar com Liza. Era a forma utilizada pelos camponeses para demonstrar respeito e

subserviência. Nestes casos, compensei com “senhora”. Em relação ao imperativo e aos

pronomes possessivos, ocasionalmente foi necessário alternar entre 2ª e 3ª pessoa.

Os momentos em que Liza se traveste de Akulina são um caso à parte: às vezes

ela exagera ou foge do papel. Por exemplo, ao tratar um senhor por “tu”, algo impensável

para uma camponesa de verdade. Procurei reproduzir isso em português usando “você” e

outras expressões populares.

Os nobres, em contraste, falam francês. Era de bom tom falar francês entre os

nobres, ou ao menos salpicar a conversa com expressões francesas. As traduções estão

nas notas de rodapé.

Барышня (bárichnia)

A palavra барышня (bárichnia) era popularmente usada para referir-se à jovem

solteira, filha dos senhores, e é frequente no conto “A Senhorita Camponesa”— inclusive

no título.

A forma usada para mulheres casadas era барыня (barinia) e, no masculino,

барин (bárin). Trata-se de um termo muito popular e local, difícil de traduzir. Klara

Gourianova optou por sinhazinha – uma solução precisa, mas excessivamente regional.

Preferi não uniformizar a tradução em português: utilizei donzela, senhora, senhorita,

senhorinha ou fidalga, dependendo da ocasião. Fidalga talvez fosse a tradução mais

apropriada, mas soa muito elevado; neste conto em particular, acaba cortando o efeito

direto das falas populares. Simplesmente transliterar como bárichnia e colocar uma nota

deixaria o conto confuso.

Батюшка (bátiuchka)

Trata-se de uma forma para “pai” que indica, ao mesmo tempo, carinho e respeito.

Optei por papai, meu pai ou pai, dependendo do contexto. A solução tradicional,

“paizinho”, perdia o contexto respeitoso em alguns casos.

Page 94: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

94

Барский двор (bárski dvor)

Os servos que trabalhavam na casa dos senhores, e não na lavoura. Eram mais

próximos dos senhores e, geralmente, um pouco mais instruídos. Traduzi como “criados

de casa”.

Ce (se)

Forma antiga, que reforça o tom empolado de Biélkin e de seu amigo. Quando foi

possível, traduzi como “tal”.

Оный (oni)

É um pronome antigo, que não se usa mais atualmente. Aparece principalmente

em História do Povoado de Goriukhino. Alguns dicionários dão como equivalente “o

referido” ou “o mencionado”. Usei essa forma em algumas vezes. Quando era impossível

encontrar um equivalente, procurei compensar com alguma outra estrutura que soasse

antiga na frase.

Мирская сходка (mirskaia skhodka)

Reunião conduzida pelos camponeses para eleger o estárosta e decidir a respeito

de questões do povoado. Segundo Boris Schanaiderman, a melhor tradução é “assembleia

de camponeses”.

Сенатский ведомости (Senátski vedomosti)

Boletim do Senado, veículo oficial ainda anterior ao formato do jornal como

conhecemos hoje. O Senado na Rússia, na primeira metade do século XIX, era uma

instituição burocrática que supervisionava o funcionamento dos outros órgãos. O Boletim

do Senado não estava entre as publicações mais importantes da época.

Page 95: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

95

Самобытность (samobitnost)

Púchkin forma a palavra a partir de individualité, do francês. Algumas palavras,

em particular a mais abstratas, não tinham equivalente em russo. Púchkin criou o termo e

deixou uma indicação no texto.

Eslavo antigo

Em alguns trechos de História do Povoado de Goriúkhino, imita-se um estilo

ainda mais antigo. O autor usa palavras do eslavo eclesiástico, que dão não somente um

tom arcaico, mas também canônico para o texto. Como se trata de uma paródia, a

reprodução deste efeito em português trata-se mais de inventar uma língua macarrônica

que soe arcaica do que de tentar se aproximar de uma reconstrução “verdadeira” de algo

que existiu.

Aspectos microestilísticos

A concisão da língua russa é sempre uma questão para a tradução. Como já se

disse, a tendência de toda tradução é explicar. No caso do russo, a estrutura de

aglutinação, as declinações e os verbos de movimento às vezes nos obrigam a traduzir

uma palavra no original por várias.

Quanto à pontuação, em alguns momentos foi preciso dividir frases para manter o

ritmo. O estilo de Púchkin é próximo da fala coloquial e muitas vezes seco. É importante

tentar manter a naturalidade na tradução.

Em várias ocasiões é utilizado o mesmo verbo com variação do aspecto ou do

prefixo para dar uma ideia de progressão. Por exemplo, na frase: “Барышни

поглядывали на него, а иные и заглядывались.”, de “A Senhorita Camponesa”. A

progressão foi reproduzida como: “As fidalgas ficavam olhando para ele, e algumas até

olhavam demais”.

Page 96: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

96

Outro exemplo é a frase “начал думать, припоминать, соображать — и

уверился, что должно было взять ему вправо”, de “A Nevasca”. Neste caso, os

infinitivos criam um efeito de suspensão, abruptamente concluído pelo verbo no passado.

O resultado em português ficou: “pôs-se a pensar, esforçou-se para lembrar, refletiu e

convenceu-se de que precisava virar à direita”.

Glossário

Há, em qualquer língua, as palavras intraduzíveis. Vocabulário local, objetos e

meios de transporte particulares do local e do momento, a hierarquia da sociedade da

época. As já dicionarizadas são: isbá, troika, telega, mujique, pope, estárosta (consta

como estároste), segundo a versão eletrônica do Houaiss. Trago aqui um glossário com as

palavras não dicionarizadas:

Bába (баба): mulher da Rússia tzarista, feminino de mujique. Nos casos em que traduzir

por “camponesa” perderia um significado local, mantive a palavra transliterada.

Bánia (баня): banhos.

Brítchka (бричка): pequena carruagem aberta.

Cafetã (кафтан): camisa usada pelos camponeses.

Dessiatina (десятина): medida equivalente a aproximadamente 1,0925 ha.

Drojki (дрожки): carruagem aberta leve, puxada por um cavalo.

Estárosta (староста): administrador da vila. Fazia a intermediação entre camponeses e

senhores.

Lapot (лапоть): sandálias de palha usadas pelos camponeses.

Page 97: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

97

Kartuz (картуз): espécie de quepe.

Kibtika (кибитка): tipo de trenó coberto.

Grivna (гривна): moeda de dez copeques.

Obrok (оброк): imposto pago aos senhores pelos servos.

Sarafã (сарафан): vestido usado pelas camponesas.

Tulup (тулуп): sobretudo típico feito de peles.

Vietche (вече): algumas cidades medievais da Rússia faziam uma assembleia de homens

livres, em que se discutiam assuntos do interesse comum.

Versta (верста): medida equivalente a 1.6 km

Volinka (волынка): instrumento — uma espécie de gaita.

Zemski (земский): funcionário do zemstvo.

Zassiedátel (заседатель): delegado da nobreza.

Page 98: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

98

ANEXO A

ОТ ИЗДАТЕЛЯ (Do Editor)

Взявшись хлопотать об издании Повестей И. П. Белкина, предлагаемых

ныне публике, мы желали к оным присовокупить хотя краткое жизнеописание

покойного автора и тем отчасти удовлетворить справедливому любопытству

любителей отечественной словесности. Для сего обратились было мы к Марье

Алексеевне Трафилиной, ближайшей родственнице и наследнице Ивана Петровича

Белкина; но, к сожалению, ей невозможно было нам доставить никакого о нем

известия, ибо покойник вовсе не был ей знаком. Она советовала нам отнестись по

сему предмету к одному почтенному мужу, бывшему другом Ивану Петровичу.

Мы последовали сему совету, и на письмо наше получили нижеследующий

желаемый ответ. Помещаем его безо всяких перемен и примечаний, как

драгоценный памятник благородного образа мнений и трогательного дружества, а

вместе с тем, как и весьма достаточное биографическое известие.

Милостивый Государь мой ****!

Почтеннейшее письмо ваше от 15-го сего месяца получить имел я честь 23 сего же

месяца, в коем вы изъявляете мне свое желание иметь подробное известие о

времени рождения и смерти, о службе, о домашних обстоятельствах, также и о

занятиях и нраве покойного Ивана Петровича Белкина, бывшего моего искреннего

друга и соседа по поместьям. С великим моим удовольствием исполняю сие ваше

желание и препровождаю к вам, милостивый государь мой, все, что из его

разговоров, а также из собственных моих наблюдений запомнить могу.

Page 99: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

99

Иван Петрович Белкин родился от честных и благородных родителей в 1798

году в селе Горюхине. Покойный отец его, секунд-майор Петр Иванович Белкин,

был женат на девице Пелагее Гавриловне из дому Трафилиных. Он был человек не

богатый, но умеренный, и по части хозяйства весьма смышленый. Сын их получил

первоначальное образование от деревенского дьячка. Сему-то почтенному мужу

был он, кажется, обязан охотою к чтению и занятиям по части русской

словесности. В 1815 году вступил он в службу в пехотный егерский полк (числом

не упомню), в коем и находился до самого 1823 года. Смерть его родителей, почти

в одно время приключившаяся, понудила его подать в отставку и приехать в село

Горюхино, свою отчину.

Вступив в управление имения, Иван Петрович, по причине своей

неопытности и мягкосердия, в скором времени запустил хозяйство и ослабил

строгой порядок, заведенный покойным его родителем. Сменив исправного и

расторопного старосту, коим крестьяне его (по их привычке) были недовольны,

поручил он управление села старой своей ключнице, приобретшей его

доверенность искусством рассказывать истории. Сия глупая старуха не умела

никогда различить двадцатипятирублевой ассигнации от пятидесятирублевой;

крестьяне, коим она всем была кума, ее вовсе не боялись; ими выбранный староста

до того им потворствовал, плутуя заодно, что Иван Петрович принужден был

отменить барщину и учредить весьма умеренный оброк; но и тут крестьяне,

пользуясь его слабостию, на первый год выпросили себе нарочитую льготу, а в

следующие более двух третей оброка платили орехами, брусникою и тому

подобным; и тут были недоимки.

Быв приятель покойному родителю Ивана Петровича, я почитал долгом

предлагать и сыну свои советы и неоднократно вызывался восстановить прежний,

им упущенный, порядок. Для сего, приехав однажды к нему, потребовал я

хозяйственные книги, призвал плута старосту, и в присутствии Ивана Петровича

занялся рассмотрением оных. Молодой хозяин сначала стал следовать за мною со

всевозможным вниманием и прилежностию; но как по счетам оказалось, что в

последние два года число крестьян умножилось, число же дворовых птиц и

домашнего скота нарочито уменьшилось, то Иван Петрович довольствовался сим

Page 100: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

100

первым сведением и далее меня не слушал, и в ту самую минуту, как я своими

разысканиями и строгими допросами плута старосту в крайнее замешательство

привел и к совершенному безмолвию принудил, с великою моею досадою услышал

я Ивана Петровича крепко храпящего на своем стуле. С тех пор перестал я

вмешиваться в его хозяйственные распоряжения и передал его дела (как и он сам)

распоряжению всевышнего.

Сие дружеских наших сношений нисколько, впрочем, не расстроило; ибо я,

соболезнуя его слабости и пагубному нерадению, общему молодым нашим

дворянам, искренно любил Ивана Петровича; да нельзя было и не любить молодого

человека столь кроткого и честного. С своей стороны, Иван Петрович оказывал

уважение к моим летам и сердечно был ко мне привержен. До самой кончины

своей он почти каждый день со мною виделся, дорожа простою моею беседою,

хотя ни привычками, ни образом мыслей, ни нравом мы большею частию друг с

другом не сходствовали.

Иван Петрович вел жизнь самую умеренную, избегал всякого рода

излишеств; никогда не случалось мне видеть его навеселе (что в краю нашем за

неслыханное чудо почесться может); к женскому же полу имел он великую

склонность, но стыдливость была в нем истинно девическая *.

Кроме повестей, о которых в письме вашем упоминать изволите, Иван

Петрович оставил множество рукописей, которые частию у меня находятся, частию

употреблены его ключницею на разные домашние потребы. Таким образом

прошлою зимою все окна ее флигеля заклеены были первою частию романа,

которого он не кончил. Вышеупомянутые повести были, кажется, первым его

опытом. Они, как сказывал Иван Петрович, большею частию справедливы и

слышаны им от разных особ *. Однако ж имена в них почти все вымышлены им

самим, а названия сел и деревень заимствованы из нашего околотка, отчего и моя

деревня где-то упомянута. Сие произошло не от злого какого-либо намерения, но

единственно от недостатка воображения.

Иван Петрович осенью 1828 года занемог простудною лихорадкою,

обратившеюся в горячку, и умер, несмотря на неусыпные старания уездного

нашего лекаря, человека весьма искусного, особенно в лечении закоренелых

Page 101: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

101

болезней, как-то мозолей и тому подобного. Он скончался на моих руках на 30-м

году от рождения и похоронен в церкви села Горюхина близ покойных его

родителей.

Иван Петрович был росту среднего, глаза имел серые, волоса русые, нос

прямой; лицом был бел и худощав.

Вот, милостивый государь мой, все, что мог я припомнить касательно

образа жизни, занятий, нрава и наружности покойного соседа и приятеля моего. Но

в случае, если заблагорассудите сделать из сего моего письма какое-либо

употребление, всепокорнейше прошу никак имени моего не упоминать; ибо, хотя я

весьма уважаю и люблю сочинителей, но в сие звание вступить полагаю излишним

и в мои лета неприличным. С истинным моим почтением и проч.

1830 году Ноября 16. Село Ненарадово

Почитая долгом уважить волю почтенного друга автора нашего, приносим

ему глубочайшую благодарность за доставленные нам известия и надеемся, что

публика оценит их искренность и добродушие.

А. П.

* Следует анекдот, коего мы не помещаем, полагая его излишним; впрочем,

уверяем читателя, что он ничего предосудительного памяти Ивана Петровича

Белкина в себе не заключает.

* В самом деле, в рукописи г. Белкина над каждой повестию рукой автора

надписано: слышано мною от такой-то особы (чин или звание и заглавные буквы

имени и фамилии). Выписываем для любопытных изыскателей. «Смотритель»

рассказан был ему титулярным советником А. Г. Н., «Выстрел» подполковником И.

Л. П., «Гробовщик» приказчиком Б. В., «Метель» и «Барышня» девицею К. И. Т.

Page 102: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

102

МЕТЕЛЬ (A Nevasca)

Кони мчатся по буграм,

Топчут снег глубокой...

Вот в сторонке божий храм

Виден одинокой.

. . . . . . .

Вдруг метелица кругом;

Снег валит клоками;

Черный вран, свистя крылом,

Вьется над санями;

Вещий стон гласит печаль!

Кони торопливы

Чутко смотрят в темну даль,

Воздымая гривы...

Жуковский

В конце 1811 года, в эпоху нам достопамятную, жил в своем поместье

Ненарадове добрый Гаврила Гаврилович Р**. Он славился во всей округе

гостеприимством и радушием; соседи поминутно ездили к нему поесть, попить,

поиграть по пяти копеек в бостон с его женою, а некоторые для того, чтоб

поглядеть на дочку их, Марью Гавриловну, стройную, бледную и

семнадцатилетнюю девицу. Она считалась богатой невестою, и многие прочили ее

за себя или за сыновей.

Марья Гавриловна была воспитана на французских романах, и, следственно,

была влюблена. Предмет, избранный ею, был бедный армейский прапорщик,

находившийся в отпуску в своей деревне. Само по себе разумеется, что молодой

человек пылал равною страстию и что родители его любезной, заметя их взаимную

Page 103: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

103

склонность, запретили дочери о нем и думать, а его принимали хуже, нежели

отставного заседателя.

Наши любовники были в переписке, и всякий день видались наедине в

сосновой роще или у старой часовни. Там они клялися друг другу в вечной любви,

сетовали на судьбу и делали различные предположения. Переписываясь и

разговаривая таким образом, они (что весьма естественно) дошли до следующего

рассуждения: если мы друг без друга дышать не можем, а воля жестоких родителей

препятствует нашему благополучию, то нельзя ли нам будет обойтись без нее?

Разумеется, что эта счастливая мысль пришла сперва в голову молодому человеку

и что она весьма понравилась романическому воображению Марьи Гавриловны.

Наступила зима и прекратила их свидания; но переписка сделалась тем

живее. Владимир Николаевич в каждом письме умолял ее предаться ему, венчаться

тайно, скрываться несколько времени, броситься потом к ногам родителей,

которые, конечно, будут тронуты наконец героическим постоянством и несчастием

любовников и скажут им непременно: «Дети! придите в наши объятия».

Марья Гавриловна долго колебалась; множество планов побега было

отвергнуто. Наконец она согласилась: в назначенный день она должна была не

ужинать и удалиться в свою комнату под предлогом головной боли. Девушка ее

была в заговоре; обе они должны были выйти в сад через заднее крыльцо, за садом

найти готовые сани, садиться в них и ехать за пять верст от Ненарадова в село

Жадрино, прямо в церковь, где уж Владимир должен был их ожидать.

Накануне решительного дня Марья Гавриловна не спала всю ночь; она

укладывалась, увязывала белье и платье, написала длинное письмо к одной

чувствительной барышне, ее подруге, другое к своим родителям. Она прощалась с

ними в самых трогательных выражениях, извиняла свой проступок неодолимою

силою страсти и оканчивала тем, что блаженнейшею минутою жизни почтет она

ту, когда позволено будет ей броситься к ногам дражайших ее родителей.

Запечатав оба письма тульской печаткою, на которой изображены были два

пылающие сердца с приличной надписью, она бросилась на постель перед самым

рассветом и задремала; но и тут ужасные мечтания поминутно ее пробуждали. То

казалось ей, что в самую минуту, как она садилась в сани, чтоб ехать венчаться,

Page 104: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

104

отец ее останавливал ее, с мучительной быстротою тащил ее по снегу и бросал в

темное, бездонное подземелие... и она летела стремглав с неизъяснимым

замиранием сердца; то видела она Владимира, лежащего на траве, бледного,

окровавленного. Он, умирая, молил ее пронзительным голосом поспешить с ним

обвенчаться... другие безобразные, бессмысленные видения неслись перед нею

одно за другим. Наконец она встала, бледнее обыкновенного и с непритворной

головною болью. Отец и мать заметили ее беспокойство; их нежная заботливость и

беспрестанные вопросы: что с тобою, Маша? не больна ли ты, Маша? — раздирали

ее сердце. Она старалась их успокоить, казаться веселою, и не могла. Наступил

вечер. Мысль, что уже в последний раз провожает она день посреди своего

семейства, стесняла ее сердце. Она была чуть жива; она втайне прощалась со всеми

особами, со всеми предметами, ее окружавшими.

Подали ужинать; сердце ее сильно забилось. Дрожащим голосом объявила

она, что ей ужинать не хочется, и стала прощаться с отцом и матерью. Они ее

поцеловали и, по обыкновению, благословили: она чуть не заплакала. Пришед в

свою комнату, она кинулась в кресла и залилась слезами. Девушка уговаривала ее

успокоиться и ободриться. Все было готово. Через полчаса Маша должна была

навсегда оставить родительский дом, свою комнату, тихую девическую жизнь... На

дворе была метель; ветер выл, ставни тряслись и стучали; все казалось ей угрозой и

печальным предзнаменованием. Скоро в доме все утихло и заснуло. Маша

окуталась шалью, надела теплый капот, взяла в руки шкатулку свою и вышла на

заднее крыльцо. Служанка несла за нею два узла. Они сошли в сад. Метель не

утихала; ветер дул навстречу, как будто силясь остановить молодую преступницу.

Они насилу дошли до конца сада. На дороге сани дожидались их. Лошади,

прозябнув, не стояли на месте; кучер Владимира расхаживал перед оглоблями,

удерживая ретивых. Он помог барышне и ее девушке усесться и уложить узлы и

шкатулку, взял вожжи, и лошади полетели. Поручив барышню попечению судьбы

и искусству Терешки кучера, обратимся к молодому нашему любовнику.

Целый день Владимир был в разъезде. Утром был он у жадринского

священника; насилу с ним уговорился; потом поехал искать свидетелей между

соседними помещиками. Первый, к кому явился он, отставной сорокалетний

Page 105: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

105

корнет Дравин, согласился с охотою. Это приключение, уверял он, напоминало ему

прежнее время и гусарские проказы. Он уговорил Владимира остаться у него

отобедать и уверил его, что за другими двумя свидетелями дело не станет. В самом

деле, тотчас после обеда явились землемер Шмит в усах и шпорах, и сын капитан-

исправника, мальчик лет шестнадцати, недавно поступивший в уланы. Они не

только приняли предложение Владимира, но даже клялись ему в готовности

жертвовать для него жизнию. Владимир обнял их с восторгом и поехал домой

приготовляться.

Уже давно смеркалось. Он отправил своего надежного Терешку в

Ненарадово с своею тройкою и с подробным, обстоятельным наказом, а для себя

велел заложить маленькие сани в одну лошадь, и один без кучера отправился в

Жадрино, куда часа через два должна была приехать и Марья Гавриловна. Дорога

была ему знакома, а езды всего двадцать минут.

Но едва Владимир выехал за околицу в поле, как поднялся ветер и сделалась

такая метель, что он ничего не взвидел. В одну минуту дорогу занесло; окрестность

исчезла во мгле мутной и желтоватой, сквозь которую летели белые хлопья снегу;

небо слилося с землею. Владимир очутился в поле и напрасно хотел снова попасть

на дорогу; лошадь ступала наудачу и поминутно то взъезжала на сугроб, то

проваливалась в яму; сани поминутно опрокидывались. Владимир старался только

не потерять настоящего направления. Но ему казалось, что уже прошло более

получаса, а он не доезжал еще до Жадринской рощи. Прошло еще около десяти

минут; рощи все было не видать. Владимир ехал полем, пересеченным глубокими

оврагами. Метель не утихала, небо не прояснялось. Лошадь начинала уставать, а с

него пот катился градом, несмотря на то, что он поминутно был по пояс в снегу.

Наконец он увидел, что едет не в ту сторону. Владимир остановился: начал

думать, припоминать, соображать — и уверился, что должно было взять ему

вправо. Он поехал вправо. Лошадь его чуть ступала. Уже более часа был он в

дороге. Жадрино должно было быть недалеко. Но он ехал, ехал, а полю не было

конца. Всё сугробы да овраги; поминутно сани опрокидывались, поминутно он их

подымал. Время шло; Владимир начинал сильно беспокоиться.

Page 106: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

106

Наконец в стороне что-то стало чернеть. Владимир поворотил туда.

Приближаясь, увидел он рощу. Слава богу, подумал он, теперь близко. Он поехал

около рощи, надеясь тотчас попасть на знакомую дорогу или объехать рощу

кругом: Жадрино находилось тотчас за нею. Скоро нашел он дорогу и въехал во

мрак дерев, обнаженных зимою. Ветер не мог тут свирепствовать; дорога была

гладкая; лошадь ободрилась, и Владимир успокоился.

Но он ехал, ехал, а Жадрина было не видать; роще не было конца. Владимир

с ужасом увидел, что он заехал в незнакомый лес. Отчаяние овладело им. Он

ударил по лошади; бедное животное пошло было рысью, но скоро стало приставать

и через четверть часа пошло шагом, несмотря на все усилия несчастного

Владимира.

Мало-помалу деревья начали редеть, и Владимир выехал из лесу; Жадрина

было не видать. Должно было быть около полуночи. Слезы брызнули из глаз его;

он поехал наудачу. Погода утихла, тучи расходились, перед ним лежала равнина,

устланная белым волнистым ковром. Ночь была довольно ясна. Он увидел

невдалеке деревушку, состоящую из четырех или пяти дворов. Владимир поехал к

ней. У первой избушки он выпрыгнул из саней, подбежал к окну и стал стучаться.

Через несколько минут деревянный ставень поднялся, и старик высунул свою

седую бороду. «Что те надо?» — «Далеко ли Жадрино?» — «Жадрино-то далеко

ли?» — «Да, да! Далеко ли?» — «Недалече; верст десяток будет». При сем ответе

Владимир схватил себя за волосы и остался недвижим, как человек, приговоренный

к смерти.

«А отколе ты?»— продолжал старик. Владимир не имел духа отвечать на

вопросы. «Можешь ли ты, старик, — сказал он, — достать мне лошадей до

Жадрина?» — «Каки у нас лошади», — отвечал мужик. «Да не могу ли взять хоть

проводника? Я заплачу, сколько ему будет угодно». — «Постой, — сказал старик,

опуская ставень, — я те сына вышлю; он те проводит». Владимир стал дожидаться.

Не прошло минуты, он опять начал стучаться. Ставень поднялся, борода

показалась. «Что те надо?» — «Что ж твой сын?» — «Сейчас выдет, обувается. Али

ты прозяб? взойди погреться». — «Благодарю, высылай скорее сына».

Page 107: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

107

Ворота заскрыпели; парень вышел с дубиною и пошел вперед, то указывая,

то отыскивая дорогу, занесенную снеговыми сугробами. «Который час?» —

спросил его Владимир. «Да уж скоро рассвенет», — отвечал молодой мужик.

Владимир не говорил уже ни слова.

Пели петухи и было уже светло, как достигли они Жадрина. Церковь была

заперта. Владимир заплатил проводнику и поехал на двор к священнику. На дворе

тройки его не было. Какое известие ожидало его!

Но возвратимся к добрым ненарадовским помещикам и посмотрим, что-то у

них делается.

А ничего.

Старики проснулись и вышли в гостиную. Гаврила Гаврилович в колпаке и

байковой куртке, Прасковья Петровна в шлафорке на вате. Подали самовар, и

Гаврила Гаврилович послал девчонку узнать от Марьи Гавриловны, каково ее

здоровье и как она почивала. Девчонка воротилась, объявляя, что барышня

почивала-де дурно, но что ей-де теперь легче и что она-де сейчас придет в

гостиную. В самом деле, дверь отворилась, и Марья Гавриловна подошла

здороваться с папенькой и с маменькой.

«Что твоя голова, Маша?» — спросил Гаврила Гаврилович. «Лучше,

папенька», — отвечала Маша. «Ты, верно, Маша, вчерась угорела», — сказала

Прасковья Петровна. «Может быть, маменька», — отвечала Маша.

День прошел благополучно, но в ночь Маша занемогла. Послали в город за

лекарем. Он приехал к вечеру и нашел больную в бреду. Открылась сильная

горячка, и бедная больная две недели находилась у края гроба.

Никто в доме не знал о предположенном побеге. Письма, накануне ею

написанные, были сожжены; ее горничная никому ни о чем не говорила, опасаясь

гнева господ. Священник, отставной корнет, усатый землемер и маленький улан

были скромны, и недаром. Терешка кучер никогда ничего лишнего не высказывал,

даже и во хмелю. Таким образом тайна была сохранена более, чем полудюжиною

заговорщиков. Но Марья Гавриловна сама в беспрестанном бреду высказывала

свою тайну. Однако ж ее слова были столь несообразны ни с чем, что мать, не

отходившая от ее постели, могла понять из них только то, что дочь ее была

Page 108: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

108

смертельно влюблена во Владимира Николаевича и что, вероятно, любовь была

причиною ее болезни. Она советовалась со своим мужем, с некоторыми соседями,

и наконец единогласно все решили, что видно такова была судьба Марьи

Гавриловны, что суженого конем не объедешь, что бедность не порок, что жить не

с богатством, а с человеком, и тому подобное. Нравственные поговорки бывают

удивительно полезны в тех случаях, когда мы от себя мало что можем выдумать

себе в оправдание.

Между тем барышня стала выздоравливать. Владимира давно не видно было

в доме Гаврилы Гавриловича. Он был напуган обыкновенным приемом. Положили

послать за ним и объявить ему неожиданное счастие: согласие на брак. Но каково

было изумление ненарадовских помещиков, когда в ответ на их приглашение

получили они от него полусумасшедшее письмо! Он объявлял им, что нога его не

будет никогда в их доме, и просил забыть о несчастном, для которого смерть

остается единою надеждою. Через несколько дней узнали они, что Владимир уехал

в армию. Это было в 1812 году.

Долго не смели объявить об этом выздоравливающей Маше. Она никогда не

упоминала о Владимире. Несколько месяцев уже спустя, нашед имя его в числе

отличившихся и тяжело раненных под Бородиным, она упала в обморок, и боялись,

чтоб горячка ее не возвратилась. Однако, слава богу, обморок не имел последствия.

Другая печаль ее посетила: Гаврила Гаврилович скончался, оставя ее

наследницей всего имения. Но наследство не утешало ее; она разделяла искренно

горесть бедной Прасковьи Петровны, клялась никогда с нею не расставаться; обе

они оставили Ненарадово, место печальных воспоминаний, и поехали жить в

***ское поместье.

Женихи кружились и тут около милой и богатой невесты; но она никому не

подавала и малейшей надежды. Мать иногда уговаривала ее выбрать себе друга;

Марья Гавриловна качала головой и задумывалась. Владимир уже не существовал:

он умер в Москве, накануне вступления французов. Память его казалась

священною для Маши; по крайней мере она берегла все, что могло его напомнить:

книги, им некогда прочитанные, его рисунки, ноты и стихи, им переписанные для

нее. Соседи, узнав обо всем, дивились ее постоянству и с любопытством ожидали

Page 109: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

109

героя, долженствовавшего наконец восторжествовать над печальной верностию

этой девственной Артемизы.

Между тем война со славою была кончена. Полки наши возвращались из-за

границы. Народ бежал им навстречу. Музыка играла завоеванные песни: Vive

Henri-Quatre, тирольские вальсы и арии из Жоконда. Офицеры, ушедшие в поход

почти отроками, возвращались, возмужав на бранном воздухе, обвешанные

крестами. Солдаты весело разговаривали между собою, вмешивая поминутно в

речь немецкие и французские слова. Время незабвенное! Время славы и восторга!

Как сильно билось русское сердце при слове отечество! Как сладки были слезы

свидания! С каким единодушием мы соединяли чувства народной гордости и

любви к государю! А для него какая была минута!

Женщины, русские женщины были тогда бесподобны. Обыкновенная

холодность их исчезла. Восторг их был истинно упоителен, когда, встречая

победителей, кричали они: ура!

И в воздух чепчики бросали.

Кто из тогдашних офицеров не сознается, что русской женщине обязан он

был лучшей, драгоценнейшей наградою?..

В это блистательное время Марья Гавриловна жила с матерью в***

губернии и не видала, как обе столицы праздновали возвращение войск. Но в

уездах и деревнях общий восторг, может быть, был еще сильнее. Появление в сих

местах офицера было для него настоящим торжеством, и любовнику во фраке

плохо было в его соседстве.

Мы уже сказывали, что, несмотря на ее холодность, Марья Гавриловна все

по-прежнему окружена была искателями. Но все должны были отступить, когда

явился в ее замке раненый гусарский полковник Бурмин, с Георгием в петлице и с

интересной бледностию, как говорили тамошние барышни. Ему было около

двадцати шести лет. Он приехал в отпуск в свои поместья, находившиеся по

соседству деревни Марьи Гавриловны. Марья Гавриловна очень его отличала. При

нем обыкновенная задумчивость ее оживлялась. Нельзя было сказать, чтоб она с

ним кокетничала; но поэт, заметя ее поведение, сказал бы:

Se amor non è, che dunque?

Page 110: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

110

Бурмин был в самом деле очень милый молодой человек. Он имел именно

тот ум, который нравится женщинам: ум приличия и наблюдения, безо всяких

притязаний и беспечно насмешливый. Поведение его с Марьей Гавриловной было

просто и свободно; но что б она ни сказала или ни сделала, душа и взоры его так за

нею и следовали. Он казался нрава тихого и скромного, но молва уверяла, что

некогда был он ужасным повесою, и это не вредило ему во мнении Марьи

Гавриловны, которая (как и все молодые дамы вообще) с удовольствием извиняла

шалости, обнаруживающие смелость и пылкость характера.

Но более всего... (более его нежности, более приятного разговора, более

интересной бледности, более перевязанной руки) молчание молодого гусара более

всего подстрекало ее любопытство и воображение. Она не могла не сознаваться в

том, что она очень ему нравилась; вероятно, и он, с своим умом и опытностию, мог

уже заметить, что она отличала его: каким же образом до сих пор не видала она его

у своих ног и еще не слыхала его признания? Что удерживало его? робость,

неразлучная с истинною любовию, гордость или кокетство хитрого волокиты? Это

было для нее загадкою. Подумав хорошенько, она решила, что робость была

единственной тому причиною, и положила ободрить его большею

внимательностию и, смотря по обстоятельствам, даже нежностию. Она

приуготовляла развязку самую неожиданную и с нетерпением ожидала минуты

романического объяснения. Тайна, какого роду ни была бы, всегда тягостна

женскому сердцу. Ее военные действия имели желаемый успех: по крайней мере

Бурмин впал в такую задумчивость и черные глаза его с таким огнем

останавливались на Марье Гавриловне, что решительная минута, казалось, уже

близка. Соседи говорили о свадьбе, как о деле уже конченном, а добрая Прасковья

Петровна радовалась, что дочь ее наконец нашла себе достойного жениха.

Старушка сидела однажды одна в гостиной, раскладывая гранпасьянс, как

Бурмин вошел в комнату и тотчас осведомился о Марье Гавриловне. «Она в саду,

— отвечала старушка, — подите к ней, а я вас буду здесь ожидать». Бурмин пошел,

а старушка перекрестилась и подумала: авось дело сегодня же кончится!

Бурмин нашел Марью Гавриловну у пруда, под ивою, с книгою в руках и в

белом платье, настоящей героинею романа. После первых вопросов Марья

Page 111: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

111

Гавриловна нарочно перестала поддерживать разговор, усиливая таким образом

взаимное замешательство, от которого можно было избавиться разве только

незапным и решительным объяснением. Так и случилось: Бурмин, чувствуя

затруднительность своего положения, объявил, что искал давно случая открыть ей

свое сердце, и потребовал минуты внимания. Марья Гавриловна закрыла книгу и

потупила глаза в знак согласия.

«Я вас люблю, — сказал Бурмин, — я вас люблю страстно...» (Марья

Гавриловна покраснела и наклонила голову еще ниже.) «Я поступил неосторожно,

предаваясь милой привычке, привычке видеть и слышать вас ежедневно...» (Марья

Гавриловна вспомнила первое письмо St.-Preux.) «Теперь уже поздно противиться

судьбе моей; воспоминание об вас, ваш милый, несравненный образ отныне будет

мучением и отрадою жизни моей; но мне еще остается исполнить тяжелую

обязанность, открыть вам ужасную тайну и положить между нами непреодолимую

преграду...» — «Она всегда существовала, — прервала с живостию Марья

Гавриловна, — я никогда не могла быть вашею женою...» — «Знаю, — отвечал он

ей тихо, — знаю, что некогда вы любили, но смерть и три года сетований... Добрая,

милая Марья Гавриловна! не старайтесь лишить меня последнего утешения: мысль,

что вы бы согласились сделать мое счастие, если бы... молчите, ради бога, молчите.

Вы терзаете меня. Да, я знаю, я чувствую, что вы были бы моею, но — я

несчастнейшее создание... я женат!»

Марья Гавриловна взглянула на него с удивлением.

— Я женат, — продолжал Бурмин, — я женат уже четвертый год и не знаю,

кто моя жена, и где она, и должен ли свидеться с нею когда-нибудь!

— Что вы говорите? — воскликнула Марья Гавриловна, — как это странно!

Продолжайте; я расскажу после... но продолжайте, сделайте милость.

— В начале 1812 года, — сказал Бурмин, — я спешил в Вильну, где

находился наш полк. Приехав однажды на станцию поздно вечером, я велел было

поскорее закладывать лошадей, как вдруг поднялась ужасная метель, и смотритель

и ямщики советовали мне переждать. Я их послушался, но непонятное

беспокойство овладело мною; казалось, кто-то меня так и толкал. Между тем

метель не унималась; я не вытерпел, приказал опять закладывать и поехал в самую

Page 112: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

112

бурю. Ямщику вздумалось ехать рекою, что должно было сократить нам путь

тремя верстами. Берега были занесены; ямщик проехал мимо того места, где

выезжали на дорогу, и таким образом очутились мы в незнакомой стороне. Буря не

утихала; я увидел огонек и велел ехать туда. Мы приехали в деревню; в деревянной

церкви был огонь. Церковь была отворена, за оградой стояло несколько саней; по

паперти ходили люди. «Сюда! сюда!» — закричало несколько голосов. Я велел

ямщику подъехать. «Помилуй, где ты замешкался? — сказал мне кто-то, — невеста

в обмороке; поп не знает, что делать; мы готовы были ехать назад. Выходи же

скорее». Я молча выпрыгнул из саней и вошел в церковь, слабо освещенную двумя

или тремя свечами. Девушка сидела на лавочке в темном углу церкви; другая терла

ей виски. «Слава богу, — сказала эта, — насилу вы приехали. Чуть было вы

барышню не уморили». Старый священник подошел ко мне с вопросом:

«Прикажете начинать?» — «Начинайте, начинайте, батюшка», — отвечал я

рассеянно. Девушку подняли. Она показалась мне недурна... Непонятная,

непростительная ветреность... я стал подле нее перед налоем; священник

торопился; трое мужчин и горничная поддерживали невесту и заняты были только

ею. Нас обвенчали. «Поцелуйтесь», — сказали нам. Жена моя обратила ко мне

бледное свое лицо. Я хотел было ее поцеловать... Она вскрикнула: «Ай, не он! не

он!» — и упала без памяти. Свидетели устремили на меня испуганные глаза. Я

повернулся, вышел из церкви безо всякого препятствия, бросился в кибитку и

закричал: «Пошел!»

— Боже мой! — закричала Марья Гавриловна, — и вы не знаете, что

сделалось с бедной вашею женою?

— Не знаю, — отвечал Бурмин, — не знаю, как зовут деревню, где я

венчался; не помню, с которой станции поехал. В то время я так мало полагал

важности в преступной моей проказе, что, отъехав от церкви, заснул и проснулся

на другой день поутру, на третьей уже станции. Слуга, бывший тогда со мною,

умер в походе, так что я не имею и надежды отыскать ту, над которой подшутил я

так жестоко и которая теперь так жестоко отомщена.

— Боже мой, боже мой! — сказала Марья Гавриловна, схватив его руку, —

так это были вы! И вы не узнаете меня?

Page 113: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

113

Бурмин побледнел... и бросился к ее ногам...

Page 114: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

114

БАРЫШНЯ-КРЕСТЬЯНКА (A Senhorita Camponesa)

Во всех ты, Душенька, нарядах хороша.

Богданович.

В одной из отдаленных наших губерний находилось имение Ивана

Петровича Берестова. В молодости своей служил он в гвардии, вышел в отставку в

начале 1797 года, уехал в свою деревню и с тех пор он оттуда не выезжал. Он был

женат на бедной дворянке, которая умерла в родах, в то время как он находился в

отъезжем поле. Хозяйственные упражнения скоро его утешили. Он выстроил дом

по собственному плану, завел у себя суконную фабрику, утроил доходы и стал

почитать себя умнейшим человеком во всем околотке, в чем и не прекословили ему

соседи, приезжавшие к нему гостить с своими семействами и собаками. В будни

ходил он в плисовой куртке, по праздникам надевал сертук из сукна домашней

работы; сам записывал расход и ничего не читал, кроме «Сенатских ведомостей».

Вообще его любили, хотя и почитали гордым. Не ладил с ним один Григорий

Иванович Муромский, ближайший его сосед. Этот был настоящий русский барин.

Промотав в Москве большую часть имения своего и на ту пору овдовев, уехал он в

последнюю свою деревню, где продолжал проказничать, но уже в новом роде.

Развел он английский сад, на который тратил почти все остальные доходы. Конюхи

его были одеты английскими жокеями. У дочери его была мадам англичанка. Поля

свои обрабатывал он по английской методе:

Но на чужой манер хлеб русский не родится,

и несмотря на значительное уменьшение расходов, доходы Григорья Ивановича не

прибавлялись; он и в деревне находил способ входить в новые долги; со всем тем

почитался человеком не глупым, ибо первый из помещиков своей губернии

догадался заложить имение в Опекунский совет: оборот, казавшийся в то время

чрезвычайно сложным и смелым. Из людей, осуждавших его, Берестов отзывался

Page 115: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

115

строже всех. Ненависть к нововведениям была отличительная черта его характера.

Он не мог равнодушно говорить об англомании своего соседа и поминутно

находил случай его критиковать. Показывал ли гостю свои владения, в ответ на

похвалы его хозяйственным распоряжениям: «Да-с! — говорил он с лукавой

усмешкою, — у меня не то, что у соседа Григорья Ивановича. Куда нам по-

английски разоряться! Были бы мы по-русски хоть сыты». Сии и подобные шутки,

по усердию соседей, доводимы были до сведения Григорья Ивановича с

дополнением и объяснениями. Англоман выносил критику столь же нетерпеливо,

как и наши журналисты. Он бесился и прозвал своего зоила медведем и

провинциалом.

Таковы были сношения между сими двумя владельцами, как сын Берестова

приехал к нему в деревню. Он был воспитан в *** университете и намеревался

вступить в военную службу, но отец на то не соглашался. К статской службе

молодой человек чувствовал себя совершенно неспособным. Они друг другу не

уступали, и молодой Алексей стал жить покамест барином, отпустив усы на всякий

случай.

Алексей был в самом деле молодец. Право было бы жаль, если бы его

стройного стана никогда не стягивал военный мундир, и если бы он, вместо того

чтобы рисоваться на коне, провел свою молодость, согнувшись над канцелярскими

бумагами. Смотря, как он на охоте скакал всегда первый, не разбирая дороги,

соседи говорили согласно, что из него никогда не выйдет путного

столоначальника. Барышни поглядывали на него, а иные и заглядывались; но

Алексей мало ими занимался, а они причиной его нечувствительности полагали

любовную связь. В самом деле, ходил по рукам список с адреса одного из его

писем: Акулине Петровне Курочкиной, в Москве, напротив Алексеевского

монастыря, в доме медника Савельева, а вас покорнейше прошу доставить письмо

сие A. H. Р.

Те из моих читателей, которые не живали в деревнях, не могут себе

вообразить, что за прелесть эти уездные барышни! Воспитанные на чистом

воздухе, в тени своих садовых яблонь, они знание света и жизни почерпают из

книжек. Уединение, свобода и чтение рано в них развивают чувства и страсти,

Page 116: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

116

неизвестные рассеянным нашим красавицам. Для барышни звон колокольчика есть

уже приключение, поездка в ближний город полагается эпохою в жизни, и

посещение гостя оставляет долгое, иногда и вечное воспоминание. Конечно,

всякому вольно смеяться над некоторыми их странностями, но шутки

поверхностного наблюдателя не могут уничтожить их существенных достоинств,

из коих главное: особенность характера, самобытность (individualité), без чего, по

мнению Жан-Поля, не существует и человеческого величия. В столицах женщины

получают, может быть, лучшее образование; но навык света скоро сглаживает

характер и делает души столь же однообразными, как и головные уборы. Сие да

будет сказано не в суд, и не во осуждение, однако ж nota nostra manet, как пишет

один старинный комментатор.

Легко вообразить, какое впечатление Алексей должен был произвести в

кругу наших барышень. Он первый перед ними явился мрачным и разочарованным,

первый говорил им об утраченных радостях, и об увядшей своей юности; сверх

того носил он черное кольцо с изображением мертвой головы. Все это было

чрезвычайно ново в той губернии. Барышни сходили по нем с ума.

Но всех более занята была им дочь англомана моего, Лиза (или Бетси, как

звал ее обыкновенно Григорий Иванович). Отцы друг ко другу не ездили, она

Алексея еще не видала, между тем как все молодые соседки только об нем и

говорили. Ей было семнадцать лет. Черные глаза оживляли ее смуглое и очень

приятное лицо. Она была единственное и следственно балованное дитя. Ее резвость

и поминутные проказы восхищали отца и приводили в отчаянье ее мадам мисс

Жаксон, сорокалетнюю чопорную девицу, которая белилась и сурьмила себе брови,

два раза в год перечитывала «Памелу», получала за то две тысячи рублей и

умирала со скуки в этой варварской России.

За Лизою ходила Настя; она была постарше, но столь же ветрена, как и ее

барышня. Лиза очень любила ее, открывала ей все свои тайны, вместе с нею

обдумывала свои затеи; словом, Настя была в селе Прилучине лицом гораздо более

значительным, нежели любая наперсница во французской трагедии.

— Позвольте мне сегодня пойти в гости, — сказала однажды Настя, одевая

барышню.

Page 117: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

117

— Изволь; а куда?

— В Тугилово, к Берестовым. Поварова жена у них именинница и вчера

приходила звать нас отобедать.

— Вот! — сказала Лиза, — господа в ссоре, а слуги друг друга угощают.

— А нам какое дело до господ! — возразила Настя, — к тому же я ваша, а

не папенькина. Вы ведь не бранились еще с молодым Берестовым; а старики

пускай себе дерутся, коли им это весело.

— Постарайся, Настя, увидеть Алексея Берестова, да расскажи мне

хорошенько, каков он собою и что он за человек.

Настя обещалась, а Лиза с нетерпением ожидала целый день ее

возвращения. Вечером Настя явилась.

— Ну, Лизавета Григорьевна, — сказала она, входя в комнату, — видела

молодого Берестова: нагляделась довольно; целый день были вместе.

— Как это? Расскажи, расскажи по порядку.

— Извольте-с; пошли мы, я, Анисья Егоровна, Ненила, Дунька...

— Хорошо, знаю. Ну потом?

— Позвольте-с, расскажу все по порядку. Вот пришли мы к самому обеду.

Комната полна была народу. Были колбинские, захарьевские, приказчица с

дочерьми, хлупинские...

— Ну! а Берестов?

— Погодите-с. Вот мы сели за стол, приказчица на первом месте, я подле

нее... а дочери и надулись, да мне наплевать на них...

— Ах, Настя, как ты скучна с вечными своими подробностями!

— Да как же вы нетерпеливы! Ну вот вышли мы из-за стола... а сидели мы

часа три, и обед был славный; пирожное бланманже синее, красное и полосатое...

Вот вышли мы из-за стола и пошли в сад играть в горелки, а молодой барин тут и

явился.

— Ну что ж? правда ли, что он так хорош собой?

— Удивительно хорош, красавец, можно сказать. Стройный, высокий,

румянец во всю щеку...

Page 118: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

118

— Право? А я так думала, что у него лицо бледное. Что же? Каков он тебе

показался? Печален, задумчив?

— Что вы? Да этакого бешеного я и сроду не видывала. Вздумал он с нами в

горелки бегать.

— С вами в горелки бегать! Невозможно!

— Очень возможно! Да что еще выдумал! Поймает, и ну целовать!

— Воля твоя, Настя, ты врешь.

— Воля ваша, не вру. Я насилу от него отделалась. Целый день с нами так и

провозился.

— Да как же, говорят, он влюблен и ни на кого не смотрит?

— Не знаю-с, а на меня так уж слишком смотрел, да и на Таню,

приказчикову дочь, тоже; да и на Пашу колбинскую, да, грех сказать, никого не

обидел, такой баловник!

— Это удивительно! А что в доме про него слышно?

— Барин, сказывают, прекрасный: такой добрый, такой веселый. Одно

нехорошо: за девушками слишком любит гоняться. Да, по мне, это еще не беда: со

временем остепенится.

— Как бы мне хотелось его видеть! — сказала Лиза со вздохом.

— Да что же тут мудреного? Тугилово от нас недалеко, всего три версты:

подите гулять в ту сторону или поезжайте верхом; вы, верно, встретите его. Он же

всякой день, рано поутру, ходит с ружьем на охоту.

— Да нет, нехорошо. Он может подумать, что я за ним гоняюсь. К тому же

отцы наши в ссоре, так и мне все же нельзя будет с ним познакомиться... Ах, Настя!

Знаешь ли что? Наряжусь я крестьянкою!

— И в самом деле; наденьте толстую рубашку, сарафан, да и ступайте смело

в Тугилово; ручаюсь вам, что Берестов уж вас не прозевает.

— А по-здешнему я говорить умею прекрасно. Ах, Настя, милая Настя!

Какая славная выдумка! — И Лиза легла спать с намерением непременно

исполнить веселое свое предположение.

На другой же день приступила она к исполнению своего плана, послала

купить на базаре толстого полотна, синей китайки и медных пуговок, с помощью

Page 119: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

119

Насти скроила себе рубашку и сарафан, засадила за шитье всю девичью, и к вечеру

все было готово. Лиза примерила обнову и призналась пред зеркалом, что никогда

еще так мила самой себе не казалась. Она повторила свою роль, на ходу низко

кланялась и несколько раз потом качала головою, наподобие глиняных котов,

говорила на крестьянском наречии, смеялась, закрываясь рукавом, и заслужила

полное одобрение Насти. Одно затрудняло ее: она попробовала было пройти по

двору босая, но дерн колол ее нежные ноги, а песок и камушки показались ей

нестерпимы. Настя и тут ей помогла: она сняла мерку с Лизиной ноги, сбегала в

поле к Трофиму пастуху и заказала ему пару лаптей по той мерке. На другой день,

ни свет ни заря, Лиза уже проснулась. Весь дом еще спал. Настя за воротами

ожидала пастуха. Заиграл рожок, и деревенское стадо потянулось мимо барского

двора. Трофим, проходя перед Настей, отдал ей маленькие пестрые лапти и

получил от нее полтину в награждение. Лиза тихонько нарядилась крестьянкою,

шепотом дала Насте свои наставления касательно мисс Жаксон, вышла на заднее

крыльцо и через огород побежала в поле.

Заря сияла на востоке, и золотые ряды облаков, казалось, ожидали солнца,

как царедворцы ожидают государя; ясное небо, утренняя свежесть, роса, ветерок и

пение птичек наполняли сердце Лизы младенческой веселостию; боясь какой-

нибудь знакомой встречи, она, казалось, не шла, а летела. Приближаясь к роще,

стоящей на рубеже отцовского владения, Лиза пошла тише. Здесь она должна была

ожидать Алексея. Сердце ее сильно билось, само не зная почему; но боязнь,

сопровождающая молодые наши проказы, составляет и главную их прелесть. Лиза

вошла в сумрак рощи. Глухой, перекатный шум ее приветствовал девушку.

Веселость ее притихла. Мало-помалу предалась она сладкой мечтательности. Она

думала... но можно ли с точностию определить, о чем думает семнадцатилетняя

барышня, одна, в роще, в шестом часу весеннего утра? Итак, она шла,

задумавшись, по дороге, осененной с обеих сторон высокими деревьями, как вдруг

прекрасная легавая собака залаяла на нее. Лиза испугалась и закричала. В то же

время раздался голос: «Tout beau, Sbogar, ici...» — и молодой охотник показался из-

за кустарника. «Небось, милая, — сказал он Лизе, собака моя не кусается». Лиза

успела уже оправиться от испугу и умела тотчас воспользоваться

Page 120: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

120

обстоятельствами. «Да нет, барин, — сказала она, притворяясь полуиспуганной,

полузастенчивой, — боюсь: она, вишь, такая злая; опять кинется». Алексей

(читатель уже узнал его) между тем пристально глядел на молодую крестьянку. «Я

провожу тебя, если ты боишься, — сказал он ей, — ты мне позволишь идти подле

себя?» — «А кто те мешает? — отвечала Лиза, — вольному воля, а дорога

мирская». — «Откуда ты?» — «Из Прилучина; я дочь Василья кузнеца, иду по

грибы» (Лиза несла кузовок на веревочке). — «А ты, барин? Тугиловский, что ли?»

— «Так точно, — отвечал Алексей, — я камердинер молодого барина». Алексею

хотелось уравнять их отношения. Но Лиза поглядела на него и засмеялась. «А

лжешь, — сказала она, — не на дуру напал. Вижу, что ты сам барин». — «Почему

же ты так думаешь?» — «Да по всему». — «Однако ж?» — «Да как же барина с

слугой не распознать? И одет-то не так, и баишь иначе, и собаку-то кличешь не по-

нашему». Лиза час от часу более нравилась Алексею. Привыкнув не церемониться

с хорошенькими поселянками, он было хотел обнять ее; но Лиза отпрыгнула от

него и приняла вдруг на себя такой строгий и холодный вид, что хотя это и

рассмешило Алексея, но удержало его от дальнейших покушений. «Если вы

хотите, чтобы мы были вперед приятелями, — сказала она с важностию, — то не

извольте забываться». — «Кто тебя научил этой премудрости? — спросил Алексей,

расхохотавшись. — Уж не Настенька ли, моя знакомая, не девушка ли барышни

вашей? Вот какими путями распространяется просвещение!» Лиза почувствовала,

что вышла было из своей роли, и тотчас поправилась. «А что думаешь? — сказала

она, — разве я и на барском дворе никогда не бываю? небось: всего наслышалась и

нагляделась. Однако, — продолжала она, — болтая с тобою, грибов не наберешь.

Иди-ка ты, барин, в сторону, а я в другую. Прощения просим...» Лиза хотела

удалиться, Алексей удержал ее за руку. «Как тебя зовут, душа моя?» — «Акулиной,

— отвечала Лиза, стараясь освободить свои пальцы от руки Алексеевой, — да

пусти ж, барин; мне и домой пора». — «Ну, мой друг Акулина, непременно буду в

гости к твоему батюшке, к Василью кузнецу». — «Что ты? — возразила с

живостию Лиза, — ради Христа, не приходи. Коли дома узнают, что я с барином в

роще болтала наедине, то мне беда будет: отец мой, Василий кузнец, прибьет меня

до смерти». — «Да я непременно хочу с тобою опять видеться». — «Ну я когда-

Page 121: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

121

нибудь опять сюда приду за грибами». — «Когда же?» — «Да хоть завтра». —

«Милая Акулина, расцеловал бы тебя, да не смею. Так завтра, в это время, не

правда ли?» — «Да, да».— «И ты не обманешь меня?» — «Не обману». —

«Побожись». — «Ну вот те святая пятница, приду».

Молодые люди расстались. Лиза вышла из лесу, перебралась через поле,

прокралась в сад и опрометью побежала в ферму, где Настя ожидала ее. Там она

переоделась, рассеянно отвечая на вопросы нетерпеливой наперсницы, и явилась в

гостиную. Стол был накрыт, завтрак готов, и мисс Жаксон, уже набеленная и

затянутая в рюмочку, нарезывала тоненькие тартинки. Отец похвалил ее за раннюю

прогулку. «Нет ничего здоровее, — сказал он, — как просыпаться на заре». Тут он

привел несколько примеров человеческого долголетия, почерпнутых из английских

журналов, замечая, что все люди, жившие более ста лет, не употребляли водки и

вставали на заре зимой и летом. Лиза его не слушала. Она в мыслях повторяла все

обстоятельства утреннего свидания, весь разговор Акулины с молодым охотником,

и совесть начинала ее мучить. Напрасно возражала она самой себе, что беседа их

не выходила из границ благопристойности, что эта шалость не могла иметь

никакого последствия, совесть ее роптала громче ее разума. Обещание, данное ею

на завтрашний день, всего более беспокоило ее: она совсем было решилась не

сдержать своей торжественной клятвы. Но Алексей, прождав ее напрасно, мог идти

отыскивать в селе дочь Василья кузнеца, настоящую Акулину, толстую, рябую

девку, и таким образом догадаться об ее легкомысленной проказе. Мысль эта

ужаснула Лизу, и она решилась на другое утро опять явиться в рощу Акулиной.

С своей стороны, Алексей был в восхищении, целый день думал он о новой

своей знакомке; ночью образ смуглой красавицы и во сне преследовал его

воображение. Заря едва занималась, как он уже был одет. Не дав себе времени

зарядить ружье, вышел он в поле с верным своим Сбогаром и побежал к месту

обещанного свидания. Около получаса прошло в несносном для него ожидании;

наконец он увидел меж кустарника мелькнувший синий сарафан и бросился

навстречу милой Акулины. Она улыбнулась восторгу его благодарности; но

Алексей тотчас же заметил на ее лице следы уныния и беспокойства. Он хотел

узнать тому причину. Лиза призналась, что поступок ее казался ей

Page 122: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

122

легкомысленным, что она в нем раскаивалась, что на сей раз не хотела она не

сдержать данного слова, но что это свидание будет уже последним и что она

просит его прекратить знакомство, которое ни к чему доброму не может их

довести. Все это, разумеется, было сказано на крестьянском наречии; но мысли и

чувства, необыкновенные в простой девушке, поразили Алексея. Он употребил все

свое красноречие, дабы отвратить Акулину от ее намерения; уверял ее в

невинности своих желаний, обещал никогда не подать ей повода к раскаянию,

повиноваться ей во всем, заклинал ее не лишать его одной отрады: видаться с нею

наедине, хотя бы через день, хотя бы дважды в неделю. Он говорил языком

истинной страсти и в эту минуту был точно влюблен. Лиза слушала его молча.

«Дай мне слово, — сказала она наконец, — что ты никогда не будешь искать меня

в деревне или расспрашивать обо мне. Дай мне слово не искать других со мной

свиданий, кроме тех, которые я сама назначу». Алексей поклялся было ей святою

пятницею, но она с улыбкой остановила его. «Мне не нужно клятвы, — сказала

Лиза, — довольно одного твоего обещания». После того они дружески

разговаривали, гуляя вместе по лесу, до тех пор, пока Лиза сказала ему: пора. Они

расстались, и Алексей, оставшись наедине, не мог понять, каким образом простая

деревенская девочка в два свидания успела взять над ним истинную власть. Его

сношения с Акулиной имели для него прелесть новизны, и хотя предписания

странной крестьянки казались ему тягостными, но мысль не сдержать своего слова

не пришла даже ему в голову. Дело в том, что Алексей, несмотря на роковое

кольцо, на таинственную переписку и на мрачную разочарованность, был добрый и

пылкий малый и имел сердце чистое, способное чувствовать наслаждения

невинности.

Если бы слушался я одной своей охоты, то непременно и во всей

подробности стал бы описывать свидания молодых людей, возрастающую

взаимную склонность и доверчивость, занятия, разговоры; но знаю, что большая

часть моих читателей не разделила бы со мною моего удовольствия. Эти

подробности вообще должны казаться приторными, итак я пропущу их, сказав

вкратце, что не прошло еще и двух месяцев, а мой Алексей был уже влюблен без

Page 123: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

123

памяти, и Лиза была не равнодушнее, хотя и молчаливее его. Оба они были

счастливы настоящим и мало думали о будущем.

Мысль о неразрывных узах довольно часто мелькала в их уме, но никогда

они о том друг с другом не говорили. Причина ясная: Алексей, как ни привязан был

к милой своей Акулине, все помнил расстояние, существующее между им и бедной

крестьянкою; а Лиза ведала, какая ненависть существовала между их отцами, и не

смела надеяться на взаимное примирение. К тому же самолюбие ее было втайне

подстрекаемо темной, романическою надеждою увидеть наконец тугиловского

помещика у ног дочери прилучинского кузнеца. Вдруг важное происшествие чуть

было не переменило их взаимных отношений.

В одно ясное, холодное утро (из тех, какими богата наша русская осень)

Иван Петрович Берестов выехал прогуляться верхом, на всякий случай взяв с

собою пары три борзых, стремянного и несколько дворовых мальчишек с

трещотками. В то же самое время Григорий Иванович Муромский, соблазнясь

хорошею погодою, велел оседлать куцую свою кобылку и рысью поехал около

своих англизированных владений. Подъезжая к лесу, увидел он соседа своего,

гордо сидящего верхом, в чекмене, подбитом лисьим мехом, и поджидающего

зайца, которого мальчишки криком и трещотками выгоняли из кустарника. Если б

Григорий Иванович мог предвидеть эту встречу, то конечно б он поворотил в

сторону; но он наехал на Берестова вовсе неожиданно и вдруг очутился от него в

расстоянии пистолетного выстрела. Делать было нечего. Муромский, как

образованный европеец, подъехал к своему противнику и учтиво его

приветствовал. Берестов отвечал с таким же усердием, с каковым цепной медведь

кланяется господам по приказанию своего вожатого. В сие время заяц выскочил из

лесу и побежал полем. Берестов и стремянный закричали во все горло, пустили

собак и следом поскакали во весь опор. Лошадь Муромского, не бывавшая никогда

на охоте, испугалась и понесла. Муромский, провозгласивший себя отличным

наездником, дал ей волю и внутренне доволен был случаем, избавляющим его от

неприятного собеседника. Но лошадь, доскакав до оврага, прежде ею не

замеченного, вдруг кинулась в сторону, и Муромский не усидел. Упав довольно

тяжело на мерзлую землю, лежал он, проклиная свою куцую кобылу, которая, как

Page 124: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

124

будто опомнясь, тотчас остановилась, как только почувствовала себя без седока.

Иван Петрович подскакал к нему, осведомляясь, не ушибся ли он. Между тем

стремянный привел виновную лошадь, держа ее под уздцы. Он помог Муромскому

взобраться на седло, а Берестов пригласил его к себе. Муромский не мог

отказаться, ибо чувствовал себя обязанным, и таким образом Берестов возвратился

домой со славою, затравив зайца и ведя своего противника раненым и почти

военнопленным.

Соседи, завтракая, разговорились довольно дружелюбно. Муромский

попросил у Берестова дрожек, ибо признался, что от ушибу не был он в состоянии

доехать до дома верхом. Берестов проводил его до самого крыльца, а Муромский

уехал не прежде, как взяв с него честное слово на другой же день (и с Алексеем

Ивановичем) приехать отобедать по-приятельски в Прилучино. Таким образом

вражда старинная и глубоко укоренившаяся, казалось, готова была прекратиться от

пугливости куцой кобылки.

Лиза выбежала навстречу Григорью Ивановичу. «Что это значит, папа? — сказала

она с удивлением, — отчего вы хромаете? Где ваша лошадь? Чьи это дрожки?» —

«Вот уж не угадаешь, my dear», — отвечал ей Григорий Иванович и рассказал все,

что случилось. Лиза не верила своим ушам. Григорий Иванович, не дав ей

опомниться, объявил, что завтра будут у него обедать оба Берестовы. «Что вы

говорите! — сказала она, побледнев. — Берестовы, отец и сын! Завтра у нас

обедать! Нет, папа, как вам угодно: я ни за что не покажусь». — «Что ты, с ума

сошла? — возразил отец, — давно ли ты стала так застенчива, или ты к ним

питаешь наследственную ненависть, как романическая героиня? Полно, не

дурачься...» — «Нет, папа, ни за что на свете, ни за какие сокровища не явлюсь я

перед Берестовыми». Григорий Иванович пожал плечами и более с нею не спорил,

ибо знал, что противоречием с нее ничего не возьмешь, и пошел отдыхать от своей

достопримечательной прогулки.

Лизавета Григорьевна ушла в свою комнату и призвала Настю. Обе долго

рассуждали о завтрашнем посещении. Что подумает Алексей, если узнает в

благовоспитанной барышне свою Акулину? Какое мнение будет он иметь о ее

Page 125: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

125

поведении и правилах, о ее благоразумии? С другой стороны, Лизе очень хотелось

видеть, какое впечатление произвело бы на него свидание столь неожиданное...

Вдруг мелькнула ей мысль. Она тотчас передала ее Насте; обе обрадовались ей как

находке и положили исполнить ее непременно.

На другой день за завтраком Григорий Иванович спросил у дочки, все ли

намерена она спрятаться от Берестовых. «Папа, — отвечала Лиза, — я приму их,

если это вам угодно, только с уговором: как бы я перед ними ни явилась, что б я ни

сделала, вы бранить меня не будете и не дадите никакого знака удивления или

неудовольствия». — «Опять какие-нибудь проказы! — сказал, смеясь, Григорий

Иванович. — Ну, хорошо, хорошо; согласен, делай, что хочешь, черноглазая моя

шалунья». С этим словом он поцеловал ее в лоб, и Лиза побежала приготовляться.

В два часа ровно коляска домашней работы, запряженная шестью

лошадьми, въехала на двор и покатилась около густо-зеленого дернового круга.

Старый Берестов взошел на крыльцо с помощью двух ливрейных лакеев

Муромского. Вслед за ним сын его приехал верхом и вместе с ним вошел в

столовую, где стол был уже накрыт. Муромский принял своих соседей как нельзя

ласковее, предложил им осмотреть перед обедом сад и зверинец и повел по

дорожкам, тщательно выметенным и усыпанным песком. Старый Берестов

внутренно жалел о потерянном труде и времени на столь бесполезные прихоти, но

молчал из вежливости. Сын его не разделял ни неудовольствия расчетливого

помещика, ни восхищения самолюбивого англомана; он с нетерпением ожидал

появления хозяйской дочери, о которой много наслышался, и хотя сердце его, как

нам известно, было уже занято, но молодая красавица всегда имела право на его

воображение.

Возвратясь в гостиную, они уселись втроем: старики вспомнили прежнее

время и анекдоты своей службы, а Алексей размышлял о том, какую роль играть

ему в присутствии Лизы. Он решил, что холодная рассеянность во всяком случае

всего приличнее и вследствие сего приготовился. Дверь отворилась, он повернул

голову с таким равнодушием, с такою гордою небрежностию, что сердце самой

закоренелой кокетки непременно должно было бы содрогнуться. К несчастию,

вместо Лизы вошла старая мисс Жаксон, набеленная, затянутая, с потупленными

Page 126: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

126

глазами и с маленьким книксом, и прекрасное военное движение Алексеево

пропало втуне. Не успел он снова собраться с силами, как дверь опять отворилась,

и на сей раз вошла Лиза. Все встали; отец начал было представление гостей, но

вдруг остановился и поспешно закусил себе губы... Лиза, его смуглая Лиза,

набелена была по уши, насурьмлена пуще самой мисс Жаксон; фальшивые локоны,

гораздо светлее собственных ее волос, взбиты были, как парик Людовика XIV;

рукава à l'imbécile торчали, как фижмы у Madame de Pompadour; талия была

перетянута, как буква икс, и все бриллианты ее матери, еще не заложенные в

ломбарде, сияли на ее пальцах, шее и ушах. Алексей не мог узнать свою Акулину в

этой смешной и блестящей барышне. Отец его подошел к ее ручке, и он с досадою

ему последовал; когда прикоснулся он к ее беленьким пальчикам, ему показалось,

что они дрожали. Между тем он успел заметить ножку, с намерением

выставленную и обутую со всевозможным кокетством. Это помирило его

несколько с остальным ее нарядом. Что касается до белил и до сурьмы, то в

простоте своего сердца, признаться, он их с первого взгляда не заметил, да и после

не подозревал. Григорий Иванович вспомнил свое обещание и старался не показать

и виду удивления; но шалость его дочери казалась ему так забавна, что он едва мог

удержаться. Не до смеху было чопорной англичанке. Она догадывалась, что сурьма

и белила были похищены из ее комода, и багровый румянец досады пробивался

сквозь искусственную белизну ее лица. Она бросала пламенные взгляды на

молодую проказницу, которая, отлагая до другого времени всякие объяснения,

притворялась, будто их не замечает.

Сели за стол. Алексей продолжал играть роль рассеянного и задумчивого.

Лиза жеманилась, говорила сквозь зубы, нараспев, и только по-французски. Отец

поминутно засматривался на нее, не понимая ее цели, но находя все это весьма

забавным. Англичанка бесилась и молчала. Один Иван Петрович был как дома: ел

за двоих, пил в свою меру, смеялся своему смеху и час от часу дружелюбнее

разговаривал и хохотал.

Наконец встали из-за стола; гости уехали, и Григорий Иванович дал волю

смеху и вопросам. «Что тебе вздумалось дурачить их? — спросил он Лизу. — А

знаешь ли что? Белилы, право, тебе пристали; не вхожу в тайны дамского туалета,

Page 127: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

127

но на твоем месте я бы стал белиться; разумеется, не слишком, а слегка». Лиза

была в восхищении от успеха своей выдумки. Она обняла отца, обещалась ему

подумать о его совете и побежала умилостивлять раздраженную мисс Жаксон,

которая насилу согласилась отпереть ей свою дверь и выслушать ее оправдания.

Лизе было совестно показаться перед незнакомцами такой чернавкою; она не смела

просить... она была уверена, что добрая, милая мисс Жаксон простит ей... и проч., и

проч. Мисс Жаксон, удостоверясь, что Лиза не думала поднять ее насмех,

успокоилась, поцеловала Лизу и в залог примирения подарила ей баночку

английских белил, которую Лиза и приняла с изъявлением искренней

благодарности.

Читатель догадается, что на другой день утром Лиза не замедлила явиться в

роще свиданий. «Ты был, барин, вечор у наших господ? — сказала она тотчас

Алексею, — какова показалась тебе барышня?» Алексей отвечал, что он ее не

заметил. «Жаль», — возразила Лиза. «А почему же?» — спросил Алексей. «А

потому, что я хотела бы спросить у тебя, правда ли, говорят...» — «Что же

говорят?» — «Правда ли, говорят, будто бы я на барышню похожа?» — «Какой

вздор! Она перед тобой урод уродом». — «Ах, барин, грех тебе это говорить;

барышня наша такая беленькая, такая щеголиха! Куда мне с нею равняться!»

Алексей божился ей, что она лучше всевозможных беленьких барышень и, чтоб

успокоить ее совсем, начал описывать ее госпожу такими смешными чертами, что

Лиза хохотала от души. «Однако ж, — сказала она со вздохом, — хоть барышня,

может, и смешна, все же я перед нею дура безграмотная». — «И! — сказал

Алексей, — есть о чем сокрушаться! Да коли хочешь, я тотчас выучу тебя

грамоте». — «А взаправду, — сказала Лиза, — не попытаться ли и в самом деле?»

— «Изволь, милая; начнем хоть сейчас». Они сели. Алексей вынул из кармана

карандаш и записную книжку, и Акулина выучилась азбуке удивительно скоро.

Алексей не мог надивиться ее понятливости. На следующее утро она захотела

попробовать и писать; сначала карандаш не слушался ее, но через несколько минут

она и вырисовывать буквы стала довольно порядочно. «Что за чудо! — говорил

Алексей. — Да у нас учение идет скорее, чем по ланкастерской системе». В самом

деле, на третьем уроке Акулина разбирала уже по складам «Наталью, боярскую

Page 128: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

128

дочь», прерывая чтение замечаниями, от которых Алексей истинно был в

изумлении, и круглый лист измарала афоризмами, выбранными из той же повести.

Прошла неделя, и между ними завелась переписка. Почтовая контора учреждена

была в дупле старого дуба. Настя втайне исправляла должность почтальона. Туда

приносил Алексей крупным почерком написанные письма и там же находил на

синей простой бумаге каракульки своей любезной. Акулина, видимо, привыкала к

лучшему складу речей, и ум ее приметно развивался и образовывался.

Между тем недавнее знакомство между Иваном Петровичем Берестовым и

Григорьем Ивановичем Муромским более и более укреплялось и вскоре

превратилось в дружбу, вот по каким обстоятельствам: Муромский нередко думал

о том, что по смерти Ивана Петровича все его имение перейдет в руки Алексею

Ивановичу; что в таком случае Алексей Иванович будет один из самых богатых

помещиков той губернии, и что нет ему никакой причины не жениться на Лизе.

Старый же Берестов, с своей стороны, хотя и признавал в своем соседе некоторое

сумасбродство (или, по его выражению, английскую дурь), однако ж не отрицал в

нем и многих отличных достоинств, например: редкой оборотливости; Григорий

Иванович был близкий родственник графу Пронскому, человеку знатному и

сильному; граф мог быть очень полезен Алексею, а Муромский (так думал Иван

Петрович), вероятно, обрадуется случаю выдать свою дочь выгодным образом.

Старики до тех пор обдумывали все это каждый про себя, что наконец друг с

другом и переговорились, обнялись, обещались дело порядком обработать и

принялись о нем хлопотать каждый со своей стороны. Муромскому предстояло

затруднение: уговорить свою Бетси познакомиться короче с Алексеем, которого не

видала она с самого достопамятного обеда. Казалось, они друг другу не очень

нравились; по крайней мере Алексей уже не возвращался в Прилучино, а Лиза

уходила в свою комнату всякий раз, как Иван Петрович удостоивал их своим

посещением. Но, думал Григорий Иванович, если Алексей будет у меня всякий

день, то Бетси должна же будет в него влюбиться. Это в порядке вещей. Время все

сладит.

Page 129: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

129

Иван Петрович менее беспокоился об успехе своих намерений. В тот же

вечер призвал он сына в свой кабинет, закурил трубку и, немного помолчав, сказал:

«Что же ты, Алеша, давно про военную службу не поговариваешь? Иль гусарский

мундир уже тебя не прельщает!..» — «Нет, батюшка, — отвечал почтительно

Алексей, — я вижу, что вам не угодно, чтоб я шел в гусары; мой долг вам

повиноваться». — «Хорошо, — отвечал Иван Петрович, — вижу, что ты

послушный сын; это мне утешительно; не хочу ж и я тебя неволить; не понуждаю

тебя вступить... тотчас... в статскую службу; а покамест намерен я тебя женить».

— На ком это, батюшка?— спросил изумленный Алексей.

— На Лизавете Григорьевне Муромской, — отвечал Иван Петрович; —

невеста хоть куда; не правда ли?

— Батюшка, я о женитьбе еще не думаю.

— Ты не думаешь, так я за тебя думал и передумал.

— Воля ваша, Лиза Муромская мне вовсе не нравится.

— После понравится. Стерпится, слюбится.

— Я не чувствую себя способным сделать ее счастие.

— Не твое горе — ее счастие. Что? так-то ты почитаешь волю

родительскую? Добро!

— Как вам угодно, я не хочу жениться и не женюсь.

— Ты женишься, или я тебя прокляну, а имение, как бог свят! продам и

промотаю, и тебе полушки не оставлю! Даю тебе три дня на размышление, а

покамест не смей на глаза мне показаться.

Алексей знал, что если отец заберет что себе в голову, то уж того, по

выражению Тараса Скотинина, у него и гвоздем не вышибешь; но Алексей был в

батюшку, и его столь же трудно было переспорить. Он ушел в свою комнату и стал

размышлять о пределах власти родительской, о Лизавете Григорьевне, о

торжественном обещании отца сделать его нищим и наконец об Акулине. В первый

раз видел он ясно, что он в нее страстно влюблен; романическая мысль жениться на

крестьянке и жить своими трудами пришла ему в голову, и чем более думал он о

сем решительном поступке, тем более находил в нем благоразумия. С некоторого

времени свидания в роще были прекращены по причине дождливой погоды. Он

Page 130: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

130

написал Акулине письмо самым четким почерком и самым бешеным слогом,

объявлял ей о грозящей им погибели, и тут же предлагал ей свою руку. Тотчас

отнес он письмо на почту, в дупло, и лег спать весьма довольный собою.

На другой день Алексей, твердый в своем намерении, рано утром поехал к

Муромскому, дабы откровенно с ним объясниться. Он надеялся подстрекнуть его

великодушие и склонить его на свою сторону. «Дома ли Григорий Иванович?» —

спросил он, останавливая свою лошадь перед крыльцом прилучинского замка.

«Никак нет, — отвечал слуга, — Григорий Иванович с утра изволил выехать». —

«Как досадно!» — подумал Алексей. «Дома ли по крайней мере Лизавета

Григорьевна?» — «Дома-с». И Алексей спрыгнул с лошади, отдал поводья в руки

лакею и пошел без доклада.

«Все будет решено, — думал он, подходя к гостиной, — объяснюсь с нею

самою». — Он вошел... и остолбенел! Лиза... нет Акулина, милая смуглая Акулина,

не в сарафане, а в белом утреннем платьице, сидела перед окном и читала его

письмо; она так была занята, что не слыхала, как он и вошел. Алексей не мог

удержаться от радостного восклицания. Лиза вздрогнула, подняла голову,

закричала и хотела убежать. Он бросился ее удерживать. «Акулина, Акулина!..»

Лиза старалась от него освободиться... «Mais laissez-moi donc, monsieur; mais êtes-

vous fou?» — повторяла она, отворачиваясь. «Акулина! друг мой, Акулина!» —

повторял он, целуя ее руки. Мисс Жаксон, свидетельница этой сцены, не знала, что

подумать. В эту минуту дверь отворилась, и Григорий Иванович вошел.

— Ага! — сказал Муромский, — да у вас, кажется, дело совсем уже

слажено...

Читатели избавят меня от излишней обязанности описывать развязку.

Page 131: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

131

ИСТОРИЯ СЕЛА ГОРЮХИНА (História do Povoado de Goriúkhino)

Если бог пошлет мне читателей, то, может быть, для них будет любопытно

узнать, каким образом решился я написать Историю села Горюхина. Для того

должен я войти в некоторые предварительные подробности.

Я родился от честных и благородных родителей в селе Горюхине 1801 года

апреля 1 числа и первоначальное образование получил от нашего дьячка. Сему-то

почтенному мужу обязан я впоследствии развившейся во мне охотою к чтению и

вообще к занятиям литературным. Успехи мои хотя были медленны, но

благонадежны, и6o на десятом году от роду я знал уже почти все то, что поныне

осталось у меня в памяти, от природы слабой и которую по причине столь же

слабого здоровья не дозволяли мне излишне отягощать.

Звание литератора всегда казалось для меня самым завидным. Родители

мои, люди почтенные, но простые и воспитанные по-старинному, никогда ничего

не читывали, и во всем доме, кроме Азбуки, купленной для меня, календарей и

Новейшего письмовника, никаких книг не находилось. Чтение письмовника долго

было любимым моим упражнением. Я знал его наизусть и, несмотря на то, каждый

день находил в нем новые незамеченные красоты. После генерала Племянникова, у

которого батюшка был некогда адъютантом, Курганов казался мне величайшим

человеком. Я расспрашивал о нем у всех, и, к сожалению, никто не мог

удовлетворить моему любопытству, никто не знал его лично, на все мои вопросы

отвечали только, что Курганов сочинил Новейший письмовник, что твердо знал я и

прежде.

Мрак неизвестности окружал его как некоего древнего полубога; иногда я

даже сомневался в истине его существования. Имя его казалось мне вымышленным

и предание о нем пустою мифою, ожидавшею изыскания нового Нибура. Однако

же он все преследовал мое воображение, я старался придать какой-нибудь образ

сему таинственному лицу, и наконец решил, что должен он был походить на

земского заседателя Корючкина, маленького старичка с красным носом и

сверкающими глазами.

Page 132: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

132

В 1812 году повезли меня в Москву и отдали в пансион Карла Ивановича

Мейера — где пробыл я не более трех месяцев, ибо нас распустили перед

вступлением неприятеля — я возвратился в деревню. По изгнании двухнадесяти

языков хотели меня снова везти в Москву посмотреть, не возвратился ли Карл

Иванович на прежнее пепелище или, в противном случае, отдать меня в другое

училище, но я упросил матушку оставить меня в деревне, ибо здоровье мое не

позволяло мне вставать с постели в семь часов, как обыкновенно заведено во всех

пансионах. Таким образом достиг я шестнадцатилетнего возраста, оставаясь при

первоначальном моем образовании и играя в лапту с моими потешными,

единственная наука, в коей приобрел я достаточное познание во время пребывания

моего в пансионе.

В сие время определился я юнкером в** пехотный полк, в коем и находился

до прошлого 18 ** года. Пребывание мое в полку оставило мне мало приятных

впечатлений, кроме производства в офицеры и выигрыша 245 рублей в то время,

как у меня в кармане всего оставалося рубль 6 гривен. Смерть дражайших моих

родителей принудила меня подать в отставку и приехать в мою вотчину.

Сия эпоха жизни моей столь для меня важна, что я намерен о ней

распространиться, заранее прося извинения у благосклонного читателя, если во зло

употреблю снисходительное его внимание.

День был осенний и пасмурный. Прибыв на станцию, с которой должно

было мне своротить на Горюхино, нанял я вольных и поехал проселочною дорогой.

Хотя я нрава от природы тихого, но нетерпение вновь увидеть места, где провел я

лучшие свои годы, так сильно овладело мной, что я поминутно погонял моего

ямщика, то обещая ему на водку, то угрожая побоями, и как удобнее было мне

толкать его в спину, нежели вынимать и развязывать кошелек, то, признаюсь, раза

три и ударил его, что отроду со мною не случалось, ибо сословие ямщиков, сам не

знаю почему, для меня в особенности любезно. Ямщик погонял свою тройку, но

мне казалось, что он, по обыкновению ямскому, уговаривая лошадей и размахивая

кнутом, все-таки затягивал гужи. Наконец завидел Горюхинскую рощу; и через

десять минут въехал на барский двор. Сердце мое сильно билось — я смотрел

вокруг себя с волнением неописанным. Восемь лет не видал я Горюхина. Березки,

Page 133: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

133

которые при мне посажены были около забора, выросли и стали теперь высокими,

ветвистыми деревьями. Двор, бывший некогда украшен тремя правильными

цветниками, меж которых шла широкая дорога, усыпанная песком, теперь обращен

был в некошеный луг, на котором паслась бурая корова. Бричка моя остановилась у

переднего крыльца. Человек мой пошел было отворить двери, но они были

заколочены, хотя ставни были открыты и дом казался обитаемым. Баба вышла из

людской избы и спросила, кого мне надобно. Узнав, что барин приехал, она снова

побежала в избу, и вскоре дворня меня окружила. Я был тронут до глубины сердца,

увидя знакомые и незнакомые лица — и дружески со всеми ими целуясь: мои

потешные мальчишки были уже мужиками, а сидевшие некогда на полу для

посылок девчонки замужними бабами. Мужчины плакали. Женщинам говорил я

без церемонии: «Как ты постарела», — и мне отвечали с чувством: «Как вы-то,

батюшка, подурнели». Повели меня на заднее крыльцо, навстречу мне вышла моя

кормилица и обняла меня с плачем и рыданием, как многострадального Одиссея.

Побежали топить баню. Повар, ныне в бездействии отрастивший себе бороду,

вызвался приготовить мне обед или ужин — ибо уже смеркалось. Тотчас очистили

мне комнаты, в коих жила кормилица с девушками покойной матушки, и я

очутился в смиренной отеческой обители и заснул в той самой комнате, в которой

за 23 года тому родился.

Около трех недель прошло для меня в хлопотах всякого роду — я возился с

заседателями, предводителями и всевозможными губернскими чиновниками.

Наконец принял я наследство и был введен во владение отчиной; я успокоился, но

скоро скука бездействия стала меня мучить. Я не был еще знаком с добрым и

почтенным соседом моим **. Занятия хозяйственные были вовсе для меня чужды.

Разговоры кормилицы моей, произведенной мною в ключницы и управительницы,

состояли счетом из пятнадцати домашних анекдотов, весьма для меня

любопытных, но рассказываемых ею всегда одинаково, так что она сделалась для

меня другим новейшим письмовником, в котором я знал, на какой странице какую

найду строчку. Настоящий же заслуженный письмовник был мною найден в

кладовой, между всякой рухлядью, в жалком состоянии. Я вынес его на свет и

Page 134: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

134

принялся было за него, но Курганов потерял для меня прежнюю свою прелесть, я

прочел его еще раз и больше уже не открывал.

В сей крайности пришло мне на мысль, не попробовать ли самому что-

нибудь сочинить? Благосклонный читатель знает уже, что воспитан я был на

медные деньги и что не имел я случая приобрести сам собою то, что было раз

упущено, до шестнадцати лет играя с дворовыми мальчишками, а потом переходя

из губернии в губернию, из квартиры на квартиру, провождая время с жидами да с

маркитантами, играя на ободранных биллиардах и маршируя в грязи.

К тому же быть сочинителем казалось мне так мудрено, так недосягаемо

нам непосвященным, что мысль взяться за перо сначала испугала меня. Смел ли я

надеяться попасть когда-нибудь в число писателей, когда уже пламенное желание

мое встретиться с одним из них никогда не было исполнено? Но это напоминает

мне случай, который намерен я рассказать в доказательство всегдашней страсти

моей к отечественной словесности.

В 1820 году еще юнкером случилось мне быть по казенной надобности в

Петербурге. Я прожил в нем неделю и, несмотря на то, что не было там у меня ни

одного знакомого человека, провел время чрезвычайно весело: каждый день

тихонько ходил я в театр, в галерею четвертого яруса. Всех актеров узнал по имени

и страстно влюбился в **, игравшую с большим искусством в одно воскресенье

роль Амалии в драме «Ненависть к людям и раскаяние». Утром, возвращаясь из

Главного штаба, заходил я обыкновенно в низенькую конфетную лавку и за

чашкой шоколаду читал литературные журналы. Однажды сидел я углубленный в

критическую статью «Благонамеренного»; некто в гороховой шинели ко мне

подошел и из-под моей книжки тихонько потянул листок «Гамбургской газеты». Я

так был занят, что не поднял и глаз. Незнакомый спросил себе бифштексу и сел

передо мною; я все читал, не обращая на него внимания; он между тем позавтракал,

сердито побранил мальчика за неисправность, выпил полбутылки вина и вышел.

Двое молодых людей тут же завтракали. «Знаешь ли, кто это был? — сказал один

другому: — Это Б., сочинитель». — «Сочинитель!» — воскликнул я невольно — и,

оставя журнал недочитанным и чашку недопитою, побежал расплачиваться и, не

дождавшися сдачи, выбежал на улицу. Смотря во все стороны, увидел я издали

Page 135: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

135

гороховую шинель и пустился за нею по Невскому проспекту — только что не

бегом. Сделав несколько шагов, чувствую вдруг, что меня останавливают —

оглядываюсь, гвардейский офицер заметил мне, что-де мне следовало б не

толкнуть его с тротуара, но скорее остановиться и вытянуться. После сего выговора

я стал осторожнее; на беду мою поминутно встречались мне офицеры, я поминутно

останавливался, а сочинитель все уходил от меня вперед. Отроду моя солдатская

шинель не была мне столь тягостною, — отроду эполеты не казались мне столь

завидными; наконец у самого Аничкина моста догнал я гороховую шинель.

«Позвольте спросить, — сказал я, приставя ко лбу руку, — вы г. Б., коего

прекрасные статьи имел я счастие читать в «Соревнователе просвещения?» —

«Никак нет-с, — отвечал он мне, — я не сочинитель, а стряпчий, но** мне очень

знаком; четверть часа тому я встретил его у Полицейского мосту». Таким образом

уважение мое к русской литературе стоило мне тридцати копеек потерянной сдачи,

выговора по службе и чуть-чуть не ареста — а все даром.

Несмотря на все возражения моего рассудка, дерзкая мысль сделаться

писателем поминутно приходила мне в голову. Наконец, не будучи более в

состоянии противиться влечению природы, я сшил себе толстую тетрадь с твердым

намерением наполнить ее чем бы то ни было. Все роды поэзии (ибо о смиренной

прозе я еще и не помышлял) были мною разобраны, оценены, и я непременно

решился на эпическую поэму, почерпнутую из отечественной истории. Недолго

искал я себе героя. Я выбрал Рюрика — и принялся за работу.

К стихам приобрел я некоторый навык, переписывая тетрадки, ходившие по

рукам между нашими офицерами, именно: «Опасного соседа», «Критику на

Московский бульвар», «на Пресненские пруды» и т.п. Несмотря на то поэма моя

подвигалась медленно, и я бросил ее на третьем стихе. Я думал, что эпический род

не мой род, и начал трагедию Рюрик. Трагедия не пошла. Я попробовал обратить ее

в балладу — но и баллада как-то мне не давалась. Наконец вдохновение озарило

меня, я начал и благополучно окончил надпись к портрету Рюрика.

Несмотря на то, что надпись моя была не вовсе недостойна внимания,

особенно как первое произведение молодого стихотворца, однако ж я

почувствовал, что я не рожден поэтом, и довольствовался сим первым опытом. Но

Page 136: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

136

творческие мои попытки так привязали меня к литературным занятиям, что уже не

мог я расстаться с тетрадью и чернильницей. Я хотел низойти к прозе. На первый

случай, не желая заняться предварительным изучением, расположением плана,

скреплением частей и т. п., я вознамерился писать отдельные мысли, без связи, без

всякого порядка, в том виде, как они мне станут представляться. К несчастию,

мысли не приходили мне в голову — и в целые два дня надумал я только

следующее замечание:

Человек, не повинующийся законам рассудка и привыкший следовать

внушениям страстей, часто заблуждается и подвергает себя позднему раскаянию.

Мысль конечно справедливая, но уже не новая. Оставя мысли, принялся я за

повести, но, не умея с непривычки расположить вымышленное происшествие, я

избрал замечательные анекдоты, некогда мною слышанные от разных особ, и

старался украсить истину живостию рассказа, а иногда и цветами собственного

воображения. Составляя сии повести, мало-помалу образовал я свой слог и

приучился выражаться правильно, приятно и свободно. Но скоро запас мой

истощился, и я стал опять искать предмета для литературной моей деятельности.

Мысль оставить мелочные и сомнительные анекдоты для повествования

истинных и великих происшествий давно тревожила мое воображение. Быть

судиею, наблюдателем и пророком веков и народов казалось мне высшею

степенью, доступной для писателя. Но какую историю мог я написать с моей

жалкой образованностию, где бы не предупредили меня многоученые,

добросовестные мужи? Какой род истории не истощен уже ими? Стану ль писать

историю всемирную — но разве не существует уже бессмертный труд аббата

Милота? Обращусь ли к истории отечественной? что скажу я после Татищева,

Болтина и Голикова? и мне ли рыться в летописях и добираться до сокровенного

смысла обветшалого языка, когда не мог я выучиться славянским цифрам? Я думал

об истории меньшего объема, например об истории губернского нашего города; но

и тут сколько препятствий, для меня неодолимых! Поездка в город, визиты к

губернатору и к архиерею, просьба о допущении в архивы и монастырские

кладовые и проч. История уездного нашего города была бы для меня удобнее, но

она не была занимательна ни для философа, ни для прагматика, и представляла

Page 137: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

137

мало пищи красноречию. *** был переименован в город в 17** году, и

единственное замечательное происшествие, сохранившееся в его летописях, есть

ужасный пожар, случившийся десять лет тому назад и истребивший базар и

присутственные места.

Нечаянный случай разрешил мои недоумения. Баба, развешивая белье на

чердаке, нашла старую корзину, наполненную щепками, сором и книгами. Весь

дом знал охоту мою к чтению. Ключница моя, в то самое время как я, сидя за моей

тетрадью, грыз перо и думал об опыте сельских проповедей, с торжеством втащила

корзинку в мою комнату, радостно восклицая: «книги! книги!» — «Книги!» —

повторил я с восторгом и бросился к корзинке. В самом деле, я увидел целую груду

книг в зеленом и синем бумажном переплете — это было собрание старых

календарей. Сие открытие охладило мой восторг, но все я был рад нечаянной

находке, все же это были книги, и я щедро наградил усердие прачки полтиною

серебром. Оставшись наедине, я стал рассматривать свои календари, и скоро мое

внимание было сильно ими привлечено. Они составляли непрерывную цепь годов

от 1744 до 1799, то есть ровно 55 лет. Синие листы бумаги, обыкновенно

вплетаемые в календари, были все исписаны старинным почерком. Брося взор на

сии строки, с изумлением увидел я, что они заключали не только замечания о

погоде и хозяйственные счеты, но также и известия краткие исторические

касательно села Горюхина. Немедленно занялся я разбором драгоценных сих

записок и вскоре нашел, что они представляли полную историю моей отчины в

течение почти целого столетия в самом строгом хронологическом порядке. Сверх

сего заключали они неистощимый запас экономических, статистических,

метеорологических и других ученых наблюдений. С тех пор изучение сих записок

заняло меня исключительно, ибо увидел я возможность извлечь из них

повествование стройное, любопытное и поучительное. Ознакомясь довольно с

драгоценными сими памятниками, я стал искать новых источников истории села

Горюхина. И вскоре обилие оных изумило меня. Посвятив целые шесть месяцев на

предварительное изучение, наконец приступил я к давно желанному труду и с

помощию божиею совершил оный сего ноября 3 дня 1827-го года.

Page 138: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

138

Ныне, как некоторый мне подобный историк, коего имени я не запомню,

оконча свой трудный подвиг, кладу перо и с грустию иду в мой сад размышлять о

том, что мною совершено. Кажется и мне, что, написав Историю Горюхина, я уже

не нужен миру, что долг мой исполнен и что пора мне опочить!

Здесь прилагаю список источников, послуживших мне к составлению

Истории Горюхина:

1. Собрание старинных календарей. 54 части. Первые 20 частей исписано

старинным почерком с титлами. Летопись сия сочинена прадедом моим Андреем

Степановичем Белкиным. Она отличается ясностию и краткостию слога, например:

4 мая. Снег. Тришка за грубость бит. 6 — корова бурая пала. Сенька за пьянство

бит. 8 — погода ясная. 9 — дождь и снег. Тришка бит по погоде. 11 — погода

ясная. Пороша. Затравил 3 зайцев, и тому подобное, безо всяких размышлений...

Остальные 35 частей писаны разными почерками, большею частию так

называемым лавочничьим с титлами и без титлов, вообще плодовито, несвязно и

без соблюдения правописания. Кой-где заметна женская рука. В сие отделение

входят записки деда моего Ивана Андреевича Белкина и бабки моей, а его супруги,

Евпраксии Алексеевны, также и записки приказчика Гарбовицкого.

2. Летопись горюхинского дьячка. Сия любопытная рукопись отыскана мною у

моего попа, женатого на дочери летописца. Первые листы были выдраны и

употреблены детьми священника на так называемые змеи. Один из таковых упал

посреди моего двора. Я поднял его и хотел было возвратить детям, как заметил, что

он был исписан. С первых строк увидел я, что змей составлен был из летописи, и к

счастию успел спасти остальное. Летопись сия, приобретенная мною за четверть

овса, отличается глубокомыслием и велеречием необыкновенным.

3. Изустные предания. Я не пренебрегал никакими известиями. Но в особенности

обязан Аграфене Трифоновой, матери Авдея старосты, бывшей (говорят)

любовницею приказчика Гарбовицкого.

Page 139: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

139

4. Ревижские сказки, с замечаниями прежних старост (счетные и расходные книги)

касательно нравственности и состояния крестьян.

Страна, по имени столицы своей Горюхиным называемая, занимает на

земном шаре более 240 десятин. Число жителей простирается до 63 душ. К северу

граничит она с деревнями Дериуховым и Перкуховом, коего обитатели бедны,

тощи и малорослы, а гордые владельцы преданы воинственному упражнению

заячьей охоты. К югу река Сивка отделяет ее от владений карачевских вольных

хлебопашцев, соседей беспокойных, известных буйной жестокостию нравов. К

западу облегают ее цветущие поля захарьинские, благоденствующие под властию

мудрых и просвещенных помещиков. К востоку примыкает она к диким,

необитаемым местам, к непроходимому болоту, где произрастает одна клюква, где

раздается лишь однообразное квакание лягушек и где суеверное предание

предполагает быть обиталищу некоего беса.

NВ. Сие болото и называется Бесовским. Рассказывают, будто одна

полуумная пастушка стерегла стадо свиней недалече от сего уединенного места.

Она сделалась беременною и никак не могла удовлетворительно объяснить сего

случая. Глас народный обвинил болотного беса; но сия сказка недостойна

внимания историка, и после Нибура непростительно было бы тому верить.

Издревле Горюхино славилось своим плодородием и благорастворенным

климатом. Рожь, овес, ячмень и гречиха родятся на тучных его нивах. Березовая

роща и еловый лес снабжают обитателей деревами и валежником на построение и

отопку жилищ. Нет недостатка в орехах, клюкве, бруснике и чернике. Грибы

произрастают в необыкновенном количестве; сжаренные в сметане, представляют

приятную, хотя и нездоровую пищу. Пруд наполнен карасями, а в реке Сивке

водятся щуки и налимы.

Обитатели Горюхина большей частию росту середнего, сложения крепкого

и мужественного, глаза их серы, волосы русые или рыжие. Женщины отличаются

носами, поднятыми несколько вверх, выпуклыми скулами и дородностию. NВ.

Баба здоровенная, сие выражение встречается часто в примечаниях старосты к

Ревижским сказкам. Мужчины добронравны, трудолюбивы (особенно на своей

Page 140: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

140

пашне), храбры, воинственны: многие из них ходят одни на медведя и славятся в

околотке кулачными бойцами; все вообще склонны к чувственному наслаждению

пиянства. Женщины сверх домашних работ разделяют с мужчинами большую

часть их трудов; и не уступят им в отважности, редкая из них боится старосты. Они

составляют мощную общественную стражу, неусыпно бодрствующую на барском

дворе, и называются копейщицами (от словенского слова копье). Главная

обязанность копейщиц как можно чаще бить камнем в чугунную доску и тем

устрашать злоумышление. Они столь целомудрены, как и прекрасны; на

покушения дерзновенного отвечают сурово и выразительно.

Жители Горюхина издавна производят обильный торг лыками, лукошками и

лаптями. Сему способствует река Сивка, через которую весною переправляются

они на челноках, подобно древним скандинавам, а прочие времена года переходят

вброд, предварительно засучив портки до колен.

Язык горюхинский есть решительно отрасль славянского, но столь же

разнится от него, как и русский. Он исполнен сокращениями и усечениями —

некоторые буквы вовсе в нем уничтожены или заменены другими. Однако ж

великороссиянину легко понять горюхинца, и обратно.

Мужчины женивались обыкновенно на тринадцатом году на девицах

двадцатилетних. Жены били своих мужей в течение четырех или пяти лет. После

чего мужья уже начинали бить жен; и таким образом оба пола имели свое время

власти, и равновесие было соблюдено.

Обряд похорон происходил следующим образом. В самый день смерти

покойника относили на кладбище — дабы мертвый в избе не занимал напрасно

лишнего места. От сего случалось, что к неописанной радости родственников

мертвец чихал или зевал в ту самую минуту, как его выносили в гробе за околицу.

Жены оплакивали мужьев, воя и приговаривая: «Свет-моя удалая головушка! на

кого ты меня покинул? чем-то мне тебя поминати?» При возвращении с кладбища

начиналася тризна в честь покойника, и родственники и друзья бывали пьяны два-

три дня или даже целую неделю, смотря по усердию и привязанности к его памяти.

Сии древние обряды сохранилися и поныне.

Page 141: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

141

Одежда горюхинцев состояла из рубахи, надеваемой сверх порток, что есть

отличительный признак их славянского происхождения. Зимою носили они

овчинный тулуп, но более для красы, нежели из настоящей нужды, ибо тулуп

обыкновенно накидывали они на одно плечо и сбрасывали при малейшем труде,

требующем движения.

Науки, искусства и поэзия издревле находились в Горюхине в довольно

цветущем состоянии. Сверх священника и церковных причетников, всегда

водились в нем грамотеи. Летописи упоминают о земском Терентии, жившем

около 1767 году, умевшем писать не только правой, но и левою рукою. Сей

необыкновенный человек прославился в околотке сочинением всякого роду писем,

челобитьев, партикулярных пашпортов и т. п. Неоднократно пострадав за свое

искусство, услужливость и участие в разных замечательных происшествиях, он

умер уже в глубокой старости, в то самое время, как приучался писать правою

ногою, ибо почерка обеих рук его были уже слишком известны. Он играет, как

читатель увидит ниже, важную роль и в истории Горюхина.

Музыка была всегда любимое искусство образованных горюхинцев,

балалайка и волынка, услаждая чувствительные сердца, поныне раздаются в их

жилищах, особенно в древнем общественном здании, украшенном елкою и

изображением двуглавого орла.

Поэзия некогда процветала в древнем Горюхине. Доныне стихотворения

Архипа Лысого сохранились в памяти потомства.

В нежности не уступят они эклогам известного Виргилия, в красоте

воображения далеко превосходят они идиллии г-на Сумарокова. И хотя в

щеголеватости слога и уступают новейшим произведениям наших муз, но

равняются с ними затейливостию. и остроумием.

Приведем в пример сие сатирическое стихотворение:

Ко боярскому двору

Антон староста идет, (2)

Бирки в пазухе несет, (2)

Боярину подает,

Page 142: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

142

А боярин смотрит,

Ничего не смыслит.

Ах ты, староста Антон,

Обокрал бояр кругом,

Село по миру пустил,

Старостиху надарил.

Познакомя таким образом моего читателя с этнографическим и

статистическим состоянием Горюхина и со нравами и обычаями его обитателей,

приступим теперь к самому повествованию.

БАСНОСЛОВНЫЕ ВРЕМЕНА

СТАРОСТА ТРИФОН

Образ правления в Горюхине несколько раз изменялся. Оно попеременно

находилось под властию старшин, выбранных миром, приказчиков, назначенных

помещиком, и наконец непосредственно под рукою самих помещиков. Выгоды и

невыгоды сих различных образов правления будут развиты мною в течение моего

повествования.

Основание Горюхина и первоначальное население оного покрыто мраком

неизвестности. Темные предания гласят, что некогда Горюхино было село богатое

и обширное, что все жители оного были зажиточны, что оброк собирали единожды

в год и отсылали неведомо кому на нескольких возах. В то время всё покупали

дешево, а дорого продавали. Приказчиков не существовало, старосты никого не

обижали, обитатели работали мало, а жили припеваючи, и пастухи стерегли стадо в

сапогах. Мы не должны обольщаться сею очаровательною картиною. Мысль о

золотом веке сродна всем народам и доказывает только, что люди никогда не

довольны настоящим и, по опыту имея мало надежды на будущее, украшают

невозвратимое минувшее всеми цветами своего воображения. Вот что достоверно:

Page 143: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

143

Село Горюхино издревле принадлежало знаменитому роду Белкиных. Но

предки мои, владея многими другими отчинами, не обращали внимания на сию

отдаленную страну. Горюхино платило малую дань и управлялось старшинами,

избираемыми народом на вече, мирскою сходкою называемом.

Но в течение времени родовые владения Белкиных раздробились и пришли

в упадок. Обедневшие внуки богатого деда не могли отвыкнуть от роскошных

своих привычек и требовали прежнего полного дохода от имения, в десять крат

уже уменьшившегося. Грозные предписания следовали одно за другим. Староста

читал их на вече; старшины витийствовали, мир волновался, — а господа, вместо

двойного оброку, получали лукавые отговорки и смиренные жалобы, писанные на

засаленной бумаге и запечатанные грошом.

Мрачная туча висела над Горюхиным, а никто об ней и не помышлял. В

последний год властвования Трифона, последнего старосты, народом избранного, в

самый день храмового праздника, когда весь народ шумно окружал увеселительное

здание (кабаком в просторечии именуемое) или бродил по улицам, обнявшись

между собою и громко воспевая песни Архипа Лысого, въехала в село плетеная

крытая бричка, заложенная парою кляч едва живых; на козлах сидел оборванный

жид, а из брички высунулась голова в картузе и, казалось, с любопытством

смотрела на веселящийся народ. Жители встретили повозку смехом и грубыми

насмешками. (NВ. Свернув трубкою воскраия одежд, безумцы глумились над

еврейским возницею и восклицали смехотворно: «Жид, жид, ешь свиное ухо!..» —

Летопись горюхинского дьячка.) Но сколь изумились они, когда бричка

остановилась посреди села и когда приезжий, выпрыгнув из нее, повелительным

голосом потребовал старосты Трифона. Сей сановник находился в увеселительном

здании, откуда двое старшин почтительно вывели его под руки. Незнакомец,

посмотрев на него грозно, подал ему письмо и велел читать оное немедленно.

Старосты горюхинские имели обыкновение никогда ничего сами не читать.

Староста был неграмотен. Послали за земским Авдеем. Его нашли неподалеку,

спящего в переулке под забором, и привели незнакомцу. Но по приводе или от

внезапного испуга, или от горестного предчувствия, буквы письма, четко

написанного, показались ему отуманенными, и он не был в состоянии их разобрать.

Page 144: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

144

Незнакомец, с ужасными проклятиями отослал спать старосту Трифона и земского

Авдея, отложил чтение письма до завтрашнего дня и пошел в приказную избу, куда

жид понес за ним и его маленький чемодан.

Горюхинцы с безмолвным изумлением смотрели на сие необыкновенное

происшествие, но вскоре бричка, жид и незнакомец были забыты. День кончился

шумно и весело — и Горюхино заснуло, не предвидя, что ожидало его.

С восходом утреннего солнца жители были пробуждены стуком в окошки и

призыванием на мирскую сходку. Граждане один за другим явились на двор

приказной избы, служивший вечевою площадию. Глаза их были мутны и красны,

лица опухлы; они, зевая и почесываясь, смотрели на человека в картузе, в старом

голубом кафтане, важно стоявшего на крыльце приказной избы, — и старались

припомнить себе черты его, когда-то ими виденные. Староста Трифон и земский

Авдей стояли подле него без шапки с видом подобострастия и глубокой горести.

«Все ли здесь?» — спросил незнакомец. «Все ли-ста здесь?» — повторил староста.

«Все-ста», — отвечали граждане. Тогда староста объявил, что от барина получена

грамота, и приказал земскому прочесть ее во услышание мира. Авдей выступил и

громогласно прочел следующее. (NВ. «Грамоту грозновещую сию списах я у

Трифона старосты, у него же хранилася она в кивоте вместе с другими

памятниками владычества его над Горюхиным». Я не мог сам отыскать сего

любопытного письма.)

Трифон Иванов!

Вручитель письма сего, поверенный мой **, едет в отчину мою село

Горюхино для поступления в управление оного. Немедленно по его прибытию

собрать мужиков и объявить им мою барскую волю, а именно: Приказаний

поверенного моего ** им, мужикам, слушаться, как моих собственных. А все, чего

он ни потребует, исполнять беспрекословно, в противном случае имеет он **

поступать с ними со всевозможною строгостию. К сему понудило меня их

бессовестное непослушание, и твое, Трифон Иванов, плутовское потворство.

Page 145: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

145

Подписано NN.

Тогда **, растопыря ноги наподобие буквы хера и подбочась наподобие

ферта, произнес следующую краткую и выразительную речь: «Смотрите ж вы у

меня, не очень умничайте; вы, я знаю, народ избалованный, да я выбью дурь из

ваших голов небось скорее вчерашнего хмеля». Хмеля ни в одной голове уже не

было. Горюхинцы, как громом пораженные, повесили носы — и с ужасом

разошлись по домам.

ПРАВЛЕНИЕ ПРИКАЗЧИКА**

** принял бразды правления и приступил к исполнению своей политической

системы; она заслуживает особенного рассмотрения.

Главным основанием оной была следующая аксиома. Чем мужик богаче,

тем он избалованнее, чем беднее, тем смирнее. Вследствие сего ** старался о

смирности вотчины, как о главной крестьянской добродетели. Он потребовал опись

крестьянам, разделил их на богачей и бедняков. 1) Недоимки были разложены меж

зажиточных мужиков и взыскаемы с них со всевозможною строгостию. 2)

Недостаточные и празднолюбивые гуляки были немедленно посажены на пашню,

если же по его расчету труд их оказывался недостаточным, то он отдавал их в

батраки другим крестьянам, за что сии платили ему добровольную дань, а

отдаваемые в холопство имели полное право откупаться, заплатя сверх недоимок

двойной годовой оброк. Всякая общественная повинность падала на зажиточных

мужиков. Рекрутство же было торжеством корыстолюбивому правителю; ибо от

оного по очереди откупались все богатые мужики, пока, наконец, выбор не падал

на негодяя или разоренного*. Мирские сходки были уничтожены. Оброк собирал

он понемногу и круглый год сряду. Сверх того завел он нечаянные сборы. Мужики,

кажется, платили и не слишком более противу прежнего, но никак не могли ни

наработать, ни накопить достаточно денег. В три года Горюхино совершенно

обнищало.

Page 146: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

146

Горюхино приуныло, базар запустел, песни Архипа Лысого умолкли.

Ребятишки пошли по миру. Половина мужиков была на пашне, а другая служила в

батраках; и день храмового праздника сделался, по выражению летописца, не днем

радости и ликования, но годовщиною печали и поминания горестного.

* Посадил окаянный приказчик Антона Тимофеева в железы, а старик Тимофей

сына откупил за 100 р.; а приказчик заковал Петрушку Еремеева, и того откупил

отец за 68 р., и хотел окаянный сковать Леху Тарасова, но тот бежал в лес, и

приказчик о том вельми крушился и свирепствовал во словесах, а отвезли в город и

отдали в рекруты Ваньку пьяницу (Донесение горюхинских мужиков).

Page 147: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

147

Bibliografia

1. De Púchkin

PÚCHKIN, A. Cобрание сочинений в десяти томах. Ed. Академия Наук.

Moscou, 1956.

_________. Пушкин: исследования и материалы. Ed. Академия Наук.

Moscou, 1986.

_________. A Dama de Espadas – Prosa e Poemas. Tradução de Boris

Schnaiderman e Nelson Ascher. Editora 34. São Paulo, 1999.

_________. Contos de Belkin. Tradução de Klara Gourianova. Nova

Alexandria. São Paulo, 2003.

_________. “Nevasca” in Salada Russa. Tradução Tatiana Belinky. São Paulo,

Ed. Paulinas, 1988.

_________. Pequenas Tragédias. Tradução de Irineu Franco Perpétuo. Editora

Globo, 2006.

_________. “Sobre Poesia Clássica e Romântica”, in Caderno de Literatura e

Cultura Russa. Ateliê Editorial: São Paulo, 2004.

_________. The poems, prose and plays of Aleksandr Pushkin. Seleção,

edição e notas de Avrahm Yarmolinsky. Random House. Nova York, 1936.

_________. The Collected Stories. Tradução de Paul Debreczeny e Walter

Arndt. Everyman’s Library. Londres, 1999.

LISIUCHENKO, Natalia. Prosa crítica de A. S. Pushkin. Tese de doutorado. São

Paulo, 1989.

WOLFF, Tatiana. Pushkin on literature. The Athlone Press, 1998. Londres.

Page 148: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

148

2. Sobre Púchkin

ANDRADE, Homero de Freitas (org.). “Dossiê Puchkin”. Caderno de Literatura

e Cultura Russa. Ateliê Editorial: São Paulo, 2004.

ANDREW, Joe. "Mothers and Daughters in Russian Literature of the First Half of

the Nineteenth Century" in The Slavonic and East European Review. Vol. 73, nº 1

(Jan. 1995). pp 37-60. Maney Publishing. Londres, 1995.

ALEKSEEV, Mikhail. Пушкин и мировая литература. Ed. Наука. Leningrado,

1987.

BACKES, J. L. Pouchkine par lui-même. Éditions du Seuil. Paris, 1966.

BARING, Maurice. "Pushkin" in The Slavonic and East European Review. Vol.

15, nº 44 (Jan. 1937). pp 345-47. Maney Publishing. Londres, 1937.

BETHEA, David M. e DAVYDOV, Serguei. "The [Hi]story of the Village

Gorjuxino: In Praise od Pushkin's Folly" in The Slavic and East European Journal,

Vol. 28. nº 3 (Outono, 1984). pp 291-309. American Association of Teachers of Slavic

and East European Languages, 1984.

___________________________________. “Pushkin’s Saturnine Cupid: The

poetics of Parody in The Tales of Belkin”. in PMLA, vol 96 nº 1 (Janeiro de 1981) pp. 8-

21. Modern Languages Association, 1981.

BURTSEV, V. "On New Translations of Pushkin (How Should Pushkin be

translated?)". in The Slavonic and East European Review. Vol. 15, nº 44 (Jan. 1937).

pp. 305-309. Maney Publishing. Londres, 1937.

BROWN, William Edward. A History of Russian Literature of the Romantic

Period. 4 v. Ann Arbor. Ardis, 1986.

Page 149: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

149

CROFT, Lee B. "People in Threes Going up in Smoke and Other Triplicities in

Russian Literature and Culture". Rocky Review of Language and Literature, Vol. 59 nº

2 (2005), pp. 29-47. Rocky Mountain Modern Language Association, 2005.

DAVYDOV, Serguei. "Pushkin's Merry Undertaking and 'The Coffinmaker'" in

Slavic Review, vol. 44 nº 1 (Primavera, 1985) pp. 30-48. The American Association for

the Advancement of Slavic Studies, 1985.

DAVIDSON, Pamela. "The Moral Dimension of the Prophetic Ideal: Pushkin and His

Readers". in Slavic Review, vol. 61 nº 3 (Outono, 2002) pp. 490-518. The American

Association for the Advancement of Slavic Studies, 2002.

DEBRECZENY, Paul. Social Functions of Literature – Aleksander Pushkin and

Russian Culture. Stanford. Stanford University Press. 1997.

DRIVER, Sam. "On a Source for Pushkin's 'The Lady Peasant'" in The Slavic and

East European Journal, Vol. 26. nº 1 (Primavera, 1982). pp 1-11. American

Association of Teachers of Slavic and East European Languages, 1982.

EIDELMAN, Natan Iakovlevitch. Пушкин и Декабристы. Ed. Художественная Литература. Moscou, 1979.

EIKHENBAUM, Boris. “Пушкин путь в прозе” in О прозе, о поезий. Ed. Художественная Литература. São Petersburgo, 1986.

GALTSEVAIA, R. A. (org.) Пушкин в Русской Философской Критике.

Moscou. Книга, 1990.

GREGG, Richard. "A Scapegoat for All Seasons: The Unity and the Shape of the

Tales of Belkin". in Slavic Review, vol. 30 nº4 (Dec. 1971) pp. 748-761. The American

Association for the Advancement of Slavic Studies, 1971.

Page 150: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

150

______________. "Pushkin's Novelistic Prose: A Dead End?" in Slavic Review,

vol. 57 nº 1 (Primavera, 1998) pp. 1-27. The American Association for the Advancement

of Slavic Studies, 2002.

GREENLEAF, Monika e MOELLER-SALLY, Stephen (org.) Russian Subjects –

Empire, Nation and the Culture of the Golden Age. Evanston, Illinois. Northwestern

University Press, 1998.

GREENLEAF, Monika. Pushkin and the Romantic fashion – Fragment, Elegy,

Orient, Irony. Stanford. Stanford University Press, 1994.

HELFANT, Ian M. "Pushkin's Performances as a Gambler" in Slavic Review, vol. 58

nº 2 Edição Especial: Aleksandr Pushkin 1799-1999 (Verão, 1999) pp. 371-392. The

American Association for the Advancement of Slavic Studies, 1984.

JAKOBSON, R. “Notas à Margem do Evguiêni Oniêguin”. in Caderno de

Literatura e Cultura Russa. Ateliê Editorial: São Paulo, 2004

___________. Russie folie poésie; Tradução de Nancy Huston, Marc B. de

Launay e André Markowicz. Paris. Ed. Seuil, 1986.

LEDNICKI, Waclaw. “Bits of Table Talk in Pushkin III. The Snowstorm”. in

American Slavic and East European Review, Vol. 6 nº 3/4 (Fev. 1947) pp. 110-133.

The American Association for the Advancement of Slavic Studies, 1947.

MAGUIRE, Robert A. "A. S. Pushkin: Notes on French Literature". American

Slavic and East European Review, Vol. 17 nº 1 (Fev. 1958) pp. 101-109. The American

Association for the Advancement of Slavic Studies, 1958.

NAZARIO, Helena. A Filha do Capitão e o Jogo das Epígrafes. Editora

Perspectiva. São Paulo, 1981.

Page 151: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

151

SHAW, J. Thomas. Resenha: "The Other Pushkin: a Study of Alexander Pushkin's

Prose Fiction, by Paul Debreczeny; Walter Arndt" in Slavic Review, vol. 43 n º3

(Outono, 1984) pp. 514-515. The American Association for the Advancement of Slavic

Studies, 1984.

_______________. "Pushkin's 'The Stationmaster' and the New Testament Parable"

in The Slavic and East European Journal, Vol. 21. nº 1 (Primavera, 1977). pp 3-29.

American Association of Teachers of Slavic and East European Languages, 1977.

SHVARZBAND, Sh. "The Genesis of Pushkin's 'Tales of Belkin'". in The Slavonic

and East European Review. Vol. 68, nº 4 (Out. 1990). pp 616-630. Maney Publishing.

Londres, 1990.

STEINER, Lina. "Pushkin's Parable of the Prodigal Daughter: The Evolution of the

Prose Tale from Aestheticism to Historicism" in Comparative Literature, Vol. 56 nº 2

(Primavera, 2004), pp. 130-146. University of Oregon, 2004.

ТINÁNOV, I. Критика, История Литературы. Ed. Азвука-Классика. São

Petersburgo, 2001.

__________. Пушкин и его Современники. Ed. Наука. Moscou, 1969.

TOMACHEVSKI, Boris. Пушкин: работы разных лет. Книга. Moscou, 1990.

WARD, Dennis. "The Structure of Pushkin's 'Tales of Belkin'" in The Slavonic

and East European Review. Vol. 33, nº 81 (Jun. 1955). pp 516-527. Maney Publishing.

Londres, 1955.

WINNER, Thomas G. "The History of the Village of Goriukhino". Russian

Review, Vol. 13 nº 2 (Abril, 1954) pp. 120-136. Blackwell Publishing. 1954

Page 152: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

152

3. Geral

AGAMBEN, Giogio. “O autor como gesto”. in Profanações. Boitempo. São Paulo,

2007.

AMÉRICO, Edelcio Rodiney. Texto de São Petersburgo na Literatura Russa.

Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2006.

ANGELIDES, Sophia. A. P. Tchekhov: cartas para uma poética. Edusp. São

Paulo, 1995.

AVDEEV, A. Blum, A. Troitskaia, I. Juby, H. "Peasant Marriage in Nineteenth-

Century Russia". Population, (English Edition, 2002-) Vol. 59 nº 6 (Nov. - Dec, 2004)

pp. 721-764. Institut National d'Études Démographiques, 2004.

ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. Duas

Cidades; Ed. 34. São Paulo 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética – a Teoria do Romance.

Ed. Hucitec: São Paulo, 2002.

BAPTISTA, Abel Barros. A Formação do Nome – Duas Interrogações sobre

Machado de Assis. Editora da Unicamp, Campinas. 2003.

BARTHES, R. “The death of the author” in The Norton Anthology of Theory and

Criticism.Vincent B. Leitch (org.). Norton. New York, 2001.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e

história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Editora Brasiliense. São Paulo,

1996.

Page 153: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

153

BETHEA, David M. "Bakhtinian Prosaics versus Lotmanian 'Poetic Thinking': The

Code and its Relation to Literary Biography" in The Slavic and East European

Journal, Vol. 41 nº 1 (Primavera, 1997), pp. 1-15. American Association of Teachers of

Slavic and European Languages, 1997.

BURKE, Seán. The death and return of the author : criticism and subjectivity

in Barthes, Foucault and Derrida. Edinburgh University Press. Edimburgo, 1999

CHKLOVSKI, Victor. Sur la théorie de la prose. L’Age d’Homme. Lausanne,

1973.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum.

UFMG: Belo Horizonte, 2001.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Passagens: Lisboa, 1992.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. Ática. São Paulo, 1985.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Tradução de Lawrence

Flores Pereira. Editora 34. São Paulo, 1998.

HANSEN, João Adolfo. “O Autor”, in JOBIM, J. L. (org.) Palavras da crítica:

Tendências e Conceitos No Estudo da Literatura. Rio de Janeiro. Imago, 1992.

HAMMARBERG, Gita. From the idyll to the novel: Karamzin’s sentimentalist

prose. Cambridge University Press, 1991.

JONES, Malcolm V. e MILLER, Robin Feuer. The Cambridge companion to the

classic russian novel. Cambridge University Press. Cambridge, 1998.

Page 154: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

154

LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e Melancolia. São Paulo:

EDUSP, 2002.

LEITCH, Vincent B. (org.). The Norton anthology of theory and criticism.

Norton. Nova York, 2001.

LIMA, Luiz Costa. (org.). Teoria da literatura em suas fontes. Civilização

Brasileira, 2002.

LUKÁCS, György. A Teoria do Romance. Tradução, posfácio e notas de José

Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.

MAGALHÃES JÚNIOR, R. A Arte do Conto. Bloch. Rio de Janeiro, 1972.

MOSER, Charles A., ed. The Cambridge History of Russian Literature.

Cambridge : Cambridge University Press, 1999.

MORETTI, Franco. “Conjectures on World Literature” in New Left Review,

Janeiro-Fevereiro de 2000. http://www.newleftreview.org/A2094 (Maio, 2009).

REID, Ian. The Short Story. Ed. Methuen & Co. Londres, 1977.

STEINER, George. Depois de Babel – Questões de linguagem e tradução.

Tradução de Carlos Alberto Faraco. Editora da UFPR. Curitiba, 2005.

TELLES, Norma. “Autora+a”. in JOBIM, J. L. (org.). Palavras da crítica:

Tendências e Conceitos No Estudo da Literatura. Rio de Janeiro. Imago, 1992.

TERRAS, V. "A Christian Revolution in Russian Literary Criticism" in The Slavic

and East European Journal, Vol. 46. nº 4 (Inverno, 2002). pp 769-776. American

Association of Teachers of Slavic and East European Languages, 2002.

Page 155: A literatura e seus variados fins dméstcos: tradução e comentário … · 7 introduÇÃo 9 traduÇÃo dos contos 16 do editor 16 a nevasca 21 a senhorita camponesa 34 sobre “a

155

TOLEDO, Dionisio de Oliveira; FILIPOUSKI, Ana Maria Ribeiro (org.). Teoria da

literatura: formalistas russos. Globo. Porto Alegre, 1978.