A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

download A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

of 155

Transcript of A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    1/155

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Eliane Domingues

    ENTRE A UTOPIA E O MAL-ESTAR : REFLEXES PSICANALTICAS

    SOBRE OS MILITANTES DOMST E SEUS DILEMAS

    DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

    SO PAULO

    2011

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    2/155

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Eliane Domingues

    ENTRE A UTOPIA E O MAL-ESTAR : REFLEXES PSICANALTICAS

    SOBRE OS MILITANTES DOMST E SEUS DILEMAS

    DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

    Tese apresentada Banca Examinadora daPontifcia Universidade Catlica de SoPaulo, como exigncia parcial para obtenodo ttulo de Doutor em Psicologia Social soborientao da Prof. Dr. Miriam DebieuxRosa

    SO PAULO

    2011

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    3/155

    Banca Examinadora

    _____________________________

    _____________________________

    _____________________________

    _____________________________

    _____________________________

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    4/155

    Aos militantes doMST

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    5/155

    AGRADECIMENTOS

    Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa, pelo acolhimento, disponibilidade e

    orientao que foram fundamentais para elaborao desta tese.

    Aos Profs. Dr. Jos Moura Gonalves Filho e Dr. Salvador Meireles Sandoval,

    pelas sugestes e questes propostas por ocasio do exame de qualificao. Dra.

    Maria Rita Bicalho Kehl pelos questionamentos feitos no exame de qualificao. Ao

    Prof. Dr. Edson Andr de Sousa pelos textos sugeridos e enviados.

    Aos amigos que me apoiaram, compartilharam minhas angstias, leram partes

    do texto e deram valiosas sugestes. Especialmente a: Sandra Luzia Alencar, Glaucia

    Valria de Brida, Viviane do Carmo Catroli, Maria Therezinha Loddi Liboni e Max

    Rogrio Vicentin.

    todos estudantes que participaram desta pesquisa e coordenao da escola de

    agroecologia do MST que tornaram a realizao desta pesquisa possvel.

    Aos meus pais Adilson e Maria Dirce e irms Analgia e Analia pelo apoio e

    compreenso.

    Ao Prof. Dr. Patrick Guyomard que me recebeu na Universit Paris 7 para o

    estgio de doutorado.

    Universidade Estadual de Maring e ao Departamento de Psicologia pelo

    afastamento concedido para realizao do doutorado.

    Ao CNPq e CAPES pelas bolsas concedidas, no Brasil e na Frana.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    6/155

    DOMINGUES, Eliane

    Entre a utopia e o mal-estar:

    reflexes psicanalticas sobre os militantes do MST e seus dilemas

    RESUMO

    O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi fundado oficialmente em1984 e atualmente est presente em 23 estados e no Distrito Federal. Envolve cerca de1,5 milho de pessoas, das quais aproximadamente 400 mil esto em acampamentos.Seus principais objetivos, desde sua fundao, so: lutar pela terra, lutar pela reformaagrria e lutar por uma sociedade mais justa e fraterna. (MST, 2009). Passados mais de

    25 anos de existncia do MST, muitos conquistaram a terra, mas a reforma agrria e as

    almejadas transformaes sociais, ideais que movem os militantes, ainda esto longe daconcretizao. Diante deste contexto, nesta pesquisa indagou-se: como os militantesvivenciam a distncia entre a sociedade atual e a sociedade pela qual eles lutam, umasociedade justa e fraternapara todos? Como os militantes vivenciam a tenso existenteentre viver em uma sociedade capitalista sustentando valores e ideais socialistas? Comose faz presente no cotidiano dos militantes a tenso existente entre as exigncias ecobranas do coletivo (MST) e do prprio sujeito (supereu) e os ideais (sociais einstncia psquica)? Estas questes foram formuladas a partir do que os prpriosmilitantes do MST apresentaram como sendo os dilemas que eles enfrentam em seu

    cotidiano e constituem o objeto de investigao dessa tese. Os referenciais tericosadotados foram a psicanlise e a metodologia de pesquisa pesquisa-interveno

    psicanaltica. Partiu-se da ideia de Freud (1927) de que algumas classes, grupos esujeitos pagam um a mais de sacrifcio para viver na cultura e desenvolveu-se ahiptese de que o militante, ao no aceitar o a mais de sacrifcio imposto para sua

    classe, acaba pagando um a mais por sua condio de militante, o que no significa

    apenas trocar um a mais de sacrifcio por outro, pois os novos sacrifcios so pagoscom um lugar social dentro do MST e com a possibilidade de uma revitalizaonarcsica dos sujeitos, ou seja, so pagos com um a mais de satisfao possibilitada

    pela adeso a ideais. Para que os ideais continuem movendo os sujeitos, necessrioque entre eles e o estado atual seja do sujeito seja da sociedade sempre deve existiruma distncia. Algo sempre deve faltar para que o desejo siga seu curso, mas o que falta

    para os sujeitos no serem lanados na angstia deve-se ancorar em um projeto defuturo, em uma esperana. isto que faz o MST: oferece aos sujeitos, um projeto defuturo, uma esperana. Seus militantes pagam o preo pelo desejo que os move, masnem por isto deixam de apostar no desejo, mesmo que lhes custe uma libra de carne.Palavras-chave:militante; MST; psicanlise; narcisismo; sacrifcio.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    7/155

    DOMINGUES, Eliane

    Between utopia and discontents:

    Psychoanalytical reflexions on MST1militant and their dilemmas

    ABSTRACT

    MST was officially founded in 1984 and is nowadays present at 23 states and thefederal district. It involves nearly 1.5 million people and about 400 thousand are atcamps. Its main aims, since the foundation, are: fighting for land, fighting for land

    reform, and fighting for a more fraternal and fair society (MST, 2009). Having passedmore than 25 years of existence, many conquered their land, but land reform and thedesired social transformations, ideals that move militants, are still far from achievement.

    Before this context, this research has asked: how do militants experience the distancebetween current society and the society they fight for, which is equal and fraternal toall? How do they experience the tension between living in a capitalist society supportingsocialist values and ideals? How is tension between demanding and charges fromcollective (MST) and the ideals (social and psychic ambits) present at militants

    everyday life? These questions were formulated from what the MST militantsthemselves present as being the dilemmas they face and they constitute as object ofresearch of this thesis. The theoretical reference adopted was psychoanalysis andresearch methodology psychoanalytical intervention research. It was built on Freudsidea (2007/1927) that some classes, groups, and subjects pay more sacrifice to live inthe culture and developed the hypothesis that the militant, for not accepting this more

    of sacrifice imposed by his class, ends up paying more for his militant condition, whatdoes not simply mean exchange this more sacrifice for other, as new sacrifices are

    paid with a social place inside MST and with the possibility of a subject narcissisticrevitalization, that is, they are paid with more satisfaction enabled by ideals adhesion.In order to the ideals keep moving the subjects, it is necessary that between them andthe current state of the subject or society always exist some distance. Somethingshould always be missing so that the desire keeps flowing, but what misses to thesubjects not be woeful, is to be based on a future project, some hope. This is what MSTdoes: offer to subjects a future Project, a hope. Its militants afford the desire that movesthem, but always bet on it, even if it costs them a pound of flesh.

    Keywords: militant; MST; psychoanalysis, narcissism; sacrifice.

    1MST in Portuguese stands for Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, which is a movement ofrural workers who claim for their rights of having their own land to work and live.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    8/155

    DOMINGUES, Eliane

    Entre la utopa y el malestar:

    reflexiones psicoanalticas sobre los militantes de MST y sus dilemas

    RESUMEN

    El Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST) fue fundado oficialmenteen 1984 y actualmente est presente en 23 estados y en el Distrito Federal. Tiene cercade 1,5 millones de personas, de las cuales aproximadamente 400 mil estn encampamentos. Sus principales objetivos, desde su fundacin, son: luchar por la tierra,luchar por la reforma agraria y luchar por una sociedad ms justa y fraterna. (MST,

    2009). Pasados ms de 25 aos de existencia de MST, muchos conquistaron la tierra,pero la reforma agraria y las anheladas transformaciones sociales, ideales que mueven alos militantes, an estn lejos de la concretizacin. Delante de este contexto, en estainvestigacin se indag: cmo los militantes viven la distancia entre la sociedad actualy la sociedad por la cual ellos luchan, una sociedad justa y fraternapara todos? Cmolos militantes viven la tensin existente entre vivir en una sociedad capitalistasosteniendo valores e ideales socialistas? Cmo se hace presente en el cotidiano de losmilitantes la tensin existente entre las exigencias y cobro del colectivo (MST) y del

    propio sujeto (superyo) y los ideales (sociales e instancia psquica)? Estas cuestionesfueron formuladas a partir de lo que los propios militantes de MST presentaron comosiendo los dilemas que ellos enfrentan en su cotidiano y constituyen el objeto deinvestigacin de esta tesis. El referencial terico adoptado fue el psicoanlisis y lametodologa de investigacin la investigacin-intervencin psicoanaltica. Se parti de

    la idea de Freud (2007/1927) de que algunas clases, grupos y sujetospagan un a msde sacrificio para vivir en la cultura y se desarroll la hiptesis de que el militante, al noaceptar el a ms de sacrificio impuesto para su clase, acaba pagando un a ms por

    su condicin de militante, lo que no significa apenas cambiar un a ms de sacrificiopor otro, pues los nuevos sacrificios son pagados con un lugar social dentro de MST ycon la posibilidad de una revitalizacin narcsica de los sujetos, o sea, son pagados conun a ms de satisfaccinposibilitada por la adhesin a ideales. Para que los idealescontinen moviendo a los sujetos, es necesario que entre ellos y el estado actual sea

    del sujeto sea de la sociedad siempre debe existir una distancia. Algo siempre debefaltar para que el deseo siga su curso, pero lo que falta para que los sujetos no seantirados a la angustia se debe basar en un proyecto de futuro, en una esperanza. Es esto

    que hace MST: ofrece a los sujetos, un proyecto de futuro, una esperanza. Sus militantespagan el precio por el deseo que los mueve, pero ni por esto dejan de apostar en eldeseo, mismo que les coste una libra de carne.

    Palabras clave:militante; MST; psicoanlisis; narcisismo; sacrificio.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    9/155

    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................................9

    PARTE I: APRESENTAO DO MST E DA METODOLOGIA DA PESQUISA.......14CAPTULO 1 : ORIGEM E MODERNIDADE DO MST............................................15

    1.1.A luta pela terra no Brasil e o surgimento do MST: violncia ecriminalizao......................................................................................................151.2. A influncia da Igreja e construo dos objetivos do MST..........................221.3. Educao e emancipao: a modernidade do MST......................................26

    CAPTULO 2 : O CAMPO E A METODOLOGIA DA PESQUISA ........................302.1. As escolas de agroecologia do MST no Paran............................................312.2. O contato inicial com a escola......................................................................352.3. A pesquisa-interveno................................................................................372.4.Por que pesquisa-interveno psicanaltica?..................................................43

    PARTE II: UTOPIA E MILITNCIA...................................................................................48CAPTULO 1: UTOPIAS E/OU IDEAIS SOCIAIS......................................................49

    1.1.Utopias ..........................................................................................................491.2.Utopia, sonho e desejo...................................................................................581.3.Utopia e ideais sociais....................................................................................62

    CAPTULO 2: MILITNCIA E MST............................................................................702.1.Militncia hoje...............................................................................................702.2.Militantes do MST.........................................................................................772.3.Militncia e psicanlise .................................................................................81

    PARTE III: OS DILEMAS DOMILITANTE DO MST PENSADOS A PARTIR DAPSICANLISE ................................................................................................................91CAPTULO 1 : SACRIFCIO, MAL-ESTAR E MILITNCIA .................................92

    1.1O sacrifcio de si............................................................................................921.2O sacrifcio pulsional.....................................................................................971.3O sacrifcio na ps-modernidade.............................................................101

    CAPTULO 2 : IDEAIS, EXIGNCIAS E IDENTIDADE SEM TERRA..................1062.1 O narcisismo e a constituio do eu ideal...................................................1072.2 Eu ideal e ideal do eu: algumas consideraes ps-freudianas...................1102.3 A articulao aos ideais...............................................................................1122.4 As exigncias internas e externas: o supereu entra em cena.......................114

    2.5 Identidade e identificaes..........................................................................119CAPTULO 3: A HUMILHAO SOCIAL E A LUTA PORRECONHECIMENTO..................................................................................................126

    3.1. A humilhao social e a luta por reconhecimento......................................126

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................138

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................................142

    ANEXO....................................................................................................................................153

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    10/155

    9

    INTRODUO

    O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi fundado

    oficialmente em 1984 e atualmente est presente em 23 estados e no Distrito Federal.

    Envolve cerca de 1,5 milho de pessoas, das quais aproximadamente 400 mil esto em

    acampamentos. Seus principais objetivos, desde sua fundao, so: lutar pela terra,

    lutar pela reforma agrria e lutar por uma sociedade mais justa e fraterna. (MST,

    2009).

    A conquista da terra, a reforma agrria e uma sociedade mais justa e fraterna

    para todos so os ideais que unem os integrantes no MST e os mobilizam a participar do

    movimento; porm nem todos os integrantes aderem da mesma forma a estes ideais.

    Enquanto os militantes lutam pela terra, pela reforma agrria e pela construo de uma

    nova sociedade, os integrantes que compem a base lutam pela terra e no

    necessariamente aderem luta pela reforma agrria e por uma sociedade mais

    igualitria. So diferentes ideais articulados que unem e mobilizam os integrantes do

    MST1.

    Passados mais de 25 anos de existncia do MST, muitos conquistaram a terra.

    Cerca de 350 mil famlias esto assentadas, distribudas em reas que, se somadas,

    chegam a 14 milhes de hectares (STDILE, 2008); mas a reforma agrria e as

    almejadas transformaes sociais, ideais que movem os militantes, ainda esto longe da

    concretizao.

    Mesmo para aqueles que tm como ideal a conquista da terra e esto assentados,

    este fato no significa que eles tenham chegado ao paraso, pois novos problemas

    surgem e muitas das antigas dificuldades continuam, como o acesso sade, educao

    e moradia. A conquista da terra importante, mas h sempre algo que falta e em

    muitos casos este algo sempre muito. No que diz respeito aos militantes, a conquistada terra representa apenas um passo rumo a transformaes mais amplas e estruturais:

    como eles vivenciam a distncia entre a sociedade atual e a sociedade pela qual eles

    lutam, uma sociedade justa e fraternapara todos; como os militantes vivenciam a tenso

    existente entre viver em uma sociedade capitalista sustentando valores e ideais

    socialistas; como eles so afetados pelos ideais particularistas de consumo vigentes na

    sociedade na qual vivemos; e como se faz presente no cotidiano dos militantes a tenso

    1Esta foi uma das concluses da dissertao de mestrado da autora: A luta pela terra e o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra: contribuies da psicanlise.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    11/155

    10

    existente entre as exigncias e cobranas do coletivo (MST) e do prprio sujeito

    (supereu) e os ideais (sociais e instncia psquica). Estas questes constituem o objetivo

    principal dessa pesquisa, que tambm buscou investigar como os militantes do MST

    vivenciam situaes de violncia e o dilema militncia x famlia.

    O interesse em investigar estas questes surgiu a partir da participao da autora

    no seminrio Subjetividade e a questo da terra2, evento em que os militantes do MST

    expuseram quais so as tenses, desafios e conflitos que eles enfrentam na luta pela

    terra. Certamente a palavra dilema no d conta de expressar tudo isto, mas foi

    adotada nesta pesquisa porque era esta a palavra que os militantes muitas vezes

    empregavam para expressar o conjunto das tenses, dos desafios e dos conflitos que

    eles vivem em seu cotidiano.

    Acreditando na fecundidade de uma leitura psicanaltica destas questes, essa

    pesquisa tambm visa trazer contribuies para o estudo da articulao entre o psquico

    e o social, tendo como base a anlise de um movimento social genuinamente brasileiro e

    focando especificamente seus militantes com seus dilemas. No se trata, porm, de uma

    pesquisa de psicanlise aplicada, mas sim, de uma pesquisa de psicanlise implicada.

    Isto quer dizer que se busca evitar o modo de fazer pesquisa que ficou conhecido

    como psicanlise aplicada3, no sentido que esta ltima adquiriu depois de Freud, de ser

    uma mera extenso dos conceitos psicanalticos a outros campos supostamente

    estranhos sua origem. Em Freud, segundo Plon (1999), temos a teoria psicanaltica e

    as aplicaes da psicanlise que incluem a prtica clnica e os estudos referentes a

    fenmenos sociais, cultura e arte , que constituram a base para construo da

    teoria psicanaltica. Depois de Freud, a teoria psicanaltica e a clnica passaram a ser

    entendidas como a psicanlise pura, sem adjetivos, enquanto a psicanlise aplicada,

    que diz respeito a estudos referentes a fenmenos sociais, cultura e arte, passou a ser

    entendida como lugar de mera demonstrao do que supostamente a psicanlise j sabia.Por no se pretender fazer a demonstrao dos conceitos psicanalticos e para evitar

    toda a controvrsia que acompanha a denominao psicanlise aplicada, optou-se pela

    denominao psicanlise implicada; implicada tanto por levar em conta os modos

    singulares de formular a militncia quanto por enfatizar o posicionamento tico-poltico

    2O seminrio Subjetividade e a questo da terrafoi realizado em 2004, fruto de uma parceria entre oConselho Federal de Psicologia (CFP) e o MST. Dele participaram pouco mais de 20 pessoas, entre

    psiclogos e militantes do MST e seu objetivo foi a aproximao dos psiclogos das demandas epropostas dos trabalhadores do campo, no caso daqueles que integravam o MST3 Discutimos esta ideia em ROSA; DOMINGUES, 2010.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    12/155

    11

    do pesquisador, que no um observador externo ao objeto observado, mas implicado

    e comprometido com os participantes da pesquisa, com a escolha do tema e da

    metodologia e com o recorte do objeto. Feitas estas consideraes, apresentar-se- na

    sequncia a estrutura geral da pesquisa, que foi organizada em trs partes.

    A primeira parte tem como objetivo fazer uma breve apresentao do MST e da

    metodologia da pesquisa. No primeiro captulo resgatam-se episdios das lutas

    camponesas no Brasil at chegar ao surgimento e constituio do MST. Destaca-se a

    criminalizao e a violncia de que foram vtimas aqueles camponeses que ousaram se

    mobilizar contra a explorao, a expropriao e expulso do campo, assim como a

    modernidade do MST, suas conquistas e sua contribuio para a emancipao de

    milhares de camponeses. No segundo captulo so descritos o campo da pesquisa e a

    metodologia adotada: a pesquisa-interveno psicanaltica, uma das alternativas

    possveis dentro do que se entende como psicanlise implicada. O campo foi uma escola

    de agroecologia do MST, e os participantes, militantes em formao que estudavam

    nesta escola. A proposta foi realizar um trabalho de pesquisa-interveno/escuta que,

    alm do levantamento e discusso dos dilemas do militante, tambm proporcionasse um

    espao de palavra e reflexo, em que os sujeitos pudessem expressar suas

    singularidades, falar de si prprios e de sua percepo de mundo. A demanda de um

    trabalho deste tipo foi levantada no Seminrio Subjetividade e a questo da terra e

    tambm se fez presente no grupo participante desta pesquisa. Assim, a pesquisa-

    interveno psicanaltica teve como objetivo atender a uma demanda levantada pelos

    prprios militantes do MST, a da criao de um espao de escuta para seus dilemas e ao

    mesmo tempo de um espao que produzisse relatos que pudessem ser tematizados como

    objetos de pesquisa.Neste captulo tambm se descreve como foi organizado este

    espao, com encontros temticos em pequenos grupos, e ao final do captulo so

    apresentados os pressupostos orientadores da pesquisa-interveno psicanaltica.A segunda parte, composta de dois captulos, dedicada ao tema da utopia e a da

    militncia. No primeiro captulo se discorre sobre utopia, tema que surgiu no decorrer

    do percurso da pesquisa. Na pesquisa de mestrado da autora, uma das concluses foi

    que os militantes do MST so movidos pelo ideais revolucionrios sustentados pelo

    movimento, porm aquilo que era chamado por mim de ideais, outras pesquisas

    chamavam de utopia. Da surgiu o questionamento: utopia e ideais podem ser tomados

    como sinnimos? A partir deste questionamento adentrou-se no campo da utopia, oumelhor, das utopias. Inicia-se o captulo com a conceituao da utopia no campo

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    13/155

    12

    filosfico at chegar ao campo da psicanlise, buscando-se a articulao entre o que

    da ordem do social (utopias/ideais sociais) e que da ordem do psquico (sonho, desejo,

    ideal do eu e narcisismo). No final do primeiro captulo buscou-se responder questo

    que motivou a sua escrita. O segundo captulo teve como objetivo apresentar uma

    caracterizao do que ser militante na atualidade, do que ser militante doMST e

    trazer as contribuies da psicanlise para pensar a temtica da militncia. Em um

    contexto de declnio das grandes narrativas, em que os movimentos sociais privilegiam

    o agir no aqui e agora em detrimento do debate doutrinrio e em que a militncia

    associada ideia de livre servio, o MST parece nadar contra a corrente e mostra

    que os ideais revolucionrios ainda esto vivos, que possvel agir no aqui e agora sem

    deixar de lado o debate doutrinrio, e que ainda existem militantes que se engajam de

    corpo e alma. Tal engajamento no sem consequncias para ao militante do MST e

    est profundamente relacionado constituio dos dilemas que ele vivencia em seu

    cotidiano, tema abordado na terceira e ltima parte do trabalho.

    O dilema traz a ideia de uma escolha que sempre insatisfatria e difcil e que

    traz sempre sofrimento para aquele que deve escolher. Sempre h um preo a pagar pela

    escolha feita. Antes da possibilidade de qualquer escolha, no entanto, o sujeito humano

    paga um preo por viver na cultura, preo que, como diz Freud (1927), no igual para

    todos, pois determinadas classes, grupos e sujeitos pagam um preo mais alto que outros

    e tm menos acesso aos benefcios. A partir desta ideia de Freud, entende-se nessa

    pesquisa que, para abordar os dilemas do militante do MST, deve-se considerar este

    contexto anterior no qual se constituem as possibilidades de escolha do militante, e que

    uma vez feita a escolha, tem-se uma nova conta a pagar, riscos e contradies a

    enfrentar. Vejamos como estas questes foram abordadas nos trs captulos que compe

    a ltima parte da tese.

    O primeiro captulo da ltima parte, Sacrifcio, mal-estar e militncia,tem comoobjetivo apresentar este contexto em que se constituem os dilemas do militante do MST

    e tambm discutir a ideia de que o militante aquele que se sacrifica por uma causa.

    Neste sentido, foi proposta a questo: O que o militante do MST sacrifica?. Dois

    autores foram utilizados para discutir a noo de sacrifcio: Rosolato (2004a , 2004b) e

    a noo de sacrifcio de si (da razo, dos bens e da prpria vida) e Freud (1927, 1930) e

    a noo de sacrifcio pulsional como o preo que se paga para viver na cultura. O

    dilema militncia x famlia e o risco de morte que o militante enfrenta so pensados apartir das ideias dos autores citados. A hiptese desenvolvida neste captulo de que o

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    14/155

    13

    militante, ao no aceitar o a mais de sacrifcio imposto para sua classe, acaba pagando

    um a mais por sua condio de militante, porm isto no significa trocar um a mais

    de sacrifcio por outro, pois os novos sacrifcios so pagos com um lugar social dentro

    do movimento e com a possibilidade de uma revitalizao narcsica dos sujeitos.

    O segundo captulo da ltima parte, Ideais, exigncias e identidade, parte do

    conceito de narcisismo para pensar a militncia do MST. A hiptese desenvolvida

    que a militncia no MST pode possibilitar certa revitalizao narcsica ao militante, pela

    adeso aos ideais sociais sustentados pelo movimento; porm, se por um lado a adeso a

    ideiais sociais traz certa satisfao narcsica para o sujeito, por outro esses ideais vm

    acompanhados de exigncias, e no caso da adeso ao MST, da identidade de sem-terra.

    Os ideais, como diz Bloch (2005), agem de modo exigente, sendo difcil separ -los

    das exigncias que os acompanham. Este lado exigente dos ideais Freud chamou de

    supereu. Esta tenso entre ideais e exigncias e as implicaes que a identidade de sem-

    terra traz para o sujeito so as questes abordadas nesse captulo.

    O terceiro captulo da ltima parte, A humilhao social e a luta por

    reconhecimento, no propriamente um dilema enfrentado pelos militantes do MST,

    pelo menos no depois que eles aderiram ao MST que luta tambm por reconhecimento.

    Isto quer dizer que os militantes j escolheram a luta por reconhecimento, embora no

    deixem de ser marcados e afetados e sofram com a humilhao social. A humilhao

    social continua gerando dor que precisa ser cotidianamente transformada em luta. Esta

    questo abordada nesse captulo, que parte do sentido etimolgico da humilhao,

    mostra como esta pode ser pensada pela psicanlise, apresenta relatos de humilhao e

    chega no contraponto da humilhao social: a revolta e a luta por reconhecimento

    jurdico e social.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    15/155

    14

    PARTE I: APRESENTAO DO MST E DA METODOLOGIA DA PESQUISA

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    16/155

    15

    CAPTULO 1 : ORIGEM E MODERNIDADE DO MST

    A luta pela terra em um pas como nosso - de dimenses continentais e fartura de

    terras agricultveis - um paradoxo bastante anterior ao surgimento do MST, assim

    como a criminalizao daqueles que so vtimas. Resgatar, ainda que brevemente, um

    pouco desta histria o ponto de partida deste trabalho. Inicia-se o texto com a citao

    das guerras de Canudos e do Contestado, episdios que no so de luta pela terra ou

    reforma agrria, mas j mostram a insatisfao e revolta no campo daqueles que no

    tm direitos. Em seguida trata-se da Guerra de Porecatu e da revolta dos posseiros, em

    que a posse da terra passa a ser uma questo central, e das Ligas Camponesas, em que a

    reforma agrria se constitui como uma reivindicao dos camponeses, at chegar

    constituio e s reivindicaes do MST.

    1.1- A luta pela terra no Brasil e o surgimento do MST: violncia e

    criminalizao

    No existem naes felizes.E no existem ilhas onde o sangue humano j

    no volte a ser derramado.

    Mas verdade que coisas novas e melhores so construdas.Ainda que tenham de nascer em dor como os homens.

    (JASTRUN, 1954 citado por SZACHI, 1972)

    No final do sculo XIX e incio do sculo XX as guerras de Canudos (1896-

    1897), na Bahia, e do Contestado (1912-1916), nos limites dos estados do Paran e de

    Santa Catarina, representaram, de certa forma, movimentos de reao Repblica,

    embora no propriamente ao regime poltico republicano, mas ao significado que lhe foi

    atribudo pelo sertanejo: de uma nova ordem que favoreceu os poderosos e s instauroumais opresso. Em contraposio Repblica, estes movimentos defendiam a ideia de

    Monarquia, que significava uma nova ordem sem opresso.

    Tanto Canudos como o Contestado foram organizados ao redor de figuras

    mticas centrais:os profetas - Antnio Conselheiro em Canudos e Jos Maria e Joo

    Maria no Contestado - e podem ser entendidos como movimentos milenarista-

    messinicos. O milenarismo, segundo Hobsbawm (1970), tem carter revolucionrio em

    sua essncia, ao apontar para a ideia da transformao completa e radical do mundo que

    recair no milnio e livrar o mundo de todos os males. Apresenta as seguintes

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    17/155

    16

    caractersticas: 1) rejeio do mundo presente e uma nostalgia de um outro melhor; 2)

    uma ideologia padronizada do tipo quiliasta (tal como o messianismo judaico-cristo); e

    3) uma incerteza fundamental no que diz respeito a como a nova sociedade ser

    moldada. Segundo Ianni (1972, p.191), movimentos deste tipo so a primeira

    manifestao desesperada frente a uma situao de carncia extrema e expressam o

    descontentamento com a situao vivida.

    O fim destes movimentos, se eles se mantm isolados, a derrota

    (HOBSBAWAM, 1970). Foi assim que terminaram Canudos e o Contestado, com a

    derrota e o massacre dos sertanejos. Em Canudos, quatro expedies militares foram

    necessrias para destru-los: 5.200 casas foram queimadas e os habitantes encontrados

    foram degolados (CUNHA, 1902). O Contestado, que chegou a contar 20.000

    habitantes no auge do movimento, tambm teve como fim casas queimadas e

    prisioneiros degolados (QUEIROZ, 1977).

    Nas dcadas de 1940 e 1950 o Paran foi palco de dois grandes conflitos: a

    Guerra de Porecatu (1947-1953), no Norte do Estado, e a Revolta dos Posseiros (1950-

    1957), no Sudoeste, ambos iniciados por causa de despejos violentos de posseiros por

    jagunos e pelas tropas do Estado.

    O conflito de Porecatu teve incio quando o ento governador do Estado Moyss

    Lupion4 repassou terras a seus apadrinhados. Estas terras eram ocupadas por

    posseiros, que foram expulsos de forma violenta, ao que ficou conhecida como

    limpeza de rea. Diante da violncia sofrida, os posseiros procuraram apoio do

    Partido Comunista Brasileiro (PCB) e denunciaram a situao; porm, como nada foi

    feito, partiram para a luta armada. Foi somente quando Bento Munhoz da Rocha

    assumiu o governo do Estado, em 1951, que a situao foi resolvida e os posseiros que

    resistiram foram contemplados com lotes (RODRIGUES, 2006).

    Na Revolta dos Posseiros, novamente em cena o governador Moiyss Lupion.Desta vez, a concesso foi para mineradoras de carvo, serrarias e fbricas de papel. A

    transao ilcita feita pelo governador em 1950 foi anulada pela Unio em 1953, porm

    quando j estava instalado um clima de terror entre os posseiros da regio. Da mesma

    forma que na Guerra de Porecatu, as autoridades nada fizeram, e em 1957 os

    posseiros partiram para a luta armada, decididos a expulsar as companhias

    colonizadoras. Diante de tal situao de levante popular, o Governo Federal ordenou o

    fechamento das colonizadoras, sob ameaa de interveno no Estado. As colonizadoras4Moyss Lupion foi governador do Estado do Paran de 1947 a 1951 e 1956 a 1961.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    18/155

    17

    foram fechadas, mas a situao s se resolveu em 1962, quando os camponeses e

    posseiros, finalmente, conseguiram do Estado e da Unio a propriedade da terra

    (RODRIGUES, 2006).

    Nas dcadas de 1950 e 1960 comeou em Pernambuco o movimento das Ligas

    Camponesas, que depois se expandiu para os demais estados brasileiros. Foi a partir

    dele que a luta camponesa atingiu dimenso nacional, segundo Oliveira (1999).

    Inicialmente, as Ligas Camponesas eram compostas por foreiros camponeses que

    trabalhavam em uma terra que no era sua, devendo pagar o foro ao proprietrio.

    Diferente do posseiro, que se apossa de uma terra e l trabalha sem dever nada para

    ningum at ser expulso, o foreiro pagava valores exorbitantes para utilizar a terra.

    Assim, nem sempre o foreiro conseguia com seu trabalho o necessrio para sobreviver

    com sua famlia e pagar o foro. Diante da expulso iminente por no pagar o foro, um

    foreiro procura um membro do Partido Comunista, que, constatando a situao dos

    foreiros de uma forma geral, prope a formao de uma sociedade para aquisio de um

    engenho. Percebendo nesta sociedade um foco de subverso, o dono das terras do

    engenho Galileia (alugadas aos foreiros que formavam a sociedade) tentou interditar a

    sociedade e expuls-los. Os foreiros, ento, procuram um advogadoFrancisco Julio ,

    que j havia defendido causas de camponeses e aceitou a causa do grupo. Iniciada em

    1954, a luta judicial foi at 1959, quando o engenho Galileia foi desapropriado. No

    incio da dcada de 1960 as Ligas passam a lutar por reforma agrria e agregar ao redor

    de si outros camponeses alm dos foreiros. Com o golpe de 1964 elas foram extintas e

    tiveram muitos de seus dirigentes presos, torturados ou mortos (BASTOS, 1984)

    No final da dcada de 1970 surge o MST, fruto da expulso do campo e

    expropriao de inmeros trabalhadores rurais. Segundo Stdile e Fernandes (1999), o

    aspecto socioeconmico foi o principal fator que contribuiu para o surgimento do

    movimento. Neste contexto, a dcada de 1970 pode ser apontada como um momentoparticularmente significativo, pela intensa mecanizao da agricultura brasileira e a

    consequente expulso do campo de milhes de trabalhadores rurais. Segundo Tarelho

    (1988),

    A modernizao da agricultura potencializou a produtividade dotrabalho e liberou um imenso contingente de mo de obra. S nadcada de 70, cerca de 15 milhes de pessoas migraram para ascidades, a maioria para as grandes metrpoles. Para se ter uma ideiamais concreta desta migrao preciso levar em conta que em duas

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    19/155

    18

    dcadas [de 1950 a 1970] a distribuio da populao, que era de 70%na zona rural e 30% na zona urbana, inverteu-se. (p.22)

    No Estado do Paran, estima-se que, em dez anos, 100 mil pequenos

    proprietrios foram expulsos do campo, somando-se a eles parceiros, posseiros earrendatrios, que tambm j vinham sofrendo com a expulso. Somente a construo

    da Hidreltrica Binacional de Itaipu, entre 1975 e 1977, deixou aproximadamente

    12.000 famlias sem terra e sem teto. As famlias desalojadas para a construo da

    hidreltrica que possuam o ttulo de propriedade da terra deveriam receber

    indenizaes, porm, aps trs anos da desapropriao, apenas algumas poucas famlias

    as haviam recebido, e ainda assim, em valores muito inferiores aos que de fato tinham

    as terras. Parte dos posseiros foi transferida para um projeto de colonizao no Acre e lfoi abandonada. Apoiados pela Comisso Pastoral da Terra (CPT) e por alguns

    sindicatos rurais, os camponeses que permaneceram na regio se organizaram no

    Movimento Justia e Terra para reivindicar aumento do valor das indenizaes e

    assentamento para os sem terra. Acamparam no trevo da hidreltrica e aps dois meses

    conseguiram assentamentos na regio. (MORISSAWA, 2001)

    Em 1981 a CPT passou a cadastrar outras pessoas interessadas em assentamento

    e criou o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paran (MASTRO). Nos

    anos seguintes outros movimentos foram criados: Movimento dos Agricultores Sem

    Terra do Sudoeste do Paran (MASTES), Movimento dos Agricultores Sem Terra do

    Norte do Paran (MASTEN), Movimento dos Agricultores Sem Terra do Centro-Oeste

    do Paran (MASTRECO) e o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Litoral do

    Paran (MASTEL). (MORISSAWA, 2001).

    Enquanto tudo isso acontecia no Paran, no Rio Grande do Sul, agricultores

    expulsos de uma reserva indgena no municpio de Nanoai recusaram-se a ser

    transferidos para projetos de colonizao do Mato Grosso, acamparam prximo

    reserva e conseguiram assentamento na regio. Em 1979, outro grupo de agricultores

    sem terra ocupa a fazenda Macali, no municpio de Ronda Alta, ato considerado um dos

    marcos histricos do nascimento do MST. Em 1980, cerca de trs mil pessoas

    acamparam na Encruzilhada Natalino5. No ano seguinte D. Pedro Casaldlia rezou uma

    missa em solidariedade aos agricultores sem terra e o fato foi divulgado para todo o

    5Entroncamento das estradas dos municpios de Ronda Alta, Sarandi e Passo Fundo, no Rio Grande doSul.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    20/155

    19

    Brasil. Na mesma poca, em Santa Catarina, no Mato Grosso do Sul e em So Paulo, os

    camponeses sem terra tambm se mobilizavam (MORISSAWA, 2001).

    Da unificao de todas as lutas dos agricultores sem terra do Centro-Sul que

    recusaram a proletarizao e a migrao e reivindicavam terras em suas regies de

    origem surgiu o MST. Cumpre observar que estes agricultores fundadores do MST

    correspondem a apenas uma parte dos expropriados e expulsos da terra, pois outra

    grande parte migrou para as cidades ou se deslocou em busca de novas terras em regies

    de colonizao em Rondnia, no Par e no Mato Grosso (STDILE; FERNANDES,

    1999). Muitos tambm foram para o Paraguai em busca de terras baratas e frteis, mas

    voltaram quando a modernizao da agricultura de l novamente os expulsou, sendo

    acolhidos pelo MST. (RODRIGUES, 2006)

    Somando-se violncia da expulso e da expropriao, o MST, tal como os

    movimentos que o antecederam, tambm enfrentou e enfrenta os assassinatos e a

    criminalizao de seus integrantes. Em 1995 e 1996 os assassinatos de trabalhadores

    sem terra de Corumbiara - MT e de Eldorado dos Carajs - PA deixaram trinta mortos.

    Nos ltimos dez anos, de 2001 a 2010, a CPT (2011a) registrou o assassinato de 360

    pessoas relacionado a conflitos pela terra.

    Rodrigues (2006), em sua dissertao de mestrado A violncia institucional

    como mtodo para lidar com a misria social, relata a intensa violncia que sofreu o

    MST no Paran. Entre seus relatos est o do assassinato de Teixeirinha, em 1993, pela

    polcia. Lder local do MST, Diniz Bento Teixeira da Silva foi preso e espancado,

    depois foi executado pela polcia com cinco tiros, durante o mandato do governador

    Roberto Requio. No entanto, foi durante os dois mandatos seguintes do governador

    Jaime Lerner que a violncia no campo tornou-se sistemtica, aproximando milcias

    armadas e o aparelho repressivo do Estado em aes violentas de despejo, com

    incndios de barracos e agresses fsicas aos camponeses. Vejamos um dos trechos dosrelatos de violncia apresentados na dissertao de Rodrigues (2006):

    No dia 08 de novembro de 1995, no municpio de Santa Isabel do Iva,norte do Estado, conforme dados da CPT e MST, ocorreu o projetopiloto a partir do qual se desenvolveriam as tticas de guerra paraas desocupaes das fazendas ocupadas por sem terras. A FazendaSaudade era uma rea desapropriada para a reforma agrria, com1.022 hectares. No entanto, sem mandado judicial, 90 policiaisinvadiram a rea e despejaram aproximadamente 30 famlias,

    queimando os barracos, utilizando bombas de gs lacrimogneo e tirosnas pernas e ps dos trabalhadores, o que levou Pedro Lopes dos

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    21/155

    20

    Santos, de 54 anos, a amputar a perna esquerda em virtude deferimentos bala e espancamento.O governo do Estado prometeu uma soluo para aquelas famlias.Passados dois anos sem a prometida soluo, 46 famlias reocuparamessa fazenda, em fevereiro de 1997. Em setembro do mesmo ano,cerca de 80 homens encapuzados e armados com fuzis, escopetas,metralhadoras e coletes prova de bala, invadiram a fazenda, dizendoque estavam procurando as lideranas do MST. Queimaram todos osbarracos, inclusive um carro que estava no local, espancaram aslideranas e atiraram aleatoriamente contra todo o acampamento.Posteriormente, os sem terra foram delegacia para registrar aocorrncia. Entretanto, o delegado se recusou a registr-la. Estaatitude revelava os primeiros indcios de uma posio poltica deintensificao do vnculo entre governo estadual e latifundirios,grande parte deles organizado na UDR. (p.105-106)

    Estes fatos mostram que a violncia no campo no algo somente do passado,

    mas acompanha toda a nossa histria e convive com o mito da no violncia da

    sociedade brasileira. Diante desta contradio, Chau (1998) questiona: como possvel

    que o mito da no violncia ainda se sustente, mesmo com a grande divulgao da

    violncia real pelos meios de comunicao? E esclarece:

    Pois bem, justamente na maneira de interpretar a violncia que omito encontra os mecanismos de conservao: graas a ele se podeadmitir a existncia emprica da violncia e, de maneira simultnea,podem se fabricar explicaes para neg-la no instante em que seproduz. (p.36)6

    Assim, a violncia aparece como um fato espordico e superficial (CHAU,

    1998, p.1). Fala-se em massacre em referncia ao assassinato em massa de pessoas

    indefesas, no se distinguindo crime e ao policial. As vtimas da violncia so postas

    no lugar de agentes da violncia, invertendo-se o real.

    Esta inverso do real, em que vtimas so postas no lugar de agentes de

    violncia, o que vem sendo feito pela mdia com o MST. Os sujeitos que compem

    este movimento so postos na condio de criminosos e no so reconhecidos como

    vtimas de uma sociedade que exclui e expropria.

    Das inmeras reportagens sobre o MST divulgadas na mdia escolhi uma para

    ilustrar este ponto: a da revista Veja (10/05/2000). Nesta reportagem aparece a seguinte

    manchete: SEM TERRA E SEM LEI. Em seguida, a revista descreve uma ao do MST

    em que, com o objetivo de reivindicar mais recursos para reforma agrria, cerca de

    6Traduo nossa.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    22/155

    21

    5.000 sem-terra ocuparam prdios pblicos em catorze capitais. Entre as diversas fotos

    ilustrativas da reportagem h uma montagem da imagem de Joo Pedro Stdile, um dos

    lderes do movimento, sobre a imagem de James Bond segurando um revlver, e ao

    lado da montagem h a descrio de uma lista de crimes que, segundo a revista, o MST

    haveria cometido. O objetivo era destacar o carter criminoso das aes do MST, como

    podemos ver no trecho abaixo:

    Tal era o empenho do MST em enfatizar suas reivindicaes que seusintegrantes no hesitaram em violar o Cdigo Penal em vrios artigos.Invadiram reparties pblicas, impedindo-as de funcionar,mantiveram funcionrios do Estado em crcere privado. Danificarambens pblicos e propriedades particulares. E tudo isso sem a menorsensao de que cometiam crimes. (p.45)

    Sobre esta reportagem, Romo (2002) destaca que o efeito de sentido

    produzido naturaliza o Movimento como criminoso (p.195), as aes positivas

    realizadas pelo MST so desconsideradas e um nico sentido eleito: o de que o

    movimento violador das leis e perigoso.

    Ao revelar os crimes cometidos pelos militantes, o discurso silencia oscrimes de que eles so vtimas. Colocando-os na posio de agentescriminosos, causas do mal, donos da agresso, apaga-se a violnciaque eles sofrem, encobre o sofrimento que lhes imposto no cotidianoda misria e da excluso. (ROMO, 2002, p.196)

    Assim, alm de lidar com a violncia da expropriao e com a excluso, os

    camponeses sem terra que aderem ao MST ainda se deparam com a responsabilizao

    pessoal por sua condio, ao serem chamados de criminosos e vagabundos. Suasmanifestaes e reivindicaes so constantemente deslegitimadas pela mdia e eles so

    vistos como representantes de um passado arcaico7do qual parte da sociedade brasileira

    quer se livrar.

    7Em certa ocasio, o ento Presidente da Repblica Fernando Henrique Cardoso afirmou que o MSTrepresentava o arcaico em oposio ao moderno. (MARTINS, 1997)

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    23/155

    22

    1.2- A influncia da Igreja e construo dos objetivos do MST

    Se, em certos casos (eu penso na Teologia da Libertao, na Amricado Sul), a religio pode levar os grupos sociais a se darem conta da

    situao de dominao na qual eles vivem, ela lhes permite tomariniciativas, ter uma outra viso do mundo e conceber aes coletivas.Ela assume ento o papel de desalienao, habitualmente reservado

    Sociologia e Filosofia. (ENRIQUEZ, 1994, p.82)

    A expulso do campo e a expropriao de inmeros trabalhadores rurais vindas

    com a modernizao da agricultura brasileira foram o principal fator que contribuiu

    para o surgimento do MST. Um segundo fator8 destacado por Stdile e Fernandes

    (1999) como fundamental para o surgimento do MST foi o trabalho realizado,principalmente, pelas igrejas Catlica e Luterana, orientado pela Teologia da

    Libertao.

    A Teologia da Libertao um conjunto de escritos9 inspirados no marxismo

    que teve como base um vasto movimento social da Igreja que envolveu padres, bispos,

    ordens religiosas e movimentos laicos, a partir do incio da dcada de 1960, na Amrica

    Latina. Os tericos da Teologia da Libertao tomaram do marxismo suas opes tico-

    polticas e a antecipao de uma utopia futura, mas tambm inovaram, a partir da suacultura religiosa e experincia social. Eles no usam, por exemplo, o termo proletrio,

    clssico do marxismo, usam em seu lugar o termo pobre. O cuidar dos pobres uma

    tradio milenar da Igreja, mas na Teologia da Libertao os pobres devem ser senhores

    de sua prpria emancipao, e no objeto de caridade. Assim como o marxismo,

    tambm criticam o capitalismo, mas de uma forma ainda mais radical: sua crtica uma

    crtica moral10(LWY, 2002).

    Seguindo esta orientao, a partir da dcada de 1970 se multiplicaram no Brasilas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). As CEBs eram formadas por pequenos

    grupos de pessoas da periferia ou da zona rural, organizados por padres e leigos, em

    torno de uma parquia (urbana) ou capela (rural). De acordo com Frei Beto (1981),

    8Um terceiro fator que tambm contribui para o surgimento do MST, apresentado por Stdile e Fernandes(1999), que no ser discutido aqui, foi o processo de redemocratizao pelo qual o pas estava passando,no qual os movimentos sociais tiveram um papel fundamental9Os principais autores da Teologia da Libertao, no Brasil, de acordo com Lwy (2002) so: Rubem

    Alves, Hugo Assmann, Carlos Mesters, Leonardo e Claudio Boff.10Segundo Martins (1989), a crtica moral que a Teologia da Libertao faz do capitalismo de que estebrutaliza, marginaliza e empobrece o ser humano.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    24/155

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    25/155

    24

    (Pastoral da Juventude ou CEBs), e alguns at mesmo deixaram a ordem religiosa para

    militar no movimento (LERRER, 2008).

    Antes do nascimento do MST a CPT j estava presente em quase todas as lutas

    no campo e possua uma organizao nacional. Foi a CPT a principal articuladora da

    transformao das experincias localizadas de luta pela terra em um movimento

    nacional. No ano de 1982 a CPT realizou dois importantes encontros - um em

    Medianeira - PR e o outro em Goinia GO. Este ltimo foi um encontro nacional. A

    partir desses encontros, as lideranas camponesas do Sul do Pas comearam a se reunir

    e a discutir a possibilidade da organizao de um movimento mais amplo. Foi ento

    proposta a realizao do primeiro encontro nacional de sem-terras. (DOMINGUES,

    2001)

    O I Encontro Nacional dos Sem Terra foi realizado na cidade de Cascavel -

    PR, em 1984. Nele foi fundado o MST e foram elaborados seus objetivos gerais:

    1- Que a terra s esteja nas mos de quem nela trabalha; 2- Lutar poruma sociedade sem exploradores e sem explorados; 3- Ser ummovimento de massa autnomo dentro do movimento sindical para aconquista da reforma agrria; 4- Organizar os trabalhadores rurais nabase; 5- Estimular a participao dos trabalhadores rurais no sindicatoe no partido poltico; 6- Dedicar-se formao de lideranas e

    construir uma direo poltica dos trabalhadores; 7- Articular-se comos trabalhadores da cidade e da Amrica Latina. (MST, 2001, online)

    Os objetivos elaborados neste encontro mostram que o MST, desde o incio,

    insere sua bandeira de luta a reforma agrria num campo de reivindicaes mais

    amplo, que a luta por uma sociedade sem exploradores e sem explorados, envolvendo

    trabalhadores do campo e da cidade, para alm das fronteiras do pas. Embora ao longo

    do tempo tenham sido incorporadas novas bandeiras de luta (por exemplo, aagroecologia), a reforma agrria inserida no contexto da luta por uma sociedade

    igualitria permanecer como centro de suas reivindicaes.

    Segundo Stdile e Fernandes (1999), este primeiro encontro foi fundamental,

    porque definiu como seria o MST: um movimento de massa, autnomo e independente

    no deveria ser do sindicato ou da Igreja. Aproximadamente 100 pessoas participaram

    deste encontro. No ano seguinte, o MST realizou-se o seu I Congresso Nacional em

    Curitiba - PR, desta vez com aproximadamente 1.500 participantes e a com a palavra deordem Sem reforma agrria, no h democracia.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    26/155

    25

    As palavras de ordem empregadas pelo MST sintetizam o momento histrico

    que o movimento vivia e vive e sua relao com o contexto no qual ele est inserido.

    Oliveira (2007) as analisa e diz que este um caminho para entender o MST. Vejamos

    o que ele diz:

    Quando ocorreu a formao do MST, na dcada de 80, o lema eraTerra para quem nela trabalha(1979/1983). Depois, quandocomeou a enfrentar resistncia ao acesso terra, o novo lema foi: Terra no se ganha, terra se conquista (1984). Quando o MST sefortaleceu e avanou, sobretudo no Governo Sarney, e quandopercebeu que o Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrria noestava sendo implementado, os lemas passaram a ser: Sem ReformaAgrria no h democracia(1985) e Reforma Agrria j (1985-6).Como a violncia aumentou, violncia que no atingiu apenas os

    trabalhadores, mas lideranas, advogados, polticos, religiosos, etc., oMST mudou suas palavras de ordem: Ocupao a nica soluo(1986), Enquanto o latifndio quer guerra, ns queremos terra(1986-7) e por ocasio da Constituinte, Reforma Agrria: na lei ouna marra (1988) e Ocupar, resistir e produzir (1989), depois que osassentamentos comearam a ser conquistados. (OLIVEIRA, 2007,p.140)

    Ocupar, resistir e produzir tambm foi a palavra de ordem empregada no II

    Congresso Nacional do MST, realizado em 1990. Em 1995, a palavra de ordem do III

    Congresso Nacional foi Reforma agrria: uma luta de todos. A qual reflete, segundoOliveira (2007), um momento poltico importante de tomada de conscincia de que a

    reforma agrria s ser possvel com o envolvimento de toda sociedade. Nesse

    congresso tambm, o movimento reelaborou seus objetivos gerais, que passaram a ser:

    1-Construir uma sociedade sem exploradores e onde o trabalhotem supremacia sobre o capital; 2- A terra um bem de todos. Edeve estar a servio de toda sociedade; 3-Garantir trabalho a

    todos, com justa distribuio da terra, da renda e das riquezas; 4-Buscar permanentemente a justia social e a igualdade dedireitos econmicos, polticos, sociais e culturais; 5-Difundir osvalores humanistas socialistas nas relaes sociais; 6- Combatertodas as formas de discriminao social e buscar a participaoigualitria da mulher. (MST, 2001, online)

    Com esta nova formulao, o MST reafirmou os objetivos e reivindicaes

    anteriores e a luta pela construo de uma nova sociedade foi enfatizada, passando a ser

    o primeiro dos seus objetivos (Construir uma sociedade sem exploradores e onde o

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    27/155

    26

    trabalho tem supremacia sobre o capital), enquanto anteriormente era a conquista da

    terra (Que a terra s esteja nas mos de quem nelatrabalha).

    Nos seus congressos nacionais realizados em 2000 e 2007 os objetivos definidos

    em 1995 foram reafirmados e ampliados. As palavras de ordem destes congressos

    foram, respectivamente, Reforma agrria: por um Brasil sem latifndios e Reforma

    agrria: por justia social e soberania popular. Ao final de seu ltimo congresso

    nacional, realizado em 2007, foi elaborada uma carta em que os envolvidos assumiram

    18 compromissos de luta, entre os quais destaco a luta contra o neoliberalismo e contra

    a supremacia dos interesses do capital. Cito alguns trechos deste documento com os

    compromissos assumidos:

    1- Articular com todos os setores sociais e sua formas de organizaopara construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, oimperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povobrasileiro. (...) 3- Lutar contra as privatizaes do patrimnio pblico(...). 4- Lutar para que todos os latifndios sejam desapropriados eprioritariamente as propriedades do capital estrangeiro e dos bancos.(...) 6- Combater as empresas que querem controlar as sementes, aproduo e o comrcio agrcola brasileiro (...). (MST, 2009, online)

    A carta termina convocando o povo brasileiro a se organizar e lutar por uma

    sociedade mais justa e igualitria, luta que acompanha o MST desde seus primrdios. Odesejo da construo de uma sociedade igualitria e a adeso aos ideais de

    transformao social so o que move seus lderes e militantes e impulsiona suas lutas;

    no entanto, nem todos aqueles que aderem ao MST so movidos pelos mesmos ideais,

    pois existem aqueles que almejam apenas um pedao de terra e a possibilidade de

    manter-se dignamente enquanto camponeses. No obstante, de alguma maneira, a

    adeso ao MST transforma a vida de todos.

    1.3- Educao e emancipao: a modernidade do MST

    A frente de batalha da educao to importantequanto a da ocupao de um latifndio ou a de massas.

    A nossa luta para derrubar trs cercas:a do latifndio, a da ignorncia e a do capital.

    (STDILE; FERNANDES, 1999, p.74)

    A formao e a escolarizao de seus integrantes uma preocupao queacompanha o MST desde sua origem. Inicialmente foram as mes e professoras que

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    28/155

    27

    reivindicaram o direito ao acesso escola para as crianas que iam para os

    acampamentos juntamente com suas famlias. Essas mes e professoras tambm foram

    as primeiras a realizar atividades educacionais com as crianas e a explicar a elas o que

    estavam fazendo ali e qual o sentido da luta pela terra. (CALDART, 2004)

    Como reivindicar o acesso escola, geralmente, no resolvia o problema, o MST

    logo passou ao e comeou a criar suas prprias escolas e em seguida lutar pela

    legalizao delas (CALDART, 2004). A mesma metodologia que o MST emprega para

    reivindicar a terra passou a ser usada tambm em relao educao: agir aqui e agora.

    Por isto, Caldart afirma que o MST ocupou tambm a escola no somente no sentido

    figurado, mas muitas vezes no sentido literal - por exemplo, quando seus integrantes

    acampam em frente a uma secretaria de educao para fazer alguma reivindicao.

    A demanda das famlias pelo acesso escola o MST assumiu para si como uma

    tarefa, e no sem reivindicar dos poderes pblicos este direito, criou, em 1987, um setor

    especfico para lidar com esta questo, o Setor de Educao, e realizou o I Encontro

    Nacional de Professoras de Assentamento. A escola foi incorporada em sua dinmica e

    qualquer acampamento ou assentamento do MST deveria ter uma escola, que no

    poderia ser uma escola qualquer. A escola para o MST (...) deveser vista no apenas

    como um lugar de aprender a ler, a escrever e a contar, mas tambm deformao dos

    sem-terra como trabalhadores, como militantes, como cidados, como sujeitos.

    (CALDART, 2004, p.272)

    Mesmo quando conquistada uma escola pblica dentro de um assentamento, os

    problemas no terminavam, pois muitas vezes a professora enviada escola pelo

    municpio no estava de acordo com a viso de escola do MST, nem com o movimento

    como um todo. O MST, por sua vez, reivindicava que os professores fossem do

    movimento, mas muitas vezes no tinham pessoas com a formao e titulao

    necessrias para realizar tal tarefa. Diante deste impasse, inicia-se no movimento umadiscusso sobre a necessidade de formar os prprios professores e tambm de

    sistematizar sua proposta pedaggica para ser entendida por todos. (CALDART, 2004)

    Em resposta necessidade de formar seus professores, o MST, em parceria com

    a Fundao de Desenvolvimento, Educao e Pesquisa da Religio Celeiro

    (FUNDEP)11, iniciou uma primeira turma de Magistrio no Rio Grande do Sul, em

    1990, no municpio de Braga. No ano seguinte lanou um primeiro texto sobre sua

    11O FUNDEP posteriormente deu origem ao Instituto de Capacitao e Pesquisa da Reforma Agrria(ITERRA)

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    29/155

    28

    proposta pedaggica, o Caderno de Formao n. 18: O que queremos com as escolas

    dos assentamentos, para servir de orientao queles que viriam trabalhar em suas

    escolas. (CALDART, 2004)

    Por outro lado, no eram somente as crianas em idade escolar que necessitavam

    de escolas e dos professores de formao. Muitos jovens e adultos eram analfabetos ou

    precisavam de condies que tornassem possveis sua escolarizao e formao para

    lidar com novos problemas que surgiam, relacionados produo, gerenciamento de

    cooperativas, etc. As crianas menores (0 a 6 anos) precisavam de educao infantil. Os

    lderes e militantes necessitavam de uma formao adequada para exercerem suas

    funes. O MST buscou desenvolver iniciativas que atendessem a todas estas

    demandas.

    Em 1995-96 o MST deu incio ao Movimento Nacional de Educao de Jovens e

    Adultos. Antes disso, j existiam iniciativas de alfabetizao de jovens e adultos nos

    estados. No caso da educao infantil, tambm desde o incio do movimento existiam

    iniciativas como o rodzio de mes e creches improvisadas; mas foi mais ou menos

    na mesma poca que comeou o Movimento Nacional de Educao de Jovens e

    Adultos, que teve incio com as cirandas infantis. Inspiradas nos crculos infantis

    existentes em Cuba, as cirandas so espaos educativos em que os pais podem deixar os

    filhos quando trabalham ou estudam. Elas podem ser permanentes (por exemplo: em um

    assentamento ou cooperativa) ou provisrias12(por exemplo, em curso ou encontro de

    curta durao). (CALDART, 2004)

    Segundo Lerrer (2008), a preocupao em formar seus lderes e militantes

    acompanha o MST desde seu incio. J em 1986, o Jornal Sem Terra anunciou a

    realizao de diversos cursos, tais como: I Curso de Capacitao da Coordenao

    Nacional do MST e o Curso de Jovens Monitores do Movimento Sem Terra. Em 1993,

    segundo Caldart (2004), tiveram incio tambm propostas de escolarizao, combinadascom a formao de militantes, como o curso de Tcnico de Administrao de

    Cooperativas (curso de nvel mdio), atravs da FUNDEP, no Rio Grande do Sul.

    Em 1998 o Governo Federal criou o Programa Nacional de Educao na

    Reforma Agrria (PRONERA) para atender a reivindicao do MST e de outros

    12 Em 2007 a autora foi convidada para ministrar um seminrio em um curso de especializao emEducao do Campo (fruto de uma parceira entre MST e UFPR). Durante o curso, geralmente realizado

    em perodos de frias e finais de semana, as mes que tinham filhos pequenos contavam com o apoio deuma ciranda infantil , duas jovens cuidavam das crianas enquanto as mes estavam em aula ouestudavam.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    30/155

    29

    movimentos sociais do campo pelo acesso a uma educao de qualidade em todos os

    nveis. Atualmente o MST, com recursos do PRONERA, investe em educao infantil,

    alfabetizao de jovens e adultos, cursos tcnicos e profissionalizantes, cursos de

    graduao e ps-graduao, realizados em parceria com diversas instituies de ensino.

    Segundo o Jornal Sem Terra (2009), o PRONERA:

    De 1998 a 2002, foi responsvel pela formao de 122.915assentados. De 2003 a 2008, cerca de 400 mil jovens e adultosassentados j foram escolarizados atravs do programa, e atualmente17.478 mil esto em processo de educao formal, pblica e dequalidade, em 76 cursos pelo Brasil. (online)

    Cerca de 300 mil pessoas esto atualmente estudando no MST, da educao

    infantil universidade. So aproximadamente duas mil escolas pblicas em

    assentamentos e acampamentos, nas quais trabalham dez mil professores, alm de 250

    cirandas infantis e 45 escolas itinerantes13. Mais de 50 mil pessoas j aprenderam a ler e

    escrever no MST. (JORNAL SEM TERRA, 2009)

    O investimento que o MST vem fazendo na educao e na formao do ser

    humano e as consequncias disso na emancipao de milhares de pessoas so a

    principal caracterstica de sua modernidade14. Em discurso de comemorao dos 25

    anos do MST, Stdile (2008) diz que ao longo de sua existncia o MST conquistou 14milhes de hectares de terra do latifndio (rea maior que o Uruguai), porm sua maior

    conquista foi que o pobre deixou de andar com a cabea baixa. A emancipao das

    pessoas o mais importante e isso se faz, para o MST, no somente com acesso terra e

    com as condies par tirar dela o sustento, mas tambm com educao.

    Outros autores, como Jos de Souza Martins, Ariovaldo Umbelino de Oliveira e

    Dbora Franco Lerrer, tambm defendem a ideia de que o MST representa o moderno

    no campo brasileiro, ideia que se contrape ao que aparece na mdia e ao que certa vezfoi dito pelo ento presidente da Repblica Fernando Henrique Cardoso: que o MST

    representa o arcaico em oposio ao moderno.

    Para Martins (2008), a modernidade do MST est na ressocializao

    modernizadora que ele produz. Nos acampamentos, o convvio e a luta coletiva

    13Escolas que acompanham os acampamentos.14 O projeto da modernidade que se consolida a partir do sculo XVIII, tem como centro a razo e v na

    acumulao dos conhecimentos um meio de alcanar seus objetivos: a emancipao humana e oenriquecimento da vida (HARVEY, 2005).

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    31/155

    30

    promovem uma ressocializao que alarga os horizontes. Nos assentamentos, este

    alargamento dos horizontes leva reinveno de antigas formais de sociabilidade,

    prprias do campons, as quais so revigoradas e enriquecidas. A modernidade do MST

    tambm est na reinveno da sociedade, na criatividade, na modernizao

    tecnolgica e econmica que leva aos camponeses sem terra e na sua reao (...) aos

    efeitos perversos do desenvolvimento excludente da modernidade. (p.38) Para Martins,

    o MST cumpre na sociedade brasileira o mesmo papel modernizador que as condutas

    corporativas e a tradio tiveram na Inglaterra no sculo XVIII, na conquista de direitos

    sociais e na tentativa de impor limites prevalncia do lucro em detrimento da pessoa

    humana.

    J para Oliveira (2007), o agronegcio (monocultura de exportao) que

    representa o passado, e no o MST. Dizer que o agronegcio no representa a

    modernidade pode parecer absurdo se no consideramos, como diz Martins (2008), que

    a modernidade s pode ser reconhecida enquanto tal se acompanhada da conscincia

    crtica do moderno 15. Neste sentido, so as aes polticas do MST que representam a

    modernidade num sentido pleno, e no o agronegcio:

    Ao contrrio desse grupo, hoje associado ao termo agronegcio, o

    MST prope uma modernidade emancipadora, calcada noinvestimento na instruo formal, na formao poltica e advoga ummodelo agrcola desconcentrador de riqueza e ambientalmenteresponsvel. (LERRER, 2008, p.12)

    Lerrer (2008), por sua vez, considera que a formao e a educao constituem o

    aspecto emancipatrio mais slido do MST. A luta do movimento poderia se restringir

    ao acesso terra, mas no o faz ao reivindicar o acesso de todos s conquistas da

    modernidade e ao lutar por uma sociedade igualitria.

    CAPTULO 2 : O CAMPO E A METODOLOGIA DA PESQUISA

    O presente captulo tem como objetivo apresentar o campo e a metodologia da

    pesquisa. O campo o local onde se realizou o encontro entre a pesquisadora e os

    participantes da pesquisa: uma escola de agroecologia16do MST localizada no Estado

    15

    Para Martins (2008), no Brasil a conscincia crtica do modernose expressa muito mais no deboche,na resistncia ao novo do que em aes polticas organizadas.16Por razes ticas ser omitido o nome da escola.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    32/155

    31

    do Paran. Descreve-se brevemente como funcionam estas escolas e quais so os

    princpios e os fundamentos da sua proposta pedaggica. O campo tambm o

    encontro, o contato inicial, a relao transferencial em que os dados foram construdos.

    A metodologia foi a pesquisa-interveno psicanaltica, que, alm do levantamento e

    discusso dos dilemas do militante, tambm teve como objetivo proporcionar aos

    participantes um espao de palavra e reflexo.

    2.1- As escolas de agroecologia do MST no Paran: formando o tcnico militante

    Inicialmente o MST lutava para que todos os agricultores tivessem acesso a toda

    a tecnologia disponvel para a produo agrcola, como, por exemplo, maquinrio e

    agrotxicos; com o passar do tempo foi percebendo que esta no era a melhor forma de

    produzir nos assentamentos. Foi somente no seu IV Congresso Nacional, em 2000, que

    o movimento fez a opo pela agroecologia17. Como os tcnicos j formados no eram,

    em sua maioria, capacitados para trabalhar com esta proposta, o MST e a Via

    Campesina assumiram para si o desafio de formar novos tcnicos (TARDIN18, 2007).

    No Paran, o MST e a Via Campesina, em parceria com a UFPR, criaram

    quatro escolas tcnicas de agroecologia. O primeiro centro de formao/escola criado no

    Paran foi o Centro de Desenvolvimento Sustentvel Agropecurio de Educao e

    Capacitao em Agroecologia e Meio Ambiente (CEAGRO), que comeou a funcionar

    em 1993 na regio central do Estado, inicialmente em barracos de lona. Em 2000, na

    regio do Oeste do Paran, o Instituto Tcnico de Educao e Pesquisa da Reforma

    Agrria (ITEPA) iniciou suas atividades transformando a antiga sede de uma fazenda

    desapropriada em um centro de formao e na Escola Agrotcnica Jos Gomes da Silva.

    Em 2002, no Norte do Paran, tiveram incio as atividades da Escola Milton Santos. Em

    2005 comeou a funcionar, na Regio Metropolitana de Curitiba, a Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA). O CEAGRO, a Escola Agrotcnica Jos Gomes

    da Silva e a Escola Milton Santos, a partir do convnio estabelecido com a UFPR, em

    2002, passaram a oferecer o curso Tcnico em Agropecuria com nfase em

    17 Borges (2007) analisa esta questo em sua dissertao de mestrado A transio do MST para a

    agroecologia.18 Anotaes pessoais da Reunio do projeto de ensino: Polticas pblicas e gest o: a educao do e nocampo, em 30/08/2007.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    33/155

    32

    Agroecologia, em nvel ps-mdio e mdio19, e a ELAA, o curso de graduao

    Tecnologia em Agroecologia, em 2005. (MST, s/d)

    As escolas de agroecologia do MST visam formao do tcnico militante,

    combinando a escolarizao com a formao poltica. O tcnico militante aquele que,

    alm do domnio da tcnica necessria para o exerccio de sua funo (no caso, a

    produo agroecolgica), tem clareza de que o domnio da tcnica no suficiente para

    resolver os problemas e dificuldades com os quais ele ir se deparar em sua prtica

    profissional e que para tanto necessrio o comprometimento com as lutas sociais e

    vnculo organizativo com os movimentos . (MST, s/d)

    Para formar este tcnico em agroecologia o MST utiliza como metodologia o

    sistema de alternncia. A pedagogia da alternncia foi uma proposta pedaggica que

    surgiu na Frana, em 1935, com a Maison Familiale Rurale. Seu objetivo integrar

    escola, trabalho e famlia e permitir que a famlia possa contar com o trabalho do

    estudante em determinados perodos, j que h alternncia de perodos na escola e na

    famlia. Esta proposta rapidamente se expandiu para outros pases, chegando ao Brasil

    em 1968. Atualmente, existem cerca de 200 escolasFamlias Agrcolasno Brasil. Nelas

    os estudantes tm a educao formal aliada formao especfica para o trabalho no

    campo. (UNEFAB, 2009)

    As escolas de agroecologia do MST no esto vinculadas s Escolas Famlias

    Agrcolas e adotam o sistema de alternncia sua maneira. Segundo Guhur (2010), os

    estudantes passam, em mdia, cerca de 45 a 70 dias na escola (tempo-escola) e 60 a 90

    dias na comunidade (tempo-comunidade); a durao dos perodos varia de acordo com o

    andamento da turma, os perodos de safra, o calendrio de lutas sociais e mesmo os

    atrasos no recebimento de recursos do Pronera.

    No sistema de alternncia das escolas de agroecologia do MST, o tempo escolar

    organizado em tempos educativos: tempo-formatura (tempo dirio destinado motivao das atividades do dia, da mstica20, do cultivo da identidade, conferncia das

    presenas e informes), tempo-aula, tempo-trabalho, tempo-oficina, tempo-cultura,

    tempo-reflexo escrita (tempo pessoal para registro das reflexes do dia em caderno

    19 O curso ps-mdio destinado aos alunos que j concluram o ensino mdio e tem duraoaproximada de dois anos. O curso de nvel mdio, tambm chamado de integrado, oferecesimultaneamente a formao de ensino mdio e a formao tcnica, com durao aproximada de trs anos

    e meio.20 A mstica um ritual inspirado na liturgia que o MST utiliza para celebrar seus ideais e manter aunidade do grupo. (FERNANDES; STDILE, 1999)

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    34/155

    33

    prprio), tempo-esporte e lazer, tempo-ncleo de base21, tempo-estudo, tempo-leitura e

    tempo-seminrio. Estes tempos podem mudar ou ser extintos e no so os mesmos

    todos os dias22. (GUHUR, 2010)

    No tempo-comunidade, de acordo com relatos dos prprios estudantes, eles se

    integram aos acampamentos e assentamentos de origem e trabalham junto s suas

    famlias e comunidades; alguns deles fazem estgio em cooperativas do MST ou

    trabalham por dia para conseguir o dinheiro necessrio para ir para a escola. Todos

    levam tarefas da escola para realizar no tempo-comunidade, tais como leituras,

    pesquisas de campo, registros, experimentaes e o Dilogo de Saberes.

    Segundo Guhur (2010), os cursos tcnicos de agroecologia do MST no Paran,

    assim como os demais cursos formais do MST, visam construir uma escola diferente;

    tm como modelo a experincia acumulada pela primeira escola formal do MST, a

    Escola Josu de Castro, do ITERRA23(Instituto Tcnico de Capacitao e Pesquisa da

    Reforma Agrria) e seguem os seguintes princpios filosficos e pedaggicos:

    Princpios filosficos: 1) educao para a transformao social; 2)educao para o trabalho e a cooperao; 3) educao voltada para asvrias dimenses da pessoa humana; 4) educao com/para valoreshumanistas e socialistas; e 5) educao como um processo permanentede formao/transformao humana. Princpios pedaggicos: 1)relao entre prtica e teoria; 2) combinao metodolgica entreprocessos de ensino e de capacitao; 3) a realidade como base daproduo do conhecimento; 4) contedos formativos socialmenteteis; 5) educao para o trabalho e pelo trabalho; 6) vnculo orgnicoentre processos educativos e processos polticos; 7) vnculo orgnicoentre processos educativos e processos econmicos; 8) vnculoorgnico entre educao e cultura; 9) gesto democrtica; 10) auto-organizao dos/das educandos; 11) criao de coletivos pedaggicose formao permanente dos educadores/das educadoras; 12) atitude ehabilidades de pesquisa; e 13) combinao entre processos

    21Os ncleos de base (NBs) so pequenos grupos nos quais os estudantes se organizam para realizar astarefas dirias. Alm das atividades relacionadas ao estudo, os estudantes tambm so responsveis pelamanuteno e funcionamento da escola, tais como: fazer a limpeza e cozinhar.22Guhur (2010) d um exemplo de organizao cronolgica dos tempos educativos: 7:15 8:00 h Tempo Leitura Quatro vezes por semanaTempo Notcias Duas vezes por semana8:008:20 h Tempo Formatura Diariamente8:2012:00 h Tempo Aula De segunda a sbadoTempo Trabalho 14:0017:00 h Duas vezes por semanaTempo Aula Trs vezes por semana17:0018:00 h Tempo Educao Fsica Duas vezes por semana20: 0021:40 h Tempo Oficina Trs vezes por semana

    Tempo Ncleo de Base Uma vez por semana21:4022:00 h Tempo Reflexo Escrita De segunda a sbado(p.158-159)23Localizada no municpio de Veranpolis-RS.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    35/155

    34

    pedaggicos coletivos e individuais (MST, 1997, citado por GUHUR,2010, p.89).

    Estes princpios so contemplados na grade curricular do curso de tcnico em

    agroecologia, que oferece, alm das disciplinas tcnicas, tambm disciplinas que visam formao humana e poltica; porm, mais do que na grade curricular, estes princpios

    so contemplados na metodologia da alternncia, na valorizao do trabalho e na

    organizao e diversificao das atividades desenvolvidas, entre elas o Dilogo de

    Saberes.

    O Dilogo de Saberes base para a elaborao do trabalho de concluso de

    curso que os alunos dos cursos mdio e ps-mdio de agroecologia tm que apresentar e

    obter a aprovao de uma banca no final do curso. O Dilogo de Saberes implica que

    os estudantes acompanhem algumas famlias assentadas que se disponham a participar

    do trabalho ao longo de todo o curso, com o objetivo, segundo Tardin (2007), de

    conhecer a histria de vida, captar a viso de mundo, os valores, os sonhos e as

    frustraes, e auxiliar as famlias na reconstruo de sua prtica agrcola.

    Os fundamentos tericos do Dilogo de Saberes so: a pedagogia freireana, a

    agroecologia e o materialismo histrico-dialtico. O mtodo busca a interlocuo entre

    conhecimentos populares e cientficos e tem como base experincias de educao

    popular desenvolvidas na Amrica Latina, principalmente o mtodo Campesino a

    Campesino24. Sua utilizao exige conhecimento da pedagogia freireana, agroecologia,

    histria da agricultura e do mundo campons (TARDIN, 2006, citado por GUHUR,

    2010).

    Para realizar o trabalho seguindo a proposta do Dilogo de Saberes, os

    estudantes seguem alguns passos. Primeiro, eles devem partir da histria de vida

    daqueles junto aos quais realizam sua interveno. A pergunta inicial proposta ao

    interlocutor : Do que voc se lembra desde que se conhece por gente?. A partir desta

    viro outras, e a ideia que o estudante possa estabelecer relaes entre a histria do

    seu interlocutor e da agricultura, da luta pela terra, etc. O segundo passo o

    reconhecimento conjunto do ambiente/espao, atravs do levantamento de dados como

    infraestrutura, paisagem, biodiversidade, produo, organizao e trabalho; o terceiro

    24 Esse mtodo se funda na experincia da Unin Nacional de Agricultores y Ganaderos-UNAG, da

    Nicargua, criada em 1981, aglutinando camponeses e produtores de mdio porte que colaboravam comas guerrilhas sandinistas. (TARDIN, 2006, citado por GUHUR, 2010, p.177)

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    36/155

    35

    a sistematizao e anlise dos dados; e o quarto passo a interveno a partir da

    sntese cultural (TARDIN, 2006, citado por GUHUR, 2010).

    A sntese cultural um conceito de Paulo Freire que se ope noo de

    invaso cultural. Para Freire (1979), o tcnico que faz sua interveno

    desconsiderando o saber do campons e tentando persuadi-lo a usar novas tcnicas,

    impondo seus valores e sua viso de mundo, age como um invasor cultural. Em

    oposio a este tipo de atuao, Freire prope que o tcnico seja tambm um educador

    que problematize com os camponeses sua realidade, ajudando-os a entend-la

    criticamente e a atuar sobre ela. O saber do campons no desconsiderado, ele

    tambm sujeito e a interveno ser construda a partir do saber de amboso campons

    e o tcnico. Para tanto, fundamental o dilogo, que deve ter como objeto a vida diria

    do campons, e no as tcnicas.

    2.2- O contato inicial com a escola

    O primeiro contato entre a pesquisadora e a escola de agroecologia do MST deu-

    se no incio de 2007. Alguns professores da universidade prestavam assessoria escola

    e buscavam uma professora da rea da Psicologia para se juntar ao grupo, atendendo a

    uma solicitao da prpria escola. Como a pesquisadora professora de Psicologia e fez

    o mestrado sobre o MST, recebeu o convite.

    Na primeira visita escola, um de seus coordenadores mostrou pesquisadora

    as dependncias do estabelecimento, ainda em construo. Como comum nas escolas

    do MST, as aulas comeam antes de as escolas estarem completamente construdas e

    estas vo sendo edificadas juntamente com os cursos. Neste primeiro encontro, uma das

    coordenadoras da escola falou sobre as dificuldades enfrentadas, entre elas a dificuldade

    de alguns alunos em aprender e realizar as tarefas do tempo-comunidade. Em resposta aesta demanda, a pesquisadora esclareceu que dificuldades de aprendizagem no eram de

    sua rea de trabalho, mas que gostaria de conhecer os alunos e fazer uma proposta de

    trabalho. A proposta feita foi realizar uma oficina de autoconhecimento e relaes

    interpessoais, com o intuito de conhecer os alunos e j realizar alguma interveno.

    Esta proposta de trabalho foi aceita pela escola e includa em um dos tempos

    educativos da escola, o tempo-oficina. Foram realizados cinco encontros de 1h30min

    de durao, sempre no perodo noturno. Os objetivos propostos para a oficina foram:possibilitar discusses e reflexes sobre temas referentes ao relacionamento

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    37/155

    36

    interpessoal, aumentar o autoconhecimento e o conhecimento interpessoal econhecer o

    grupo para elaborar novas propostas de atividades.

    O primeiro encontro foi destinado s apresentaes e ao levantamento dos temas

    de interesse; o segundo teve como tema os problemas de comunicao; o terceiro

    encontro versou sobre o preconceito e a discriminao; o quarto, sobre os ideais

    individuais e coletivos; o quinto encontro teve como tema a autoestima, e nele tambm

    fizemos uma avaliao das oficinas e j programamos mais dois encontros, um para

    levantar as dificuldades encontradas no tempo-comunidade j que estavam encerrando

    aquele tempo-escola e eles estavam se preparando para mais um tempo-comunidade e

    outro para discutir como lidar com as dificuldades encontradas.

    Os dois encontros sobre o levantamento das dificuldades do trabalho no tempo-

    comunidade e das possveis estratgias de lidar com elas foram realizados no final de

    2007. Trabalhar com esta questo foi uma demanda apresentada pela escola e tambm

    uma necessidade sentida pelos estudantes. Entre as dificuldades encontradas os

    estudantes relataram: a dificuldade em levantar as informaes relacionadas ao

    Dilogo de Saberes; a dificuldade de trabalhar com a mudana da viso tradicional da

    agricultura para a agroecologia, pois as famlias viam o tcnico como aquele que

    prescreve o que fazer (modelo criticado por Paulo Freire); o fato de os tcnicos no

    serem vistos pelas famlias como estudantes, mas como tcnicos profissionais e,

    consequentemente, serem cobrados como tcnicos, e no como estudantes em formao;

    e falta de confiana, por no saberem se iam terminar o curso. Alm de relatar suas

    dificuldades, eles mesmos tambm apresentavam as possveis estratgias de como lidar

    com elas. A contribuio da pesquisadora com a discusso foi elaborar um pequeno

    texto sobre a entrevista como tcnica de pesquisa, o qual foi discutido entre eles.

    Destes primeiros encontros no foram feitos relatos sistemticos. Apenas o

    quarto encontro sobre ideais individuais e coletivos teve como resultado uma produoescrita, que analisada no ltimo captulo. Embora estas atividades no tivessem o

    carter de pesquisa quando foram realizadas, nem tenha sido feito um relato

    sistematizado delas, elas foram importantes para o estabelecimento do vnculo inicial

    entre a pesquisadora e o grupo, o que possibilitou, posteriormente, a realizao da

    pesquisa-interveno psicanaltica. Convm ainda destacar que a aproximao da

    pesquisadora com o grupo se deu a partir de uma demanda de interveno da

    coordenao da escola e do lugar de professora universitria que ela ocupa.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    38/155

    37

    O MST, como foi dito no primeiro captulo, estabelece relaes de parceria com

    universidades no intuito de tornar acessvel a educao queles que durante muito

    tempo tiveram este direito negado da, talvez, a pressa em comear os cursos ainda

    que no existam prdios para escolas ou que estes ainda se encontrem inacabados. Os

    professores que vm das universidades para contribuir com o MST so chamados por

    eles de educadores, terminologia proposta por Paulo Freire, para quem (...) o educador

    j no o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, educado, em dilogo com o

    educando que, ao ser educado, tambm educa (FREIRE, 2005, p.79). Foi a partir deste

    lugar de educadora que a pesquisadora passou a ser vista por eles e que em seguida

    realizou a pesquisa-interveno psicanaltica.

    2.3- A pesquisa-interveno psicanaltica

    Em 2008 a coordenao da escola solicitou pesquisadora que desse

    continuidade, com os estudantes, ao trabalho com as oficinas. Nesse momento a

    pesquisadora j manifestou a inteno de realizar um trabalho de pesquisa-interveno

    vinculado a uma tese de doutorado. O projeto de pesquisa foi enviado coordenao da

    escola, assim como lhe foi esclarecido qual seria a proposta de trabalho. A coordenao

    da escola concordou com a realizao da pesquisa, que tambm foi aprovada pelo

    comit de tica da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

    No primeiro encontro com os estudantes lhes foi apresentada a proposta de

    pesquisa-interveno e lhes foi esclarecido que esta seria a base para a elaborao de

    uma tese de doutorado, que versaria sobre os dilemas do militante no MST. Todos

    concordaram em participar da pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e

    esclarecido25. Nesse mesmo encontro foram apresentados alguns temas que poderiam

    ser trabalhados: gnero, preconceito, exigncias internas e externas, relao familiar,projetos para o futuro, ideais e imagem, violncia e luto, identidade, deslocamento e

    migraes; eles puderam escolher entre os temas apresentados e tambm sugerir outros

    temas de interesse, relacionados aos dilemas do militante no MST. Eles sugeriram os

    temas Autoestima e Tenso individual/coletivo e escolheram os temas: Gnero,

    exigncias internas e externas; Relao familiar; Ideais/imagem/identidade; Violncia e

    luto. O grupo foi dividido aleatoriamente em dois subgrupos (grupo 1 e grupo 2) e foi

    25Modelo em anexo.

  • 7/25/2019 A luta pela terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).pdf

    39/155

    38

    combinado um encontro semanal com durao aproximada de duas horas para cada

    subgrupo.

    Os estudantes participantes da pesquisa foram, ao todo, 23, e os mesmos que

    haviam estado presentes nas oficinas no ano anterior, a grande maioria do sexo

    masculino, com idades que variavam entre 17 e 31 anos, no incio da pesquisa-

    interveno. Eram filhos de assentados/acampados do MST, alguns deles eram filhos de

    dirigentes e militantes e haviam recebido o convite para fazer o curso tcnico em

    agroecologia.

    Os sete primeiros encontros foram realizados no primeiro semestre de 2008, no

    perodo da manh. Aps esse perodo os alunos foram para suas comunidades (tempo-

    co