A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha...

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Universidade Estadual da Paraíba Centro de Ciências Sociais Aplicadas Faculdade de Comunicação Social Waleska de Araújo Aureliano A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico- científico sobre a maconha na revista SUPERINTERESSANTE Fevereiro de 2004

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O objetivo deste trabalho é fazer uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha em três capas da revista de divulgação científica SUPERINTERESSANTE, da editora Abril. O que se coloca em questão é como o discurso jornalístico alterou o seu enfoque sobre o tema a partir de uma mudança editorial da revista que focou nos jovens seu público alvo e passou a dar mais espaço à abordagem histórico-científica sobre o tema e não apenas médico-científica. Entendendo que tanto ciência como jornalismo são atividades humanas e, portanto, sujeitas às subjetividades do indivíduo e do contexto social no qual ele está inserido, questiono as verdades do discurso científico sobre a maconha, e a formação de um discurso jornalístico que toma por base a ciência para apoiar seus enfoques sobre o mesmo tema, mostrando que nem sempre é a verdade ou a sua busca, o único impulso gerador da pesquisa científica ou da divulgação jornalística. Há outros interesses historicamente contextualizados que interferem na produção científica e na abordagem da divulgação de ciência, que no caso especifico sofreu alterações devido às disposições do público alvo da revista em considerar novos pontos de vista.

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Universidade Estadual da Paraíba

Centro de Ciências Sociais Aplicadas

Faculdade de Comunicação Social

Waleska de Araújo Aureliano

A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico-

científico sobre a maconha na revista SUPERINTERESSANTE

Fevereiro de 2004

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A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha na revista

SUPERINTERESSANTE

Waleska de Araújo Aureliano

Monografia apresentada em atendimento às

exigências da disciplina “Trabalho Orientado

Acadêmico” e para a obtenção do grau de

Bacharel em Comunicação Social, com

habilitação em Jornalismo, pela

Universidade Estadual da Paraíba, Campina

Grande em fevereiro de 2004.

Orientadora: Maria José Cordeiro Leitão

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Banca Examinadora

___________________________________________________________

Prof ª Maria José Cordeiro Leitão

Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba

_____________________________________________________________

Prof. Antônio Roberto Faustino da Costa

Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba

____________________________________________________________

Prof. Fernando Firmino da Silva

Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS---------------------------------------------------------------------------5

RESUMO-------------------------------------------------------------------------------------------6

INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------------7

CAPÍTULO I – Ciência e Jornalismo Científico------------------------------------------11

1.1 O que é ciência?------------------------------------------------------------------------------11

1.2 A noção de progresso da ciência---------------------------------------------------------15

1.3 Jornalismo Científico: breve histórico--------------------------------------------------21

1.4 O jornalismo científico no Brasil---------------------------------------------------------26

CAPÍTULO II – Maconha: uma planta com história-----------------------------------35

2.1 Uma história de milhares de anos-------------------------------------------------------35

2.2 O cânhamo e seus usos---------------------------------------------------------------------39

2.3 A proibição-----------------------------------------------------------------------------------47

2.4 A proibição no Brasil----------------------------------------------------------------------50

CAPITULO III – A Maconha, A Ciência e A SUPER----------------------------------57

3.1 Mídia, drogas e rock n’roll --------------------------------------------------------------57

3.2 Nova abordagem histórico-científica: a maconha contextualizada na SUPER-62

CONSIDERAÇÕES FINAIS----------------------------------------------------------------86

BIBLIOGRAFIA------------------------------------------------------------------------------89

ANEXOS----------------------------------------------------------------------------------------92

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Agradecimentos

Os agradecimentos são para todos aqueles que direta ou indiretamente me ajudaram

neste trabalho: em primeiro lugar, a minha mãe pela paciência em aturar meu mau humor

nos momentos de estresse; a Marcos Alexandre, paixão inspiradora, pelo amor, pela

amizade e por ter lido todo este trabalho no computador; a minha irmã Waneska que num

momento tão difícil de nossas vidas deixou sua casa e veio me ajudar para que eu pudesse

dar continuidade não só a esta pesquisa, mas a vários outros assuntos práticos da vida; a

Elizângela por sempre acreditar em mim; a Cristiane e Milena pelas boas risadas; aos meus

colegas de trabalho e, em especial a Cié, por sempre darem um jeitinho para que eu

conciliasse trabalho e faculdade; a minha orientadora Mara, por ter me feito enxergar outras

possibilidades dentro da Comunicação Social; e, finalmente, agradeço às plantas de poder

pela inspiração desta pesquisa e pelas portas abertas para o Paraíso que deixaram sobre a

Terra, por onde, infelizmente, nem todos sabem entrar.

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Resumo

O objetivo deste trabalho é fazer uma análise do discurso jornalístico-científico sobre

a maconha em três capas da revista de divulgação científica SUPERINTERESSANTE, da

editora Abril. O que se coloca em questão é como o discurso jornalístico alterou o seu

enfoque sobre o tema a partir de uma mudança editorial da revista que focou nos jovens seu

público alvo e passou a dar mais espaço à abordagem histórico-científica sobre o tema e

não apenas médico-científica. Entendendo que tanto ciência como jornalismo são

atividades humanas e, portanto, sujeitas às subjetividades do indivíduo e do contexto social

no qual ele está inserido, questiono as verdades do discurso científico sobre a maconha, e a

formação de um discurso jornalístico que toma por base a ciência para apoiar seus enfoques

sobre o mesmo tema, mostrando que nem sempre é a verdade ou a sua busca, o único

impulso gerador da pesquisa científica ou da divulgação jornalística. Há outros interesses

historicamente contextualizados que interferem na produção científica e na abordagem da

divulgação de ciência, que no caso especifico sofreu alterações devido às disposições do

público alvo da revista em considerar novos pontos de vista.

(Palavras-chave: jornalismo científico; análise do discurso; maconha).

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Introdução

A relação da maconha com a imprensa pode-se dizer que é recente. Teve início ao

mesmo tempo em que começaram os esforços para promover a proibição do consumo e do

cultivo da planta em todo o mundo, nos primeiros anos do século XX. Antes disso, a

maconha era consumida livremente, embora vista com maus olhos em diversas sociedades,

como a americana, que associava o seu uso a classes consideradas inferiores como negros e

hispânicos, e manchetes de capa não estavam na ordem do dia até então. O quadro mudaria

a partir dos anos 1930, quando uma forte campanha pela criminalização da planta teve

início nos Estados Unidos, e a maconha ganhou páginas e mais páginas de destaque nos

jornais.

Os primeiros artigos sobre a maconha publicados em jornais americanos estavam

baseados no sensacionalismo e em interesses particulares na proibição da erva, interesses

esses econômicos, políticos e sociais, menos de saúde pública. É nessa época que se cria e

se populariza o termo marihuana, numa forte associação aos mexicanos, freqüentes

usuários de maconha e até hoje peso indesejável na sociedade americana. Os artigos

falavam de mortes e tragédias provocadas pela maconha e eram apoiados em racismo

aberto contra as populações não brancas da América. No Brasil também não era diferente.

A planta estava associada aos negros e às populações marginalizadas.

A imprensa provavelmente foi a principal arma dos opositores da maconha para

formar no imaginário popular estereótipos que perduram até hoje (o maloqueiro, o

vagabundo, o criminoso). Entretanto, não se poder dar mais o caráter racista de antes aos

textos. Hoje, todos estão embasados na ciência e nas suas descobertas sobre os efeitos da

maconha. Porém, podemos nos perguntar até que ponto as descobertas da ciência sobre a

cannabis estão isentas de interesses? Está a ciência livre das pressões sociais e morais

externas que se exercem sobre ela? Como isentar uma análise científica que está financiada

por recursos de Estado que tem interesses particulares na proibição do uso de determinadas

substâncias?

O objetivo deste trabalho é fazer uma análise do discurso jornalístico-científico sobre

a maconha em três capas da revista de divulgação científica SUPERINTERESSANTE, da

editora Abril. O que coloco em questão é como o discurso jornalístico alterou o seu enfoque

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sobre o tema a partir de uma mudança editorial da revista que focou nos jovens seu público

alvo e passou a dar mais espaço à abordagem histórico-científica sobre o tema e não apenas

médico-científica. A mudança no discurso se permitiu porque nem ciência nem jornalismo

puderam ao longo dos anos proibir de fato o consumo da maconha. E hoje o usuário não é

mais o negro, o hispânico ou o favelado. É o advogado, o estudante universitário, artistas e

intelectuais, pessoas que fazem parte de uma classe que não quer se ver rotulada como

criminosa ou doente. E a mídia, ao contrário do que muitos pensam, não apenas influencia,

mas é também influenciada pelo contexto e o momento social em que vive.

Tanto ciência como jornalismo sempre se propuseram objetivos em seus passos em

busca da verdade. Porém, ambos não podem negar a influência do contexto social nas

escolhas que fazem dentro de suas áreas específicas. Cientista e jornalista empreendem

atividades humanas cujo caráter subjetivo é inegável na sua produção e na formulação de

seus discursos, porém devo lembrar que a concepção de subjetividade que defendo neste

trabalho:

―Nada tem a ver com a concepção idealista e ingênua do sujeito

como ser individual, pensante e racional. Os sujeitos da enunciação são,

como bem lembra Orlandi (1983), não apenas seres individuais, com

pensamento e capacidades próprios, mas também e, sobretudo, seres

sociais que, como tal, partilham com outros sujeitos da comunidade a

qual pertencem pontos de vista, atitudes e comportamentos que passam a

funcionar como convenções. Enquanto agentes, os sujeitos impregnam

com seu ‗eu‘ as atividades que constroem; enquanto participantes de um

grupo social, aderem aos princípios que os unem e aceitam (na maioria

das vezes de forma inconsciente) as convenções que os caracterizam‖

(Coracini, 1991:191).

Assim, a comunidade científica sofre as pressões e convenções da sua comunidade

bem como do contexto social em que está inserida. Ainda que se pretenda neutra, carrega

outros discursos que influirão na sua busca pela verdade. O jornalista, mais que o cientista,

está pressionado por esse contexto. Então, o que coloco é que um discurso jornalístico

baseado na objetividade científica, na verdade comprovada cientificamente, pôde mudar e

mudou, quando se passou a analisar a questão sobre outro enfoque, o histórico-social. Tal

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mudança de rumo só foi possível graças a uma mudança na discussão do tema dentro da

sociedade e, sobretudo, dentro da camada da sociedade em que está centralizado o público

alvo da revista. Portanto, ―verdades cientificamente comprovadas‖ dependem de um

contexto para sua realização, e não estão objetivamente dadas no universo.

Optei pela SUPERINTERESSANTE por ser a revista de divulgação científica de

maior circulação no país e está voltada para um público com certo grau de instrução, mas

não especializado. Além disso, a SUPER tem se diferenciado das demais revistas de

divulgação científica pelo lançamento de subprodutos que levam a marca da revista, mas

são publicações independentes como livros, DVS, revistas para crianças, etc procurando

atingir um público jovem cada vez maior. Dentre os assuntos abordados pela revista,

escolhi a maconha por ser este um tema polêmico dentro da sociedade e pelas

ambigüidades que se apresentam dentro dos discursos que aqui serão analisados, o da

ciência e o da mídia, quando tratam da maconha. Também influenciou na escolha o fato de

ser este um assunto de grande interesse dos jovens, e por tanto, do público alvo da revista

SUPERINTERESSANTE.

A monografia está dividida em três capítulos, introdução e conclusão. No primeiro

capítulo abordo os conceitos vigentes de ciência a partir do trabalho de autores que

estudaram o discurso da ciência e os seus críticos, apresentando algumas considerações

sobre os objetivos e os métodos das ciências e sobre a noção de progresso científico. Ainda

no primeiro capítulo apresentarei um breve histórico do desenvolvimento do jornalismo

científico no mundo e uma apresentação da revista SUPERINTERESSANTE.

O segundo capítulo apresenta um perfil da maconha e dos seus usos ao longo do

tempo, bem como trato proibição da erva no Brasil e no mundo. No terceiro capítulo é feita

a análise do discurso das três reportagens de capa da SUPER que trataram da maconha. O

que eu pretendo com está pesquisa não é dizer se a revista analisada está melhor ou pior

hoje, ou como ela deveria estar. O que quero demonstrar é que mudanças sociais e

mercadológicas influenciaram a reestruturação de um discurso jornalístico que teria por

base o discurso científico, ambos pretendendo na teoria serem discursos baseados na

verdade precisa, empiricamente comprovada nos fatos. Porém, o que se vê é que nem um

discurso nem outro está livre das subjetividades que permeiam suas construções

discursivas. O capítulo ainda conta com uma introdução onde veremos a relação da mídia

impressa com a cannabis em alguns momentos.

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A metodologia aplicada foi a análise do discurso francesa (AD), porém com aplicação

reduzida da análise estrutural do texto (análise de palavras) utilizada pela lingüística e com

enfoque sobre o funcionamento histórico do discurso, a exemplo de Michel Foulcault. Esse

autor trabalha essencialmente com o conceito de ideologia associado ao discurso e nele

encontrei uma base melhor por entender como Orlandi (1987) que não há discurso sem

sujeito, nem sujeito sem ideologia. Entretanto, a metodologia de outros autores da análise

do discurso como Maingueneau, Brandão e Orlandi também foram utilizados num esforço

de tornar a discussão mais completa, contudo sem aprofundar nas especificidades da

lingüística. Uma revisão bibliográfica da revista em questão foi realizada com todas as

edições já lançadas partir dos CDs-Rom que formam a edição comemorativa dos 15 anos da

revista e de minha coleção particular. A caixa com seis CDs tem as edições de setembro de

1987 a junho de 2002, num total de 178 edições. Apesar do grande número de edições,

apenas formam o foco da pesquisa: as de números 095, 127 e 179, respectivamente de

agosto de 1995, abril de 1998 e agosto de 2002.

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Capítulo I

Ciência e Jornalismo Científico

Entender o discurso científico pressupõe compreender os conceitos vigentes de

ciência, os métodos criados, as regras elaboradas para determinados fins, a relação entre o

paradigma vigente, a ciência normal e as revoluções científicas. Acompanhando o trabalho

de três autoras brasileiras (Coracini, Santaella e Lopes) sobre a ciência e seus discursos e os

caminhos da pesquisa científica em comunicação social, procuro apresentar neste capítulo,

ainda que de forma sucinta, algumas considerações sobre o objetivo e métodos da ciência e

sobre a noção de progresso, focalizando, neste item, as colocações de Coracini (1991) sobre

três filósofos da ciência: Popper, Kuhn e Feyerabend.

Em seguida, apresento um breve histórico do desenvolvimento do jornalismo

científico no mundo, e no Brasil, procurando ressaltar a importância social desse tipo de

divulgação quando pensamos que a ciência é feita com dinheiro público e que é para

sociedade que se reverte os resultados de suas pesquisas. Como é uma publicação de

divulgação científica que analiso, encerro o capítulo com uma breve apresentação da revista

SUPERINTERESSANTE cujos textos são objeto desta pesquisa.

1.1 O que é ciência?

Não tenho por pretensão responder objetivamente a questão acima, mas apenas

apresentar a visão de autores sobre o que viria a ser a ciência e seu desenvolvimento,

levando em conta principalmente seus objetivos e métodos. Lembro ainda que essa

apresentação será resumida devido ao espaço deste trabalho. Portanto, lacunas existem e

não pretendo negá-las, mas indicar aos possíveis leitores interessados uma pesquisa mais

aprofundada na bibliografia citada que poderá ajudar àqueles que queiram saber mais sobre

a ciência, seu desenvolvimento e seus críticos (no bom e no mal sentido).

―O objetivo da ciência é descobrir uma ordem invisível que transforme os fatos de

enigma em conhecimento‖. Esta definição de Alves (1984:40) apresentada em Coracini

(1991:25) leva a reconsiderar o aparecimento da ciência e o seu objetivo primeiro: a

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aparência caótica e desorganizada do universo não possibilitava ao homem chegar ao

conhecimento, isto é, à compreensão profunda dos seres e fenômenos; isso só parecia ser

possível mediante estudos sistematizados e minuciosos dos componentes físicos, do

comportamento dos seres, das reações em cadeia, enfim, da apreensão da ordem e

organização dos elementos, de modo a tornar os fatos familiares, manipuláveis e, portanto,

utilizáveis. Essa visão utilitária da ciência permanece hoje na sua aplicação à tecnologia.

Há muitos séculos se acredita que o objetivo magno da ciência está na busca do

conhecimento objetivo, ou seja, comprovado, dos seres e fenômenos do universo, e o

século XIX nos legou a idéia de que a ciência é corpo sistematizado e organizado do

conhecimento. A própria palavra ciência vem do latim scire (saber) e significa

conhecimento ou sabedoria. Conhecer é deter alguma informação ou saber a respeito de

algo (Santaella, 2001:106). Costuma-se dizer que a ciência existe para nos tirar do senso

comum que seria o conhecimento acrítico, imediatista e sem sofisticação, que não

problematiza a relação sujeito e objeto. Porém, como não é possível se saber de tudo,

mesmo o cientista pratica o senso comum nas áreas que fogem a sua especialidade, de

modo que o senso comum é uma dose de conhecimento comum de que dispomos para dar

conta das necessidades rotineiras.

Retomando a definição de Alves apresentada acima, pode-se afirmar que o objetivo

da ciência tem sido não ―descobrir‖, mas construir o conhecimento humano com base na

sistematização, na organização dos fatos que se entrelaçam e se relacionam. Captar essas

relações é tarefa do cientista que, inserido num determinado contexto histórico-social,

partilha com outros cientistas a crença num paradigma, em normas prescritivas que lhe

possibilitam ―ver‖ desta ou daquela maneira os fatos, os seres, os fenômenos naturais.

Santaella citando C. S. Peirce coloca que a ciência deve ser vista como aquilo que é levado

a efeito por pesquisadores vivos, fruto da busca concreta de um grupo real de pessoas vivas,

caracterizando-se, desde modo, como algo em permanente metabolismo e crescimento

(2001:103). A ciência seria um processo, uma realidade sempre volúvel, mutável,

contraditória, nunca acabada, um vir a ser. Entretanto, Santaella lembra que o fato de que

nenhuma teoria possa esgotar a realidade, não pode produzir o conformismo, mas

precisamente o contrário: o compromisso de aproximações sucessivas crescentes, pois ―a

ciência não é a acumulação de resultados definitivos, mas principalmente o questionamento

inesgotável de uma realidade reconhecida também como inesgotável‖.

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Uma vez que a ciência busca, mais do que a mera descrição dos fenômenos,

estabelecer, através de leis e teorias, os princípios gerais capazes de explicar os fatos,

estabelecendo relações e predizendo a ocorrência de relações e acontecimentos ainda não

observados, o conhecimento científico não poderia ser alcançado através da inocência. Por

isso:

―A ciência desenvolve meios que lhe são próprios para chegar

àquilo que busca. Esses meios se constituem nos conceitos e redes

conceituais que os pesquisadores edificam. Assim são obtidas leis,

hipóteses e teorias que nos permitem compreender e ordenar o universo

por meio de explicações, previsões e sistematizações‖ (Santaella,

2001:110).

Vem daí o valor das teorias para a ciência. Definida de maneira simples, uma teoria

é uma generalização para explicar como algo funciona. Ela nos fornece princípios gerais

que nos ajudam a compreender um número de fenômenos específicos, porque e como eles

ocorrem e como estão relacionados entre si, pois a teoria faz a síntese dos dados, ajudando

a prever eventos futuros. Contudo, as teorias são limitadas e não podem revelar a verdade

em um sentido absoluto. Além da necessidade das construções teóricas, se a ciência busca o

conhecimento, cumpre perguntar como esta busca se realiza. Consensualmente, acredita-se

que conhecimento se adquire através de pesquisa.

―Quando um hábito de pensamento ou crença é rompido, o

objetivo é se chegar a um outro hábito ou crença que se prove estável,

quer dizer, que evite a surpresa e que estabeleça um novo hábito. Essa

atividade que passa da dúvida à crença, de resolução de uma crença

genuína e conseqüente estabelecimento de um hábito estável é o que

Peirce chamou de investigação‖ (id., ibid.:112).

Está definição contém aquilo que se constitui no núcleo de qualquer pesquisa:

livrar-se de uma dúvida. Toda pesquisa nasce, portanto, do desejo de encontrar resposta

para uma questão.

Raiz do conhecimento científico, a pesquisa se realiza por aplicação de métodos que

servem de guia para o estudo sistemático do enunciado, a compreensão e a busca de

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solução de um determinado problema. ―O método não seria outra coisa do que a

elaboração, consciente e organizada, dos diversos procedimentos que nos orientam para

realizar o ato reflexivo, isto é, a operação discursiva de nossa mente‖ (Rudio, 1992:15,

apud Santaella, 2001:133).

Podemos dizer ainda que as metodologias das ciências são especificas, variando

tanto historicamente quanto na passagem de uma ciência para outra. Ainda segundo

Santaella, as tendências metodológicas tomariam um rumo segundo um critério histórico

que podemos observar no positivismo de Comte, no materialismo histórico-dialético de

Marx ou ainda no neopositivismo ou empirismo lógico do século XX; na fenomenologia de

Husserl e sua postulação de que ―o conhecimento é o resultado da interação entre o que o

sujeito observa e o sentido que ele fornece à coisa percebida‖; o estruturalismo e a busca de

leis que presidem às estruturas das mais diversas ordens, assim como a escola de Frankfurt

com sua crítica aguda contra a razão instrumental alimentada pela sociedade capitalista até

o grupo de expoentes da epistemologia contemporânea como Popper, Kuhn e Feyerabend

que discutiremos ainda neste capítulo, só para citar exemplos das ciências sociais e

humanas. Concordo com Lopes (2001: 37) quando cita Kuhn colocando que este autor vê a

história de uma Ciência ―moderna‖ como sendo, essencialmente, uma sucessão de

paradigmas, cada um dos quais com sua própria teoria e seus próprios métodos de pesquisa,

cada um guiando uma comunidade de cientistas durante certo período, sendo depois

substituído por outro. Especificamente com relação às ciências sociais Lopes coloca ainda

que:

―O próprio objeto (das ciências sociais) é dinâmico e mutável

porque os problemas estudados são fenômenos históricos, instituições,

relações de poder, classes sociais, manifestações culturais etc. E o que

muda não é somente o dado ou objeto. As próprias ‗verdades‘ e

‗comprovações‘ produzidas por essas ciências se relacionam com o

processo histórico. Daí se reconhecer que o conhecimento científico nas

ciências sociais procede normalmente por rupturas, descontinuidades e

crises‖ (idem).

Longe de acreditar que a influência do contexto histórico aplica-se apenas sobre as

ciências sociais e humanas, que não possuem um controle severo sobre seus objetos de

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estudo como no caso das ciências naturais (física, química, biologia, etc) que podem isolar

e manipular em laboratório seus objetos, acredito que essa variável aplica-se a ciência como

um todo. Desde Galileu, o contexto histórico e social permeia a investigação científica em

qualquer ramo da ciência que venha a se realizar. Vale lembra que grande parte das

inovações tecnológicas que usamos nos dias de hoje, do telefone sem fio à internet,

nasceram da pesquisa científica com fins militaristas, ou seja, perpassados por interesses de

Estado, econômicos, políticos e ideológicos.

―A tese da dependência contextual é também aplicável à ciência

como totalidade. O todo da ciência, certamente, não é o único contexto

imaginável, como se os limites da ciência viessem a identificar-se com os

limites do nosso mundo. (...) A ciência não é só uma linguagem bem

feita, mas uma complexa atividade humana, e enquanto tal imersa na

infinita complexidade das demais atividades dos homens‖ (Muguerza,

1975:66).1

Essa discussão divide cientistas e comunidades científicas que se pretendem imunes

a influências externas dentro de seus trabalhos, colocando a ciência e sua busca pela

verdade como questões livres de contornos sócio-históricos. Essa resistência se verifica

mais nas ciências exatas e naturais, onde a figura do cientista isolado em seu laboratório

ainda persiste no nosso imaginário (e não nego que na realidade mesma). Porém, sabemos

que até para que possa se isolar na sua pesquisa o cientista precisa de apoio, sobretudo

financeiro, que vem de fontes com interesses específicos como o Estado ou iniciativa

privada. Acreditar que questões políticas e econômicas inseridas no contexto social e

histórico não participam deste apoio e, conseqüentemente, das pesquisas científicas, seria

muito ingênuo por parte da comunidade científica se realmente se enxergam livres da

história externa que cerca a história interna da ciência e do seu desenvolvimento.

1.2 A noção de progresso da ciência

Karl Popper, Thomas S. Kuhn e Paul Feyerabend são os três filósofos da ciência

considerados por Maria José R. Faria Coracini em seu livro “Um fazer persuasivo: o

1 Tradução minha da introdução do livro La critica y el desarrollo del conocimiento.

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discurso subjetivo da ciência”, onde a autora analisa a questão da

objetividade/subjetividade do discurso científico através de reflexões lingüístico-filosóficas

sobre a ciência e o seu fazer persuasivo, sobre a metodologia de análise do discurso e sobre

questões relativas ao ensino das habilidades de compreensão e produção da escrita

científica.

Os três filósofos são apresentados de forma a tornar mais claro a noção de progresso

da ciência, pois, acredita a autora, as tendências apresentadas por eles são ainda muito

atuais neste sentido. A partir da bibliografia de Coracini, recorri aos textos de Popper, Kuhn

e Feyerabend sobre a ciência e o desenvolvimento do conhecimento presentes no livro “La

critica y el desarrollo del conocimiento”, cuja versão espanhola é de 1975. A obra está

publicada no Brasil pela editora Cultrix/Edusp, mas eu não tive acesso a um volume em

língua portuguesa ficando com a ingrata tarefa de ler obras espinhosas em outro idioma,

ainda que seja o espanhol (a tradução das citações aqui apresentadas foi feita por mim).

Não pretendo tecer profundas reflexões sobre o pensamento de cada autor (até

porque não julgo que os tenha absorvido tão bem assim), mas, a exemplo de Coracini,

apresentar de maneira sucinta o pensamento de cada um a respeito da ciência. Recorrerei

mais ao trabalho de Coracini que brilhantemente resumiu as idéias dos filósofos que aos

textos dos autores em si por entender que a profundidade dos debates empreendidos no

trabalho deles não tem espaço para esmiuçamento nesta monografia, e se o fizesse estaria

fugindo do propósito real deste trabalho para mergulhar na epistemologia.

O método do falseamento de Karl Popper

Popper defende o método dedutivo para a ciência, segundo o qual o embasamento

teórico deveria constituir o ponto de partida do trabalho científico, seguindo o esquema

problema-solução. Para ele, à diferença dos indutivistas, os problemas não adviriam da

observação dos fenômenos, mas das próprias teorias vigentes, que já não satisfazem o

cientista diante da sua tarefa de fazê-las corresponder aos fatos. Para Popper, é essa

necessidade de mudança exigida pelo próprio objetivo de estudo que faz progredir a

ciência. São os momentos de revolução científica, em que se busca uma maior adequação

da teoria aos fenômenos observados, aproximação da verdade objetiva, no dizer de Popper,

que interessam para o desenvolvimento da ciência.

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Segundo esse autor, o progresso do conhecimento científico segue o mesmo método

utilizado para a aquisição do conhecimento pré-científico, isto é, o método de aprender por

ensaio e erro, aprender a partir de nossos erros. A ciência progride à medida que as falhas

nas teorias anteriores, na aplicação a determinados métodos de estudo, provocam períodos

de revolução, caracterizados pelo descontentamento e pela busca de paradigmas mais

adequados; tais revoluções, segundo Popper, acarretariam o avanço da ciência. O autor

considera que é buscando o erro que se busca a verdade; é ‗falseando‘ uma teoria que se

promove a ciência – teoria do falseamento (Popper, 1979:28 apud Coracini, 1991:28).

Preocupado em perceber, na história da ciência, um método eficiente para submeter

criticamente à prova as teorias e selecioná-las a partir dos resultados obtidos – única

maneira de se fazer teorias novas – Popper se posiciona a favor do método dedutivo da

prova, segundo o qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada.

Alguns dos critérios assinalados por Popper para submeter à prova uma teoria, ou seja, para

testá-la, são: a) a comparação lógica da teoria (para por à prova a coerência interna do

sistema); b) investigação da forma lógica da teoria; e c) comparação com outras teorias

(para determinar se a teoria representa um avanço de ordem científica no caso de ter

passado satisfatoriamente nas várias provas). Desta forma, vêem-se os erros revelados pela

verificação empírica, verificação esta que leva à substituição de uma teoria por outra ou a

sua reformulação.

É ao método do falseamento que Popper confere a qualidade de ―verdade absoluta‖

ou ―objetiva‖, porém o próprio autor não se considera um ―absolutista‖, pois não acredita

que ele ou qualquer pessoa tenha a verdade ―no bolso‖. A possibilidade de escolha garante,

de certa forma, a existência de critérios adotados mediante reflexões, aplicações e

comparações das várias teorias. Entretanto, as correções teóricas não anulam as teorias

precedentes ou as demais teorias concorrentes. É por isso que Popper considera que é na

ciência e só nela que podemos dizer que fizemos progressos genuínos e que sabemos mais

agora que antes, acreditando no acúmulo de conhecimento. Ele também vê a investigação

científica como um trabalho que exige participação ativa, especulativa e analítica por parte

do pesquisador que dever ter o devido senso crítico para realizar ciência:

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―Eu creio que a ciência é essencialmente crítica; que consiste em

arriscadas conjecturas, controladas pela crítica, e que, por essa razão,

pode ser descrita como revolucionária‖ (1975:154).

Para Popper, o cientista que só se preocupa em aplicar as teorias vigentes, sem

colocá-las à prova, sem questionar sua validade é um não revolucionário que pouco

contribui para o progresso da ciência.

Kuhn e a ciência normal

Se por um lado Popper enfatiza o período das revoluções científicas, Kuhn, no dizer

de Popper, valoriza em excesso os períodos da chamada ―ciência normal‖ – etapas da

ciência em que predomina um ―paradigma‖, índice de uma teoria dominante, à qual adere o

cientista normal. Na sua crítica a Kuhn, Popper diz:

―A ciência normal, no sentido de Kuhn, existe. É a atividade dos

profissionais não revolucionários, ou, dito mais precisamente, não

demasiado críticos; do estudioso da ciência que aceita o dogma

dominante do momento, que não deseja desafiá-lo, e que aceita uma

teoria revolucionária nova somente se quase todos os demais estão

dispostos a aceitá-la, se se torna moda‖ (1975:151).

Para Coracini, o que Popper parece não ter compreendido é que, embora

concordando quanto ao valor das revoluções científicas, Kuhn considera a pesquisa e,

portanto, o período da ciência normal, de grande relevância para a ciência, uma vez que

―nem a ciência nem o desenvolvimento do conhecimento têm probabilidades de serem

compreendidos, se a pesquisa for vista apenas através das revoluções que produz de vez em

quando‖ (Kuhn, 1979:11 apud Coracini, 1991:31). Kuhn afirma ainda que um olhar

cuidadoso dirigido à atividade científica dá a entender que é a ciência normal e não a

ciência extraordinária que quase sempre distingue a ciência de outras atividades. Essa é, na

verdade, uma questão ideológica que distingue os dois filósofos.

Segundo Kuhn, os cientistas normais se unem em torno do mesmo paradigma e se

constituem em comunidades, cuja principal característica é a de utilizarem instrumentos e

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métodos de análise próprios e adequados ao paradigma teórico escolhido. Tais

comunidades podem constituir verdadeiras ―escolas‖ científicas, uma vez que, segundo

Kuhn, constituem em grupos de cientistas que se reúnem em torno de uma especialidade,

partilhando o mesmo paradigma e a mesma literatura de base. Opondo-se entre si, essas

―comunidades científicas‖ determinam regras, normas que devem ser seguidas por todo

aquele que desejar a elas pertencer. Para ele, ―seja o que for o progresso científico,

devemos explicá-lo examinando a natureza do grupo científico, descobrindo o que valoriza,

o que tolera e o desdenha‖ (1975:400).

Definido, dessa maneira, o peso da comunidade científica, Kuhn sugere que a

racionalidade da ciência pressupõe a aceitação de um ―referencial comum‖, determinado

pelo momento histórico. Kuhn considera a ciência como uma atividade envolvida num

contexto histórico-social no qual se insere a comunidade científica. É, aliás, em nome dessa

mesma comunidade que Kuhn é levado a considerar o discurso da ciência como

eminentemente argumentativo, uma vez que tem por objetivo convencer, angariar adeptos

dentre os seus prováveis leitores, membros da mesma comunidade (Coracini, 1991:31).

Assumindo o discurso da ciência como argumentativo, Kuhn não acredita num

método adequado para se julgar individualmente uma teoria, como poderia ocorrer aos

cientistas revolucionários de Popper. Para Kuhn, é a comunidade científica que propõe os

parâmetros, que escolhe e determina se uma experiência é válida ou não. Fora da

comunidade não se faz ciência: as novas pesquisas devem se coadunar com os padrões

científicos existentes e aceitos pela comunidade (id.,ibid.:32). Tal visão vem explicar o

caráter convencional do discurso científico, no qual a liberdade e a possibilidade de

criatividade do enunciador se acham limitadas por certas regras.

Quanto ao aspecto evolutivo da ciência, Kuhn é de opinião que são os períodos de

crise, que precedem as chamadas revoluções científicas, que provocam o aparecimento de

novas teorias. Esses períodos críticos se caracterizam, segundo ele, pela proliferação de

versões teóricas ou de paradigmas concorrentes, com o intuito de criar uma alternativa mais

adequada.

Kuhn declara não aceitar a presença da subjetividade enquanto componente

individual na tarefa de investigação científica, transferindo para comunidade científica a

responsabilidade dos elementos ―subjetivos‖ que passariam a ―intersubjetivos‖: o espírito

seletivo, a intuição e a imaginação criadora se submetem a uma série de regras

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determinadas pelo grupo de cientistas. Para Coracini, são essas regras que garantem a

permanência e a própria existência da objetividade científica, conceito inteiramente

vinculado à comunidade e não ao indivíduo. ―Se considerarmos, porém, que essa

comunidade (científica) é compostas de indivíduos, perceberemos que o que ocorre, de

fato, é o social (meio científico) agindo sobre o individual, na tarefa pessoal de elaboração

da experiência e do discurso‖ (id., ibid.:33).

O anarquismo científico de Feyerabend

Paul Feyerabend considera a ciência como ―um empreendimento essencialmente

anárquico: o anarquismo teorético é mais humanitário e mais suscetível de estimular o

progresso do que suas alternativas representadas por ordem e lei‖ (Feyerabend: 1977:9

apud Coracini, 1991:34). Feyerabend se posiciona contra todo método ―objetivo‖ que

pretenda julgar a validade de uma teoria científica, pois, seja ela qual for, funda-se numa

―concepção demasiado ingênua do homem e de sua circunstância social‖. Para ele, o único

princípio que não inibe o progresso é o ‗tudo vale‘. A ocorrência de idéias completamente

diferentes leva o cientista a se questionar e a se posicionar. A proliferação de teorias seria,

portanto, para o autor, benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade lhe debilita o

poder crítico, além de ameaçar o livre desenvolvimento do indivíduo.

Feyerabend confirma todo o caráter relativo e subjetivo de toda opinião, de todo

método, de todo princípio, enfim, de toda investigação, mesmo científica.

―As ciências estão especialmente rodeadas de uma aura de

perfeição que transforma qualquer dificuldade em benefício próprio.

Frases como ‗busca da verdade‘ ou ‗o mais alto objetivo da humanidade‘

se empregam com profusão. Sem dúvida enobrecem seu objetivo, mas

também o distancia do domínio da discussão crítica‖ (1975:359).

Defendendo-se das acusações de ser subjetivista e relativista feitas por Popper,

Feyerabend afirma que:

―(...) uma atividade cujo caráter humano está à vista de todos é

preferível a uma que se mostre ‗objetiva‘ e impermeável às ações e

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desejos humanos. Depois de tudo, as ciências, incluindo todos os severos

padrões que elas parecem impor-nos, são criações nossas‖ (1975:379).

Com essa afirmação, Feyerabend desmistifica a ciência em sua busca objetiva e

absoluta – toda verdade é, pois, subjetiva e provisória. Mesmo o mais sofisticado aparato

teórico ou metodológico é produto da criação humana e, nesses termos, não escapa à

subjetividade, entendida aqui como relatividade, dependência do seu construtor. É, aliás,

esse caráter provisório da ciência que a faz progredir e avançar. Assim, cai por terra a visão

tradicional que eleva a ciência à posição dogmática de detentora de critérios objetivos,

mensuráveis, capazes de levar o homem à essência dos seres e à verdade dos fenômenos

naturais.

Podemos encontrar um ponto em comum entre os três filósofos que é a idéia de que a

ciência é construção e como tal pressupõe um sujeito, ativo, capaz de conferir um

significado a um fenômeno natural. Porém, apenas Kuhn se mostra sensível ao aspecto

social das investigações científicas, permitindo explicar ao mesmo tempo a subjetividade e

o caráter convencional da pesquisa, e, portanto, do discurso científico, parecendo-me

relevante para o presente trabalho já que me disponho a examinar a influência de um

contexto histórico, social, econômico e político na construção de um discurso científico que

seria a base de um discurso midiático. Também Feyerabend estaria próximo do propósito

desta monografia pelo caráter crítico que apresenta sobre a pretensão da ciência de ser a

detentora das verdades quando, na opinião deste autor (e também na minha), essas verdades

existem, mas seu caráter é provisório e, como criação humana que é, não escapa das

subjetividades intrínsecas da nossa natureza.

1.3 Jornalismo Científico: breve histórico

Podemos buscar as raízes do jornalismo científico ainda no século XV com o

advento da imprensa de Gutenberg. Segundo Oliveira (2002:17) os livros de história da

ciência dão como certo que a difusão da imprensa nessa época acelerou a criação de uma

comunidade de cientistas, fazendo com que as idéias e ilustrações científicas se tornassem

disponíveis a um grande número de pessoas, embora essas pessoas não significassem ainda

o grande público, mas uma pequena camada letrada da sociedade como os representantes

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do clero, da nobreza e da burguesia mercantilista que começava a se espalhar pela Europa.

Entre o advento da imprensa e o desenvolvimento da divulgação científica similar ao que

temos hoje, passaram-se dois séculos, tempo que podemos considerar curto levando-se em

conta a velocidade das transformações sociais da época.

No século XVI exercia-se sobre a atividade científica uma censura por parte do

Estado e da Igreja. Para informarem uns aos outros sobre suas descobertas, cientistas se

reuniam às escondidas e dessas reuniões de elite brotou a tradição da comunicação aberta e

oral sobre assuntos científicos. A divulgação da ciência surge, portanto, dentro de grupos

fechados. A comunicação científica se desenvolve entre os séculos XVI e XVII durante o

período da chamada revolução científica, fenômeno particularmente europeu que proveu

uma revolução não somente no campo das ciências e da técnica como também provocou

transformações na filosofia, na religião e no pensamento moral, social e político (Oliveira,

2002:18).

A divulgação da ciência e do pensamento científico, como já foi dito, era feita

essencialmente entre os cientistas, que formaram sociedades para promoverem o debate de

suas idéias e descobertas. Na Itália surge a Accademia Secretorum Naturae, em 1560, como

a primeira de muitas sociedades científicas italianas. Roma tinha sua Accademia di Lincei

que durou de 1603 a 1630, e Florença possuía a Accademia del Cimento, fundada sobre a

proteção dos irmãos Médici e que durou dez anos. Na Inglaterra, a Royal Society for the

Improvement of Natural Knowledge foi proposta por Francis Bacon em 1620 e aprovada

em 1622 por Charles II. Na França, Louis XIV estabeleceu em 1666 a Académie des

Sciences. Frederico da Prússia cria a Academia de Berlim em 1700 e os Estados Unidos

regulamentam sua National Academy of Sciences em 1863 (Burkett, 1990:27). A

Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS) é fundada em 1848, e hoje

congrega toda a comunidade científica dos Estados Unidos. Os cientistas se mantinham

atualizados sobre o meio acadêmico científico através da troca de monografias, livros e,

sobretudo cartas que eram impressas e enviadas a vários cientistas.

O inventor do jornalismo científico, entretanto, não foi um grande cientista de sua

época. O alemão Henry Oldenburg é considerado o pai do jornalismo científico. Membro

da Royal Society inglesa, Oldenburg combinou o caráter informal e fragmentado das cartas

trocadas entre os cientistas com o potencial de alcance do texto impresso e inventou assim a

profissão de jornalista científico. Durante quatro anos, Oldenburg produziu e distribuiu as

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cartas científicas sem qualquer remuneração. A partir de 1666 ele passa a receber um

salário da instituição pelo seu trabalho de divulgador científico, e posteriormente passaria a

contar com um redator. Antes disso, em 1665, Oldenburg deu início à publicação

Philosophical Transactions, periódico da Royal Society que durante mais de dois séculos

permaneceu como modelo para as modernas publicações científicas. Dominando vários

idiomas, Oldenburg pode traduzir textos de várias fontes para o inglês e o latim. Além

disso, estabeleceu precedentes de cientistas funcionando como editores de periódicos da

sociedade científica e para publicação em vernáculo, o que fortaleceu a pesquisa científica

na Europa. Muito do que era publicado podia ser compreendido por qualquer das pessoas

pouco letradas da época.

Na Europa e nos Estados Unidos, o jornalismo científico recebe grande impulso a

partir do século XIX apesar do caráter fragmentário na Europa, levando-se em conta que foi

um século de grande descobertas científicas como o barco e a locomotiva a vapor, o

telégrafo e o telefone. É possível que a passagem do título de ―nação mais avançada

cientificamente‖ da Inglaterra para França, nos séculos XVIII e XIX, e da França para

Alemanha no início do século XX, tenha tido reflexos na relativa dispersão do jornalismo

científico na Europa. Nos Estados Unidos é lançado em 1818 o Américan Journal of

Science para noticiar sociedades científicas locais. O Scientific American, fundado em

1845, enfatizava as patentes, as invenções e a tecnologia. Na Inglaterra é lançada a revista

Nature, em 1869 e em 1880, o americano Thomas Edison funda a Science, a revista

científica semanal mais prestigiada no mundo até hoje.

As duas grandes guerras mundiais certamente contribuíram para o avanço do

jornalismo científico na Europa e nos Estados Unidos.

―A proliferação do desenvolvimento científico e tecnológico

provocado pela Primeira Guerra Mundial (1914-1919) resultou no

aumento significativo da cobertura jornalística nessa área, pois com a

guerra houve uma ênfase da importância da ciência: novas armas de

grande potencial, novos explosivos, gases venenosos, aeroplanos e

submarinos eram usados pela primeira vez em um conflito de grandes

proporções (Oliveira, 2002:22).‖

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Assim, após a Primeira Guerra Mundial, jornalistas dos dois continentes, ávidos por

reunir informações e conhecimento para interpretar as novas tecnologias bélicas, criam as

primeiras associações de jornalismo científico. Na Inglaterra, o jornalista Richard Calder,

que escrevia sobre ciência no Daily Mail desde o final da década de 1930, cria em 1945,

junto com outros jornalistas, a Associação Britânica dos Escritores da Ciência. Em 1971, as

associações já existentes na Europa se uniram e criaram a União Européia das Associações

de Jornalismo Científico (European Union of Science Journalism Association‟s – EUSJA),

cujo objetivo seria realizar trabalhos comuns com os vários grupos de pesquisa em

jornalismo científico existentes na Europa, além de colaborar para que seja incentivada a

divulgação da ciência por todo o continente (Oliveira, 2002:20). Nos Estados Unidos, um

grupo informal de jornalistas, que durante a década de 1920 se encontrava com freqüência

na cobertura das reuniões de sociedades científicas, começou a sentir necessidade de criar

uma organização voltada para seus interesses e problemas. Os jornalistas acreditavam que

poderiam ter um melhor relacionamento com a comunidade científica se, como ela,

estivessem reunidos em algum tipo de entidade associativa. Assim, em abril de 1934, doze

jornalistas científicos reunidos em Washington criam a Associação Nacional de Escritores

de Ciência (National Association of Science Writers – NASW) com o objetivo de

―promover a disseminação de informações precisas sobre a ciência, em todos os meios

normalmente dedicados à informação pública, bem como estimular a interpretação da

ciência e de seu significado para a sociedade, com os mais elevados padrões de

jornalismo‖.

É inegável que a comunicação pública de ciência e tecnologia é hoje indispensável à

sociedade. Dizer que a informação é um direito público já se tornou lugar comum. Está

inclusive destacado na Declaração Universal dos Direitos Humanos divulgada pela

Organização das Nações Unidas em 1948. Porém algumas pessoas, incluindo jornalistas

defensores da não-especialização e cientistas-pesquisadores cépticos quanto à capacidade

de jornalistas de traduzir a linguagem científica para o público, ainda questionam se a

informação científica está incluída nessa questão. A ciência e o direito à informação sobre

ela é de interesse social como qualquer outro aspecto da sociedade. Ciência e tecnologia

têm conseqüências comerciais, estratégicas, burocráticas, e igualmente na saúde pública,

não nas margens, mas no âmago desses componentes essenciais do processo político.

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Alguns cientistas declaram-se, e ao seu trabalho, acima da política. Pretendem

manter uma postura que julgam imparcial, e nesse aspecto muitos jornalistas científicos

procuram também realizar reportagem ―objetivas‖ por verem na ciência um campo neutro,

desvinculado de interesses particulares que busca apenas elucidar e explicar fenômenos,

realizar descobertas e promover o desenvolvimento. Essa posição acrítica com relação à

ciência coloca sobre ela e sobre aqueles que a produzem uma aura de ―inocência‖ que não

condiz com a realidade. Dentro do meio científico existem interesses econômicos, políticos

e financeiros que escapam a questões de objetividade empírica.

A pesquisa científica é financiada principalmente pelo setor público, sendo, portanto

de interesse do contribuinte saber de que forma seu dinheiro está sendo utilizado e que

benefícios essa ciência patrocinada pelo Estado trará para sociedade. As pessoas têm o

direito de estarem informadas sobre como e em que o dinheiro público está sendo gasto.

Isso é latente quando se fala de educação, saúde, transporte, áreas que estão intimamente

relacionadas à ciência. Concordo com Oliveira quando diz que:

―Os governos em todos os níveis e os pesquisadores de modo

geral têm o dever de prestar contas à sociedade sobre as realizações na

área, contribuindo para a evolução educacional e cultural da população.

A divulgação científica aproxima o cidadão comum dos benefícios que

ele tem o direito de reivindicar para a melhoria do bem estar social

(Oliveira, 2002:14)‖.

Quando o investimento é particular os interesses nem sempre sociais se tornam

mais evidentes. Na área de saúde podemos nos perguntar por que as pesquisas para

desenvolvimento de novos medicamentos para doenças como a tuberculose e o mal do sono

estão praticamente paralisadas há anos quando milhares de pessoas ainda são afetadas por

essas doenças em várias partes do mundo? A resposta parece clara quando sabemos quê

―áreas do mundo‖ são essas: países pobres da África, Ásia e América Latina. A indústria

farmacêutica é a grande patrocinadora de pesquisas nessa área e não tem interesse em

investir em tecnologia que não dará o retorno esperado levando-se em conta a condição

econômico-financeira do público alvo.

O desenvolvimento tecnológico causa impactos em toda sociedade que podem ser

positivos ou negativos. O mau uso dos avanços científicos tem contribuído para o

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crescimento da miséria nos países em desenvolvimento e para destruição do meio ambiente

do planeta (Oliveira, 2002:25). A busca de soluções para esses problemas passa pela

pesquisa científica e deve ser entendida pela sociedade como um direito essencial como

educação ou saúde. Desta forma, cabe ao divulgador de ciência tratar dos assuntos

relacionados à área de maneira crítica e interpretativa como ocorre (ou espera-se que

ocorra) com outras áreas como a política, a economia e as artes, sem idealizações sobre

ciência-cientistas que venham a obscurecer os fatos. As fontes oficiais podem e devem ser

questionadas. Não são poucos os casos de fraudes e erros. A ciência não está imune a

distorções propositadas ou inocentes. Burkett nos lembra que:

―Como a maioria dos pesquisadores científicos depende de

verbas federais e de consultorias que prestam às indústrias, questões

legítimas podem ser colocadas a respeito de sua independência, quanto às

pressões exercidas por interesses especiais dentro de uma agência, por

indústrias associadas com uma agência para a qual trabalham ou da qual

recebem fundos para pesquisa (1990:109)‖.

E Oliveira afirma que ―o jornalismo científico de qualidade deve demonstrar que

fazer ciência e tecnologia é, acima de tudo, atividade estritamente humana, com

implicações diretas nas atividades sócio-econômicas e políticas de um país. Portanto, do

mais alto interesse para o jornalismo e para a sociedade‖ (2002:14).

1.4 O jornalismo científico no Brasil

Enquanto no século XIX a Europa e os Estados Unidos já publicavam as primeiras

revistas de jornalismo científico, o Brasil da época via nascer a sua imprensa nacional. Só

em 1808, com a chegada da corte real portuguesa ao Brasil, fugindo da invasão das tropas

francesas de Napoleão Bonaparte, é que se inicia oficialmente o jornalismo luso-brasileiro.

Não era de interesse da metrópole portuguesa que houvesse no Brasil colônia uma

imprensa, pois isso suspenderia a importação dos periódicos lusitanos, ponto negativo para

balança comercial da metrópole. Apesar disso, no século XVII houve duas tentativas de

instalar uma imprensa modesta no Brasil e ambas fracassaram graças à proibição veemente

da Corte portuguesa. Segundo Costella (2002:86) a primeira tentativa ocorreu no Recife.

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Da oficina ali instalada e do tipógrafo nada se sabe a não ser o que está documentado na

Carta Régia de 8 de junho de 1706 por meio da qual o governo português mandou fechá-la

e apreender os seus tipos. A segunda tentativa é creditada a Antonio Isidoro da Fonseca,

português que veio instalar-se no Rio de Janeiro em 1746. Imprimiu apenas quatro folhetos:

―Relação da entrada do Bispo D. Antonio do Desterro Malheiro‖, um poema de vinte e

quatro quadras, e mais onze epigramas em latim e um soneto português, formando dois

opúsculos ao mesmo bispo, e finalmente, ―Conclusões Metafísicas‖, de Francisco Fraga,

em uma só página. Em maio de 1747 a oficina de Isidoro foi fechada e seus instrumentos

confiscados. Em 1750, de volta a Portugal, solicitou licença para retornar ao Brasil e

instalar sua tipografia. A licença foi negada.

Na Ásia, onde os portugueses encontraram povos que já utilizavam a escrita e com ela

documentavam sua tradição milenar, a tipografia foi permitida como forma de incutir os

valores e padrões lusitanos, na tentativa de destruir os valores locais. No Brasil, do índio

ágrafo e do colono pouco letrado tipografia era dispensável. O quadro muda com a chegada

da família real em 1808, mas a nossa imprensa já nasce atrelada ao poder e aos seus

interesses. Em 13 de maio daquele ano D. João VI instituiu por decreto a implantação da

Imprensa Régia no Brasil. O primeiro jornal impresso no país foi a ―Gazeta do Rio de

Janeiro‖, cujo número de estréia data de 10 de setembro de 1808 e teve como redator o Frei

Tibúrcio José da Rocha. Outros historiadores preferem instituir como marco histórico do

jornalismo brasileiro o periódico ―Correio Braziliense ou Armazém Literário‖, que teve seu

primeiro número publicado em junho de 1808. Porém, o periódico sempre foi editado e

impresso em Londres onde também vivia exilado seu criador, Hipólito da Costa.

Além do início tardio, a imprensa brasileira sempre contou com os entraves da

censura política. Em 114 anos de história (1889-2003) a República brasileira viveu dois

longos períodos de ditadura: o Estado Novo de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1944, e o

regime militar, de 1964 a 1985. Somando-se a isso os anos de colônia temos 417 anos de

repressão e cerceamento da liberdade de expressão e de controle da informação por parte do

poder público. Quando surgia um investimento na área de imprensa e propaganda nas

épocas dos regimes ditatoriais era tão somente com o intuito de cercear e manipular a

liberdade de expressão e promover as idéias do regime em atividade.

Se a imprensa começa a fazer parte da agenda brasileira apenas no início do século

XIX, a preocupação com o desenvolvimento científico do país tem início ainda mais tarde.

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Com um tipo de colonização voltada para exploração e não para expansão, também a

pesquisa científica e tecnológica no Brasil só se desenvolve tardiamente com um avanço

significativo a partir do final do século XX quando a comunidade científica começou a

organizar-se. É a partir da década de 1940 que a ciência entra definitivamente na agenda do

governo e da sociedade brasileira. Como em vários países, a instituição da ciência no Brasil

foi bastante influenciada pelo término da Segunda Guerra Mundial e pelo impacto que a

força do avanço tecnológico demonstrado pelos aliados causou em todo o mundo. Assim é

que, em 1948 é criada a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidade

que congrega hoje todas as sociedades científicas do país.

Em 1951 foi criado o Conselho Nacional de Pesquisas, o CNPq, que representou o

primeiro esforço significativo nacional de regulamentar a ciência e a tecnologia no país.

Até a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) em 1985, o CNPq foi o

principal órgão responsável pelas ações de ciência e tecnologia empreendidas pelo governo

federal. Em 1974 passou de autarquia à fundação e em 1985 passou a subordinar-se ao

MCT. As origens do CNPq estão intimamente ligadas à ideologia nacionalista, calcada na

idéia de ―segurança nacional‖, defendida por militares e burocratas do aparato estatal desde

fins da década de 1940. Sua criação foi orientada pela necessidade de o Brasil se equiparar

às outras nações na pesquisa de energia nuclear que se mostrou vital para segurança

nacional.

O regime militar do período 1964-1984 deu grande impulso ao desenvolvimento

científico e tecnológico brasileiro. A doutrina nacionalista do governo militar articulava

grandes projetos tecnológicos que, pretendia-se, levariam o país a ser soberano e

independente. Os grandes investimentos ficaram a cargo da indústria aeronáutica e de

defesa e dos programas nuclear e espacial brasileiros. Apesar dos aspectos ideológicos e

políticos que circundavam esse momento da história brasileira, autores como Oliveira

reconhecem que o período foi de grande incentivo ao desenvolvimento tecnológico do país,

porém lembra que:

―O jornalismo científico durante o regime militar seguia a risca a

batuta dos censores, divulgando com ufanismo os grandiosos projetos da

época – a Transamazônica, as grande hidrelétricas, as indústrias bélicas,

o programa nuclear e o aeroespacial. As entidades de pesquisa

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governamentais tinham projetos definidos e verbas alocadas (bem ou

mal) sem participação alguma da opinião do Congresso e muito menos da

sociedade, que, mal informada, jamais nela influiu‖ (2002:31).

Também Burkett diz que ―a credibilidade científica se aproxima do seu maior perigo

quando misturada na elaboração das normas públicas‖ (1990:109), e lembra ainda que ―o

envolvimento primário entre a ciência e os cientistas e o governo vem através do dinheiro e

conceitos diferentes sobre o bem estar geral‖ (1990:135). De modo que podemos concluir

que o início do jornalismo científico no Brasil, além de estar marcado pela censura política

com relação à imprensa também estava marcado pelo comprometimento da ciência com os

investimentos governamentais maciços nesta área. Questionar a fonte era tarefa impensável

e irrealizável neste período de efervescência científica do país.

Podemos encontrar ainda em fins do século XIX publicações que tiveram a iniciativa

de divulgar ciência no Brasil. São exemplos a Revista Brazileira (1857), a Revista do Rio

de Janeiro (1876) e a Revista do Observatório (1886) publicada pelo Imperial Observatório

do Rio de Janeiro, atual Observatório Nacional. Oliveira destaca, entretanto, sem

desmerecimento para com esses ―pioneiros pontuais‖, o papel de dois nomes bem

conhecidos do jornalismo brasileiro e da divulgação científica no país. O primeiro seria

Euclides da Cunha, que em 1897 cobre para o jornal O Estado de São Paulo o levante do

Arraial de Canudos, no interior da Bahia liderado por Antonio Conselheiro, contra a

República. O trabalho rende a publicação de Os Sertões, onde o autor faz em vários

momentos profunda reflexão sobre a influência do meio ambiente na formação do homem

brasileiro, em diversas regiões do país. Discute as variações do clima, da qualidade da terra,

da vegetação, da água e dos minerais. Euclides preconiza o jornalismo científico e

ambiental contextualizado e interpretativo, no qual a informação científica dá suporte à

compreensão da realidade. O segundo nome seria o do médico, pesquisador, educador e

jornalista José Reis, considerado patrono do jornalismo científico no Brasil. Reis começou

a publicar, a partir de 1932, artigos e folhetos para público não especializado em problemas

científicos, e de 1947 a 2002, ano de sua morte, manteve na Folha de São Paulo uma

coluna científica semanal. Foi também um dos fundadores da SPBC e publicou mais de

cinco mil trabalhos entre livros, artigos científicos e material jornalístico. Foi também um

dos fundadores em 1977 da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), da qual

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foi o primeiro presidente. Em 1979, o CNPq criou o Prêmio José Reis de Divulgação

Científica.

A partir da década de 1980, a divulgação e o jornalismo científico no Brasil cresceram

com o surgimento de novas revistas como Ciência Hoje (SPBC) e Ciência Ilustrada

(Editora Abril). Oliveira (2002:38) afirma que nos anos 1990 a Editora Globo lança a

revista Globo Ciência e no mesmo ano a Editora Abril lança a revista Superinteressante,

porém a autora comete um engano com relação a esta data de lançamento da

Superinteressante. Na edição comemorativa dos 14 anos da revista (nº168, setembro de

2001) está colocada como data de lançamento da primeira edição 29 de setembro de 1987.

Além disso, surgiram programas de televisão com a proposta de divulgar a ciência para o

grande público como o Globo Ciência (TV Globo) e Estação Ciência (da antiga TV

Manchete). Grandes eventos de repercussão internacional influenciaram o desenvolvimento

do jornalismo científico no Brasil durante a década de 1980 como a passagem do cometa

Halley (1986), a descoberta da supernova de Shelton (1987), da supercondutividade, as

viagens espaciais e as questões ambientais. Quando em 1992 realizou-se no Rio de Janeiro

a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio 92, já

havia um número considerável de jornais que contavam com editorias de ciência e meio

ambiente, revistas especializadas e programas de rádio e televisão. Entretanto, Oliveira diz,

com base em suas pesquisas junto a profissionais da área, que faltava ainda ao jornalismo

científico brasileiro fundamentos capazes de integrar áreas como a economia e a política a

temas ligados a ciência e tecnologia.

É ainda Oliveira que nos diz que, no Brasil:

―O jornalismo científico, se for possível uma analogia, mal saiu

da fase romântica, resvala muitas vezes no denuncismo e no alarmismo

sem fundamento e é incapaz de análises e exposição de contrapontos (tão

necessário ao bom jornalismo), como de resto já é corrente na prática do

jornalismo econômico e político‖ (ibid.:39).

A autora aponta ainda para alguns fatores que dificultariam o trabalho do jornalista

científico brasileiro. O primeiro seria o difícil acesso às fontes, pois, segundo ela, as

entidades e a própria comunidade científica, de modo geral, ainda não levam em conta o

papel estratégico que a comunicação com o público representa para sua própria existência,

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31

salvo raras exceções. Em segundo lugar, faltam ofertas de especializações acadêmicas. Em

todo Brasil, até 2002, existia apenas um curso de pós-graduação em comunicação de

ciência, na Universidade Metodista de São Paulo e cursos de especialização na

Universidade de Campinas (Unicamp), na Universidade de São Paulo (USP) e na

Universidade de Taubaté (SP). E, por último, a autora aponta a forte influência de fontes

originárias de países desenvolvidos no noticiário nacional, o que dificultaria a divulgação

da ciência brasileira. As informações já chegam dos países europeus ou dos Estados Unidos

bem documentadas e ilustradas, exigindo pouco esforço editorial, com isso podemos

perceber a preocupação desses países em divulgar a ciência que estão produzindo. A autora

não nega a importância dos temas de ciência e tecnologia dos países desenvolvidos para

produção do jornalismo científico no Brasil, mas sugere um equilíbrio na divulgação das

informações para que a sociedade brasileira fique a par do que está sendo realizado em

ciência e tecnologia no país.

A SUPERINTERESSANTE

No final dos anos 80 nasce a SUPERINTERESSANTE, mais precisamente em

setembro de 1987. A revista surge em meio à explosão de publicações científicas de grande

circulação que ocorre naquela década em conjunto com uma série de descobertas científicas

de grande repercussão internacional. O número zero traz apenas um aperitivo do que viria a

ser a revista. É uma espécie de folheto que traz na capa a figura de um robô e a manchete

―A era do robô sapiens‖. Na própria capa do número zero está ―Superamostra: assim será

sua revista‖.

A primeira carta ao leitor, escrita por Victor Civita na edição 01, de outubro de 1987,

começa com uma história sobre a reação da esposa do bispo anglicano de Worcester,

Inglaterra que teria ficado horrorizada ao ouvir dizer que pelas novas teorias postas a

circular por Charles Darwin o homem era um simples descendente do macaco, ao que a

senhora teria dito ―Barbaridade! Esperamos que não seja verdade, mas, se for, rezemos para

que isso não se torne amplamente conhecido‖. Civita coloca então que a posição da recém

nascida publicação é justamente oposta à idéia da religiosa senhora:

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―Por acreditarmos tanto no valor da descoberta e da acumulação do

conhecimento científico e tecnológico quanto na importância da sua

divulgação ao maior número de pessoas, estamos apresentando ao

público brasileiro uma nova revista mensal‖ (SUPER, ed 01 1987:05).

A carta coloca ainda que a pauta da revista não terá limites, ―cobrindo da Física à Pré-

história, da Astronomia à Ecologia, da Informática à Psicologia ou à Religião‖. O objetivo

da publicação seria mostrar o conhecimento de forma clara e acessível ao mais leigo dos

leitores por entender que a ciência faz parte do cotidiano das pessoas, ―influenciando e

modificando até mesmo os momentos mais simples de nossa vida‖. Sendo uma revista de

divulgação científica, Civita também promete não descuidar da precisão que a natureza da

notícia científica requer, ―o que significa dizer que em suas páginas não haverá lugar para

meias verdades, o saber por ouvir dizer, a hipótese sem evidência que a legitime‖.

Em 16 anos de existência a SUPER se tornou a quarta maior revista de circulação do

país, e a segunda maior entre as mensais. Do grupo Abril é a segunda maior, atrás da Veja.

A circulação paga mensal foi estimada em abril de 2003, pelo editorial da revista, em 420

mil exemplares. Os assinantes somariam quase 300 mil ainda naquele ano.

A partir de agosto de 2000, a revista passa por uma reestruturação editorial. O diretor

de redação André Singer sai da revista depois de seis anos no cargo. No seu lugar entra

Adriano Silva. A mudança se revela nos textos, no planejamento gráfico e nas próprias

palavras do novo editor:

―Estou recebendo uma bela revista para tocar. E trato desde já de

torná-la ainda melhor. Ao mergulhar nesta edição, você perceberá que a

SUPER está mais atraente, mais saborosa. O design está mais arejado,

mais bonito. Os textos são mais suculentos, mais bem humorados,

acrescentado alegria ao rigor e à solidez habituais da SUPER. Tudo isso

porque lidar com conhecimento é muito divertido, aprender é e deve ser

uma aventura emocionante‖ (SUPER, ed 155, 2000:09).

A proposta parece óbvia: cativar o público jovem. Novas seções são criadas e outras

suprimidas da revista. Seções sobre comercialização de equipamentos avançados de

tecnologia, dicas de sites e guias de arte e mídia figuram na nova cara que é dada à revista.

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A foto do antigo diretor de redação com cabelinho bem penteado e usando gravata é

substituída pela de um jovem sorridente de camisa pólo. O projeto gráfico é drasticamente

enxugado. Capa mais limpa, poucas chamadas em contraste com o padrão anterior,

destaque no logotipo que vem agora acompanhado do slogan ―Quem lê é‖, e que foi

substituído em julho de 2003 por ―A melhor revista jovem do Brasil‖, tornando bem

evidente o público ao qual a revista está dirigida.

A mudança editorial também compreendeu o lançamento de uma série de subprodutos

da revista tais como livros, DVDs, e outras revistas que são lançadas paralelamente à

revista principal. As outras publicações trazem a marca da SUPER, mas tratam de temas

específicos tais como a Revista das Religiões lançada em 2003 com a proposta de ser a

primeira revista ecumênica de religiosidade e teologia do Brasil (algo que poderia soar

estranho a uma revista científica); Mundo Estranho (extraída a partir da seção

Superintrigrante); Vida Simples, que começou como edição especial em 2002 e hoje é uma

revista mensal; e a coleção de livros Para Saber Mais, lançada no final de 2002. A proposta

da revista com relação à publicação de livros é formar uma biblioteca básica para o leitor

que ―quer saber mais‖. Os títulos lançados abordam os mais variados assuntos, da Teoria da

Relatividade ao Judaísmo, de Yoga ao Linux (sistema operacional de computadores), da

Maconha à Vida Extraterrestre.

A lista dos produtos agregados à SUPER não para por aqui. Como podemos ver a

revista aposta no ecletismo das suas publicações para agradar a todos os nichos. Inicia uma

maior abordagem sobre religião e misticismo, temas um tanto espinhosos para quem

trabalha com ciência. Antes da reestruturação da revista, a SUPER havia dado apenas três

capas a assuntos ligados à religião ou espiritualidade (janeiro/1995, abril/1996,

junho/1998), embora a abordagem do tema ―ciência x religião‖ sempre tenha existido na

SUPER (no primeiro número encontramos a reportagem ―Pode a ciência acreditar em

Deus?‖). De 2001 para cá foram onze capas que trataram de religião, misticismo ou

espiritualidade, com matérias que foram do Espiritismo a Yoga. A capa de dezembro de

2002, edição 183, traz a manchete ―A verdadeira história de Jesus‖, e no editorial Adriano

Silva afirma que a capa de Julho daquele mesmo ano, ―Bíblia‖, era a recordista em vendas

de todos os tempos. O número de matérias sobre ciências humanas também cresceu na

publicação, gerando reclamação de alguns leitores e elogios de outros. Alguns chegam a

dizer que a ―revista passou de científica a revista de curiosidades e cultura inútil‖. Outros

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pedem que, apesar das críticas, ―a revista não deixe de lado as reportagens de ciências

humanas que enriqueceram o conteúdo‖. Conteúdo que atende às expectativas e reflete o

estilo de vida do leitor jovem da SUPER. Em enquête publicada na edição 194, de

novembro de 2003, 85,1% dos leitores da SUPER disseram acreditar que a meditação (tema

da capa do mês anterior) pode melhorar a qualidade de vida de quem a pratica. A revista

também intensificou o tratamento das questões ambientais criando em 2002 o Prêmio Super

Ecologia, onde a revista reconhece ações ecologicamente viáveis de ONGs, Governo e

Iniciativa Privada.

O objetivo desta pesquisa não é dizer se a revista analisada está melhor ou pior hoje,

ou como ela deveria estar. O que procuro demonstrar é que mudanças sociais e

mercadológicas influenciaram a reestruturação de um discurso jornalístico que teria por

base o discurso científico, ambos pretendendo na teoria serem discursos baseados na

verdade precisa e empiricamente comprovada nos fatos. Porém, o que se verá é que nem

um discurso nem outro está livre das subjetividades que permeiam suas construções

discursivas. Concordo com Lopes quando diz que ―a Ciência não é lida com o objeto

percebido, mas com o objeto construído‖ (2001:104). Com isso, não quero de forma

alguma negar a validade do conhecimento científico e as contribuições deste campo para

vida humana na Terra. Tal atitude invalidaria o próprio propósito desta pesquisa. O ponto

que se quer entender é como a partir do discurso científico e histórico sobre a maconha, a

SUPERINTERESSANTE formulou diferentes discursos abordando em certos momentos

dados e informações pertinentes e em outros ignorando-os na estruturação de três matérias

de capa sobre o tema.

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Capítulo II

Maconha: uma planta com história

Em primeiro lugar devo esclarecer que durante este capítulo a palavra maconha

poderá ser substituída por cânhamo, ou cannabis, todos os termos se referindo à mesma

planta que aqui será debatida nos seus aspectos industrial, médico, terapêutico, social e

legal. O que espero com esse capítulo não é fazer uma apologia ou reprimenda ao seu uso,

seja ele humano ou industrial, mas apenas colocar questões pertinentes a sua utilização em

vários contextos e épocas e discutir os efeitos de sua proibição ao longo do tempo. A

possibilidade de pequenas incoerências não será de todo descartada, pois a bibliografia

consultada sobre o assunto normalmente apresenta ou um tom apologético ou reacionário,

sendo poucas as fontes lidas que apresentaram um equilíbrio na abordagem do tema. Além

disso, as emoções particulares que permeiam a maioria dos textos sobre a maconha,

inclusive este, podem promover certos recortes da realidade sobre a planta e seus usos que

não seriam falsos, mas apenas um dos possíveis ângulos, dentre os vários que existem sobre

a questão. O que fiz foi justamente abordar um ângulo diferente do habitualmente

apresentado, sem, entretanto, santificar ou demonizar a maconha. O que existe são fatos e

fatos sobre a planta, alguns já bem (ou mal) conhecidos do grande público, e outros

obscurecidos por um discurso médico-político-legal que se propagou ao longo dos anos,

sobre tudo do final do século XIX até hoje. Não se trata simplesmente de negar tal discurso

ainda em voga, mas colocar questões sobre ele, questões que foram omitidas durante a sua

formulação por uma série de interesses políticos, econômicos e sociais, e porque não,

científicos.

2.1 Uma história de milhares de anos

Dados da Organização Mundial de Saúde afirmam que existe hoje em todo mundo

cerca de 163 milhões de usuários de maconha. Só no Brasil estima-se que sejam três

milhões de consumidores da erva. Os números de fato podem ser bem maiores. Nossa

relação com a erva data de séculos.

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O nome científico Cannabis sativa, foi atribuído à planta pelo botânico sueco Carl

von Linné, em 1753. Outra variação da espécie, a Cannabis indica foi descrita pelo

biólogo francês Jean Baptiste Lamark. Elas diferem tanto no porte como no formato da

folhas e na configuração do tronco, porém todas contêm canabinóis, substâncias químicas

responsáveis pelos efeitos psicoativos da planta, sendo o principal deles o Delta-9-THC

(tetraidrocanabinol), popularmente conhecido por THC. O clima e as condições de cultivo

são o que determina a maior ou menor concentração de THC na cannabis. A cannabis

sativa pode chegar a quatro metros e é a espécie que fornece as melhores fibras para

produção têxtil. Já a indica não chega a 1,5 metros e é a espécie que tem maior

concentração de THC. Como muitas outras plantas, a cannabis possui dois gêneros, macho

e fêmea. Quando a planta fêmea não é fecundada ela armazena energia e excreta uma

substância pegajosa, uma espécie de resina rica em THC. Essa resina cobre toda a planta,

porém ela está mais concentrada nas flores da fêmea. A planta fêmea é, portanto, a

maconha.

A história da cannabis atravessa os séculos. Segundo Robinson2 e todos os demais

autores consultados, a planta teve origem na Ásia central, onde se tornou a primeira fibra

vegetal a ser cultivada. Uma abundância de provas obtidas em sepulturas e outros sítios

através de toda China demonstra o cultivo de cânhamo asiático desde tempos pré-

históricos. O autor lista várias dessas provas obtidas em pesquisas arqueológicas que

comprovam o contato do homem com o cânhamo em épocas remotas, chegando a 12 mil

anos. As peças são normalmente cordas e tecidos que revelam a importância do cânhamo

para essas populações na produção de roupas. ―Os pobres dependiam do cânhamo para toda

a sua roupa, só os ricos podiam se dar ao luxo da seda‖ (Robison, 1999:64). O uso

medicinal da planta também está documentado na mais antiga farmacopéia existente, o

Pen-Ts‟ao Ching, que foi compilada no século I ou II a.C. e que recomenda o seu uso como

analgésico, antiespasmódico e sedativo e contra dores menstruais, reumatismo, prisão de

ventre e malária. Outras compilações chinesas, de períodos que vão do século 1000 ao

século I a.C., mencionam o cânhamo que também foi usado na China para produzir papel.

A invenção do papel é atribuída ao chinês Cai Lun, em 105 d.C., mas espécimes de papel

2 As informações relativas aos usos históricos do cânhamo presentes neste capítulo estão relatadas no livro ―O

grande livro da cannabis‖, de Rowan Robinson. Outras fontes consultadas apresentaram os mesmo relatos,

porém de maneira resumida ou esparsa, o que me fez optar por utilizar apenas este autor no que trata dos usos

históricos da planta. Porém, também eu tratarei de fazer um resumo tendo em conta o grande número de

informações contidas na obra que ultrapassam o espaço desta monografia.

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datados de mais de um século antes do período em que viveu Cai Lun foram encontrados

num túmulo perto de Xian, na província de Shaanxi. Esses papéis eram feitos de cânhamo.

Os chineses foram os pioneiros no uso da fibra do cânhamo, mas foi na Índia que as

demais propriedades da planta foram plenamente apreciadas a tal ponto de se tornar parte

da religião hindu e ter em Shiva sua divindade. Os Vedas, literatura sagrada hindu,

identificam o bangue (nome que é dado à bebida feita com flores secas da cannabis) ao

meio pelo qual uma pessoa tanto comunga com o deus Shiva quanto se livra do pecado. Um

texto hindu do século XVII, Rajvallabha, diz que o ―consumo desse alimento dos deuses

gera energia vital, amplia os poderes mentais e produz deleite para Shiva‖. A cannabis seria

o alimento preferido de Shiva.

Os arianos que invadiram a Índia penetraram também no Oriente Médio, e se

expandiram para Europa, espalhando a semente do cânhamo. A escavação da cidade de

Gordion, perto de Ancara, na Turquia, revelou tecidos de cânhamo produzidos no final do

século VII. A cannabis é mencionada em tábuas cuneiformes datadas de 650 a.C.

encontradas na biblioteca do imperador babilônico Assurbanipal. A planta era chamada

pelos assírios de qu-nu-bu, e na Pérsia, as sementes de cânhamo eram chamadas

shahdanah, ou ―sementes do imperador‖. O bangue e o haxixe figuram em várias narrativas

das Mil e uma noites, coletânea de histórias árabes compiladas entre os séculos XI e XVIII.

Na África, as fibras do cânhamo eram usadas para fazer cordas. Pedaços de tecidos

de cânhamo foram encontrados no túmulo do faraó Akhenaton (Amenófis IV), e o pólen

encontrado na múmia de Ramsés II (c. 1200 a.C.) foi identificado como de cânhamo. A

planta também foi usada na construção das pirâmides, nas pedreiras, onde sua fibra seca era

introduzida nas fendas da pedra e depois molhada. Com o inchaço da fibra, a pedra se

fendia. Embora não haja indícios arqueológicos de que os egípcios mais antigos

conhecessem os efeitos psicotrópicos do cânhamo, o consumo de cannabis para fins

espirituais ou recreativos acabou se tornando comum em toda África. O haxixe era

conhecido em todas as terras árabes, mas para o sufismo, religião mística do Islã, ele se

tornou parte da própria religião, mais ou menos como o bangue entre os hindus. Os sufis

divergiam dos demais mulçumanos em sua crença, pois afirmavam que a iluminação

espiritual não podia ser ensinada ou recolhida através de percepção racional, mas somente

em estados de alteração de consciência. O uso do haxixe era um dos métodos utilizados

para atingir o estado de transe. A proibição do álcool pela religião mulçumana também

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funcionou como estimulo para o uso da cannabis entre os árabes. Porém, durante a Idade

Média o hábito declinou, exceto entre os sufis, que até bem pouco tempo consideravam a

planta essencial nos seus rituais. Acredita-se que foram os africanos que introduziram a

maconha no Brasil. Porém, antes disso o cânhamo já havia aportado nas Américas. No

barco comandado por Cristóvão Colombo havia 70 toneladas de cânhamo, contanto o

velame e as cordas.

Na Europa, o uso da planta para produção têxtil era largamente difundido, desde o

império romano. Os vikings se valiam do cânhamo para o fabrico de cordas, panos de velas

e calafetagem. Sementes de cânhamo foram encontradas em vestígios de naus vikings

provavelmente construídas em 850. Os agricultores franceses tinham o costume de dançar

durante o carnaval da quaresma para que seu cânhamo crescesse bem. O cânhamo também

teve sua contribuição na difusão da palavra impressa, pois os primeiros livros depois da

invenção da imprensa por Gutenberg no século XV foram impressos em papel de cânhamo.

Os primeiros colonos europeus usaram o cânhamo silvestre assim que chegaram à

América. Os puritanos cultivavam cânhamo em Jamestown em conformidade com o

contrato que haviam firmado em 1607 com a Virginia Company. O governador da Virgínia,

Sir Thomas Dele, trouxe consigo instruções para o cultivo de um jardim comunitário que

permitiria a experimentação do cânhamo e do linho. Porém, os colonos preferiam plantar

tabaco que tinha maior mercado na Europa. Diante disso, a Virginia Company emitiu em

1616 uma instrução segundo a qual todo colono de Jamestown deveria cultivar cem plantas

de cânhamo, devendo o governador cultivar 5 mil. Várias colônias aprovaram leis pelas

quais certas manufaturas, particularmente a do cânhamo, do linho e do alcatrão, podiam ser

usadas no pagamento de dívidas e impostos. Os governos coloniais incentivaram a

produção de cânhamo com variados graus de rigor e sucesso. As seções de 1720-22 da

Assembléia Geral de Connecticut aprovaram uma recompensa de quatro xelins ―por cento‖

bruto de cânhamo parcialmente processado para incentivar seu cultivo contínuo, enquanto a

Virgínia continuou promulgando leis que forçavam os proprietários de terra a cultivar a

planta, e multando os recalcitrantes. O primeiro e o segundo rascunho da declaração de

independência dos Estados Unidos, de 1776, foi escrita em papel de cânhamo e o primeiro

presidente americano, George Washington, mostrava preocupação com o cultivo da planta,

como atesta trechos de seu diário da fazenda de 1765, quando ainda era apenas um

fazendeiro produtor da planta. A transcrição está no livro de Robinson (1999:81) e detalha

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passos do cultivo, da plantação à colheita. Também Thomas Jefferson foi um defensor do

cultivo de cânhamo e chegou a inventar o ―quebrador de cânhamo‖, dispositivo que seria

acrescentado a uma debulhadora para trabalhar a planta. O quebrador recebeu a primeira

patente dos Estados Unidos.

Durante a Guerra Civil americana (1861-1865), o Congresso dos EUA ordenou ao

comissário da agricultura do norte que fizesse investigações para testar a praticabilidade do

cultivo e do preparo de linho ou cânhamo como um substituto para o algodão. A guerra

causou de início um aumento da demanda do cânhamo, mas a expansão foi apenas

temporária. Depois da guerra, o algodão dominou a agricultura sulista, e juta barata

importada veio substituir o cânhamo como o material usado para ensacar o algodão. Mais

ou menos na mesma época o papel de polpa de celulose tornou-se amplamente disponível e

reduziu a demanda do cânhamo como material usado na feitura de papel. Como seqüela da

Guerra Civil, a perda da mão de obra escrava e a falta de colheitadeiras mecânicas

significaram a ruína da indústria do cânhamo e ela nunca se recuperou totalmente, apesar

de um breve ressurgimento do cultivo da planta nas décadas de 1870 e 1880.

Na virada do século o mercado para cânhamo estava limitado a cordame, barbante e

linha. Mas a invenção do decorticador mecânico prometia mudar isso. O acesso à fibra e à

celulose contida no caule da planta estimulou a criação de novos usos para o cânhamo.

Henry Ford foi um dos que apostaram nas possibilidades do cânhamo na indústria e na

altura da década de 1930 a Ford Motor Company produziu o primeiro carro ―orgânico‖

feito a partir da combinação de cânhamo e outros produtos e projetado para rodar com

combustível também feito de cânhamo. Entretanto, nos fins da década de 1930 a Lei de

Taxação da Marihuana foi aprovada nos EUA, e a promissora indústria do cânhamo ficou

inviabilizada na América3.

2.2 O cânhamo e seus usos

Muito já foi dito até aqui sobre a cannabis e sua história. Nesta seção procuro

apresentar mais detalhes sobre os usos industrial, médico, terapêutico e religioso da planta

3 Mais adiante informações mais completas sobre a Lei da Taxação da Marihuana serão apresentadas no

tópico que trata da proibição da planta no mundo.

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por entender que sua proibição diz respeito também a essas áreas e não só ao controle social

do uso de uma substância.

Indústria

Como já foi dito acima, o uso do cânhamo para produção de papel e tecidos remota

há milênios. O papel de cânhamo, segundo Robinson, poderia ser a alternativa econômica e

ecológica viável para o meio ambiente, pois o atual papel produzido de árvores gera o

desmatamento que afeta o ecossistema como um todo, afetando a camada superior do solo e

bacias hidrográficas, bem como aumento do efeito estufa. Mesmo as indústrias que mantêm

reservas renováveis de madeira para produção do papel contribuiriam para efeitos negativos

ao meio ambiente, uma vez que a reciclagem de papel no mundo é muito baixa se

comparada a sua produção e consumo. A fibra do cânhamo é biodegradável e

conseqüentemente o papel produzido a partir dela tem um potencial de reciclagem maior e

causa menos danos ao meio ambiente. Hoje, um dos papéis mais conhecidos feitos de

cânhamo são os papéis para cigarro, a exemplo das marcas Smokingpaper e Pure Hemp,

encontradas em qualquer tabacaria.

Além de papel, com a fibra do cânhamo pode-se produzir tecido. Os feixes de fibra

da planta chegam a medir 4,5m enquanto as fibras do algodão têm 2cm, o que dá ao

cânhamo uma resistência à tração oito vezes maior que a do algodão e uma durabilidade

quatro vezes maior. O cânhamo, como o linho e outras fibras, pode ser tecido em muitos

níveis, da lona ao tecido fino. Com o processamento adequado, é possível tornar o cânhamo

tão macio quanto o algodão. Por causa do cultivo limitado, os tecidos de cânhamo são hoje

escassos no mercado. A maioria dos itens ainda é vendida por catálogos ou em lojas

especializada. O preço mais alto do cânhamo pode ser compensado por sua qualidade

superior e pela promoção do produto como uma opção ambiental. Aliás, ser ecologicamente

correto é o slogan daqueles que apostam nos produtos à base de cânhamo. Além de ser

biodegradável, a planta requer relativamente pouco fertilizante em comparação a outros

produtos fibrosos e, tendo poucos predadores naturais, precisa de pouco ou nenhum

tratamento com pesticidas.

Da semente da cannabis pode ser produzido óleo para ser usado como combustível,

e ainda óleo comestível com um dos níveis mais baixos de gordura saturada. A indústria de

cosméticos também pode fazer uso do óleo de cânhamo na produção de xampus, cremes

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para o corpo e até perfume. As sementes da planta são utilizadas hoje em dia basicamente

como ração para pássaros.

Saúde

Como já foi dito, a mais antiga farmacopéia do mundo, o Pen-Ts‟ao Ching, já

recomendava o uso da cannabis contra vários males, de prisão de ventre a reumatismo.

Também os hindus, além do uso religioso que faziam da planta, utilizavam-na na sua

medicina. O tratado Anandakanda, do século X, descreve 50 preparados de bangue para

curas, rejuvenescimento e como afrodisíaco. Os médicos ayurvédicos da Índia usavam o

bangue para tratar diarréia, epilepsia, delírio e insanidade, cólica, reumatismo, gastrite,

anorexia, náusea, febre, bronquite, diabetes, tuberculose, anemia, etc. A lista dos males

tratados pela cannabis é extensa.

O cânhamo se tornou membro oficial do repertório farmacêutico na Europa e nos

Estados Unidos a partir do preparado Esquire‘s Extract utilizado como medicamento

específico no alivío dos sintomas do tétano, do tifo e da hidrofobia. Segundo Robinson:

―No final do século XIX, a cannabis foi incluída em dezenas de

remédios disponíveis mediante prescrição ou diretamente no balcão.

Entre eles estavam o digestivo Chlorodyne e o Corn Collodium,

manufaturados pela Squibb Company. A Park-Davis produzia Casadein,

Utroval e medicamento para cólica veterinária e a Eli Lilly produzia os

tabletes sedativos Dr. Brown‘s, Xarope composto Tolu, Xarope Lobelia,

Neurosine e Cura a Tosse em um Dia. O uso de uma substância hoje

ilegal pelas que são algumas das maiores empresas farmacêuticas do

mundo não é mais surpreendente que o uso de cocaína pela Coca-Cola

nas primeiras décadas do século e ressalta a natureza arbitrária das

‗substâncias controladas‘‖ (1999:33).

É bem verdade que comprovar a validade dos usos medicinais da cannabis em

épocas passadas fica um pouco difícil. Mas as pesquisas atuais indicam que a planta tem

vários usos medicinais, sendo o mais conhecido deles em pacientes portadores de HIV e

naqueles que enfrentam tratamento quimioterápico contra o câncer. Nos primeiros a planta

estimularia o apetite promovendo uma melhor alimentação do soro positivo e

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conseqüentemente aumento de suas defesas imunológicas que são afetadas pelo vírus. Nos

segundos, a planta teria efeito contra as fortes náuseas resultantes da quimioterapia. Muitos

médicos, entretanto, alegam que já existem hoje medicamentos legais capazes de produzir

os mesmos efeitos desejáveis da maconha nesses pacientes, sem os inconvenientes do efeito

psicotrópico, que não agrada a todos, e as complicações legais. Porém, tais medicamentos

não surtem efeito em todos os organismos e o paciente fica, devido à proibição,

impossibilitados de testar outra medida. A prova da eficácia da cannabis em pacientes de

câncer que não respondem aos medicamentos tradicionais foi comprovada quando o

governo americano criou o Marinol, o THC sintético. Porém, alguns pacientes vomitam as

pílulas antes mesmo delas fazerem efeito, o que não ocorre com o THC fumado. Desde

2001 o Canadá autoriza o uso medicinal da maconha. Doentes terminais ou portadores de

câncer e Aids podem fumar e até cultivar a planta.

Ainda com relação ao câncer, não há dados suficientes que comprovem se a

maconha fumada regularmente por anos a fio causaria ou não câncer de pulmão. É provável

que contribua para isso, já que é fumaça inalada, porém não na mesma proporção que o

tabaco, visto que o usuário pesado de maconha fuma em média 3 ou 4 cigarros da erva por

dia, a maioria deles menos que isso (o chamado uso recreativo: somente em festas, finais de

semana) e o uso é reduzido com a idade, enquanto os fumantes de tabaco que desenvolvem

câncer tem um histórico de uso prolongado (em média 30 anos ou mais) e intenso (mais de

30 cigarros por dia).

A maconha também já foi testada em pacientes com glaucoma, doença caracterizada

por aumento da pressão do líquido dentro do olho que pode levar à cegueira. A maconha

reduz a pressão intraocular. O efeito pode ser obtido oralmente, por via endovenosa ou

aplicação tópica. A cannabis também pode ser usada contra dor, ansiedade e no tratamento

de viciados em drogas pesadas, a exemplo do programa desenvolvido pelo psiquiatra Dartiu

Xavier da Silveira, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, Proad, do

departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo. Em sua pesquisa, o

psiquiatra tratou dependentes de crack incentivando-os a substituir a droga pela maconha.

Quase 70% dos dependentes largaram o crack, e posteriormente a maconha. A erva seria

eficaz no tratamento de cocainômanos porque diminuiria a ansiedade e aumentaria o

apetite.

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Na contramão daqueles que defendem os usos medicinais da maconha, e com isso

uma maior abertura e incentivo às pesquisas com a erva, estão os que alegam que os danos

sociais provocados pelo uso da planta invalidam qualquer iniciativa de torná-la

cientificamente viável para utilização médica. Cientistas ainda discutem se a maconha mata

ou não neurônios, e se causa impotência e infertilidade. Algumas pesquisas dizem que sim

e outras que não. A verdade é que o conteúdo dessas pesquisas, a forma como são

realizadas e a metodologia utilizada quase nunca chegam ao grande público. As

publicações científicas dirigidas ao público leigo trazem poucos detalhes dos estudos

realizados e pouco se questiona sobre sua validade. Interessante notar um dos primeiros

estudos feitos sobre a maconha no Brasil publicado nos Anais paulistas de medicina

cirúrgica, IX, em 1918, onde o médico Francisco de Assis Iglesias descreve suas

experiências com animais que comprovariam a ação tóxica da maconha em pombos e

cachorros. Os animais ficavam em uma espécie de campânula (não há gravura do aparelho)

onde recebiam doses de fumaça provenientes da combustão de maconha.

―(...) depois de alguns instantes, fenômenos de excitação,

caracterizado pela agitação desordenada da cabeça, movimentos de

deglutição, batimento de asas, etc. (...) retirado da frente do aparelho

inalador, o animal vai-se pouco a pouco se restabelecendo, podendo a

princípio andar, mas não voar. (...) Um cachorro de 1.700 gramas recebeu

o produto de combustão do conteúdo de dois cachimbos, cerca de 4

gramas de vegetal4, durando a inalação 10 minutos (...). O animal ficou

sonolento e paralisado em decúbito lateral por 8 minutos (...) depois de

mais alguns minutos em que foi observado o movimento desordenado da

cabeça, como se o animal estivesse sobre o efeito do álcool, conseguiu

pôr-se sobre as quatro patas‖ (1986:50)

Iglesias conclui que a maconha é tóxica e isso se verifica ―por experiências em

animais quando a estes é administrada (a maconha) de modo idêntico àquele pelo qual o

homem viciado o pratica‖ (1986:51). Pela descrição podemos ver que o modo pelo qual o

homem ―pratica o vício‖ não é nem de longe igual àquele aplicado aos animais. O autor não

leva em conta outros aspectos essencialmente humanos do consumo apesar do contato que

4 Quantidade equivalente a quatro cigarros pequenos.

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teve com os grupos de usuários da época: negros do Maranhão que se reuniam para fumar

diamba, como eles chamavam a maconha. É claro que não podemos esperar análises sócio-

antropológicas de um médico branco do início o século XX acerca dos usos e costumes da

população negra e mestiça marginalizada. O que devemos levar em conta é o tom de

preconceito que perdura até hoje no imaginário social com relação ao usuário de maconha.

Iglesias diz:

―Extrema miséria: a diamba está passando das tascas e choupanas

da gente rude para as câmaras das prostitutas! Logo, muito logo, os

moços elegantes se embriagaram com a diamba: e como,

desgraçadamente, eles têm irmãs, o vício terrível passará a fazer parte da

moda, como já o é a mania do éter, da morfina, da cocaína, etc.‖

(ibid.:49).

Hoje em dia ainda há pesquisas que colocam suas ―cobaias‖, normalmente pagas

para isso, para fumar 10 cigarros de maconha por dia enquanto fazem testes motores e de

memória. Tais pesquisas retiram todo o contexto em que a maconha é utilizada

normalmente, e trabalha apenas com usuários crônicos, quando a maior parte das pessoas

usa a maconha eventualmente. Dados da própria Organização Mundial de Saúde atesta que

apenas 10% dos usuários se viciam.

Religião

O uso religioso da cannabis está presente em várias culturas. Do hinduísmo ao

rastafarianismo, passando até pelo judaísmo. O uso hindu aqui relatado mostra como a

planta é importante nessa religião estando associada a uma das principais divindades

cultuadas pelos hindus que é Shiva. O uso do bangue era tão difundido entre os indianos

que os ingleses solicitaram uma comissão para estudar os usos da planta entre os nativos.

No ―Grande livro da Cannabis‖, Robinson cita trechos do relatório de J. M. Campbell da

Comissão Indiana para Drogas do Cânhamo de 1893-1894 que diz:

―Proibir ou mesmo restringir seriamente o uso de uma erva tão

benigna quanto o cânhamo causaria sofrimento e irritação generalizados

e, para amplos grupos de ascetas venerados, uma cólera profundamente

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arraigada. Seria roubar do povo um consolo no desconforto, uma cura na

doença, um guardião cuja compassiva proteção os livra dos ataques de

influências malignas e cujo grande poder faz do devoto um vitorioso (...)

O bangue traz união com o espírito divino‖ (1999:55).

Historicamente, o bangue tornou-se associado à Káli, um aspecto feminino de

Shiva, nos rituais sexuais tântricos da Idade Média. Os sikhs, um desmembramento hindu

que remonta a 1500 e combate o sistema de casta e a idolatria mágica, também tem uma

tradição de consumo do bangue. O relatório da comissão também atesta o uso do cânhamo

entre os mulçumanos. Campbell afirma que o mulçumano distingue entre a reverência ao

bangue e a verdadeira adoração, que é devida a Alá somente. No Islã o bangue representa

não o espírito de Deus, mas o espírito do profeta Khizr, ou Elias (Robinson, 1999:55).

Como já foi mencionado, entre os mulçumanos são os sufis que mais estão associados à

cannabis por sua crença na apreensão do ensinamento sagrado através da alteração de

consciência.

Robinson afirma ainda que embora desautorizado por muitos lideres espirituais

hindus, em particular aqueles que conquistaram grandes números de adeptos no Ocidente, o

uso da cannabis persiste entre muitos hindus indianos sob três formas: a bebida bangue,

preparada com folhas secas; as viscosas e potentes flores da copa, chamadas ganja; e as

resinas recolhidas chamadas charas ou haxixe.

Na tradição budista Mahaiana, reza a lenda que Buda viveu de uma semente de

cannabis por dia durante os seis anos de disciplina ascética que precederam sua iluminação.

Conjectura-se que o zoroastrismo, religião persa do século 500 a.C., também fazia uso do

cânhamo. Acredita-se que a substância haoma, central para o mito zoroástrico, e na verdade

maconha. Até no judaísmo encontra-se alusões ao cânhamo (embora nada seja realmente

confirmado e é veemente negado pelos judeus). Etimologistas da Universidade Hebraica,

em Jerusalém, concluíram em 1980 que a palavra kineboisin, do Antigo Testamento,

significa cannabis. Representantes da religião, entretanto, mostraram que o nome

kineboisin era simplesmente parte de um óleo sagrado para ungir que Deus ordenou a

Moisés aplicar externamente (Gênesis 30:23).

Na África o uso da cannabis, tanto para fins religiosos quanto para outros, abunda

em todo o continente. A erva é um sacramento e um remédio para os pigmeus, os zulus e os

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hotentotes (Robinson, 1999:57). A Igreja Copta Sião da Etiópia conserva uma prática

eucarística baseada na cannabis que seus membros mais idosos atribuem, através da

tradição oral, a seus ancestrais antes da era cristã. Quando nativos dessa região foram

levados para a Jamaica como escravos, levaram consigo sua espiritualidade ligada a

cannabis, possivelmente levando as sementes para sua adoração pelo movimento rastafari

de nossos dias. O movimento rastafari foi fundado na década de 1930 e é mais que uma

religião, é um movimento político e cultural. A cannabis é largamente utilizada no país,

embora não seja de fato legalizada, onde é chamada de ganja. Os rastas, adeptos da

religião, afirmam que a ganja é a ―cura da nação‖ e a ―semente da sabedoria‖ e encontram

na Bíblia ocidental justificação para seu uso espiritual. No Gênesis 01:11-12 está escrito ―E

disse Deus: Produza a terra erva verde, erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto

segundo a sua espécie, cuja semente esteja nela sobre a terra. E assim foi. E a terra produziu

erva, erva dando semente conforme a sua espécie e árvore frutífera, cuja semente está nela

conforme a sua espécie. E viu Deus que era bom‖. O movimento celebra a herança africana

negra na Jamaica, tem suas raízes num fascínio pela Etiópia, ela própria um centro de

cultural religiosa influenciado pela cannabis representada pela tradição copta etíope. Mas o

uso da planta remonta de tempos anteriores a propagação do movimento a partir de 1930.

Alguns anciões coptas da Jamaica afirmam que suas crenças chegaram ao país pela

primeira vez quando seus ancestrais para lá foram levados como escravos no século XIX. A

influência hindu através de trabalhadores emigrados da Índia não pode ser descartada.

Foram também os africanos que possivelmente difundiram o uso da erva no Brasil

quando aqui chegaram e participaram suas experiências aos índios nativos. No livro

Diamba Sarabamba, o antropólogo Anthony Henmam apresenta um artigo sobre o uso da

maconha entre os índios Tenetehara do Maranhão. O autor abre o texto citando o caso do

índio Celestino Guajajara preso e torturado durante a ―Operação Maconha‖ realizada em

1977 pela Polícia Federal, no Maranhão. Na época, a Funai reconhecia e assegurava o uso

ritual da planta entre os índios alegando que o consumo entre eles não tinha a conotação

negativa que era encontrada entre os civilizados. Não encontrei literatura recente que

aponte ainda o uso de cannabis entre índios brasileiros.

A maconha no Brasil era utilizada ritualisticamente entre os negros, no candomblé.

A planta é considerada folha de Exu. Esteve presente nos rituais até a década de 1930

quando o presidente Getúlio Vargas teria negociado a legalização da religião em troca do

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banimento da planta dos terreiros. O nome ―maconha‖ vem do idioma quimbundo, de

Angola. No Brasil recebeu vários nomes como diamba, liamba, fumo-de-angola, pito de

pango, cagonha, bongo, riamba, entre outros. Como veremos mais adiante, a associação da

planta com os negros funcionou no Brasil como base para o discurso médico-moral que

fundamentou a sua proibição acompanhando a investida dos Estados Unidos contra a

maconha em todo o mundo.

2.3 A proibição

Podemos nos perguntar como a cannabis, com uma história tão vasta sobre a Terra,

de usos tão diversos nas mais variadas culturas, teve seu uso proibido em praticamente todo

o mundo a partir do início do século XX? Como uma planta que estava inserida na religião,

na indústria e na medicina teve seu uso legalmente banido em praticamente todo o planeta?

Uma resposta simples a essa questão poderia ser que se comprovou que o seu uso traz mais

danos à saúde que benefícios, e pensando no bem estar social a solução mais racional foi

mesmo proibir o seu uso. Porém, a mesma resposta serviria para proibir o consumo de

álcool, tabaco, gordura e até açúcar. A gordura é responsável pelo aumento de peso acima

do normal em mais da metade da população americana o que tem elevado o número de

cardíacos e diabéticos nos Estados Unidos, porém ninguém se dispõe a propor a proibição

do consumo de gordura no mundo por causa dos americanos obesos.

O histórico da proibição da planta no mundo quando estudado de perto escapa a

problemas de saúde pública. Se pensarmos que até início dos anos 1930 a cannabis ainda

era utilizada industrialmente nos Estados Unidos devemos nos perguntar por que uma

planta com grandes possibilidades de comercialização através de seus produtos foi proibida

com base nas alegações de que causaria danos à saúde quando sabemos que o nível de

THC, princípio ativo da planta, pode ser controlado e que na planta utilizada para produção

industrial ele está em níveis tão baixos que não produz o efeito psicotrópico? A resposta é

longa, e vamos a ela.

Até início do século XX a cannabis era usada livremente, embora com certa

descrição, pela sociedade americana. Casas de haxixe, que serviam ricos e sofisticados de

Nova York e outras grandes cidades, funcionavam desde o início do século XIX, a exemplo

das casas do gênero existentes na Europa. Apenas em 1906 surge a primeira lei federal

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americana que propunha um controle sobre seu consumo. Segundo Robinson, a Lei sobre

as Drogas e Alimentação limitava-se a afirmar que qualquer quantidade de maconha (e de

várias outras substâncias como o álcool, ópio, cocaína e hidrato de cloral) devia ser

claramente declarada no rótulo de qualquer alimento ou remédio vendido ao público

(1999:89). Reformadores sociais tentaram incluir a cannabis nas proscrições da Lei

Harrison de 1914, mas a indústria farmacêutica opôs-se com sucesso a essa inclusão já que

ela era um ingrediente de emplastro de milho e de vários outros medicamentos. A lei de

1914 obrigou os que importavam, produziam e negociavam ópio e coca a se registrarem e

pagarem um imposto ocupacional além de redigir relatórios detalhados sobre suas

transações com a droga. Esses procedimentos tinham por objetivo desencorajar

indiretamente o tráfico de narcóticos e entorpecentes. Entre 1911 e 1920 a maconha foi

proscrita ou proibida em mais de dez estados americanos. Entretanto, com a proibição do

álcool em 1920, a chamada Lei Seca que durou até 1933, o uso de maconha explodiu nos

EUA, não só entre os mexicanos que sempre foram associados à droga. A erva se tornou a

opção mais barata para substituição do álcool.

Desde o fim da Primeira Guerra Mundial os EUA despontaram como uma potência

e recebiam um grande fluxo migratório. Milhares de mexicanos atravessaram a fronteira

durante as primeiras décadas do século XX em busca de emprego. A relação com os

imigrantes nunca foi fácil e tornou-se pior a partir de 1929 com a quebra da bolsa e a crise

econômica que assolou o país, tornando dinheiro e emprego escassos.

A competição por postos de trabalho entre mexicanos e americanos se tornava

acirrada e a hostilidade entre ambos alimentou o discurso antimaconha que se verificou a

partir dos anos 1930. Com a crise, a criminalidade cresceu no país, principalmente entre os

mexicanos pobres e desempregados e foi aqui que nasceram as primeiras associações entre

o consumo da maconha e a delinqüência. Associar mexicano usuário de maconha com

crime afastava os mesmos de postos de trabalho e criou sobre eles um estigma que não se

apagou até hoje. A aversão à maconha, associada aos mexicanos, aumentou dentro da

sociedade americana e uma propaganda racista foi articulada para aumentar esse sentimento

que levaria a proibição da planta. Artigos proclamavam que a maconha causava loucura e

levava os jovens a cometerem atos insanos. Na imprensa, o nome de William Randolph

Hearst foi decisivo para propagação da campanha racista antimaconha nos EUA. Dono de

uma grande rede de jornais, Hearst não poupava espaço para divulgar notícias

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sensacionalistas onde dizia que a maconha levava negros e mexicanos a violentar mulheres

brancas e que jovens sobre o efeito da droga cometiam crimes ou suicídio. Seu ódio aos

mexicanos era aberto e provavelmente, afirma Robinson, vinha do fato dele ter perdido 320

mil hectares de floresta nativa para o exército de Pancho Villa durante a Revolução

Mexicana de 1910. Além dos jornais, Hearst também investia na indústria papeleira graças

às áreas de floresta que possuía (mesmo descontando as que foram tomadas pelos

mexicanos) e a indústria do cânhamo para produção de papel era algo que não o agradava.

Muitos dos artigos publicados nos jornais de Hearst eram escritos por Harry

Anslinger, secretário da Junta Federal de Controle de Narcóticos. Quando a Agência

Federal de Narcóticos foi fundada em 1930, Anslinger tornou-se seu primeiro diretor, cargo

que manteve até 1962, quando foi demitido por J. F. Kennedy. Durante esse período,

Anslinger promoveu intensa campanha para proibir o uso da cannabis na América e

conseguiu. Seus artigos contavam histórias (que não eram apuradas) sobre casos de jovens

―assassinados pela erva maldita‖, que não estavam fundamentados em dados científicos,

mas apenas em fatos por ele presenciados.

Anslinger era casado com a sobrinha do secretário do Tesouro, Andrew Mellon, um

banqueiro que estava financiando a crescente dinastia petroquímica dos Du Pont. Na

década de 1920, a Du Pont desenvolveu e patenteou aditivos para combustíveis como o

chumbo tetraetil e vários outros produtos sintéticos como o náilon, o celofane e outros

plásticos. O cânhamo utilizado na produção de tecidos e combustível representava uma

ameaça para a Du Pont que pressionou o Departamento do Tesouro em prol da proibição da

cannabis, assegurando-lhes que os produtos sintéticos da Du Pont podiam substituir

àqueles feitos de cânhamo.

Em 1937, a Agência Federal de Narcóticos americana conseguiu aprovar a Lei da

Taxação da Marihuana. A lei tributava o cânhamo à taxa de um dólar por 30 quilos para

fins industriais e médicos e 100 dólares para outros fins. Embora teoricamente a lei fosse

uma forma de gerar receita ela se destinava na realidade a destruir a indústria do cânhamo.

A lei proibiu o uso recreativo da cannabis. Mas Anslinger não se deteve. Atuou

internacionalmente para promover a proibição no resto do mundo e não foi difícil. Em 1961

as Nações Unidas adotaram uma política com relação às drogas, declarando que cada nação

membro podia tomar ―as medidas que possam ser necessárias para impedir o abuso das

folhas da planta cannabis e o tráfico ilícito delas‖, e que ―o uso da cannabis para propósitos

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outros que médicos e científicos deveria ser interrompido tão logo quanto possível, mas de

todo modo dentro de 25 anos‖. Na mesma década a maconha se tornaria um poderoso

símbolo político de liberdade e desobediência civil através dos hippies. Porém, seu uso

crescente não diminuiu o rigor das leis. Em 1971 o presidente americano Richard Nixon

declarou guerra às drogas e qualificou o abuso dessas substâncias como uma emergência

nacional. A eleição de Jimmy Carter para presidência em 1977 foi vista como um sinal

positivo para os que eram a favor da legalização do cânhamo. Ao falar ao Congresso em

agosto de 1977, Carter tornou-se o primeiro presidente a aprovar publicamente a

descriminalização da maconha quando afirmou que ―penas contra a posse de uma droga

não deveriam ser mais danosas para um indivíduo que o uso da própria droga‖. Porém, a

tentativa de Carter foi obscurecida por um escândalo na Casa Branca, em que um

funcionário acusou a equipe de usar ocasionalmente maconha e cocaína. Ainda assim, a

maconha está descriminalizada em 11 estados americanos, e seu uso médico é permitido em

oito estados. O Oregon foi o primeiro Estado a descriminalizar a erva em 1973. Isso é

possível nos Estados Unidos, mesmo com toda política antidrogas que o país financia,

porque os estados americanos podem elaborar suas próprias leis tendo por base a

Constituição federal.

2.4 A proibição no Brasil

No Brasil, leis federais antimaconha já existiam na década de 1920. Antes disso, em

1830, o país fez sua primeira lei restringindo o uso da planta. A Câmara Municipal do Rio

de Janeiro instituiu naquele ano que ficava ―proibida a venda e o uso do ‗pito de pango‘,

bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber,

o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em 3 dias de

cadeia‖. Note-se o teor da pena: para os vendedores, geralmente brancos, multa; para o

consumidor, negro e escravo, cadeia. Hoje a situação se inverte: o vendedor, negro, mestiço

da favela recebe pena maior que o consumidor, que pode ser negro ou mestiço, mas

também branco de classe média ou alta. Como nos EUA, a história da proibição da planta

no Brasil está carregada de racismo, principalmente nos textos científicos da época.

Exemplo clássico é o primeiro estudo sobre o uso da cannabis realizado no país pelo

médico Rodrigues Dória em 1915, intitulado ―Os fumadores de maconha: efeitos e males

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do vício‖, que foi apresentado no Segundo Congresso Científico Pan-Americano em

dezembro daquele ano. Dória estuda os efeitos da planta que ele afirma ter sido trazida

pelos escravos e associa seu uso ao crime.

―É principalmente no Norte do Brasil onde se acha o vício de

fumar a maconha mais espalhado, produzindo estragos individuais e

dando por vezes lugar a graves conseqüências criminosas (...) Os índios

amansados aprenderam a usar a maconha, vício a que se entregam com

paixão, como fazem a outros vícios, como o do álcool, tornando-se

hábito inveterado. Fumam também os mestiços, e, é nas camadas mais

baixas que predomina o seu uso, pouco ou quase nada conhecido na parte

mais educada e civilizada da sociedade brasileira‖(1986:22).

O discurso do médico fala por si. Dória fala do êxtase provocado pela maconha na

―imaginação dos ignorantes, sugestionando-os‖, e cita casos de negros sadios e dispostos

que fazem uso da planta há muitos anos sem danos aparentes à saúde. Na verdade, Dória só

não se contradiz quando trata de explorar o preconceito contra os negros e mestiços. Diz ele

que o uso da cannabis

―É muito disseminado entre pessoas de baixa condição, na

maioria analfabetos, homens do campo, trabalhadores rurais, plantadores

de arroz, nas margens do Rio São Francisco, canoeiros, pescadores, e

também nos quartéis pelos soldados, os quais ainda entre nós são tirados

da escória da nossa sociedade‖ (ibid:34).

Merece citação o parágrafo de encerramento do texto que diz:

―A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas

intemperante, se em determinadas circunstâncias prestou grandes

serviços aos brancos, seus irmão mais adiantados em civilização, dando-

lhes pelo seu trabalho corporal fortuna e comodidades, estragando o

robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos

êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos

sem fim de sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal

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naqueles que o afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade

preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva‖ (ibid.:37).

Dória, e não só ele, demoniza a maconha a partir de um preconceito racial

transparente em seu trabalho. Não se poderia esperar algo diferente no início do século XX,

a pouco mais de vinte anos da abolição da escravatura. O que surpreende é que o discurso

vigora até hoje. Um exemplo é o uso do termo ―maloqueiro‖ utilizado por Garcia Moreno,

diretor do Serviço de Assistência a Psicopatas de Sergipe que em 1946 escreve ―Aspectos

do maconhismo em Sergipe‖. O termo é usado para designar os usuários de maconha.

―Os ‗maloqueiros‘ (...) são adolescentes abandonados,

delinqüentes quase todos, que moram debaixo das pontes do cais de

Aracaju. Formam um bando liderado por um malandro experiente da

criminalidade, que lhes traça o programa da vida miserável, cheia de

aventuras e incidentes policiais‖ (1986:58).

O estudo de Moreno não traz nada novo no discurso antimaconha, embora tenha

sido escrito mais de 30 anos depois do de Dória. Vale pela compilação de músicas que ele

chama de ―trovas da maconha‖ colhidas na Cidade de Menores (não especifica se é bairro),

de Aracaju e na ribeira do São Francisco. As trovas são semelhantes aos desafios de

violeiros e fazem menção à maconha e seus efeitos.

Logo após a lei americana de 1937, Getúlio Vargas aprova leis no combate ao uso

da cannabis e outras drogas já em 1938. Entretanto, a lei 891/38 falava da toxicomania

como doença e tratava da internação civil e interdição dos toxicômanos. Logo após, com a

vigência do Código Penal de 1940, temos no artigo 281 que apenava apenas a conduta do

trafico de drogas, mas não o uso. Porém, em 1968, já sob o regime militar, o Decreto Lei

385, rompe a tradição jurídica brasileira quando o legislador, revogando a artigo 281 do

Código Penal, equiparou traficante e usuário, atribuindo-lhes penas idênticas. Como

sabemos, durante esse período o movimento estudantil era forte opositor da ditadura e entre

eles o uso da cannabis era uma evidência. Pena igual para usuário e traficante era um meio

legal de perseguir e deter membros do movimento estudantil. Em 1971 é editada a Lei

5.726 que além de continuar mantendo a igualdade da pena para traficante e usuário trouxe

profundas alterações na conceituação dos delitos, no rito processual e no sistema de

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tratamento e recuperação dos dependentes. A lei permitia, por exemplo, o recebimento de

denúncia sem a existência de um laudo toxicológico, que positiva a materialidade do delito.

Neste sentido, a lei 6.368, de 1976, constituiu um avanço, pois voltou a distinguir as figuras

do traficante e usuário, e isentava de pena, através do artigo 19, o agente em que ficasse

comprovada a ação ou omissão em função da dependência, além de tratar no capítulo II do

tratamento e da recuperação de dependentes. Entretanto, vale notar o conteúdo do parágrafo

IV, do artigo 18, que diz:

―Art. 18. As penas dos crimes definidos nesta Lei serão

aumentadas de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços):

(...)

IV – se em qualquer dos atos de preparação, execução ou

consumação ocorrer nas imediações ou no interior de estabelecimentos

de ensino ou hospitalar, de sede de entidades estudantis, sociais,

culturais, recreativas, esportivas ou beneficentes, de locais de trabalho

coletivo de estabelecimentos penais, ou de recintos onde se realizem

espetáculos ou diversões de qualquer natureza, sem prejuízo da

interdição do estabelecimento ou do local‖.

A penalização do prazer sempre esteve ligada à proibição do uso de drogas e o

trecho acima atesta isso claramente.

No mesmo ano que o Brasil lança a lei 6.368/76, a Holanda descriminaliza o uso da

cannabis. Por todo país funcionam os koffeshops, que poderíamos dizer são as modernas

―casas de haxixe‖, autorizadas pelo governo a vender maconha para seus freqüentadores,

limitando a venda diária por estabelecimento a meio quilo da droga. A Holanda recebe

anualmente 10 milhões de turistas e muitos deles vêm fazer o ―turismo da maconha‖ que,

estima-se, movimenta 25% desse segmento da indústria no país. O evento economicamente

mais importante ligado à maconha ocorre lá. É a Cannabis CUP, um torneio que envolve os

koffeshops de Amsterdã para testar as melhores misturas com emprego de cannabis. Só

para fazer parte do corpo de jurados e degustadores paga-se US$225. Os comerciantes

podem ainda cultivar o cânhamo em pequenas áreas ou utilizar estufas e iluminação

especial para germinação e desenvolvimento.

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Em outros países da Europa a tolerância ao uso da cannabis também é verificada.

Reino Unido, Portugal, Espanha, Itália e Suíça têm o uso da erva descriminalizado se não

em todo país, mas em certas áreas. No caso de Portugal, o uso de qualquer droga está

descriminalizado desde 2001, porém o usuário é submetido a uma comissão de médicos,

advogados e juristas, e se ficar constatado a dependência ele é mandado para tratamento.

No Brasil e demais países da América Latina, assim como Ásia e África, a maconha

é proibida, embora o rigor com que a lei é aplicada varie muito. No Brasil, verificou-se uma

mobilização social pela descriminalização da droga ainda nos anos 70, porém com

movimentos mais organizados a partir da primeira metade dos anos 80. Em agosto de 1980,

o juiz carioca Álvaro Mayrink da Costa absolveu um jovem por porte de maconha alegando

que a erva já fazia parte dos usos e costumes da sociedade, já que, segundo ele, 80% dos

jovens entre 19 e 23 já haviam experimentado maconha. Mayrink concluiu que pela

repetição dos fatos, fumar maconha deixava de ser crime. Naquele mesmo ano ocorre a

primeira manifestação pública pela descriminalização da cannabis na Faculdade de

Filosofia da Universidade de São Paulo reunindo 350 pessoas, e um simpósio psiquiátrico

foi organizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro no qual a psiquiatra Portela

Nunes e o antropólogo Gilberto Velho, do Museu Nacional, levantaram argumentos

médicos, éticos e sociais em favor da descriminalização do consumo da maconha,

publicado no Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Gilberto Velho é conhecido por seus estudos

antropológicos entre usuários de drogas da classe média carioca. A própria Associação

Brasileira de Antropologia (ABA) faz, em abril de 1984, uma Monção pela

descriminalização da Cannabis sativa. No livro Diamba Sarabamba, o antropólogo Luiz

Mott transcreve a monção da qual foi um dos autores:

―1º) Considerando que o uso da Cannabis sativa é pratica tradicional em

diversos segmentos da sociedade brasileira, tanto entre populações

indígenas, quanto na zona rural e urbana;

2º) Considerando que as pesquisas científicas tanto nacionais, quanto

internacionais, relativas ao uso da Cannabis sativa não comprovam que

seu uso implique dependência nem provoque obrigatoriamente danos

sociais;

3º) Considerando que a experiência de outros países que adotaram

política liberal quanto ao uso da Cannabis sativa revelam menos

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prejuízos sociais e pessoais do que nos países onde seu uso constitui

crime

A Associação Brasileira de Antropologia decide:

1º) Promover a criação de um grupo de trabalho específico que reúna

pesquisadores interessados em discutir e divulgar trabalhos sobre o uso

da Cannabis sativa em diferentes segmentos da sociedade brasileira;

2º) Encaminhar ofício para os órgãos encarregados da repressão ao uso

da Cannabis sativa no Brasil, incluindo cópia desta moção, pleiteando a

imediata descriminalização do seu uso.‖ (Mott, 1986:132).

Verifica-se, então, a partir dos anos 1980 uma maior intensificação nas

manifestações a favor da descriminalização da maconha no Brasil, sobre tudo nos meios

acadêmicos e estudantis, liderados por intelectuais, artistas e membros da classe média. Em

1983, em simpósio realizado pelo Centro de Debates Maria Sabina, no Rio de Janeiro,

Gilberto Velho alerta que a maconha só foi percebida principalmente a partir da metade da

década de 1960, quando passou a ser consumida de forma mais intensa nas camadas médias

e nas elites. Velho:

―Já não era mais o camponês do interior do Maranhão nem o

habitante da favela, o ‗marginal‘, que estava consumindo maconha, mas

o filho das camadas médias, ou o filho das elites. O futuro herdeiro de

todo um processo, de todo um projeto de expansão e de crescimento de

uma sociedade, é que fumava maconha (...) O problema é que o uso da

maconha estava associado, pelo menos na crença das pessoas que

lidavam com esse assunto, a uma atitude de negação dos valores

dominantes nos segmentos mais privilegiados da sociedade5‖ (1985:43).

O discurso médico-moral do início do século XX alimentou o estereotipo do usuário

preguiçoso, malandro, vadio, criminoso, promíscuo que assustava nos anos 1980, e até

hoje, os pais da classe média preocupados com os domínios da continuidade da vida social

relacionados ao trabalho e à sexualidade. Também o sociólogo Michel Misse, da UFRJ,

5 Texto publicado no livro ―Maconha em debate‖ que reúne as palestras apresentadas durante o 1º Simpósio

Carioca de Estudos sobre a Maconha, realizado entre 7 e 11 de novembro de 1983, no Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais da UFRJ.

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observa que a maconha era estigmatizada pelos grupos em mobilidade social ascendente,

para os quais ela vinha constituir um estigma de seleção social, um elemento capaz de

impedir ou desabonar essa ascensão. Misse lembra também que:

―A partir do momento em que setores desta classe começaram

também a se tornar objeto da perseguição policial (...) ocorrem sensíveis

alterações da reação moral da classe média à maconha‖ (1985:58).

O filho do médico, do advogado, do pequeno empresário não poderia ser tratado

como um criminoso tal como acontecia com o jovem da favela que fumava maconha. O

filho da classe média ―tinha um futuro‖ que seria completamente arruinado por uma prisão

por porte de drogas. O apelo à condição de dependente, que impede a prisão segundo a Lei

6.368/76, se torna recorrente. Desta forma, o discurso médico-sanitarista intensifica-se, não

só no Brasil como no mundo. Quando a maconha era considerada um problema apenas da

classe pobre, o discurso médico servia mais para corroborar que a conduta moral de tais e

tais usuários era essa ou aquela devido ao uso da planta do que para levar ao conhecimento

da sociedade problemas de saúde pública, já que se tratava da saúde dos pobres. Hoje, não

cabe mais neste discurso argumentação fundada na ―civilidade‖ ou na ―raça‖, embora

estereótipos existam. No ensaio ―Das „fumeries‟ ao narcotráfico‖, o cientista político da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Edson Passetti, faz uma crítica ao saber

científico enquanto saber do Estado.

―Individualizando o uso de drogas e, dependendo do lugar que o

sujeito ocupa na estratificação social, associando-o à marginalidade e a

desvios de personalidade – fruto de deficiências na formação familiar e

escolar ou, às vezes, combinando-se outros fatores – , a equação tem por

resultado a necessidade de esforços científicos no combate ao seu

consumo. Como dizem os sociólogos, neste caso combate-se o efeito mas

não as causas‖ (1991:46).

Assim, deixa-se de se estigmatizar apenas uma classe para se estigmatizar um

conjunto de condutas, e ainda o discurso médico-científico é utilizado neste sentido.

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Capitulo III

A Maconha, A Ciência e A SUPER

3.1 Mídia, drogas e rock n’roll

O que seria do movimento de repressão ao uso de drogas se não fosse a mídia?

Nada. Sem o aparato de divulgação midiático, o discurso médico-científico-moral sobre o

uso de drogas nunca teria alcançado tantas mentes. Algumas das primeiras mensagens

sobre os efeitos da maconha ainda povoam o imaginário de muitas pessoas. A relação entre

maconha e vadiagem, por exemplo, propagada pela impressa do início do século persiste

até hoje, embora profissionais bem sucedidos já tenha afirmado na própria imprensa

fazerem uso da planta. A mídia impressa sempre consistiu no principal veículo de

informação (ou desinformação) a serviço da divulgação de assuntos relacionados ao uso de

drogas, até porque na época em que se iniciou o combate mais ferrenho ao consumo este

ainda era o veículo de massa mais consumido. O rádio já existia, mas por causa das

características do jornalismo radiofônico – falta de arquivos do início do século que possam

ser consultados, informação mais volátil – foi à mídia impressa que coube fixar a

mensagem sobre as drogas.

Provavelmente, o rádio e também o cinema do início do século XX produziram seus

informes sobre o tema, mas a dificuldade de consulta a esses arquivos inviabilizam uma

pesquisa mais completa da questão, além do que o presente trabalho volta-se para a mídia

impressa e sua relação com a maconha. Porém, vale citar um filme descrito no livro

―Maconha”, do jornalista Dennis B. Russo, que era apresentado nas salas de cinema

americanas em 1929 antes do filme principal. Segundo Russo, o filme de poucos minutos

foi descoberto por ativistas pró-legalização da cannabis, e mostra cenas de um mexicano

que oferece maconha a um jovem branco, e este acaba matando o proprietário da fazenda

depois de consumir a droga. Não podemos negar a relação entre o racismo americano

contra os hispânicos e a questão da criminalidade neste filme. Vale recordar a data da

película, 1929, ano da recessão americana, quando mexicanos e americanos disputavam

vagas de trabalho escassas. A droga ainda não era ilegal nos EUA nesta época, mas o

estigma sobre ela já estava sendo disseminado.

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Como vimos no capítulo I, Harry Anslinger consegui espalhar o pânico entre os

americanos através da publicação recorrente de artigos sobre a maconha nos jornais de

William Randolph Hearst. O próprio termo marihuana foi popularizado através desses

artigos e, ao contrário do que se acredita, esta não é a palavra espanhola para cannabis, que

é cañamo. Marihuana foi especialmente criada para associar à planta aos mexicanos e

desassociá-la do cânhamo já conhecido industrialmente pelos americanos. Os artigos de

Anslinger repercutiram por um bom tempo na imprensa americana, tendo trechos

reproduzidos em outras reportagens sobre o tema cannabis.

No Brasil a campanha antidrogas chega aos jornais ainda na década de 1910. Mas o

alvo ainda não é a maconha, mas a cocaína e a morfina consumida em cabarés e até vendida

em farmácias. Edson Passetti descreve o conteúdo de artigos publicados na imprensa

paulista entre 1914 e 1917 que revelam a preocupação do uso da coca entre os ―filhos da

alta sociedade‖, contaminados por ―criaturas mórbidas vindas da Europa‖. Segundo

Passetti, em 31 de julho de 1914, o jornal o Estado de São Paulo defendia a necessidade de

reprimir o uso de tóxicos, ―devido aos suicídios em determinada classe‖. De acordo com o

jornal, a cocaína estava praticamente liberada nas farmácias e a polícia não as fiscalizava. O

jornal defendia a venda de tóxicos apenas com receita médica (Passetti, 1991:78). Essa

notícia nos mostra que havia um uso legal da substância e que ela era uma droga da

burguesia. A Platéia, em 31 de agosto de 1916, voltava a denunciar a venda em farmácias e

a utilização de drogas em hotéis, e a Gazeta, de 27 de janeiro de 1917, elogiava a polícia de

costumes por ter iniciado o saneamento moral contra os cabarés onde ―rapazes incautos se

entregam todas as noites ao prazer elegante de injeções de morfina e cocaína, com as

complementares libações de champagne Frappé‖. O mesmo jornal, em 16 de fevereiro,

exigia uma legislação para conter as casas de tolerância, onde afirmava haver

extraordinário consumo de álcool, morfina e cocaína. Já em 9 de março, a Gazeta festejava

a campanha que encetaria contra a venda de cocaína, numa campanha patriótica e legalista,

que sustentava que a geração de sua época era compostas de homens ―indiferente, ociosos,

neuropatas e incapazes da menor reação‖ devido ao uso de drogas. O jornal continua sua

campanha e em 10 de março afirma que cinco pessoas haviam morrido no que eles

chamavam Club dos Cocainistas, porém não revelava seus nomes ―em respeito às famílias‖,

a ainda acusava farmacêuticos e meretrizes de fornecedores de cocaína, pedindo um código

penal severo para conter ―o trust da cocaína‖ (id., ibid.:80).

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Passetti revela alguns aspectos importantes a serem apontados a partir da ação dos

jornais paulistas contra o consumo de drogas que seriam:

―(...) a disseminação da idéia de contaminação social, em

particular a de classe; a constatação de relação entre o uso de drogas e os

estilos de vida; e, finalmente, a suposição de que o mercado de drogas

tende a se ampliar, pois nada leva a crer que a droga desaparecerá, sequer

a longo prazo‖ (ibid.:81).

Passetti diz ainda que:

―A idéia de contaminação de uma praga, peste ou doença possui

um corte classista, uma vez que identifica os membros da classe operária

e do lumpemproletariado como aqueles que, genericamente, viciam os

educados e futuros dirigentes das ‗nações‘, levando, com isso, suspeição

sobre toda uma classe. Contribui também, em outros momentos, para a

constituição da moral e do domínio‖ (1991:81).

É, portanto, o mesmo discurso dos artigos médicos de Dória e Iglesias que transfere

para os negros e mestiços ―ignorantes‖ a função de ―propagadores do vício‖ da maconha

entre os brancos ―civilizados‖, da mesma forma que seriam as meretrizes responsáveis pelo

vício da cocaína entre os filhos da burguesia paulista.

Nos anos 1980, diante do crescente debate pela descriminalização da maconha, a

imprensa volta à atenção para erva e inicia uma campanha de ―esclarecimento‖ sobre a

cannabis, recorrendo ao discurso emocional ao relatar a entrada da planta nas escolas do

ensino fundamental e médio. Em março de 1980, o Jornal da Tarde publicou extensa

matéria na qual se investigava o tráfico nas escolas. A história de quatro meninas que aos

13 anos já se prostituíam pelo vício da maconha foi recontada em quadrinhos. A

reportagem foi realizada em colaboração com a polícia. A associação maconha-

criminalidade continua e se acrescenta aqui a prostituição.

A questão não é por em dúvida o conteúdo dessas reportagens, mas analisar o tom

sensacionalista e lembrar que a mídia historicamente tem uma atração pela desgraça.

Geralmente, só os casos extremos de dependentes crônicos são apresentados, deixando de

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lado um número enorme de pessoas que usam a mesma substância e não tem problemas

sociais ou psicológicos. Por essa analogia, toda vez que se fizesse uma matéria sobre o

álcool só os seus aspectos negativos seriam explorados, e não é isso que ocorre. Algumas

matérias até destacam os benefícios do uso moderado do álcool, coisa que raramente se vê

com relação à maconha, até mesmo porque poderia, dependendo da maneira como fosse

escrito, configurar apologia ao crime de acordo com o código penal.

As liberdades de expressão e de imprensa são anuladas pelo código penal no Brasil.

Nos EUA, berço da repressão ao uso da maconha, o uso recorrente à liberdade de expressão

assegurada na constituição e bandeira levantada pelos que vêem a América como exemplo

maior de democracia, permitiu a existência de uma publicação como a High Times, maior

revista a tratar abertamente da questão das drogas e em favor de sua legalização no mundo,

sobre tudo da maconha que sempre foi seu foco principal. A revista teve seu primeiro

número publicado em setembro de 1974, em Nova York, e agora em janeiro de 2004

começou as comemorações de seu trigésimo aniversário. Seu fundador, Thomas King

Forcade, exerceu seu direito à liberdade de expressão alegando que a proibição de uma

publicação como a High Times configuraria ato inconstitucional. Forcade se suicidou em

novembro de 1978. Segundo o histórico da revista apresentado em sua página na internet

(www.hightimes.com), Forcade se sentia perseguido e desenvolveu uma certa paranóia que

o levou ao isolamento e posteriormente a morte. Depois dele, Larry Sloman assume a

direção da High Times e a abordagem de outras drogas além da cannabis ganha mais

espaço nas páginas da revista, como a cocaína que estava na moda. Em 1988, nova troca de

editor. Steven Hager assume a revista e decide retirar a cocaína da publicação,

concentrando o foco na cannabis. A revista começa a promover eventos ligados à

legalização da maconha e participa mais ativamente da Cannabis Cup, em Amsterdã.

A High Times é de longe a revista pró-maconha mais conhecida no mundo, mas não é

a única. O Canadá tem a Cannabis Culture. Para um brasileiro é difícil acreditar que exista

esse tipo de publicação em países onde o consumo de maconha ainda é legalmente

proibido. Na Cannabis Culture podemos encontrar anúncios de venda de sementes com

tabela de preços dos mais variados locais do mundo, técnicas de cultivação, venda de

medicamento que altera o teste de urina, e todo um arsenal de produtos ligados à planta. A

revista vive basicamente de publicidade que não é pouca. São lojas e mais lojas anunciando

roupas feitas de cânhamo, vaporizadores, livros sobre o assunto, kits para cultivação da

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cannabis e outras plantas como cogumelo, anuncio de festivais e eventos ligados à planta,

etc. Até seção de fotos de usuários no ato do consumo são publicadas. No Brasil, uma

publicação desse tipo é inimaginável quando nos lembramos do código penal que suplanta

a constituição. Está claro que em revistas como a High Times e a Cannabis Culture não se

comercializa a planta para consumo, apenas sementes e os meios para cultivá-las, pois caso

contrário estariam traficando.

No Brasil dos anos 1990 uma abordagem aparentemente mais aberta sobre o uso da

maconha apareceu eventualmente em algumas revistas de circulação semanal a exemplo de

Veja, IstoÉ e Época. O caráter das matérias poderia variar do noticioso como casos de

liberação em alguns países até reportagens mais abertas onde usuários da classe média

expressavam sua opinião sobre a proibição da maconha e reclamavam o direito de usá-la

sem serem tratados como criminosos e demonizados como financiadores da violência do

tráfico. Entretanto, dependendo do veículo e do público ao qual se destina, a abordagem é

apenas pretensamente ―mais aberta‖. Revistas como Veja e Época, destinadas a um público

mais maduro de classe média e média alta, cujos valores se centram no trabalho, sucesso

financeiro e profissional, família e segurança nunca conseguem abordar o tema sem a

repetição de clichês e chavões. O grande entrave das matérias sobre maconha no Brasil, e

penso que no mundo, é que elas estão sempre apoiadas em pesquisas científicas que muitas

vezes tem validade duvidosa. Para dizer que a maconha causa dependência e é tão perigosa

quanto a heroína e a cocaína, a edição de Época de 8 de julho de 2002 fundamentou-se

numa pesquisa da Universidade de Columbia, Estados Unidos, que pagou US$2 mil para

que usuários ficassem trancados em apartamentos isolados do mundo exterior por 21 dias,

fumando maconha em horários definidos, e que fora isso só podiam ler ou jogar vídeo

game. A pesquisa conclui que em períodos de abstinência, os usuários ficaram irritados e

agressivos.

O que impressiona na mídia quanto à questão das drogas é o caráter pouco crítico com

que trata as pesquisas científicas sobre o assunto. Em outras áreas com política, esportes,

cultura e economia os repórteres estão prontos a criticar discursos, mas quando se trata da

ciência, do conhecimento acadêmico, o jornalista na maioria das vezes só reproduz. Sobre a

pesquisa da Columbia o veículo poderia se questionar que tipo de usuário estaria disposto a

participar da pesquisa por dinheiro, e que validade ela teria se retira o usuário do todo

contexto social em que ele vive e faz uso da planta? Submeter-se a um confinamento e ficar

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isolado do mundo externo já não seria motivo suficiente para irritabilidade? Pessoas em

dieta também não ficam irritadas? Há sempre uma anuência com relação ao que é dito pelos

cientistas, não se colocam dúvidas e as contradições prevalecem.

A posição acrítica da imprensa nacional com relação ao discurso da ciência culmina

numa série de versões sobre o tema e a cada matéria temos ―toda a verdade sobre a

maconha‖ ou ―está confirmado: maconha isso ou aquilo‖, etc. A análise das três

reportagens de capa da SUPERINTERESSANTE sobre a cannabis vem mostrar como tanto

o discurso médico-científico quanto o midiático tem ―verdades provisórias‖ que merecem

uma visão mais crítica por parte da população e que as conveniências de um e de outro

discurso não devem nos colocar como meros espectadores de suas ações.

3.2 Nova abordagem histórico-científica: a maconha contextualizada na SUPER

As edições da SUPER que serão analisadas são a 095 de agosto de 1995, a 127 de

abril de 1998 e a 179 de agosto de 2002. Foram escritas, respectivamente, por Rosângela

Petta, Flávio Dieguez e Denis Russo Burgierman. Farei recortes nas reportagens por

entender que a apresentação de todo o corpo do texto se faz desnecessário para a análise

aqui realizada. Entretanto, o conteúdo completo, na íntegra, está reproduzido em anexo para

apreciação mais profunda dos leitores que poderão também tirar suas conclusões sobre o

discurso da publicação sobre a maconha e como uma abordagem histórico-científica alterou

as verdades sobre a maconha, verdades defendidas pela ciência e pela revista em

determinados momentos.

Coloco que a maconha foi contextualizada na SUPER por entender que informações

e dados não explorados nas duas primeiras edições não o foram somente pelo

direcionamento dado à matéria, mas também e, principalmente, pelo contexto social da

época. Apesar dos anos 1990 terem significado uma abertura grande na discussão sobre o

uso descriminado da maconha, o discurso científico ainda mantinha (e mantém em muitos

casos) dados ambíguos e parciais sobre a planta (veja-se o relatório da OMS abordado na

edição 127 a ser discutida abaixo), o que favoreceu um debate pouco diversificado nas

publicações especializadas. Com a abertura maior da SUPER para as ciências humanas,

dados históricos, políticos e econômicos fizeram parte de uma abordagem contextualizada

da maconha, que levou em conta não apenas os aspectos do discurso médico-científico

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sobre a planta para falar da sua proibição e da sua larga utilização no mundo apesar disso, e

penso ainda que é também graças a essa larga utilização (inclusive por leitores da SUPER)

que o discurso da revista se propõe mais consensual.

A análise que farei será do discurso, apesar da dificuldade de se delimitar o que se

entende por análise do discurso atualmente. O próprio entendimento do que seja discurso

varia muito entre os diferentes enfoques e tendências das análises. Tomando por base a

descrição de Pinto (1999) sobre os modelos de análise do discurso, o modelo que privilegio

neste trabalho é (1) dependente do contexto, (2) não confia na letra do texto relacionando-o

às forças sociais que o moldaram, (3) usa um conceito de ideologia ao lado do de discurso,

(4) trabalha comparativamente, e (5) faz uso de estatística como forma de

contextualização6.

As análises de discurso que se praticam hoje, segundo Pinto (1999) se nutrem de

duas tradições: ―a análise do discurso francesa, de um lado, e a pragmática, a

etnometodologia e outras propostas psicossociológicas de abordagem de textos anglo-

americana, de outro, que nem sempre se entendem muito bem, por causa de suas diferenças

epistemológicas‖ (id., ibid., 16). A tradição anglo-americana, nomeada às vezes de

discourse analysis, originária na Inglaterra, mas firmemente enraizada nos Estados Unidos,

onde incorporou elementos da sociologia, da psicologia e da etnologia, prende-se mais ao

empirismo e aos conceitos de psicologia do consciente. Suas análises de discursos, segundo

Pinto, combinam a descrição da estrutura e do funcionamento interno do texto, com uma

tentativa de contextualização um pouco limitada e utópica (id., ibid., 17). Já a análise do

discurso francesa (AD), cujos nomes mais influentes foram Michel Foucault e Michel

Pêcheux, tentava desde os anos 70 articular lingüística e história. A função das ideologias

como constitutivas da produção/reprodução dos sentidos sociais tem papel fundamental na

AD. Define os discursos como práticas sociais determinadas pelo contexto sócio-histórico,

mas que também são partes constitutivas daquele contexto, e tem privilegiado em suas

análises principalmente textos impressos ou transcrições de textos orais, de modo

independente de outros sistemas semióticos presentes, e cujas implicações político-

ideológicas procuravam desvelar, de um ponto de vista crítico. Para esse trabalho, me

coloco dentro das perspectivas da AD por entender que:

6 Tais dados foram mais extensamente apresentados no fim do capítulo I com relação à revista e o

direcionamento do seu conteúdo nos últimos quatro anos.

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―Uma lingüística imanente que se limite ao estudo interno da

língua não poderá dar conta do seu objeto. É necessário que ela traga

para o interior mesmo do seu sistema um enfoque que articule o

lingüístico e o social, buscando as relações que vinculam a linguagem e a

ideologia‖ (Brandão, sem data: 10).

A própria AD inscreve-se em um quadro que articula o lingüístico com o social,

estendendo seu campo para outras áreas do conhecimento, proliferando-se os usos da

expressão ―análise do discurso‖, sendo o campo da Comunicação Social um dos que mais

insiste em empregá-la visto que, enquanto prática social, ―a linguagem verbal e outras

semióticas com que se constroem os textos são parte integrantes do contexto sócio-histórico

e não alguma coisa de caráter puramente instrumental, externa às pressões sociais‖ (Pinto,

1999:24).

A ideologia é inegavelmente parte do discurso jornalístico. Quanto ao discurso

científico, sempre se pretendeu, com a proposta da ‗objetividade científica‘ afastar a

concepção ideológica da construção do seu discurso. Porém, isso não é possível se

levarmos em conta que não há um discurso ideológico, mas todos os discursos o são se

entendermos a ideologia como:

―Um sistema lógico e coerente de representações (idéias e

valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem

aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o

que devem valorizar, o que devem sentir, o que devem fazer e como

devem fazer‖ (Chauí, 1980:113 apud Brandão: sem data:21).

Segue-se que os discursos científico e jornalístico são argumentativos no sentido de

que eles constituem um discurso orientado para um interlocutor cujas disposições interiores

visam modificar, sendo, portanto, ideológicos.

A AD não é, pois, uma parte da lingüística que estudaria os textos, da mesma forma

que a fonética estuda os sons, mas ela atravessa o conjunto de ramos da lingüística.

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―A dimensão ideológica do funcionamento dos discursos diz

respeito a operações que podem se situar em níveis muito diferentes da

organização da matéria lingüística‖ (Veron, 1984:95 apud Maingueneau,

1989:18).

Reconhecendo as minhas limitações dentro do ramo da lingüística, realizo essa

análise das três capas dedicadas à maconha na revista de divulgação científica,

SUPERINTERESSANTE, focando na questão ideológica do discurso, analisando o dito e

principalmente o não-dito, pois, como lembra Orlandi:

―Compõe também a noção de intertextualidade o fato de que um

texto tem relação com outros que poderiam ter sido produzidos naquelas

condições e que não o foram. Assim, aquilo que se poderia dizer e não se

disse em condições determinadas de produção também constitui o espaço

de discursividade daquelas condições‖ (1987:195).

Assim, analisando o dito questiono o não-dito; das informações apresentadas, indagar

a omissão de outras e desvendar, enfim, o caráter subjetivo-ideológico da ciência e do

jornalismo.

Edição 095 – agosto 1995

A capa dessa reportagem de agosto de 1995 mostra imagem da folha da cannabis

sobre tubos de ensaio com cores fortes, em tons de amarelo e vermelho, com nome

MACONHA, em maiúsculas no alto da página, em cor preta, e no canto direito inferior a

pergunta ―Um remédio proibido?‖. O uso do artigo indefinido um atribui vários sentidos à

pergunta: seria a maconha um remédio? Se o fosse, como pode ser proibido se, na sua

condição de medicamento, deve curar enfermidades? Existe, além da maconha, outro(s)

remédio(s) proibido(s)? Porém, acredito que é a primeira pergunta que o enunciado tenta

despertar no leitor. Na reportagem temos a manchete:

QUANDO A MACONHA CURA

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O advérbio quando nos remete a outra questão: quando é que a maconha não cura?

E quando não cura, o que faz? Quando aqui deixa claro que a função habitual, corriqueira

ou comum da maconha não seria curar (pelo menos na concepção de muitas pessoas, leigas

ou não sobre o assunto), mas existem esses momentos quando ela cura.

A chamada para o texto é a seguinte:

―Está provado. Os efeitos medicinais da maconha beneficiam pacientes de câncer,

Aids, glaucoma e esclerose múltipla. Mas os médicos do mundo inteiro se vêem num

dilema crucial. Como receitar um remédio que é proibido? Este ano, o debate ganhou peso

na comunidade científica internacional e, por isso, a SUPER traz até você esta

reportagem‖.

Vamos analisar este trecho.

Quando coloca a afirmação Está provado, a autora não abre espaço para

questionamento sobre o que será lido. A frase afirmativa com verbo estar no presente do

indicativo e provar no particípio, expressar um sentido de veracidade absoluta da questão

que se está por abordar, é fato. E o fato que se encontra (com)provado é de que a maconha

possui efeitos medicinais, e é, portanto, um remédio, o que responde a questão implícita da

capa.

Mas os médicos do mundo inteiro – o mas aqui surge como refutação, neste caso

uma negação que está relacionada ao seguinte fato: apesar da maconha ser um remédio,

médicos do mundo inteiro, estão frente a um dilema: Como receitar um remédio que é

proibido? Ou seja, maconha é remédio, mas não pode ser receitado. Aceita-se a condição

de medicamento da planta, mas nega-se seu uso, pois é proibida, embora não se revele no

texto os porquês da proibição (que não seriam apenas os motivos citados por um discurso

médico sobre dependência, como veremos na reportagem de agosto de 2002). Médicos do

mundo inteiro é uma construção que leva à indeterminação: que médicos são esses, de que

especialidades, são todos os médicos?

E, finalmente, como o debate ganhou peso na comunidade científica internacional,

a SUPER, como divulgadora dos debates dessa comunidade, enquanto revista de

divulgação científica, traz até você está reportagem. Comunidade científica internacional é

uma generalização própria do discurso jornalístico e, não menos, do próprio discurso

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científico. Aqui o sujeito que fala é A Comunidade Científica, que fala de um lugar

determinado e a partir de um direito reconhecido institucionalmente. O uso de por isso

revela condição da ação de trazer a reportagem, pressupõe a existência de uma norma

implícita (o debate na comunidade científica) para realização da reportagem (o que se

repete na reportagem de abril de 1998, baseada num relatório da Organização Mundial de

Saúde recém publicado na época, mas não na de agosto de 2002, fundamentada,

principalmente, em dados históricos).

A matéria se inicia da seguinte forma:

―Desde logo, é importante deixar bem claro: o uso de drogas como maconha e outras

substâncias alucinógenas ou psicotrópicas, sem orientação médica, é perigoso. O vício das

drogas prejudica os jovens e constitui um problema social. A forma de resolvê-lo é uma

discussão em aberto, mas não é o tema principal da reportagem que você vai ler a seguir.

Aqui, você será informado sobre os efeitos medicinais da maconha, entenderá por que os

médicos desenvolvem cada vez mais pesquisas nessa área, e por que, muitos deles,

concluíram pela recomendação do uso terapêutico dessa droga‖.

Desde logo revela a preocupação da autora com relação ao uso não científico da

maconha, e não só o dela. Sem orientação médica pressupõe que o uso tem que se feito com

orientação médica. O médico é alguém autorizado, instituído de poder para orientar.

Aqui, você será informado sobre os efeitos medicinais da maconha – aqui

circunscreve um espaço delimitado, o da reportagem, onde só se informará sobre os efeitos

medicinais da maconha, estando implícito os outros efeitos dos quais a matéria não tratará.

Há, então, outros usos, não médicos e não científicos para a maconha, com outras

conseqüências, que não serão explicitados por não estarem sendo alvo, no momento, dos

debates da comunidade científica.

A reportagem segue falando sobre os estudos que possibilitaram sintetizar o

princípio ativo da maconha, o THC, e a partir daí, sistematizar seus efeitos no corpo

humano. Em seguida diz:

―Há muito tempo se ouvia falar nas virtudes terapêuticas da erva. Na verdade, a

sua história é quase tão antiga quanto a civilização: há seis mil anos, aparecem no mais antigo

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texto medicinal conhecido, o Pen Ts‘ao Ching, chinês, sugestões de uso da planta. Ela era

indicada para problemas como asma, cólicas menstruais e inflamações da pele‖.

Ao dizer que há muito tempo se ouvia falar tira-se a autoridade de quem falou pela

imprecisão temporal, há muito tempo, e a generalização se ouvia. Quem ouvia? Onde se

ouvia? O uso do verbo no pretérito imperfeito, ouvia, reforça o caráter indeterminado da

afirmação. Ouviu falar pediria mais a presença de um sujeito.

A matéria segue descrevendo os casos em que o uso medicinal da planta é verificado,

sobretudo no caso do câncer e da Aids, e apresentando dados de uma pesquisa da

Universidade de Harvard feita em 1991, onde 70% dos cancerologistas entrevistados

disseram que recomendariam o uso da erva se fosse legalizada, e 40% disseram que a

recomendavam a seus pacientes, mesmo sendo ilegal. E continua:

―No decorrer dos anos 90 o estudo científico da maconha avançou muito, apesar de

vários contratempos importantes. O maior deles foi criado pelo governo norte-americano

na tentativa de dar mais força à campanha antidroga. Em 1992, por exemplo, os EUA

cortaram um importante programa federal de pesquisas sobre o valor terapêutico da

planta, tirando recursos valiosos dos cientistas. Também suspenderam as autorizações

especiais para que alguns pacientes usassem cigarros, complicando o desenvolvimento das

terapias‖.

Neste trecho fica evidente o poder que o Estado exerce sobre a ciência e seu

desenvolvimento. Mesmo com pesquisas que demonstram o poder terapêutico da maconha,

que não seria conhecido de hoje, o governo americano corta verbas de pesquisas neste

sentido, mas pode muito bem reverter essas verbas para pesquisas que demonstrem o

contrário. Como vimos no capítulo II, o compromisso entre ciência e governos pode levar a

realizações carregadas de interesses e ideologias que passam longe da mera busca pela

verdade. O desenvolvimento e a comercialização de uma forma sintética para o THC é a

prova de que o interesse do Estado é coibir um tipo de consumo e conduta, e não a

substância em si que tem poder terapêutico. No seguinte trecho temos:

―E a maconha realmente afeta a memória, os sentidos, o aprendizado e o equilíbrio.

Na prática, porém, ainda há muito o quê conhecer. Os próprios efeitos da maconha ainda

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são incertos e podem ser contraditórios, como explica o farmacologista Isaltino Marcelo

Conceição, do Instituto Butantã. ‗O THC é um depressor, mas quando a maconha é

consumida em grupo costuma trazer euforia‘. De acordo com o farmacologista Frussa Filho, é

difícil comprovar os efeitos porque os estudos clínicos — nos quais se acompanha de

perto o comportamento de um usuário — ainda são muito poucos. Também atrapalha o

fato de a maconha ser usada, freqüentemente, em combinação com o álcool e com o tabaco.

Por último, o entrave que parece ser o dilema decisivo atualmente: o da ilegalidade da droga.

Como separar a maconha que pode curar daquela que está misturada às mazelas sociais

do vício e do tráfico? Quando for possível dar uma resposta a essa questão, vai ficar

mais fácil conhecer melhor as suas virtudes e os seus defeitos‖.

Ao mesmo tempo em que diz que a maconha realmente afeta, a autora diz que na

prática, porém, ainda há muito o quê conhecer. O caráter controverso da construção segue

quando afirma que os próprios efeitos da maconha ainda são incertos e podem ser

contraditórios, e faz uso de citação de especialista para corroborar afirmação, e mais ainda:

coloca que os estudos clínicos são muito poucos. Ou seja, as pesquisas realizadas pela

comunidade científica, que estudam a sério a maconha desde 1964, ainda são poucas e

inconclusivas.

A matéria termina mostrando os usos industriais da cannabis, um resumo das

principais doenças que podem ser tratadas com a planta e os efeitos no corpo humano.

Interessante a contradição neste trecho:

Embora os relatos ainda sejam contraditórios, já há efeitos comprovados.

Como comprovar efeitos em relatos contraditórios? Que relatos foram usados para

comprovar os efeitos? A quais relatos não se aplicam os efeitos comprovados, porque não

são comprovados neles? São perguntas que podemos formular e a ciência só responderá se

partir para uma análise sócio-cultural dos usos da cannabis, e não se fixar apenas na

questão física.

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Edição 127 – abril de 1998

A segunda capa da SUPER a tratar da maconha apresenta enfoque distinto da

primeira, que se centra basicamente nos usos terapêuticos da planta. A capa de abril de

1998 traz as chamadas:

Chega de desinformação – Novas verdades sobre a MACONHA, uma droga perigosa, sim.

A folha da planta está em destaque sobre a mão de um homem que tem o rosto

desfocado. Ele tem o braço estendido a sua frente e a mão espalmada na frente da qual está

a folha. O gesto da mão pode ser lido como negação da planta, ele afasta a erva de si, como

também pode ser interpretado como revelação da planta, ele mostra a erva, apresenta,

desvenda.

A proposta é audaciosa: acabar com a desinformação, baseado nas novas verdades

sobre a maconha. Novas verdades reconhece a temporalidade da ―verdade‖, pois para que

existam as novas verdades, velhas verdades, que um dia também foram novas, têm de ser

suplantadas. Mas o jornalismo de divulgação científica muitas vezes esquece o caráter

provisório das ―verdades‖ e que os modos pelos quais elas se transformam nem sempre

estão embasados na simples busca pela verdade pura, há toda uma condição histórico-social

e também política que acompanha os passos da ciência.

É claro que a renovação das pesquisas, a busca por essas novas verdades é o que

possibilita o avanço científico e a renovação da ciência, se essa busca parasse haveria uma

grande perda para humanidade. Porém, devemos ter em mente (principalmente os

divulgadores de ciência) que a comunidade científica, por seu caráter peculiar associado ao

benefício e ao desenvolvimento da vida humana, não é isenta de culpas, fraudes, erros e que

sobre ela atuam interesses os mais diversos. A ciência não vive isolada, não é imaculada,

deve ser vista como atividade humana que é vinculada ao contexto histórico-social onde é

praticada.

A capa da SUPER traz na afirmação uma certeza enfatizada pelo sim do final, uma

certeza que está baseada no relatório sobre a maconha realizado pela Organização Mundial

de Saúde (OMS) e publicado em dezembro de 1997. Esse sim quer dizer que não há

dúvidas, não há controvérsias, não se abre espaço para questionamento, é sim e ponto final.

Por outro lado, a frase remete a uma negação. Como se diz uma droga perigosa, sim é

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porque existe a negação implícita, uma droga que não é perigosa. O enunciado remete a

um debate entre os que afirmariam não ser a droga perigosa, sobre o que diz a revista: é

perigosa, sim. Fica evidente, pela construção da chamada, que há uma disputa pela verdade

sobre a periculosidade da maconha entre os que negam e os que afirmam esses perigos, por

isso as novas verdades estão aí para acabar com a desinformação.

Na matéria temos a manchete: Por trás da cortina de fumaça. É por trás dessa

cortina que veremos as novas verdades sobre a maconha. As palavras cortina e fumaça

remetem a algo que está escondido, obscurecido ou indecifrável. É preciso ver o que está

por trás da cortina, e o que se afirma que lá está, na reportagem e no relatório da OMS, é a

verdade. Vejamos a chamada do texto:

―A Organização Mundial da Saúde publica o mais completo relatório sobre os efeitos da

maconha. E afasta a onda de desinformação que cerca a droga ilegal mais consumida do mundo‖.

O mais completo relatório nos remete a idéia de que há outros relatórios sobre a

maconha que não são completos. Por que este é o mais completo? Por quem foi

considerado o mais completo? Que requisitos foram usados para constatar e afirmar que é

este o mais completo? O que faltava aos outros relatórios para serem completos?

Com o relatório mais completo, uma onda de desinformação será afastada. Mas a

reportagem já começa contradizendo isso.

―Era para ser uma festa. Era para ser o triunfo da pesquisa médica em seu esforço

de separar, cientificamente, o que é mito e o que é fato sobre os efeitos da Cannabis,

conhecida como maconha. Mas o relatório sobre a droga publicado pela Organização Mundial

da Saúde (OMS), das Nações Unidas, teve uma outra recepção. A entidade começou a

trabalhar em 1993. Convocou os maiores especialistas do mundo e incumbiu-os de, nos

cinco anos seguintes, examinar o resultado de centenas de pesquisas (...) Aí, o que era para

ser uma festa virou guerra política. O trabalho da OMS mal foi lido. Até o início do mês de

março, pouco mais de 500 cidadãos, nos cinco continentes, tinham tido acesso a ele.

Quase não houve repercussão‖.

Quando diz que era para ser uma festa, o triunfo da pesquisa médica em separar,

cientificamente, mitos dos fatos sobre a maconha o autor reafirma que no relatório está

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contida a verdade (pelo menos as mais novas) sobre a erva. Era algo a se comemorar, mas

não se diz por quem. Entretanto, o relatório teve outra recepção que não foi a que a

comunidade científica esperava, subentendendo-se, então, que ela já esperava um

determinado tipo de resposta. Quando trata da questão da antecipação na formulação do

discurso que prevê as respostas dos interlocutores, Orlandi coloca que:

―Importa notar que o mecanismo de respostas é afetado pelas

antecipações. Há ‗decisões antecipadoras‘ do locutor, sancionadas pelos

valores que precedem as eventuais respostas do interlocutor. Como

resposta, o ouvinte pode apoiar ou bloquear o discurso por intervenções

diretas ou indiretas, verbais ou não verbais‖ (1987:126).

Neste caso, as respostas antecipadas esperadas foram frustradas por uma recepção

diferente.

As generalizações os maiores especialistas do mundo e o resultado de centenas de

pesquisas, como recurso freqüente do jornalismo científico, não especificam que

especialistas são esses, de que áreas, e que centenas de pesquisas são essas, como, por

quem e onde foram realizadas e porque são importantes para a questão da maconha.

Generalizar surge como meio de escapar das especificidades do trabalho científico, sem,

entretanto, lhe retirar o mérito, pois foram os maiores especialistas (embora não se saiba

quais) e centenas de pesquisas (embora não se conheça seus métodos) que deram corpo ao

mais completo relatório. Essas referências genéricas caracterizam-se por não revelarem

com precisão a origem efetiva do pensamento assertivo, e neste caso remetem a uma

instituição o resultado final, no caso, a OMS, e não diretamente aos sujeitos (os maiores

especialistas) produtores do relatório. O relatório é da OMS, mencionada e reconhecida,

não dos seus maiores especialistas anônimos.

Quando diz que o relatório foi mal lido sugere que foi mal interpretado para depois

nos colocar em dúvida se foi mal lido ou pouco lido, já que pouco mais de 500 cidadãos

tiveram acesso a ele. Quando coloca que os poucos mais de 500 cidadãos estão nos cinco

continentes, o autor sugere que a pesquisa não ficou confinada na OMS, o que invalidaria

mais ainda sua proposta de afastar a onda de desinformação dentro da própria comunidade

científica. Quase não houve repercussão é uma negativa que leva a uma idéia de que o que

se esperava era muita repercussão, desejava-se grande repercussão, que não veio.

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A reportagem continua:

―A confusão chegou ao ápice quando a revista semanal inglesa New Scientist, na sua

edição de 21 de fevereiro, pôs em sua capa uma reportagem explosiva em que acusava a OMS

de ter suprimido do documento, por motivos políticos, um capítulo mostrando que a

maconha seria menos perniciosa do que o álcool e o tabaco. A OMS admitiu a supressão

do capítulo, mas negou os motivos. Declarou que o texto comparando as três drogas fora

excluído por prudência, pois os estudos nos quais ele se apoiava não eram conclusivos. De

fato, isso só levaria a mais confusão‖.

Podemos nos perguntar sobre esse trecho: se esse é o mais completo relatório sobre

a maconha, por que dados relacionando a droga ao álcool e ao tabaco, drogas lícitas que

geram milhões em impostos, foram suprimidos sob a alegação de que dentre as centenas de

pesquisas acompanhadas durante cinco anos pelos maiores especialistas não houve uma

conclusiva sobre a questão? Para ser o mais completo já começou faltando. Cigarro e álcool

causariam mais danos à saúde que maconha, mas são permitidos, porque não concluir as

pesquisas neste sentido?

Seguindo na reportagem:

―Tanto é que a confusão, com capítulo ou sem capítulo, alastrou-se. E desviou, ainda

mais, a atenção do público daquilo que, afinal, era o mais importante ­ o próprio relatório

da OMS. Quem foi apanhado de surpresa pela guerra de versões pode ter ficado

desorientado. E pode até estar pensando que a maconha nem é tão perigosa. Mas ela faz

mal, sim, e cria riscos sérios para a saúde. Quem tem dúvida, é só consultar o relatório. ‗Ele

confirma diversas conseqüências nocivas comumente apontadas em relação à maconha’,

resume a psicobióloga brasileira Maristela Monteiro, da OMS, uma das responsáveis pela

versão final do texto‖.

O fato de um capítulo ter sido suprimido do relatório por dados insuficientes parece

não ter relevância para o autor, pois mais importante que a polêmica da insuficiência de

dados no relatório é o relatório em si, que como veremos pela reportagem estava longe de

acabar com a desinformação e deixa mais dúvidas sobre a maconha devido ao teor

contraditório dos dados. Atribuo ao autor a incapacidade de ter feito uma análise mais

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crítica do relatório se as informações nele contidas eram mesmo as que veremos, pois o

nível de controvérsias é evidente para qualquer um, tanto para os pró-maconha como para

os que são contra a substância. A frase da especialista citada nos remete ao pensamento de

Kuhn quando diz há etapas da história da ciência em que predomina um ―paradigma‖,

índice de uma teoria dominante, à qual aderem os cientistas normais que se unem em torno

do mesmo paradigma e se constituem em comunidades, cuja principal característica é a de

utilizarem instrumentos e métodos de análises próprios e adequados ao paradigma teórico

escolhido (apud Coracini, 1991:31). Por quem são comumente apontadas as conseqüências

nocivas da maconha? Por membros da própria comunidade científica e médica que com o

relatório procura corroborar suas hipóteses?

A matéria está estruturada da seguinte forma: uma afirmação é feita e logo abaixo se

coloca VERDADE ou MENTIRA, e se apresentam os dados do relatório com relação

àquela afirmação. Ambas as palavras são da cor branca, sendo que VERDADE está sobre

um fundo verde e MENTIRA sob um fundo vermelho. A escolha das cores não é acidental.

A palavra sobre fundo verde reforça de maneira tranqüila aquela afirmação sobre a

maconha (todas as afirmações são baseadas nas conseqüências nocivas comumente

apontadas em relação à maconha), age de modo mais cristalino, é a verdade e o verde

remete a uma aceitação sem conflito, diferente do vermelho que remete à alerta, atenção,

reforça a negação, o valor de mentira, assegurado pelas pesquisas do relatório. É difícil não

aceitar a VERDADE sobre o verde como não confiar na MENTIRA sobre o vermelho.

Com relação ao conteúdo das afirmações, o modo como o autor as estruturou, se apoiadas

no relatório como afirma, demonstrar uma série de contradições. O primeiro tópico é uma

verdade, e segue-se alternadamente a uma mentira, e assim sucessivamente até acabar com

uma mentira, num total de dezesseis tópicos. O que ocorre é que a uma verdade a mentira

que lhe sucede contradiz o tópico anterior e vice-versa. Vejamos em exemplos:

A capacidade de aprender e de raciocinar e a memória diminuem.

Verdade

Há somente três anos, parecia não haver sinais de que a droga pudesse afetar as atividades cerebrais

mais refinadas, aquelas que os especialistas chamam de funções cognitivas, as ligadas ao processo

de conhecimento. Uma das novidades do relatório é que agora há provas disso. Quem fuma

regularmente por muitos anos tem dificuldade para organizar grandes quantidades de informações

complicadas. Num tipo de teste, um cidadão empilha cartas segundo regras que o paciente precisa

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deduzir, apenas observando o ―jogo‖. Com o tempo, as regras vão sendo mudadas. Quem não fuma,

deixa de perceber cinco de cada 100 mudanças de regra. Fumantes pesados cometem o mesmo erro

oito vezes. ―A diferença é sutil‖, afirma o relatório. ―Mas é ratificada por novos estudos, realizados

em 1995 e 1996‖.

Os neurônios ficam estragados.

Mentira

A idéia de que a maconha afeta as funções do cérebro porque causa algum tipo de dano aos

neurônios não está comprovada. As pesquisas dão resultados ambíguos. Certas imagens das

células cerebrais de ratos, obtidas por tomógrafo, parecem ligeiramente deformadas,

especialmente nos pontos em que elas tocam umas nas outras, chamados sinapses. Mas em outras

experiências não se vê alteração nenhuma. Logo, não é possível tirar uma conclusão definitiva.

Diante da relevância do assunto, o relatório da OMS sugere que se façam estudos mais

aprofundados sobre ele.

Neste tópico temos em pesquisas dão resultados ambíguos e não é possível tirar

uma conclusão definitiva mais uma incompletude do relatório mais completo. Os dois

tópicos falam do cérebro, o primeiro baseia-se em um teste com fumantes pesados, o outro

em células cerebrais de ratos. Se há fumantes pesados que comprovadamente, segundo o

texto, perdem a capacidade de memória e raciocínio, porque suas células cerebrais não

foram estudadas?

Quem fuma muito tempo pode acabar caindo na dependência.

Verdade

Grande parte dos usuários pesados, desses que fumam diariamente durante meses, acaba se

viciando. As estatísticas indicam que até metade dos fumantes desse tipo perdem o controle sobre

o hábito e precisam de tratamento para se recuperar. Entre os que não conseguem a cura, muitos

apresentam sintomas que agravam a dependência. Ficam desmotivados para qualquer coisa,

tornam-se menos produtivos em suas atividades, sofrem de depressão e têm a auto-estima

abalada.

Por usuário pesado o autor entende desses que fumam diariamente durante meses e

aponta as estatísticas que indicam que os fumantes desse tipo, e não os de outro tipo,

perdem o controle sobre o hábito. Desse tipo mostra que há fumantes de outro tipo, os que

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não são fumantes pesados, mas não se coloca sobre eles outras informações relevantes,

confirmando que as pesquisas costumam trabalhar apenas com usuários crônicos, que a

própria OMS admite serem cerca de 10% dos usuários de maconha, como coloca o próximo

tópico:

Então, todos ficam viciados.

Mentira

Apenas fumantes pesados caem na dependência, e eles, de acordo com os dados do relatório,

são cerca de 10% de todos os que experimentam a droga. Dito de outra maneira, o vício nem é

inevitável, nem acontece com freqüência. ―Fumar é um hábito de adolescentes‖, lê-se no

relatório. Tanto nos Estados Unidos como na Europa, eles representam a grande maioria de usuários

­ perto de 70% do total ­ e a proporção de adultos não cresce.

Quem usa maconha pode partir para drogas mais pesadas.

Verdade

Meninos e meninas, especialmente nos últimos anos, têm, sim, seguido essa trilha. ―Nota-se que a

experiência com a cannabis precede o interesse por outras substâncias‖, diz o documento. São as

colas de sapateiro, as anfetaminas, a cocaína e a heroína. Os especialistas também escrevem que,

―quanto mais cedo se começa a fumar, maior é o envolvimento com a maconha‖. E concluem que,

entre os jovens nessa situação, é maior a possibilidade de contato com coisas mais perigosas.

O sim responde a um não que se apresenta no tópico seguinte, o não de quem diz

que a maconha não leva a drogas mais pesadas. No tópico abaixo, problemas familiares,

falta de perspectiva também seriam motivos para levar uma pessoa às drogas. E como

reforço a OMS lembra que a imensa maioria dos usuários de maconha não usa a cocaína e

a heroína. Um tópico contradiz totalmente o outro.

Sempre que um usuário procura outras drogas, a culpa é da maconha.

Mentira

Mas atenção: apesar de ser verdade que muitos jovens ampliam o coquetel de drogas depois de

experimentar a maconha, isso não quer dizer que a culpa caiba exclusivamente a ela. O próprio

hábito de recorrer à cannabis pode ter tido causa mais profunda, como problemas familiares, falta

de perspectiva e assim por diante. Aí, o fumante da cannabis amplia o seu repertório de drogas

pelos mesmos motivos. Essa, aliás, é a explicação preferida dos pesquisadores reunidos pela OMS.

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Como reforço, eles lembram que ―a imensa maioria dos usuários de maconha não usa a

cocaína e a heroína‖.

A maconha provoca desastres de trânsito.

Verdade

Essa é uma nova preocupação dos especialistas. Sob ação da droga, fica mais difícil executar desde

tarefas simples, como datilografar, até as de maior responsabilidade, como dirigir um automóvel.

Em simulações, motoristas que fumaram 1 hora antes do teste brecam em hora errada e demoram

para reagir aos sinais de trânsito.

O motorista perde totalmente a capacidade de se controlar.

Mentira

Alguns testes sugerem que o fumante percebe a diminuição da coordenação motora e procura

compensar essa deficiência, concentrando-se mais no que está fazendo. Nos desastres de trânsito

em que o motorista demonstra ter fumado maconha, é comum ele também ter bebido álcool.

Com a mistura, é óbvio que a erva não tem culpa sozinha no cartório.

Talvez o trecho mais contraditório. A prova de que maconha provoca acidentes de

trânsito são simulações onde nem acidentes simulados ocorreram, mas sim demora em

reagir a sinais de trânsito e brecagem na hora errada. No segundo trecho alguns testes

sugerem também é indeterminação. Quem sugere são alguns testes, são eles o sujeito da

ação. Coracini quando fala das asserções ativas do discurso científico onde o sujeito agente

é o próprio objeto da análise que provoca transformações, que age e reage e leva a esta ou

àquela conclusão diz que:

―O próprio objeto da pesquisa, os dados observados são os

responsáveis diretos pela interpretação e conclusão introduzidas pelo

verbo ativo (indicam, mostrou, conduzem a; montre [mostra]; laisse

supposer [deixa supor]; permet [permite]). Poder-se-ia, então, afirmar

com Heslot (1983) e Vigner (1979) que o discurso científico é

largamente um discurso sobre as coisas, onde um ele não-humano é o

sujeito de verbos de estado e de processo‖. (1991:105).

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No jornalismo, não só o científico, o uso de construções do tipo segundo

especialistas, as estatísticas mostram, pesquisas confirmam que transfere para um agente

indeterminado a veracidade das ações. Como em outros discursos, no discurso jornalístico

ocultar-se atrás de um terceiro ―é freqüentemente uma maneira hábil por ser indireta de

sugerir o que se pensa, sem necessitar responsabilizar-se por isto. Pode-se dizer que o que

enuncio é verdade porque não sou eu quem o digo‖ (C. Kerbrat-Orecchiani apud

Maingueneau, 1989:86). Ainda mais quando este terceiro está indeterminado pelo uso de

generalizações. Vejamos ainda o uso de indeterminações nos trechos abaixo.

A produção de hormônios sexuais femininos pode ficar reduzida, alterando o ciclo menstrual.

Verdade

Existem indícios de que a droga deixa o organismo com falta de diversas substâncias essenciais à

reprodução, entre as quais os hormônios. A carência ocorre durante uma das etapas da menstruação,

a chamada fase luteal, e a ovulação demora mais do que demoraria normalmente. Esse efeito ainda

não está bem esclarecido nas mulheres porque em alguns exames ele aparece e em outros, não.

Mas os especialistas reunidos pela OMS estão convencidos de que ele existe, pois, nos testes com

ratos e macacos, a queda de produção pôde ser medida com precisão. A conclusão dos

pesquisadores é que a ação da maconha sobre o aparelho reprodutor feminino não deve ser

menosprezada.

As crises de esquizofrenia podem ficar mais fortes nos pacientes que fumam.

Verdade

Como alguns pacientes de esquizofrenia entram em crise pouco tempo depois de fumar, levantou-

se a hipótese que a droga poderia estar associada à doença. As pesquisas revelam que a ligação

existe. Em algumas situações, nota-se que, se a dose de cannabis é grande, cresce também a

chance de uma crise.

A erva pode levar o usuário à esquizofrenia.

Mentira

Não dá para provar que a maconha provoque a doença. O motivo é simples: pode ser que,

justamente por terem esse tipo de problema mental, os pacientes desenvolvam propensão ao

consumo da erva. Ou seja, é como se o hábito de fumar fosse causado pelo mal, e não o contrário. O

resultado das pesquisas nesse campo deve ser considerado inconclusivo por enquanto.

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O uso de alguns pacientes, a hipótese, poderia estar, as pesquisas revelam, se, a

chance, reforçam o dito acima sobre a indeterminação e a generalização dos discursos

científico e jornalístico, que conferem uma subjetividade ao corpo discursivo desses

campos, algo que por eles pretende ser refutado sob as alegações da precisão científica ou

da verdade jornalística. A própria capa desta edição da SUPER se propõe a acabar com a

desinformação, inteirando o leitor sobre as novas verdades sobre a maconha. Não me

proponho a pregar a subjetividade ou objetividade em tais discursos, mas fazer deles uma

leitura mais crítica sabendo das implicações ideológicas que permeiam essas duas

formações discursivas, uma mais claramente aberta, a do jornalismo, e outra mais

dissimulada ou mesmo negada, a da ciência.

Encerrando a análise desta edição, ressalto ainda que, apesar da supressão do

capítulo do relatório que tratar da comparação entre maconha, álcool e tabaco, o autor fez

boxes na matéria apontando os males causados pelas drogas lícitas. Nestes boxes o autor

deixa, enfim, transparecer melhor sua opinião acusando o tabaco de assassino e de não se

combater com a necessária energia a propaganda do tabaco. No editorial de janeiro de

2001, edição 160, o editor fala sobre o autor dessa reportagem, Flávio Dieguez, como sendo

o único fumante antitabagista do Brasil. Segundo o editor, Dieguez fumava dois maços de

cigarro por dia, mas sempre que podia ―contrabandeava‖ notícias de teor antitabagista para

a revista. Quanto ao álcool, o autor também é enfático sobre os malefícios do abuso dessa

substância. Mesmo querendo dizer que a maconha é perigosa, sim, o autor, ou o relatório

da OMS, colocam muitas vezes o contrário e de quebra o autor torna um pouco menos

relevante os dados sobre os danos que a maconha provoca quando insere na reportagem o

álcool e o tabaco, drogas lícitas. Sobre o álcool ele diz que nenhuma droga pode concorrer

com o copo em matéria de perigo.

Edição 179 – agosto 2002

Na edição seguinte a de abril de 1998, a seção de carta dos leitores trouxe três cartas

onde dois leitores se mostraram contra a maconha e um a favor. Uma enquête promovida

pela revista perguntou a 217 leitores: Você é a favor do uso da maconha para fins

medicinais? Você é a favor da descriminalização do uso da maconha em geral? O resultado

foi 70% dos leitores consultados eram a favor do uso medicinal e 30% contra. Para a

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segunda questão 88,5% foram contra a descriminalização total e 11,5% a favor. Na edição

extra, número 180, de setembro de 2002, posterior a terceira capa da SUPER a tratar da

maconha, a edição 179, dez mil seiscentos e sessenta e nove internautas responderam a

enquête da revista que perguntava: A maconha deveria ser legalizada? Resultado: 55,3%

responderam sim, e 44,7% responderam não.

A expressividade da abertura no debate sobre a maconha na imprensa, hoje, está

nesses números. Não se questiona mais a liberação do uso medicinal, mas do uso geral. Se

a imprensa, como se diz, mostra o que o publico quer ver, então a SUPER acertou na nova

abordagem sobre a maconha na sua edição de agosto de 2002, e a prova foi o resultado da

enquête. Vamos à reportagem procurando verificar que levando em conta as pesquisas das

ciências sociais e dos relatos da história sobre a maconha, e não apenas as pesquisas

médicas já saturadas e ambíguas, o discurso jornalístico-cientifíco da revista sobre a planta

mudou, sem esquecer que a disposição do seu público em receber positivamente a matéria

(confirmada na enquête) também foi levada em conta. Devo deixar claro que não penso que

houve uma evolução ou regressão na maneira como a revista tratou o tema na sua última

capa sobre a cannabis, ou que ela está certa ou errada. Apenas acredito que o caráter

subjetivo e ideológico que existe nos discursos da ciência e da imprensa deve ser

criticamente analisado.

A capa da edição 179 de agosto de 2002 traz uma folha de maconha iluminada sobre

um fundo verde claro. Uma luz tênue parece irradiar do centro da folha, na junção do talo

que une os raminhos, para o resto da página espalhando o verde da erva. Já falamos sobre o

verde como cor que transmite tranqüilidade e desperta menos conflito. Chega a dar uma

certa ―inocência‖ ao tema. Em letras brancas lê-se na chamada: Maconha – Por que é

proibida? O que aconteceria se fosse legalizada? Como a ciência aumentou os seus efeitos?

Faz mal à saúde?

Ora, uma análise do conteúdo dessa chamada de capa, comparada com a anterior,

seria até desnecessária, mas vamos a ela. Enquanto a primeira diz, Novas verdades sobre a

maconha, um droga perigosa, sim, a outra se questiona porque é proibida, coisa que

ninguém se perguntou nas outras edições, (já que como sabemos a proibição da maconha

está além da questão de saúde pública, veja-se o capítulo II), e se faz mal. Numa afirma

que, sim, é perigosa, na outra questiona, pergunta, não traz uma afirmação fechada,

desperta para outros questionamentos sobre a droga. E quando pergunta como a ciência

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aumentou os seus efeitos? mostra que a própria ciência trabalhou para aumentar os efeitos

(não diz de que tipo, bons ou maus) de uma erva que ela mesmo afirmava, de acordo com a

reportagem anterior, ser perigosa.

Na manchete da reportagem está: A verdade sobre a MACONHA. Novamente a

recorrência a verdade ―dita‖ os rumos da ciência e, conseqüentemente, do jornalismo

científico. Mas, como nos pergunta Coracini:

―O que vem a ser a verdade se não uma forma de considerar a

realidade inserida no momento histórico, num determinado estágio das

descobertas científicas, num determinado local geográfico, enfim, numa

cultura partilhada pelos indivíduos? Se se aceitar a relatividade da

verdade, a idéia clássica que remota a Aristóteles, segundo a qual

existiria uma lógica cujas proposições se baseariam num valor de

verdade independente da natureza particular da enunciação (sujeito,

momentos, enfim, condições de produção do discurso), não teria lugar

nos enunciados das línguas naturais, nem mesmo naqueles que enunciam

as ‗ditas verdades universais‘, pois, mesmos estes se ligam à enunciação,

à natureza dos participantes da comunicação verbal e de sua situação no

espaço e no tempo‖ (1991:122).

Abaixo da manchete temos o seguinte trecho como chamada da matéria:

―Poucos assuntos dão margem a tanta mentira, tanta deturpação, tanta desinformação.

Afinal, quais os verdadeiros motivos por trás da proibição da maconha? A droga faz mal ou não? E

isso importa?‖

Quando pergunta quais os verdadeiros motivos por trás da proibição da maconha o

autor sugere que há outros motivos que não são verdadeiros ou válidos para se proibir a

maconha e segue seu questionamento perguntando se a droga faz mal ou não, para,

finalmente, perguntar num tom de afirmativa e isso importa? Ou seja, os motivos até hoje

alegados para a proibição da maconha, dentre o maior deles, o mal que causa à saúde, são

os verdadeiros? Se causa mal à saúde, isso importa, é motivo forte para proibir a planta? O

autor, na construção das perguntas já revela o tom que dará à reportagem e podemos ler que

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não importa se a maconha faz mal ou não à saúde, pois este não é o verdadeiro motivo da

sua proibição. Vamos ao primeiro parágrafo da reportagem:

―Por que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde. Será mesmo? Então, por que o

bacon não é proibido? Ou as anfetaminas? E, diga-se de passagem, nenhum mal serio à saúde

foi comprovado para o uso esporádico de maconha. A guerra contra essa planta foi motivada

muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e morais do que por argumentos

científicos. E algumas dessas razões são inconfessáveis. Tem a ver com o preconceito contra

árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários freqüentes de maconha no começo do século XX.

Deve muito aos interesses de industrias poderosas dos anos 20, que vendiam tecidos sintéticos e

papel e queriam se livrar de um concorrente, o cânhamo. Tem raízes também na bem-sucedida

estratégia de dominação dos Estados Unidos sobre o planeta. E, é claro, guarda relação com o

moralismo judaico-cristão (e principalmente protestante-puritano), que não aceita a idéia do prazer

sem merecimento – pelo mesmo motivo, no passado, condenou-se a masturbação‖.

Apenas esse parágrafo sintetiza toda a reportagem e nos mostra como a abordagem

do tema ganha novos contornos quando o contexto histórico-social é levado em

consideração e não apenas o relatório mais completo feito pelos maiores especialistas do

mundo com base em centenas de pesquisas. Os maiores especialistas e as centenas de

pesquisas não vivem fora da história. Alguns pontos não apresentados nas outras

reportagens ganham destaque como a questão do uso esporádico, que segundo o autor não

tem nenhum mal comprovado. As pesquisas apresentadas nas outras matérias, sobretudo na

segunda, apresentam os males da maconha em usuários que eles mesmos chamam de

pesados, ignorando o uso esporádico, quando a própria OMS diz que os dependentes são

10% deles. Ou seja, um universo de 90% de usuários de maconha, a grande maioria, é

ignorado pelas pesquisas científicas que concentram esforços na minoria dependente para

encontrar as justificativas para a proibição. Colocar que os fatores raciais, econômicos,

políticos e morais motivaram mais a proibição da planta do que argumentos científicos é

um pouco ingênuo por parte do autor, pois também os argumentos científicos podem ser

motivados por fatores raciais, econômicos, políticos e morais como vimos em Rodrigues

Dória e Francisco de Assis Iglesias. É o que venho argumentando nesta monografia: a

ciência não está livre de sofrer as pressões morais, sociais e históricas da comunidade

(científica ou não) na qual está inserida e de produzir ou reproduzir um discurso de acordo

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essas pressões. Como nos lembra Coracini, o discurso científico ―na busca da objetividade

se revela subjetivo, assim como, na busca da verdade, a ciência se depara com a

subjetividade do cientista, sua capacidade de observar, intuir, imaginar, esbarrando,

portanto, na própria relatividade‖. (1991:122)

A reportagem leva em conta vários dos fatores aqui apresentados para a proibição

da maconha no capítulo II e, portanto, não reproduzirei além do necessário o que nela está

escrito (verificar texto integral nos anexos). Apresenta a ligação da imprensa na figura de

Harry Anslinger e William Randolph Hearst; aborda a questão do racismo recorrendo a

aspectos sociais ignorados anteriormente. Vê-se o tom mais voltado para as ciências

humanas, sobretudo a antropologia, a sociologia e a história quando apresenta o histórico

da maconha e seus usos culturais, religiosos e sociais ao longo dos séculos. Na edição 127

de abril de 1998 tudo o que se tem sobre história da maconha é o seguinte trecho contido

num box:

De volta no tempo

Origem

A primeira referência à maconha aparece num tratado médico chinês de 2 737 antes de Cristo.

Costume tribal

Há 1 000 anos, já servia de tempero e remédio para povos da África e da Ásia, e era fumada em

rituais.

No Brasil

Ela teria sido trazida logo após 1500, contrabandeada pelos escravos.

Proibição

Aqui, o uso e a venda foram proibidos pela Câmara de Comércio do Rio de Janeiro desde 1930.

Os dados são poucos e falhos. Como está colocado em Diamba Sarabamba, a venda

da erva foi proibida pela Câmara do Comércio do Rio de Janeiro em 1830, e não 1930.

Pode ter sido erro de digitação, mas o que vem ao fato é que abordagem histórica não foi

preocupação da revista sobre o tema até agosto de 2002. Como nas outras reportagens, os

usos medicinais e industriais da maconha são abordados, bem como os possíveis males que

ela causaria, e novamente as generalizações e indeterminações aparecem com expressões

do tipo muitas experiências foram feitas ou muitos especialistas apontam, muitos

pesquisadores estão chegando à conclusão, a engenharia genética é usada para aumentar

a potência, descobriu-se que o THC afeta os glóbulos brancos, etc. Interessante notar o

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trecho que antecede a apresentação dos males causados pela maconha: Nos últimos anos, os

possíveis males da maconha foram cuidadosamente escrutinados – às vezes por

pesquisadores competentes, às vezes por gente mais interessada em convencer os outros

da sua opinião. Parece que o autor entende que pesquisadores competentes não tentam

convencer os outros da sua opinião, e usa a expressão por gente para se referir a

pesquisadores que seriam não tão competentes. Porém, a ciência é argumentativa e

qualquer pesquisador está tentando convencer alguém da sua pesquisa feita sob intuição

levando em conta não só sua opinião, mas também a opinião da comunidade científica na

qual está inserido.

Todo o tempo, o autor procura enfatizar que os danos se referem a usuários pesados,

e não ao esporádico, num esforço contrário ao do seu antecessor. Na polêmica questão da

memória ele coloca: Sabe-se que o usuário de maconha, quando fuma, fica com a

memória afetada. O quando fuma quer dizer que quando não está fumando a memória do

usuário é como a de qualquer um. Mesmo com relação a usuários pesados é dito que há

pesquisas que mostram (...) que eles se saem um pouco pior em alguns testes,

principalmente nos de memória e atenção. As diferenças, no entanto, são sutis. Não se diz

que testes são esses, é comparando com a edição anterior coloca-se que praticamente não

há o que temer. O mesmo pode ser lido acima no tópico da capa de 1998 que diz que a

capacidade de aprender e de raciocinar e a memória diminuem, e atesta VERDADE, ao

mesmo tempo em que o próprio especialista afirma que a diferença nos testes entre

fumantes e não-fumantes é sutil. A afirmação mais ousada está num destaque de texto que

diz: o consumo moderado de maconha não provoca nenhum dano sério à saúde. Quando

usa nenhum dano sério podemos subentender que algum dano à saúde o uso moderado da

maconha causa, mas nenhum tão sério que justificaria sua proibição.

A reportagem de Denis Russo culminou no lançamento do livro Maconha, da

coleção Para Saber Mais, subproduto da SUPERINTERESSANTE. Segundo a própria

revista, é o exemplar mais vendido da coleção. Até maio de 2003 foram 20 mil exemplares.

E finalizo aqui, com as palavras do próprio repórter, propondo uma visão mais crítica sobre

a ciência e o jornalismo científico, e que seja permitido à sociedade formular seus próprios

conceitos sobre qualquer assunto, tendo para isso a mais vasta quantidade de informações

possíveis para ter condições de decidir o que lhe convém ou não, assim como fazem os

jornalistas e os cientistas:

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―Uma grande parte das pesquisas sobre maconha é feita com

inegável carga ideológica – mais que descobrir verdades, os cientistas

querem reunir argumentos para convencer a sociedade daquilo em que já

acreditam, ou daquilo em que seus financiadores acreditam (que a

maconha é boa ou ruim) (...) Antes de prosseguir, tenho que fazer uma

advertência: toda reportagem sobre danos à saúde provocados pela

maconha, todo livro sobre o assunto, inclusive este, é um recorte da

realidade. Há milhares de pesquisas. O autor escolhe aquelas que ele acha

mais sérias, mais corretas, mais relevantes. E, inegavelmente, essa

escolha é balizada por suas crenças. Mil perdões, mas não existe ciência

sem ideologia. Portanto, não acredite em tudo o que você ouve ou lê‖

(Burgierman, 2002:48).

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Considerações finais

Quando recebi em agosto de 2002 a edição nº 179 da revista

SUPERINTERESSANTE senti que como eu, milhares de pessoas haviam sido ludibriadas

anos e anos pela imprensa e pela ciência, e que apesar das inúmeras e infinitas discussões

sobre o uso de drogas e, principalmente sobre a maconha, muita informação foi negada à

sociedade, sobretudo a um público leigo que tem pouco acesso a uma literatura

diversificada sobre o tema. De posse daquelas outras verdades fui em busca de mais dados,

questionamentos foram surgindo e a principal pergunta era: Por que isso não foi dito antes?

Por que não nos ensinam isso na escola quando falam das drogas? Por que não nos dão os

dados, todos os dados, e deixam para cada indivíduo o direito de decidir o que é melhor

para ele? E assim, iniciei a pesquisa que resultou neste trabalho. Trabalho que nem de longe

esgota as possibilidades de análise do discurso sobre a maconha, sobre a ciência e o

jornalismo científico, e nem simplesmente deseja questionar a autoridade de tais discursos,

mas quer, sobretudo, dizer que a informação é direito de todo cidadão, que conhecer todos

os ângulos de um tema é o que possibilita as escolhas pessoais, que devemos realizar com

base no que conhecemos e não no que desconhecemos.

As impressões que resultaram desta pesquisa foram:

(1) A ciência não trabalha isolada do contexto social em que está inserida,

sua busca pela verdade envolve valores que são determinados pela

sociedade (científica ou não) e as subjetividades que estão assim

relacionadas dentro da produção científica não devem ser negadas, mas

sim usadas para analisar criticamente seus passos e entender que ciência

é atividade humana, e que os subjetivismos presentes nela não a

invalidam, mas sim a negação desta característica é que consiste numa

falha. Contudo, assumir a subjetividade não significa impregnar a

produção científica de valores ou preconceitos pessoais, mas deixar

chegar aos outros que a verdade absoluta não pode ser alcançada pela

ciência, o que ela pode fazer e deve sempre se dispor a fazer é apresentar

sua produção como mais um passo, um dentre os muitos dados, na busca

deste conhecimento, mas que não se esgota ali, nem condensa a

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totalidade dos fatos sobre qualquer tema, pois a natureza, o homem e as

sociedades são organismos mutáveis que jamais poderão ser

definitivamente compreendidos. No caso da maconha, no passado uma

planta livremente consumida, presente na indústria, na religião, na

medicina. Hoje, droga proibida em praticamente todo o mundo, motivo

de prisão, problema de saúde pública, geradora de discussão entre

cientistas, sociedade e Estado. E amanhã? Não foi a ciência sozinha e sua

metodologia objetiva que tornaram a maconha proibida e também não

será ela a responsável por sua liberação, caso isso venha a ocorrer daqui a

alguns anos, ou séculos. A história é escrita pela humanidade que

constrói suas verdades, e dentro dessa humanidade a ciência e seus

representantes são apenas uma parte.

(2) O jornalismo científico precisa ser mais crítico com relação à ciência e

suas produções e não esquecer que ele tem um papel social a cumprir, e

não apenas divulgar ou repassar o que comunidades científicas estão

desenvolvendo. O jornalista de ciência precisa questionar, não de

maneira alarmista ou sensacionalista, o saber científico entendendo que a

ciência é produzida na maioria das vezes com dinheiro público e que seus

produtos são também destinados à sociedade. É, portanto, um direito de

todo cidadão ter conhecimento do que está sendo feito em ciência e

porque isso está sendo feito e não aquilo, porque se pesquisa certas coisas

e outras não, e o que determina os interesses da pesquisa científica. Ter

acesso às informações do mundo da ciência não deve ser privilégio de

uma minoria intelectualizada, ou encarada como uma leitura difícil ou

chata. A ciência é social, tem um uso social e, portanto, deve estar

próxima da sociedade tanto quanto a política, a economia ou a cultura.

(3) As verdades que hoje nos cercam são construções humanas, portanto

provisórias. Analisar o discurso é entender o processo de construção

dessas verdades e nas palavras de Foucault é ―fazer desaparecer e

reaparecer as contradições; é mostrar o jogo que jogam entre si; é

manifestar como pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhes uma

fugidia aparência‖ (apud Brandão, sem data:40). A mudança de enfoque

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sobre um tema revela novas verdades, não melhores ou piores, nem as

últimas ou únicas, mas outras, que cabe a cada um tomar como as suas

verdades ou não.

Finalizo essas considerações colocando em evidência os vários tipos de saber que

existem e são válidos, embora não legitimados, e pergunto por que o saber do barqueiro do

São Francisco do início do século sobre a maconha não foi levando em conta, porque os

rastas que usam a ganja constantemente, e, portanto, a conhecem tão bem, não são alvo dos

pesquisadores, porque os sadhus, homens considerados santos na Índia, consomem

maconha religiosamente e ninguém, nenhum cientista vai lhes perguntar sobre os efeitos da

planta, porque a usam, que experiências ela lhes propicia? Por que a ninguém mais é dado o

direito de falar sobre a maconha, senão aos médicos, aos cientistas e ao Estado? Por que

somente eles são os legítimos porta-vozes dos efeitos da planta, dos perigos ou benefícios

que ela pode causar? Orlandi que nos diz que:

―Há o saber dominante e há outros que sequer foram formulados.

Há formas de saber que são diferentes e que têm funções sociais distintas.

O fato de que se atribuem diferentes estatutos epistêmicos a essas formas

de saber não está desvinculado do fato de que, dada a divisão social, há

formas diferentes de conhecimento: legítimas e não legítimas, o que

equivale a dizer legitimadas ou não pelo poder dominante. Quando se

adere ao conhecimento legítimo, se desconhece a luta de classes, a luta

pela validade das diferentes formas‖ (1987:208).

É pela validade das diferentes formas que empreendi este trabalho, porque acredito

que a ninguém pode ser dada a posse da verdade, o saber absoluto, mas apenas uma

diferente forma que penso, cada um tem o direito de exercer e expressar, mas jamais de

impor.

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ANEXOS

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Edição 095 – Agosto de 1995

QUANDO A MACONHA CURA

Está provado. Os efeitos medicinais da maconha beneficiam pacientes de câncer, Aids,

glaucoma e esclerose múltipla. Mas os médicos do mundo inteiro se vêem num dilema

crucial. Como receitar um remédio que é proibido? Este ano, o debate ganhou peso na

comunidade científica internacional e, por isso, a SUPER traz até você esta reportagem.

Por Rosângela Petta

Desde logo, é importante deixar bem claro: o uso de drogas como maconha e outras

substâncias alucinógenas ou psicotrópicas, sem orientação médica, é perigoso. O vício das

drogas prejudica os jovens e constitui um problema social. A forma de resolvê-lo é uma

discussão em aberto, mas não é o tema principal da reportagem que você vai ler a seguir.

Aqui, você será informado sobre os efeitos medicinais da maconha, entenderá por que os

médicos desenvolvem cada vez mais pesquisas nessa área, e por que, muitos deles,

concluíram pela recomendação do uso terapêutico dessa droga.

A comunidade científica começou a estudar a maconha a sério em 1964. Nesse ano,

o pesquisador Raphael Mechoulan, da Universidade de Tel Aviv, em Israel, extraiu da erva

natural uma substância chamada delta-9-tetraidrocanabinol. Era o THC, o principal

responsável pelos efeitos da Cannabis sativa (nome científico da planta de maconha). Como

também aprendeu a sintetizar o THC, Mechoulan viabilizou, pela primeira vez, o estudo

sistemático de suas ações no corpo humano.

Há muito tempo se ouvia falar nas virtudes terapêuticas da erva. Na verdade, a sua

história é quase tão antiga quanto a civilização: há seis mil anos, aparecem no mais antigo

texto medicinal conhecido, o Pen Ts‘oo Ching, chinês, sugestões de uso da planta. Ela era

indicada para problemas como asma, cólicas menstruais e inflamações da pele. E assim foi

até recentemente, afirma o bioquímico John Morgan, da Universidade da Cidade de Nova

York. ―Nos Estados Unidos, a asma, a dor e o estresse foram combatidos com chás e outros

preparados de maconha (mas não cigarros) comercializados por grandes empresas, como

Parke Davis, Eli Lilly e Squibb.‖ O negócio acabou em 1937, quando a erva foi proibida

nos EUA por lei federal.

Após a descoberta de Mechoulen, a indústria voltou a se empenhar e, logo no início

dos anos 70, surgiram os primeiros remédios à base de THC sintético, cujo uso é

autorizado, em casos especiais, na Europa e nos Estados Unidos. Dois deles são fabricados

atualmente: o canadense Nabilone e o americano Marinol. Em forma de

cápsulas, eles ocuparam um mercado em crescimento: o dos pacientes de câncer e de Aids.

É verdade que o THC também é benéfico em outros casos. Mas foi a gravidade dessas duas

doenças que justificou a atenção dada à maconha como recurso terapêutico.

A cannabis não cura o câncer ou a Aids. O que ela faz com eficiência é aliviar o

sofrimento decorrente dessas doenças. A partir de 1975, os médicos perceberam que o THC

ajudava a superar crises de náusea e vômitos provocadas pela quimioterapia, tratamento

que busca controlar os tumores cancerígenos. O mal-estar que decorre da quimioterapia

pode se tornar intolerável se não for controlado e há pacientes que não conseguem dar

continuidade ao tratamento. Por isso, o uso da maconha pode ser decisivo. Daí que na mais

abrangente pesquisa americana, feita pela Universidade Harvard em 1991, 70% dos

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cancerologistas perguntados responderam que recomendariam o uso da erva natural se esta

fosse legalizada. Quase metade (40%) disse que o aconselhava, mesmo sendo ilegal. Nesse

mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde reconheceu a maconha natural como

medicamento.

No caso da Aids, o efeito mais importante é o de estimular o apetite. Pacientes de

Aids perdem em média 4 quilos por mês e podem morrer de desnutrição. O desejo de

comer vem com a ajuda do THC. Alguns recorrem às cápsulas e outros aos cigarros, que

continuam proibidos na maioria dos países. E a ilegalidade da maconha natural — para

fumar — é um problema, porque grande número de médicos acha que ela é bem mais

eficiente que a sua irmã artificial.

Claro, isso não significa que ela seja indispensável. Mesmo porque há outros medicamentos

disponíveis. Um exemplo, no caso do câncer, é a substância odonsetron, muito receitada.

Em comparação, o Marinol tem eficiência apenas moderada, diz o oncologista brasileiro

Sérgio Simon. Outro problema é que nem todos toleram os efeitos não medicinais do THC.

São comuns os acessos de riso, moleza no corpo ou boca seca (veja infográfico na página

59).

Com tudo isso, quem resumiu bem a questão foi o professor de Farmacologia

Roberto Frussa Filho, da Universidade Federal Paulista/Escola Paulista de Medicina. ―A

maconha funciona‖, disse ele à SUPER. ―O que precisamos é avaliar se e quando vale a

pena usá-la. Acho que pode se tornar uma opção para quem não aceita o tratamento

convencional‖.

No decorrer dos anos 90 o estudo científico da maconha avançou muito, apesar de

vários contratempos importantes. O maior deles foi criado pelo governo norte-americano na

tentativa de dar mais força à campanha antidroga. Em 1992, por exemplo, os EUA cortaram

um importante programa federal de pesquisas sobre o valor terapêutico da planta, tirando

recursos valiosos dos cientistas. Também suspenderam as autorizações especiais para que

alguns pacientes usassem cigarros, complicando o desenvolvimento das terapias.

As autorizações, até certo ponto, contornavam o problema da ilegalidade. Que são

muitos, como lembra o brasileiro André Vilela Lomar, infectologista do Hospital Albert

Einstein, de São Paulo. Ele explica a situação em que estão os pacientes de Aids que

aceitam bem o cigarro de maconha como estimulante de apetite: ―Apesar disso, não

recomendo. Justamente porque a maconha é ilícita, não se pode ter controle sobre a sua

procedência, saber se está misturada a um mato ou se contém algum fungo‖.

No Brasil, a questão da legalidade atinge até o Marinol (comercializado nos Estados

Unidos desde 1985), que utiliza o THC sintético. De acordo com o farmacologista Elisaldo

Carlini, secretário nacional da Vigilância Sanitária, está sendo avaliada pelo Ministério da

Saúde a possibilidade de liberar o uso do remédio. Carlini fez o anúncio há cerca de três

meses.

Mesmo com todos os obstáculos, esta década trouxe muitas novidades sobre a

cannabis. A mais sensacional foi a descoberta dos locais em que ela age, no cérebro. Isso é

importante porque a planta contém cerca de sessenta substâncias, chamadas coletivamente

de canabinóides. Elas são as responsáveis pelos efeitos da planta no corpo mas não se sabia

exatamente como cada uma delas atua no organismo. Então, em 1991, descobriu-se que as

células do cérebro têm uma substância, ainda sem nome, cuja função é reagir quimicamente

com os canabinóides. Ou seja, é por meio dela que os canabinóides afetam o cérebro e, a

partir daí, o resto do organismo. Substâncias desse tipo são denominadas ―receptores‖ pelos

cientistas.

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A receptora dos canabinóides foi identificada em 1991 por duas equipes de

cientistas nos Estados Unidos, uma da Universidade de Saint Louis e outra do Instituto

Nacional de Saúde. Desde então, uma busca cuidadosa revelou quais são as regiões do

cérebro mais ricas em receptores. O mapa dos receptores já revelou pistas interessantes. Ele

mostra que os compostos da planta atuam em regiões cerebrais relacionadas com a

memória, com os sentidos, com a capacidade de aprender e com os movimentos do corpo,

inclusive a sensação de equilíbrio. E a maconha realmente afeta a memória, os sentidos, o

aprendizado e o equilíbrio.

Na prática, porém, ainda há muito o que conhecer. Os próprios efeitos da maconha

ainda são incertos e podem ser contraditórios, como explica o farmacologista Isaltino

Marcelo Conceição, do Instituto Butantã. ―O THC é um depressor, mas quando a maconha

é consumida em grupo costuma trazer euforia‖. De acordo com o farmacologista Frussa

Filho, é difícil comprovar os efeitos porque os estudos clínicos — nos quais se acompanha

de perto o comportamento de um usuário — ainda são muito poucos. Também atrapalha o

fato de a maconha ser usada, freqüentemente, em combinação com o álcool e com o tabaco.

Por último, o entrave que parece ser o dilema decisivo atualmente: o da ilegalidade da

droga. Como separar a maconha que pode curar daquela que está misturada às mazelas

sociais do vício e do tráfico? Quando for possível dar uma resposta a essa questão, vai ficar

mais fácil conhecer melhor as suas virtudes e os seus defeitos.

A cannabis está conquistando uma fatia dos negócios convencionais. Plantada em

fazendas especiais, autorizadas pelo governo de alguns países, ela se transformou em uma

fonte surpreendente de matérias-primas, com as quais se produzem desde cosméticos até

papel, roupas e alimentos. Um bom exemplo desses produtos vai estar nos seus próprios

pés em breve. Depois de um ano de testes, a Adidas está lançando, em todo o mundo, um

novo modelo de tênis para passeio. Trata-se do Chronic, que, na gíria americana, significa

fumante de maconha.

Feito de cânhamo, a fibra que se encontra no caule e nos galhos mais robustos da

planta de maconha, o Chronic tem um ínfimo teor de THC. ―Estamos vendendo um

conceito ecológico‖, diz Marta Maddalena, gerente de produto da Adidas do Brasil, que vai

importar o calçado. ―Essa fibra não passa por processos químicos, não danifica o meio

ambiente e tem uma cara rústica. É como arroz integral.‖

A idéia, sem dúvida, é boa. O mundo inteiro anda atrás de materiais alternativos.

Em 1993, a Inglaterra colheu sua primeira safra de cannabis inteiramente legal, plantada

em 30 locais do país. As fazendas são subsidiadas pelo Fundo Agrícola da Comunidade

Européia. Foram 7 500 toneladas de cânhamo, aproveitadas, entre outras coisas, na

produção de papel. Resultado: desde os tradicionais saquinhos de chá e até formulários da

justiça britânica são hoje produzidos a partir do arbusto. A França também pediu e obteve

apoio da Comunidade Européia baseando-se em argumentos econômicos e ecológicos para

fazer papel. Afinal, a cannabis rende quatro vezes mais do que o eucalipto, com a vantagem

de ter menos lignina, substância nociva ao meio ambiente. Itália e Espanha também estão

processando fibras para fazer papel do mesmo jeito.

Com muito mais motivo, os europeus passaram para os tecidos, cuja afinidade com

o cânhamo vem de muitos séculos. No Egito dos faraós, ele era usado em cordas e velas de

embarcações. No mundo moderno, ele está virando os hemp jeans (em inglês, hemp

significa cânhamo). A fibra está sendo aproveitada ainda em pranchas de esquiar na neve,

as snowboards. Na Suíça, a idéia foi transformar as folhas em xampus e cremes faciais.

Tanto na Europa como nos Estados Unidos, se utilizam as sementes para obter prateleiras

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inteiras de supermercado: detergentes, fertilizantes, diversos óleos, molhos comestíveis e

queijo vegetal.

As maiores virtudes e algumas promessas para o futuro

Veja as terapias em que se emprega o THC, uma das cerca de 60 substâncias encontradas

na Cannabis sativa.

Menos sofrimento

Um dos meios de combater a proliferação das células doentes é um coquetel de drogas.

Infelizmente, elas também ativam o que se chama de centro emético do cérebro,

responsável por náuseas e vômitos, muitas vezes intoleráveis. O THC reduz o mal-estar.

Aids com apetite

A perda de peso entre os portadores do vírus HIV se deve a diarréias e à ação de diversas

toxinas, entre outras causas. É agravada pela falta de apetite. O THC traz de volta a vontade

de comer, combatendo a fraqueza.

Controle dos movimentos

Talvez porque traz relaxamento muscular, o THC devolve o controle dos braços e das

pernas às vítimas da esclerose múltipla, doença que ataca o cérebro ocasionando espasmos

musculares involuntários.

Glaucoma sem pressão

O excesso de pressão causado pelo glaucoma sobre o globo ocular e torna essa doença a

maior causa de cegueira em todo o mundo, inclusive no Brasil. O THC controla a ação dos

líquidos que correm na córnea, e na íris.

Asma controversa

A maconha causa a dilatação dos brônquios do pulmão e diminui a sufocação dos

asmáticos. Mas a fumaça é prejudicial, inclusive porque contém nicotina (mais do que o

tabaco).

Diminuição da dor

Foi descoberta uma substância da planta no início dos anos 90, que é mais eficiente que a

morfina no combate à dor. É importante porque a medicina, hoje, depende muito dos

subprodutos do ópio (como a morfina). Esse efeito da cannabis aparece em relatos chineses

de mais de quatro mil anos.

A sensibilidade do usuário fica alterada

Embora os relatos ainda sejam contraditórios, já há efeitos comprovados.

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Relaxamento e risos

É comum uma sensação de bem-estar, às vezes com acessos de euforia e de riso

incontrolável. Também se sente relaxamento muscular e sonolência. Diminui a capacidade

de seguir objetos em movimento.

Cabeça leve demais

O usuário ganha uma hipersensibilidade, mas perde a noção de tempo e tem falhas de

memória. Mais de quatro cigarros podem levar a alucinações, provocar confusão mental,

apatia e indolência.

Dilatação das pupilas e boca seca

São efeitos comuns, assim como um pouco de taquicardia. Estudos mostram ainda queda da

taxa de açúcar no sangue, da quantidade do hormônio testosterona e de espermatozóides.

Limite da intoxicação

Estimado em 1, 875 grama, equivale a fumar centenas de cigarros de uma vez. Um cigarro

tem de 500 miligramas a 1 grama de maconha, mas quase tudo se perde antes de chegar ao

cérebro. No final, o consumo não passa de 2,5 milésimos de grama.

Vício e overdose

A dependência psíquica faz o usuário sentir uma pequena vontade de tomar a droga. A

dependência física faz com que ficar sem fumar provoque irritação, insônia ou perda de

apetite. Não há caso comprovado de overdose

Uma situação polêmica nos Estados Unidos

O debate é se a planta deve ser liberada para uso médico.

Oposição federal...

Em 1992, o governo federal suspendeu as autorizações especiais para o uso do cigarro e

não admite que ele tenha valor médico. Só permite o uso controlado do THC sintético, que

é a cópia de uma substância de mesmo nome existente na maconha.

... flexibilização regional...

Trinta e quatro dos 50 estados têm legislação que, mesmo acatando os princípios do

governo nacional, suavizam as penalidades impostas aos usuários.

... e divisão entre os médicos

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Na mais abrangente pesquisa já feita entre cancerologistas, em 1991, 60% disseram não

recomendar o uso ilegal da maconha e 40% disseram aconselhar. Se ela fosse permitida,

70% recomendariam.

Das cápsulas aos tabletes

Cápsula: o paciente de câncer toma uma antes da quimioterapia (administrada geralmente

de 15 em 15 dias) e outra no dia seguinte. O de Aids toma uma, meia hora antes das

refeições.

Cigarro: os pacientes fumam o quanto acham conveniente para controlar os sintomas,

inclusive do glaucoma e da esclerose. Em qualquer caso, o efeito aparece entre 10 e 15

minutos depois de tragar e dura uma ou duas horas.

Supositórios e tabletes para mascar: podem ser alternativas mais eficientes do que a cápsula

ou mais aceitáveis do que o cigarro. O supositório, por exemplo, parece ter ação bastante

rápida.

Para saber mais:

Drogas, uma viagem pelo corpo humano

(SUPER número 3, ano 6)

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Edição 127 – Abril de 1998

MACONHA - POR TRÁS DA CORTINA DE FUMAÇA

A Organização Mundial da Saúde publica o mais completo relatório sobre os efeitos da

maconha. E afasta a onda de desinformação que cerca a droga ilegal mais consumida do

mundo.

Por Flávio Dieguez

Era para ser uma festa. Era para ser o triunfo da pesquisa médica em seu esforço de

separar, cientificamente, o que é mito e o que é fato sobre os efeitos da Cannabis,

conhecida como maconha. Mas o relatório sobre a droga publicado pela Organização

Mundial da Saúde (OMS), das Nações Unidas, teve uma outra recepção. A entidade

começou a trabalhar em 1993. Convocou os maiores especialistas do mundo e incumbiu-os

de, nos cinco anos seguintes, examinar o resultado de centenas de pesquisas. Finalmente,

em dezembro do ano passado, as conclusões dessa equipe foram reunidas num documento

de 49 páginas, publicado sob o título Cannabis: uma Perspectiva de Saúde e Agenda de

Pesquisa. Surgia o mais completo relatório produzido sobre a maconha nos últimos quinze

anos.

Aí, o que era para ser uma festa virou guerra política. O trabalho da OMS mal foi

lido. Até o início do mês de março, pouco mais de 500 cidadãos, nos cinco continentes,

tinham tido acesso a ele. Quase não houve repercussão. O motivo é que seu conteúdo foi

encoberto pela campanha dos que pregam a legalização da droga. Nada contra a polêmica,

que pode ser até saudável. Mas o fato é que, no caso, ela fez sombra sobre o texto da OMS

e favoreceu a onda de desinformação.

A confusão chegou ao ápice quando a revista semanal inglesa New Scientist, na sua

edição de 21 de fevereiro, pôs em sua capa uma reportagem explosiva em que acusava a

OMS de ter suprimido do documento, por motivos políticos, um capítulo mostrando que a

maconha seria menos perniciosa do que o álcool e o tabaco. A OMS admitiu a supressão do

capítulo, mas negou os motivos. Declarou que o texto comparando as três drogas fora

excluído por prudência, pois os estudos nos quais ele se apoiava não eram conclusivos. De

fato, isso só levaria a mais confusão.

Tanto é que a confusão, com capítulo ou sem capítulo, alastrou-se. E desviou, ainda

mais, a atenção do público daquilo que, afinal, era o mais importante ­ o próprio relatório

da OMS. Quem foi apanhado de surpresa pela guerra de versões pode ter ficado

desorientado. E pode até estar pensando que a maconha nem é tão perigosa. Mas ela faz

mal, sim, e cria riscos sérios para a saúde.

Quem tem dúvida, é só consultar o relatório. ―Ele confirma diversas conseqüências

nocivas comumente apontadas em relação à maconha‖, resume a psicobióloga brasileira

Maristela Monteiro, da OMS, uma das responsáveis pela versão final do texto. ―E além

disso aponta novos perigos.‖ Ao mesmo tempo, o trabalho desmontou mitos antigos,

livrando a droga de acusações que ainda hoje se escutam. A verdade é que não, a maconha

não reduz o número de espermatozóides nos homens, não induz à violência nem tira a

disposição para o trabalho e para o estudo.

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Nas páginas seguintes, a SUPER vai esmiuçar o conteúdo do relatório para você. Os

resultados apresentados pela OMS ajudam, e muito, a reverter a maré de dúvidas e de

mistificações em torno da droga. Para começar, admite que ela possa ter aplicações

medicinais (e sobre isso a SUPER já publicou uma reportagem de capa, em agosto de

1995). Mas aponta, com precisão científica, os males que o uso indiscriminado dessa

substância pode causar. Não são poucos. E não são suaves. É bom você se informar a

respeito e escapar da cortina de fumaça ­ que ainda esconde muitos riscos.

Cérebro aberto à investigação

O efeito sobre as funções nobres do cérebro, embora não seja tão pesado quanto se pinta,

pode prejudicar o comportamento dos usuários. O risco da dependência é pequeno, mas não

é nada desprezível.

A capacidade de aprender e de raciocinar e a memória diminuem.

Verdade

Há somente três anos, parecia não haver sinais de que a droga pudesse afetar as atividades

cerebrais mais refinadas, aquelas que os especialistas chamam de funções cognitivas, as

ligadas ao processo de conhecimento. Uma das novidades dos relatório é que agora há

provas disso. Quem fuma regularmente por muitos anos tem dificuldade para organizar

grandes quantidades de informações complicadas. Num tipo de teste, um cidadão empilha

cartas segundo regras que o paciente precisa deduzir, apenas observando o ―jogo‖. Com o

tempo, as regras vão sendo mudadas. Quem não fuma, deixa de perceber cinco de cada 100

mudanças de regra. Fumantes pesados cometem o mesmo erro oito vezes. ―A diferença é

sutil‖, afirma o relatório. ―Mas é ratificada por novos estudos, realizados em 1995 e 1996.‖

Os neurônios ficam estragados.

Mentira

A idéia de que a maconha afeta as funções do cérebro porque causa algum tipo de dano aos

neurônios não está comprovada. As pesquisas dão resultados ambíguos. Certas imagens das

células cerebrais de ratos, obtidas por tomógrafo, parecem ligeiramente deformadas,

especialmente nos pontos em que elas tocam umas nas outras, chamados sinapses. Mas em

outras experiências não se vê alteração nenhuma. Logo, não é possível tirar uma conclusão

definitiva. Diante da relevância do assunto, o relatório da OMS sugere que se façam

estudos mais aprofundados sobre ele.

Quem fuma muito tempo pode acabar caindo na dependência.

Verdade

Grande parte dos usuários pesados, desses que fumam diariamente durante meses, acaba se

viciando. As estatísticas indicam que até metade dos fumantes desse tipo perdem o controle

sobre o hábito e precisam de tratamento para se recuperar. Entre os que não conseguem a

cura, muitos apresentam sintomas que agravam a dependência. Ficam desmotivados para

qualquer coisa, tornam-se menos produtivos em suas atividades, sofrem de depressão e têm

a auto-estima abalada.

Então, todos ficam viciados.

Mentira

Apenas fumantes pesados caem na dependência, e eles, de acordo com os dados do

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relatório, são cerca de 10% de todos os que experimentam a droga. Dito de outra maneira, o

vício nem é inevitável, nem acontece com freqüência. ―Fumar é um hábito de

adolescentes‖, lê-se no relatório. Tanto nos Estados Unidos como na Europa, eles

representam a grande maioria de usuários ­ perto de 70% do total ­ e a proporção de adultos

não cresce.

Quem usa maconha pode partir para drogas mais pesadas.

Verdade

Meninos e meninas, especialmente nos últimos anos, têm, sim, seguido essa trilha. ―Nota-se

que a experiência com a canabis precede o interesse por outras substâncias‖, diz o

documento. São as colas de sapateiro, as anfetaminas, a cocaína e a heroína. Os

especialistas também escrevem que, ―quanto mais cedo se começa a fumar, maior é o

envolvimento com a maconha‖. E concluem que, entre os jovens nessa situação, é maior a

possibilidade de contato com coisas mais perigosas.

Sempre que um usuário procura outras drogas, a culpa é da maconha.

Mentira

Mas atenção: apesar de ser verdade que muitos jovens ampliam o coquetel de drogas depois

de experimentar a maconha, isso não quer dizer que a culpa caiba exclusivamente a ela. O

próprio hábito de recorrer à canabis pode ter tido causa mais profunda, como problemas

familiares, falta de perspectiva e assim por diante. Aí, o fumante da canabis amplia o seu

repertório de drogas pelos mesmos motivos. Essa, aliás, é a explicação preferida dos

pesquisadores reunidos pela OMS. Como reforço, eles lembram que ―a imensa maioria dos

usários de maconha não usa a cocaína e a heroína‖.

A maconha provoca desastres de trânsito.

Verdade Essa é uma nova preocupação dos especialistas. Sob ação da droga, fica mais difícil

executar desde tarefas simples, como datilografar, até as de maior responsabilidade, como

dirigir um automóvel. Em simulações, motoristas que fumaram 1 hora antes do teste

brecam em hora errada e demoram para reagir aos sinais de trânsito.

O motorista perde totalmente a capacidade de se controlar.

Mentira

Alguns testes sugerem que o fumante percebe a diminuição da coordenação motora e

procura compensar essa deficiência, concentrando-se mais no que está fazendo. Nos

desastres de trânsito em que o motorista demonstra ter fumado maconha, é comum ele

também ter bebido álcool. Com a mistura, é óbvio que a erva não tem culpa sozinha no

cartório.

A fumaça traz danos ao pulmão e está associada ao aparecimento da bronquite.

Verdade

O efeito sobre o aparelho respiratório, em conseqüência de doses elevadas da erva tóxica,

está solidamente comprovado. Aparecem lesões na traquéia, nos brônquios e, em menor

intensidade, em algumas células de defesa do organismo chamadas macrófagos alveolares.

Os usuários, então, ficam um pouco mais vulneráveis do que o resto da população.

Especialmente à bronquite obstrutiva crônica.

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Causa câncer com certeza.

Mentira

A fumaça da maconha contém algumas das substâncias do tabaco que estão ligadas ao

câncer. E até em maior quantidade. Sabendo disso, os pesquisadores ficaram em estado de

alerta ao descobrir tumores malignos no aparelho respiratório de alguns usuários jovens.

Mas até agora só o que há é uma desconfiança. Ainda é preciso examinar mais pacientes,

pois aqueles em que os tumores foram identificados também consumiam álcool e tabaco.

Não há conclusão possível, resume o relatório.

A produção de hormônios sexuais femininos pode ficar reduzida, alterando o ciclo

menstrual.

Verdade

Existem indícios de que a droga deixa o organismo com falta de diversas substâncias

essenciais à reprodução, entre as quais os hormônios. A carência ocorre durante uma das

etapas da menstruação, a chamada fase luteal, e a ovulação demora mais do que demoraria

normalmente. Esse efeito ainda não está bem esclarecido nas mulheres porque em alguns

exames ele aparece e em outros, não. Mas os especialistas reunidos pela OMS estão

convencidos de que ele existe, pois, nos testes com ratos e macacos, a queda de produção

pôde ser medida com precisão. A conclusão dos pesquisadores é que a ação da maconha

sobre o aparelho reprodutor feminino não deve ser menosprezada.

Os homens produzem menos espermatozóides.

Mentira

Caiu por terra o mito de que os homens que fumam a droga passam a produzir menor

quantidade do hormônio testosterona. Essa hipótese, que havia sido levantada nos primeiros

estudos sobre o assunto, na década de 70, não se sustenta mais. Também não fica mais de

pé a suposição de que o número de espermatozóides diminui. Nesse aspecto, o documento é

claro: do ponto de vista dos homens, ―não se deve esperar nenhuma conseqüência

significativa para a reprodução‖.

Fumar durante a gravidez prejudica a criança.

Verdade

É uma das novidades mais assustadoras apontadas pelo relatório. ―Usar a droga antes ou

durante a gestação pode deixar as crianças mais suscetíveis a certos tipos raros de câncer.‖

Entre os tumores observados está o da chamada leucemia não-linfoblástica, que contamina

o sangue, e o do rabdomiosarcoma, que ataca os tecidos nervosos. Mas ainda não há certeza

de que a cannabis esteja mesmo associada a esses males porque, se existe alguma outra

causa, as pesquisas já feitas não conseguiram detectar. O relatório da OMS declara que é

preciso investigar a hipótese mais a fundo. Um outro problema são as crianças que nascem

pesando abaixo do normal devido ao contato prévio da mãe com a erva tóxica. Sobre esse

ponto quase não restam dúvidas.

O sistema de defesa do organismo fica desorientado.

Mentira

Diversos estudos médicos, nos últimos anos, avaliaram os danos que a maconha poderia ter

sobre o conjunto do sistema imunológico, que protege o organismo dos micróbios. A

suposição era que a droga criaria confusão, mobilizando o exército orgânico sem

necessidade ou debilitando-o quando fosse preciso contra-atacar. Esses efeitos não foram

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confirmados. Há mesmo indícios de que o sistema de defesa resiste bem à droga.

As crises de esquizofrenia podem ficar mais fortes nos pacientes que fumam.

Verdade

Como alguns pacientes de esquizofrenia entram em crise pouco tempo depois de fumar,

levantou-se a hipótese que a droga poderia estar associada à doença. As pesquisas revelam

que a ligação existe. Em algumas situações, nota-se que, se a dose de canabis é grande,

cresce também a chance de uma crise.

A erva pode levar o usuário à esquizofrenia.

Mentira

Não dá para provar que a maconha provoque a doença. O motivo é simples: pode ser que,

justamente por terem esse tipo de problema mental, os pacientes desenvolvam propensão ao

consumo da erva. Ou seja, é como se o hábito de fumar fosse causado pelo mal, e não o

contrário. O resultado das pesquisas nesse campo deve ser considerado inconclusivo por

enquanto.

A erva no planeta

Número de usuários

A avaliação mais recente, divulgada em 1997, indicava que eles eram 140 milhões, 2,5% da

população da Terra.

Crescimento

Mas esse número vai aumentar, diz a OMS. ―O uso vem crescendo dramaticamente nos

últimos anos‖.

Evolução

O consumo começou a subir na década de 70, chegou ao ápice em 1979 e depois caiu,

voltando a avançar a partir de 1994.

Estados Unidos

É onde as estatísticas são mais completas. Em 1992, 4% da população tragava a canabis.

De volta no tempo

Origem

A primeira referência à maconha aparece num tratado médico chinês de 2 737 antes de

Cristo.

Costume tribal

Há 1 000 anos, já servia de tempero e remédio para povos da África e da Ásia, e era fumada

em rituais.

No Brasil

Ela teria sido trazida logo após 1500, contrabandeada pelos escravos.

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Proibição

Aqui, o uso e a venda foram proibidos pela Câmara de Comércio do Rio de Janeiro desde

1930.

Tabaco: também perigoso, mas incentivado

O cigarro faz mal à saúde, muito mal. Mas será que a pressão para reduzir os apelos da

publicidade vão chegar ao Brasil?

A maconha é prejudicial e ilícita. Mas o tabaco é um assassino e, paradoxalmente, é

oferecido nos meios de comunicação como um irresistível objeto de desejo. Segundo a

OMS, o cigarro é o réu principal em 80% dos cânceres do pulmão, 75% das bronquites e

dos enfisemas do mundo, e aumenta em quase dez vezes as chances de derrame cerebral. A

situação é tão delicada que diversos países, entre os quais a Alemanha e a França,

proibiram o patrocínio dos carros de Fórmula 1 por companhias de cigarro. Existe pressão

para que todos os países façam a mesma coisa a partir do ano 2000. No Brasil, um país em

que o piloto Ayrton Senna virou herói nacional e ídolo das crianças usando as cores e a

marca de um fabricante de cigarro, ainda não se combate com a necessária energia a

propaganda do tabaco.

Viagem pelas engrenagens da mente

A canabis reage com moléculas dos neurônios em diversas partes do cérebro. Localize os

principais focos de sua ação.

1. Córtex frontal

Controla o comportamento. A euforia nasce aqui

2. Núcleo acumbens

Pode sediar o mecanismo que causa dependência

3. Hipocampo

É o setor que guarda informações. Se atingido, perde memória

4. Cerebelo

Responde pelas alterações na coordenação motora

As mazelas engarrafadas

Os males da bebida são conhecidos, mas os hospitais continuam cheios de cidadãos

estragados pelo poder corrosivo do álcool.

Beber é uma satisfação que os arqueólogos dizem ter sido descoberta pelo homem há cerca

de 5 000 anos. Hoje, centenas de milhões de cidadãos cultivam os prazeres do álcool, há

campanhas vendendo marcas e mais marcas de bebida e a lei não as proíbe ­ o que não quer

dizer que elas não sejam ameaçadoras. Nenhuma droga pode concorrer com o copo em

matéria de perigo: ele é responsável por mais da metade de todas as mortes provocadas

pelas substâncias tóxicas consumidas na atualidade. Tomado por longo tempo, o álcool tem

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efeito corrosivo sobre os órgãos. No fígado, destrói as células e leva à cirrose. No sistema

nervoso, as lesões desativam os sentidos e os reflexos, e cortam ordens do cérebro aos

sistemas vitais, como o da respiração e o da circulação sanguínea. O colapso desses

sistemas é uma das maneiras que a bebida tem de matar.

Um check up de corpo inteiro

Do pulmão ao sexo do homem e da mulher

Veja quais são os pontos do corpo que mais atraem a atenção dos pesquisadores. Alguns

deles sofrem danos reais ou estão sob suspeita.

1. Esquizofrenia

As crises estão associadas à droga, mas podem não ser causadas por ela

2. Pulmão

Há uma clara ligação entre a droga e a bronquite. Ela predispõe à doença.

3. Aparelho reprodutor

Nas mulheres, surgem perturbações hormonais. Fumar na gravidez afeta a criança. No

homem, não há efeito. O número de espermatozóides não se reduz.

A barriga das mulheres vira um palco de distúrbios hormonais. A desconfiança de que os

bebês podem herdar tumores devido ao hábito das mães não está comprovada, mas também

não foi descartada.

Para saber mais:

INTERNET: Leia trechos do relatório da OMS no site

http://www.superinteressante.com.br.

Se Liga! O Livro das Drogas, Myltainho Severiano da Silva, Editora Record, RJ, 1997.

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Edição 179 – Agosto de 2002

A VERDADE SOBRE A MACONHA

Poucos assuntos dão margem a tanta mentira, tanta deturpação, tanta desinformação.

Afinal, quais os verdadeiros motivos por trás da proibição da maconha? A droga faz mal ou

não? E isso importa?

Por Denis Russo Burgierman

Por que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde. Será mesmo? Então, por que

o bacon não é proibido? Ou as anfetaminas? E, diga-se de passagem, nenhum mal sério à

saúde foi comprovado para o uso esporádico de maconha. A guerra contra essa planta foi

motivada muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e morais do que por

argumentos científicos. E algumas dessas razões são inconfessáveis. Tem a ver com o

preconceito contra árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários freqüentes de maconha

no começo do século XX. Deve muito aos interesses de indústrias poderosas dos anos 20,

que vendiam tecidos sintéticos e papel e queriam se livrar de um concorrente, o cânhamo.

Tem raízes também na bem-sucedida estratégia de dominação dos Estados Unidos sobre o

planeta. E, é claro, guarda relação com o moralismo judaico-cristão (e principalmente

protestante-puritano), que não aceita a idéia do prazer sem merecimento – pelo mesmo

motivo, no passado, condenou-se a masturbação.

Não é fácil falar desse assunto – admito que levei um dia inteiro para compor o

parágrafo acima. O tema é tão carregado de ideologia e as pessoas têm convicções tão

profundas sobre ele que qualquer convite ao debate, qualquer insinuação de que estamos

lidando mal com o problema já é interpretada como ―apologia às drogas‖ e, portanto,

punível com cadeia. O fato é que, apesar da desinformação dominante, sabe-se muito sobre

a maconha. Ela é cultivada há milênios e centenas de pesquisas já foram feitas sobre o

assunto. O que tentei fazer foi condensar nestas páginas o conhecimento que a humanidade

reuniu sobre a droga nos milênios em que convive com ela.

Por que é proibido?

―O corpo esmagado da menina jazia espalhado na calçada um dia depois de

mergulhar do quinto andar de um prédio de apartamentos em Chicago. Todos disseram que

ela tinha se suicidado, mas, na verdade, foi homicídio. O assassino foi um narcótico

conhecido na América como marijuana e na história como haxixe. Usado na forma de

cigarros, ele é uma novidade nos Estados Unidos e é tão perigoso quanto uma cascavel.‖

Começa assim a matéria ―Marijuana: assassina de jovens‖, publicada em 1937 na revista

American Magazine. A cena nunca aconteceu. O texto era assinado por um funcionário do

governo chamado Harry Anslinger. Se a maconha, hoje, é ilegal em praticamente todo o

mundo, não é exagero dizer que o maior responsável foi ele.

Nas primeiras décadas do século XX, a maconha era liberada, embora muita gente a

visse com maus olhos. Aqui no Brasil, maconha era ―coisa de negro‖, fumada nos terreiros

de candomblé para facilitar a incorporação e nos confins do país por agricultores depois do

trabalho. Na Europa, ela era associada aos imigrantes árabes e indianos e aos incômodos

intelectuais boêmios. Nos Estados Unidos, quem fumava eram os cada vez mais numerosos

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mexicanos – meio milhão deles cruzaram o Rio Grande entre 1915 e 1930 em busca de

trabalho. Muitos não acharam. Ou seja, em boa parte do Ocidente, fumar maconha era

relegado a classes marginalizadas e visto com antipatia pela classe média branca.

Pouca gente sabia, entretanto, que a mesma planta que fornecia fumo às classes

baixas tinha enorme importância econômica. Dezenas de remédios – de xaropes para tosse

a pílulas para dormir – continham cannabis. Quase toda a produção de papel usava como

matéria-prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A indústria de

tecidos também dependia da cannabis – o tecido de cânhamo era muito difundido,

especialmente para fazer cordas, velas de barco, redes de pesca e outros produtos que

exigissem um material muito resistente. A Ford estava desenvolvendo combustíveis e

plásticos feitos a partir do óleo da semente de maconha. As plantações de cânhamo

tomavam áreas imensas na Europa e nos Estados Unidos.

Em 1920, sob pressão de grupos religiosos protestantes, os Estados Unidos

decretaram a proibição da produção e da comercialização de bebidas alcoólicas. Era a Lei

Seca, que durou até 1933. Foi aí que Henry Anslinger surgiu na vida pública americana –

reprimindo o tráfico de rum que vinha das Bahamas. Foi aí, também, que a maconha entrou

na vida de muita gente – e não só dos mexicanos. ―A proibição do álcool foi o estopim para

o ‗boom‘ da maconha‖, afirma o historiador inglês Richard Davenport-Hines, especialista

na história dos narcóticos, em seu livro The Pursuit of Oblivion (A busca do esquecimento,

ainda sem versão para o Brasil). ―Na medida em que ficou mais difícil obter bebidas

alcoólicas e elas ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que vendiam maconha

começaram a proliferar‖, escreveu.

Anslinger foi promovido a chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de

Proibição e sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas. Foi nessa época que ele

percebeu o clima de antipatia contra a maconha que tomava a nação. Clima esse que só

piorou com a quebra da Bolsa, em 1929, que afundou a nação numa recessão. No sul do

país, corria o boato de que a droga dava força sobre-humana aos mexicanos, o que seria

uma vantagem injusta na disputa pelos escassos empregos. A isso se somavam insinuações

de que a droga induzia ao sexo promíscuo (muitos mexicanos talvez tivessem mais

parceiros que um americano puritano médio, mas isso não tem nada a ver com a maconha)

e ao crime (com a crise, a criminalidade aumentou entre os mexicanos pobres, mas a

maconha é inocente disso). Baseados nesses boatos, vários Estados começaram a proibir a

substância. Nessa época, a maconha virou a droga de escolha dos músicos de jazz, que

afirmavam ficar mais criativos depois de fumar.

Anslinger agarrou-se firme à bandeira proibicionista, batalhou para divulgar os

mitos antimaconha e, em 1930, quando o governo, preocupado com a cocaína e o ópio,

criou o FBN (Federal Bureau of Narcotics, um escritório nos moldes do FBI para lidar com

drogas), ele articulou para chefiá-lo. De repente, de um cargo burocrático obscuro,

Anslinger passou a ser o responsável pela política de drogas do país. E quanto mais

substâncias fossem proibidas, mais poder ele teria.

Mas é improvável que a cruzada fosse motivada apenas pela sede de poder. Outros

interesses devem ter pesado. Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono

da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da igualmente gigante Du

Pont. ―A Du Pont foi uma das maiores responsáveis por orquestrar a destruição da indústria

do cânhamo‖, afirma o escritor Jack Herer, em seu livro The Emperor Wears No Clothes

(O imperador está nu, ainda sem tradução). Nos anos 20, a empresa estava desenvolvendo

vários produtos a partir do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos, fibras sintéticas

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como o náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira. Esses

produtos tinham uma coisa em comum: disputavam o mercado com o cânhamo.

Seria um empurrão considerável para a nascente indústria de sintéticos se as

imensas lavouras de cannabis fossem destruídas, tirando a fibra do cânhamo e o óleo da

semente do mercado. ―A maconha foi proibida por interesses econômicos, especialmente

para abrir o mercado das fibras naturais para o náilon‖, afirma o jurista Wálter Maierovitch,

especialista em tráfico de entorpecentes e ex-secretário nacional antidrogas.

Anslinger tinha um aliado poderoso na guerra contra a maconha: William Randolph

Hearst, dono de uma imensa rede de jornais. Hearst era a pessoa mais influente dos Estados

Unidos. Milionário, comandava suas empresas de um castelo monumental na Califórnia,

onde recebia artistas de Hollywood para passear pelo zoológico particular ou dar braçadas

na piscina coberta adornada com estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou

para criar o protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst sabidamente odiava mexicanos.

Parte desse ódio talvez se devesse ao fato de que, durante a Revolução Mexicana de 1910,

as tropas de Pancho Villa (que, aliás, faziam uso freqüente de maconha) desapropriaram

uma enorme propriedade sua. Sim, Hearst era dono de terras e as usava para plantar

eucaliptos e outras árvores para produzir papel. Ou seja, ele também tinha interesse em que

a maconha americana fosse destruída – levando com ela a indústria de papel de cânhamo.

Hearst iniciou, nos anos 30, uma intensa campanha contra a maconha. Seus jornais

passaram a publicar seguidas matérias sobre a droga, às vezes afirmando que a maconha

fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas, outras noticiando que 60% dos crimes

eram cometidos sob efeito da droga (um número tirado sabe-se lá de onde). Nessa época,

surgiu a história de que o fumo mata neurônios, um mito repetido até hoje. Foi Hearst que,

se não inventou, ao menos popularizou o nome marijuana (ele queria uma palavra que

soasse bem hispânica, para permitir a associação direta entre a droga e os mexicanos).

Anslinger era presença constante nos jornais de Hearst, onde contava suas histórias de

terror. A opinião pública ficou apavorada. Em 1937, Anslinger foi ao Congresso dizer que,

sob o efeito da maconha, ―algumas pessoas embarcam numa raiva delirante e cometem

crimes violentos‖.

Os deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da cannabis,

sem levar em conta as pesquisas que afirmavam que a substância era segura. Proibiu-se não

apenas a droga, mas a planta. O homem simplesmente cassou o direito da espécie Cannabis

sativa de existir.

Anslinger também atuou internacionalmente. Criou uma rede de espiões e passou a

freqüentar as reuniões da Liga das Nações, antecessora da ONU, propondo tratados cada

vez mais duros para reprimir o tráfico internacional. Também começou a encontrar líderes

de vários países e a levar a eles os mesmos argumentos aterrorizantes que funcionaram com

os americanos. Não foi difícil convencer os governos – já na década de 20 o Brasil adotava

leis federais antimaconha. A Europa também embarcou na onda proibicionista.

―A proibição das drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social

das minorias‖, diz o cientista político Thiago Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos

Interdisciplinares sobre Psicoativos. Funciona assim: maconha é coisa de mexicano,

mexicanos são uma classe incômoda. ―Como não é possível proibir alguém de ser

mexicano, proíbe-se algo que seja típico dessa etnia‖, diz Thiago. Assim, é possível manter

sob controle todos os mexicanos – eles estarão sempre ameaçados de cadeia. Por isso a

proibição da maconha fez tanto sucesso no mundo. O governo brasileiro achou ótimo mais

esse instrumento para manter os negros sob controle. Os europeus também adoraram poder

enquadrar seus imigrantes.

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A proibição foi virando uma forma de controle internacional por parte dos Estados

Unidos, especialmente depois de 1961, quando uma convenção da ONU determinou que as

drogas são ruins para a saúde e o bem-estar da humanidade e, portanto, eram necessárias

ações coordenadas e universais para reprimir seu uso. ―Isso abriu espaço para intervenções

militares americanas‖, diz Maierovitch. ―Virou um pretexto oportuno para que os

americanos possam entrar em outros países e exercer os seus interesses econômicos.‖

Estava erguida uma estrutura mundial interessada em manter as drogas na

ilegalidade, a maconha entre elas. Um ano depois, em 1962, o presidente John Kennedy

demitiu Anslinger – depois de nada menos que 32 anos à frente do FBN. Um grupo

formado para analisar os efeitos da droga concluiu que os riscos da maconha estavam sendo

exagerados e que a tese de que ela levava a drogas mais pesadas era furada. Mas não veio a

descriminalização. Pelo contrário. O presidente Richard Nixon endureceu mais a lei,

declarou ―guerra às drogas‖ e criou o DEA (em português, Escritório de Coação das

Drogas), um órgão ainda mais poderoso que o FBN, porque, além de definir políticas, tem

poder de polícia.

Maconha faz mal?

Taí uma pergunta que vem sendo feita faz tempo. Depois de mais de um século de

pesquisas, a resposta mais honesta é: faz, mas muito pouco e só para casos extremos. O uso

moderado não faz mal. A preocupação da ciência com esse assunto começou em 1894,

quando a Índia fazia parte do Império Britânico. Havia, então, a desconfiança de que o

bhang, uma bebida à base de maconha muito comum na Índia, causava demência. Grupos

religiosos britânicos reivindicavam sua proibição. Formou-se a Comissão Indiana de

Drogas da Cannabis, que passou dois anos investigando o tema. O relatório final

desaconselhou a proibição: ―O bhang é quase sempre inofensivo quando usado com

moderação e, em alguns casos, é benéfico. O abuso do bhang é menos prejudicial que o

abuso do álcool‖.

Em 1944, um dos mais populares prefeitos de Nova York, Fiorello La Guardia,

encomendou outra pesquisa. Em meio à histeria antimaconha de Anslinger, La Guardia

resolveu conferir quais os reais riscos da tal droga assassina. Os cientistas escolhidos por

ele fizeram testes com presidiários (algo comum na época) e concluíram: ―O uso

prolongado da droga não leva à degeneração física, mental ou moral‖. O trabalho passou

despercebido no meio da barulheira proibicionista de Anslinger.

A partir dos anos 60, várias pesquisas parecidas foram encomendadas por outros

governos. Relatórios produzidos na Inglaterra, no Canadá e nos Estados Unidos

aconselharam um afrouxamento nas leis. Nenhuma dessas pesquisas foi suficiente para

forçar uma mudança. Mas a experiência mais reveladora sobre a maconha e suas

conseqüências foi realizada fora do laboratório. Em 1976, a Holanda decidiu parar de

prender usuários de maconha desde que eles comprassem a droga em cafés autorizados.

Resultado: o índice de usuários continua comparável aos de outros países da Europa. O de

jovens dependentes de heroína caiu – estima-se que, ao tirar a maconha da mão dos

traficantes, os holandeses separaram essa droga das mais pesadas e, assim, dificultaram o

acesso a elas.

Nos últimos anos, os possíveis males da maconha foram cuidadosamente

escrutinados – às vezes por pesquisadores competentes, às vezes por gente mais interessada

em convencer os outros da sua opinião. Veja abaixo um resumo do que se sabe:

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Câncer

Não se provou nenhuma relação direta entre fumar maconha e câncer de pulmão, traquéia,

boca e outros associados ao cigarro. Isso não quer dizer que não haja. Por muito tempo, os

riscos do cigarro foram negligenciados e só nas últimas duas décadas ficou claro que havia

uma bomba-relógio armada – porque os danos só se manifestam depois de décadas de uso

contínuo. Há o temor de que uma bomba semelhante esteja para explodir no caso da

maconha, cujo uso se popularizou a partir dos anos 60. O que se sabe é que o cigarro de

maconha tem praticamente a mesma composição de um cigarro comum – a única diferença

significativa é o princípio ativo. No cigarro é a nicotina, na maconha o tetrahidrocanabinol,

ou THC. Também é verdade que o fumante de maconha tem comportamentos mais

arriscados que o de cigarro: traga mais profundamente, não usa filtro e segura a fumaça por

mais tempo no pulmão (o que, aliás, segundo os cientistas, não aumenta os efeitos da

droga).

Em compensação, boa parte dos maconheiros fuma muito menos e pára ou reduz o

consumo depois dos 30 anos (parar cedo é sabidamente uma forma de diminuir

drasticamente o risco de câncer). Em resumo: o usuário eventual de maconha, que é o mais

comum, não precisa se preocupar com um aumento grande do risco de câncer. Quem fuma

mais de um baseado por dia há mais de 15 anos deve pensar em parar.

Dependência

Algo entre 6% e 12% dos usuários, dependendo da pesquisa, desenvolve um uso

compulsivo da maconha (menos que a metade das taxas para álcool e tabaco). A questão é:

será que a maconha é a causa da dependência ou apenas uma válvula de escape.

―Dependência de maconha não é problema da substância, mas da pessoa‖, afirma o

psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a

Dependentes da Escola Paulista de Medicina. Segundo Dartiu, há um perfil claro do

dependente de maconha: em geral, ele é jovem, quase sempre ansioso e eventualmente

depressivo. Pessoas que não se encaixam nisso não desenvolvem o vício. ―E as que se

encaixam podem tanto ficar dependentes de maconha quanto de sexo, de jogo, de internet‖,

diz.

Muitos especialistas apontam para o fato de que a maconha está ficando mais perigosa – na

medida em que fica mais potente. Ao longo dos últimos 40 anos, foi feito um

melhoramento genético, cruzando plantas com alto teor de THC. Surgiram variedades

como o skunk. No último ano, foram apreendidos carregamentos de maconha alterada

geneticamente no Leste europeu – a engenharia genética é usada para aumentar a potência,

o que poderia aumentar o potencial de dependência. Segundo o farmacólogo Leslie Iversen,

autor do ótimo The Science of Marijuana (A ciência da maconha, sem tradução para o

português) e consultor para esse tema da Câmara dos Lordes (o Senado inglês), esses

temores são exagerados e o aumento da concentração de THC não foi tão grande assim.

Para além dessa discussão, o fato é que, para quem é dependente, maconha faz muito mal.

Isso é especialmente verdade para crianças e adolescentes. ―O sujeito com 15 anos não está

com a personalidade formada. O uso exagerado de maconha pode ser muito danoso a ele‖,

diz Dartiu. O maior risco para adolescentes que fumam maconha é a síndrome

amotivacional, nome que se dá à completa perda de interesse que a droga causa em algumas

pessoas. A síndrome amotivacional é muito mais freqüente em jovens e realmente atrapalha

a vida – é quase certeza de bomba na escola e de crise na família.

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Danos cerebrais

―Maconha mata neurônios.‖ Essa frase, repetida há décadas, não passa de mito. Bilhões de

dólares foram investidos para comprovar que o THC destrói tecido cerebral – às vezes com

pesquisas que ministravam doses de elefante em ratinhos –, mas nada foi encontrado.

Muitas experiências foram feitas em busca de danos nas capacidades cognitivas do usuário

de maconha. A maior preocupação é com a memória. Sabe-se que o usuário de maconha,

quando fuma, fica com a memória de curto prazo prejudicada. São bem comuns os relatos

de pessoas que têm idéias que parecem geniais durante o ―barato‖, mas não conseguem

lembrar-se de nada no momento seguinte. Isso acontece porque a memória de curto prazo

funciona mal sob o efeito de maconha e, sem ela, as memórias de longo prazo não são

fixadas (é por causa desse ―desligamento‖ da memória que o usuário perde a noção do

tempo). Mas esse dano não é permanente. Basta ficar sem fumar que tudo volta a funcionar

normalmente. O mesmo vale para o raciocínio, que fica mais lento quando o usuário fuma

muito freqüentemente.

Há pesquisas com usuários ―pesados‖ e antigos, aqueles que fumam vários baseados por dia

há mais de 15 anos, que mostraram que eles se saem um pouco pior em alguns testes,

principalmente nos de memória e de atenção. As diferenças, no entanto, são sutis. Na

comparação com o álcool, a maconha leva grande vantagem: beber muito provoca danos

cerebrais irreparáveis e destrói a memória.

Coração

O uso de maconha dilata os vasos sangüíneos e, para compensar, acelera os batimentos

cardíacos. Isso não oferece risco para a maioria dos usuários, mas a droga deve ser evitada

por quem sofre do coração.

Infertilidade

Pesquisas mostraram que o usuário freqüente tem o número de espermatozóides reduzido.

Ninguém conseguiu provar que isso possa causar infertilidade, muito menos impotência.

Também está claro que os espermatozóides voltam ao normal quando se pára de fumar.

Depressão imunológica

Nos anos 70, descobriu-se que o THC afeta os glóbulos brancos, células de defesa do

corpo. No entanto, nenhuma pesquisa encontrou relação entre o uso de maconha e a

incidência de infecções.

Loucura

No passado, acreditava-se que maconha causava demência. Isso não se confirmou, mas

sabe-se que a droga pode precipitar crises em quem já tem doenças psiquiátricas.

Gravidez

Algumas pesquisas apontaram uma tendência de filhos de mães que usaram muita maconha

durante a gravidez de nascer com menor peso. Outras não confirmaram a suspeita. De

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qualquer maneira, é melhor evitar qualquer droga psicoativa durante a gestação. Sem

dúvida, a mais perigosa delas é o álcool.

Maconha faz bem?

No geral, não. A maioria das pessoas não gosta dos efeitos e as afirmações de que a

erva, por ser ―natural‖, faz bem, não passam de besteira. Outros adoram e relatam que ela

ajuda a aumentar a criatividade, a relaxar, a melhorar o humor, a diminuir a ansiedade. É

inevitável: cada um é um.

O uso medicinal da maconha é tão antigo quanto a maconha. Hoje há muitas

pesquisas com a cannabis para usá-la como remédio. Segundo o farmacólogo inglês

Iversen, não há dúvidas de que ela seja um remédio útil para muitos e fundamental para

alguns, mas há um certo exagero sobre seus potenciais. Em outras palavras: a maconha não

é a salvação da humanidade. Um dos maiores desafios dos laboratórios é tentar separar o

efeito medicinal da droga do efeito psicoativo – ou seja, criar uma maconha que não dê

―barato‖. Muitos pesquisadores estão chegando à conclusão de que isso é impossível:

aparentemente, as mesmas propriedades químicas que alteram a percepção do cérebro são

responsáveis pelo caráter curativo. Esse fato é uma das limitações da maconha como

medicamento, já que muitas pessoas não gostam do efeito mental. No Brasil, assim como

em boa parte do mundo, o uso médico da cannabis é proibido e milhares de pessoas usam o

remédio ilegalmente. Conheça alguns dos usos:

Câncer

Pessoas tratadas com quimioterapia muitas vezes têm enjôos terríveis, eventualmente tão

terríveis que elas preferem a doença ao remédio. Há medicamentos para reduzir esse enjôo

e eles são eficientes. No entanto, alguns pacientes não respondem a nenhum remédio legal e

respondem maravilhosamente à maconha. Era o caso do brilhante escritor e paleontólogo

Stephen Jay Gould, que, no mês passado, finalmente, perdeu uma batalha de 20 anos contra

o câncer (veja mais sobre ele na página 23). Gould nunca tinha usado drogas psicoativas –

ele detestava a idéia de que interferissem no funcionamento do cérebro. Veja o que ele

disse: ―A maconha funcionou como uma mágica. Eu não gostava do ‗efeito colateral‘ que

era o borrão mental. Mas a alegria cristalina de não ter náusea – e de não experimentar o

pavor nos dias que antecediam o tratamento – foi o maior incentivo em todos os meus anos

de quimioterapia‖.

Aids

Maconha dá fome. Qualquer um que fuma sabe disso (aliás, esse é um de seus

inconvenientes: ela engorda). Nenhum remédio é tão eficiente para restaurar o peso de

portadores do HIV quanto a maconha. E isso pode prolongar muito a vida: acredita-se que

manter o peso seja o principal requisito para que um soropositivo não desenvolva a doença.

O problema: a cannabis tem uma ação ainda pouco compreendida no sistema imunológico.

Sabe-se que isso não representa perigo para pessoas saudáveis, mas pode ser um risco para

doentes de Aids.

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Esclerose múltipla

Essa doença degenerativa do sistema nervoso é terrivelmente incômoda e fatal. Os doentes

sentem fortes espasmos musculares, muita dor e suas bexigas e intestinos funcionam muito

mal. Acredita-se que ela seja causada por uma má função do sistema imunológico, que faz

com que as células de defesa ataquem os neurônios. A maconha alivia todos os sintomas.

Ninguém entende bem por que ela é tão eficiente, mas especula-se que tenha a ver com seu

pouco compreendido efeito no sistema imunológico.

Dor

A cannabis é um analgésico usado em várias ocasiões. Os relatos de alívio das cólicas

menstruais são os mais promissores.

Glaucoma

Essa doença caracteriza-se pelo aumento da pressão do líquido dentro do olho e pode levar

à cegueira. Maconha baixa a pressão intraocular. O problema é que, para ser um remédio

eficiente, a pessoa tem que fumar a cada três ou quatro horas, o que não é prático e, com

certeza, é nocivo (essa dose de maconha deixaria o paciente eternamente ―chapado‖). Há

estudos promissores com colírios feitos à base de maconha, que agiriam diretamente no

olho, sem afetar o cérebro.

Ansiedade

Maconha é um remédio leve e pouco agressivo contra a ansiedade. Isso, no entanto,

depende do paciente. Algumas pessoas melhoram após fumar; outras, principalmente as

pouco habituadas à droga, têm o efeito oposto. Também há relatos de sucesso no tratamento

de depressão e insônia, casos em que os remédios disponíveis no mercado, embora sejam

mais eficientes, são também bem mais agressivos e têm maior potencial de dependência.

Dependência

Dois psiquiatras brasileiros, Dartiu Xavier e Eliseu Labigalini, fizeram uma experiência

interessante. Incentivaram dependentes de crack a fumar maconha no processo de largar o

vício. Resultado: 68% deles abandonaram o crack e, depois, pararam espontaneamente com

a maconha, um índice altíssimo. Segundo eles, a maconha é um remédio feito sob medida

para combater a dependência de crack e cocaína, porque estimula o apetite e combate a

ansiedade, dois problemas sérios para cocainômanos. Dartiu e Eliseu pretendem continuar

as pesquisas, mas estão com problemas para conseguir financiamento – dificilmente um

órgão público investirá num trabalho que aposte nos benefícios da maconha.

O passado

O primeiro registro do contato entre o Homo sapiens e a Cannabis sativa é de 6 000

anos atrás. Trata-se da marca de uma corda de cânhamo impressa em cacos de barro, na

China. O emprego da fibra, não só em cordas mas também em vários tecidos e, depois, na

fabricação de papel, é um dos mais antigos usos da maconha. Graças a ele, a planta,

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original da região ao norte do Afeganistão, nos pés do Himalaia, tornou-se a primeira

cultivada pelo homem com usos não alimentícios e espalhou-se por toda a Ásia e depois

pela Europa e África.

Mas há um uso da maconha que pode ser tão antigo quanto o da fibra do cânhamo: o

medicinal. Os chineses conhecem há pelo menos 2 000 anos o poder curativo da droga,

como prova o Pen-Ts‘ao Ching, considerado a primeira farmacopéia conhecida do mundo

(farmacopéia é um livro que reúne fórmulas e receitas de medicamentos). O livro

recomenda o uso da maconha contra prisão-de-ventre, malária, reumatismo e dores

menstruais. Também na Índia, a erva já há milênios é parte integral da medicina

ayurvédica, usada no tratamento de dezenas de doenças. Sem falar que ela ocupa um lugar

de destaque na religião hindu. Pela mitologia, maconha era a comida favorita do deus

Shiva, que, por isso, viveria o tempo todo ―chapado‖. Tomar bhang seria uma forma de

entrar em comunhão com Shiva.

O Hinduísmo não é a única religião a dar destaque para a cannabis. Para os budistas

da tradição Mahayana, Buda passou seis anos comendo apenas uma semente de maconha

por dia. Sua iluminação teria sido atingida após esse período de quase-jejum. Da Índia, a

maconha migrou para a Mesopotâmia, ainda em tempos pré-cristãos, e de lá para o Oriente

Médio. Portanto, ela já estava presente na região quando começou a expansão do Império

Árabe. Com a proibição do álcool entre o povo de Maomé, iniciou-se uma acalorada

discussão sobre se a maconha deveria ser banida também. Por séculos, consumiu-se

cannabis abundantemente nas terras muçulmanas até que, na Idade Média, muitos islâmicos

abandonaram o hábito. A exceção foram os sufi, membros de uma corrente considerada

mais mística e esotérica do Islã, que, até bem recentemente, consideravam a cannabis

fundamental em seus ritos.

Os gregos usaram velas e cordas de cânhamo nos seus navios, assim como, depois,

os romanos. Sabe-se que o Império Romano tinha pelo menos conhecimento dos poderes

psicoativos da maconha. O historiador latino Tácito, que viveu no século I d.C., relata que

os citas, um povo da atual Turquia, tinham o costume de armar uma tenda, acender uma

fogueira e queimar grande quantidade de maconha. Daí ficavam lá dentro, numa versão

psicodélica do banho turco.

Graças ao contato com os árabes, grande parte da África conheceu a erva e

incorporou-a aos seus ritos e à sua medicina – dos países muçulmanos acima do Saara até

os zulus da África do Sul. A Europa toda também passou a plantar maconha e usava

extensivamente a fibra do cânhamo, mas há raríssimos registros do seu uso como psicoativo

naquele continente. Pode ser que isso se deva ao clima. O THC é uma resina produzida pela

planta para proteger suas folhas e flores do sol forte. Na fria Europa, é possível que tenha se

desenvolvido uma variação da Cannabis sativa com menos THC, já que não havia tanto sol

para ameaçar o arbusto.

O fato é que, na Renascença, a maconha se transformou no principal produto

agrícola da Europa. E sua importância não foi só econômica: a planta teve uma grande

participação na mudança de mentalidade que ocorreu no século XV. Os primeiros livros

depois da revolução de Gutemberg foram impressos em papel de cânhamo. As pinturas dos

gênios da arte eram feitas em telas de cânhamo (canvas, a palavra usada em várias línguas

para designar ―tela‖, é uma corruptela holandesa do latim cannabis). E as grandes

navegações foram impulsionadas por velas de cânhamo – segundo o autor americano

Rowan Robinson, autor de O Grande Livro da Cannabis, havia 80 toneladas de cânhamo,

contando o velame e as cordas, no barco comandado por Cristóvão Colombo em 1496. Ou

seja, a América foi descoberta graças à maconha. Irônico.

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Sobre as luzes da Renascença caíram as sombras da Inquisição – um período em

que a Igreja ganhou muita força e passou a exercer o papel de polícia, julgando hereges em

seu tribunal e condenando bruxas à fogueira. ―As bruxas nada mais eram do que as

curandeiras tradicionais, principalmente as de origem celta, que utilizavam plantas para

tratar as pessoas, às vezes plantas com poderes psicoativos‖, diz o historiador Henrique

Carneiro, especialista em drogas da Universidade Federal de Ouro Preto. Não há registros

de que maconheiros tenham sido queimados no século XVI – inclusive porque o uso

psicoativo da maconha era incomum na Europa –, mas é certo que cristalizou-se naquela

época uma antipatia cristã por plantas que alteram o estado de consciência. ―O Cristianismo

afirmou seu caráter de religião imperial e, sob seus domínios, a única droga permitida é o

álcool, associado com o sangue de Cristo‖, diz Henrique.

Em 1798, as tropas de Napoleão conquistaram o Egito. Até hoje não estão muito

claras as razões pelas quais o imperador francês se aventurou no norte da África (vaidade,

talvez). Mas pode ser que o principal motivo fosse a intenção de destruir as plantações de

maconha, que abasteciam de cânhamo a poderosa Marinha da Inglaterra. O fato é que

coube a Napoleão promulgar a primeira lei do mundo moderno proibindo a maconha. Os

egípcios eram fumantes de haxixe, a resina extraída da folha e da flor da maconha

constituída de THC concentrado. Mas a proibição saiu pela culatra. Os egípcios ignoraram

a lei e continuaram fumando como sempre fizeram. Em compensação, os europeus ouviram

falar da droga e ela rapidamente virou moda na Europa, principalmente entre os

intelectuais. ―O haxixe está substituindo o champagne‖, disse o escritor Théophile Gautier

em 1845, depois da conquista da Argélia, que, na época, era outro grande consumidor de

THC.

No Brasil, a planta chegou cedo, talvez ainda no século XVI, trazida pelos escravos

(o nome ―maconha‖ vem do idioma quimbundo, de Angola. Mas, até o século XIX, era

mais usual chamar a erva de fumo-de-angola ou de diamba, nome também quimbundo). Por

séculos, a droga foi tolerada no país, provavelmente fumada em rituais de candomblé (teria

sido o presidente Getúlio Vargas que negociou a retirada da maconha dos terreiros, em

troca da legalização da religião). Em 1830, o Brasil fez sua primeira lei restringindo a

planta. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro tornou ilegal a venda e o uso da droga na

cidade e determinou que ―os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20 000

réis, e os escravos e demais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.‖ Note que,

naquela primeira lei proibicionista, a pena para o uso era mais rigorosa que a do traficante.

Há uma razão para isso. Ao contrário do que acontece hoje, o vendedor vinha da classe

média branca e o usuário era quase sempre negro e escravo.

O presente

Segundo dados da ONU, 147 milhões de pessoas fumam maconha no mundo, o que

faz dela a terceira droga psicoativa mais consumida do mundo, depois do tabaco e do

álcool. A droga é proibida em boa parte do mundo, mas, desde que a Holanda começou a

tolerá-la, na década de 70, alguns outros países europeus seguiram os passos da

descriminalização. Itália e Espanha há tempos aceitam pequenas quantidades da erva –

embora a Espanha esteja abandonando a posição branda e haja projetos de lei, na Itália, no

mesmo sentido. O Reino Unido acabou de anunciar que descriminalizou o uso da maconha

– a partir do ano que vem, a droga será apreendida e o portador receberá apenas uma

advertência verbal. Os ingleses esperam, assim, poder concentrar seus esforços na repressão

de drogas mais pesadas.

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No ano passado, Portugal endureceu as penas para o tráfico, mas descriminalizou o

usuário de qualquer droga, desde que ele seja encontrado com quantidades pequenas. Porte

de drogas virou uma infração administrativa, como parar em lugar proibido.

Nos últimos anos, os Estados Unidos também mudaram sua forma de lidar com as

drogas. Dentro da tendência mundial de ver a questão mais como um problema de saúde do

que criminal, o país, em vez de botar na cadeia, obriga o usuário a se tratar numa clínica

para dependentes. ―Essa idéia é completamente equivocada‖, afirma o psiquiatra Dartiu

Xavier, refletindo a opinião de muitos especialistas. ―Primeiro porque nem todo usuário é

dependente. Segundo, porque um tratamento não funciona se é compulsório – a pessoa tem

que querer parar‖, diz. No sistema americano, quem recusa o tratamento ou o abandona vai

para a cadeia. Portanto, não é uma descriminalização. ―Chamo esse sistema de

‗solidariedade autoritária‘‖, diz o jurista Maierovitch. O Brasil planeja adotar o mesmo

modelo.

O futuro

Há possibilidades de uma mudança no tratamento à maconha? ―No Brasil, não é

fácil‖, diz Maierovitch, que, enquanto era secretário nacional antidrogas do governo de

Fernando Henrique Cardoso, planejou a descriminalização. ―A lei hoje em vigor em

Portugal foi feita em conjunto conosco, com o apoio do presidente‖, afirma. A idéia é que

ela fosse colocada em prática ao mesmo tempo nos dois países. Segundo Maierovitch,

Fernando Henrique mudou de idéia depois. O jurista afirma que há uma enorme influência

americana na política de drogas brasileira. O fato é que essa questão mais tira do que dá

votos e assusta os políticos – e não só aqui no Brasil. O deputado federal Fernando Gabeira,

hoje no Partido dos Trabalhadores, é um dos poucos identificados com a causa da

descriminalização. ―Pretendo, como um primeiro passo, tentar a legalização da maconha

para uso médico‖, diz. Mas suas idéias estão longe de ser unanimidade mesmo dentro do

seu partido.

No remoto caso de uma legalização da compra e da venda, haveria dois modelos

possíveis. Um seria o monopólio estatal, com o governo plantando e fornecendo as drogas,

para permitir um controle maior. A outra possibilidade seria o governo estabelecer as regras

(composição química exigida, proibição para menores de idade, proibição para fumar e

dirigir), cobrar impostos (que seriam altíssimos, inclusive para evitar que o preço caia

muito com o fim do tráfico ilegal) e a iniciativa privada assumir o lucrativo negócio. Não

há no horizonte nenhum sinal de que isso esteja para acontecer. Mas a Super apurou, em

consulta ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, que a Souza Cruz registrou, em

1997, a marca Marley – fica para o leitor imaginar que produto a empresa de tabaco

pretende comercializar com o nome do ídolo do reggae.

Frases

A popularidade da maconha explodiu em 1920, quando o álcool foi proibido.

O consumo moderado de maconha não provoca nenhum dano sério à saúde.

Das cordas às velas, havia 80 toneladas de cânhamo no navio de Colombo.

Page 117: A maconha, a ciência e a mídia: uma análise do discurso jornalístico-científico sobre a maconha na revista SUPERINTERESSANTE

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Para saber mais:

Na livraria

O Grande Livro da Cannabis, Rowan Robinson, Jorge Zahar, 1999

A Maconha, Fernando Gabeira, Publifolha, 2000

Science of Marijuana, Leslie L. Iversen, Oxford, Ingleterra, 2000

The Pursuit of Oblivion: A Global History of Narcotics 1500-200, Richard Davenport-

Hines, Weidenfeld & Nicolson, Ingleterra, 2001

Diamba Sarabamba, Anthony Henman e Osvaldo Pessoa Jr. (organizações), Ground, 1986

Plantas de los Dioses, Richard Evans Schultes e Albert Hofmann, Fondo de Cultura

Económica, México, 1982

The Emperor Wears no Clothes, Jack Herer, Green Planet Company, Inglaterra, 1994

Green Gold the Tree of Life, Chris Bennett, Lynn e Osbum, Judy Osbum, Access, EUA,

1995

Amores e Sonhos da Flora, Henrique Carneiro, Xamã, 2002